Passados quase sessenta anos desde a aprovação da Constituição Dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, o que ela tem a dizer acerca da relação entre a Sagrada Escritura e a vida da Igreja hoje? Ainda temos algo a aprender? Para iluminar esta reflexão, fundamentaremo-nos, sobretudo, no capítulo VI da própria Dei Verbum e, com isso, no recente Caderno do Concílio publicado sobre o este tema[1].
Evangelizar com fundamento na Palavra
A ênfase na leitura da Escritura dentro da grande Tradição parece por vezes indicar que a Escritura ocupa na fé católica um lugar de pouca relevância. Porém, tratar do significado da Escritura para a fé católica é tocar em algo essencial para esta mesma fé. A história demonstra a importância que a Escritura sempre teve na formulação e na vivência da fé. A Igreja existe para evangelizar (EN 14), e “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176) e “toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada” (EG 174), então, é fundamental que, como Igreja, tenhamos sempre presente o contato íntimo com a Palavra de Deus que deve iluminar todas os planejamentos, organizações, encontros, atividades, enfim, toda ação evangelizadora da Igreja.
Na realidade, a Igreja sempre teve uma veneração especial pelas Escrituras[2]. O parágrafo 21 da DV ressalta isso: a Igreja “sempre as considerou, e continua a considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé”. Nelas, Deus vem ao encontro do ser humano. Essa Palavra “fornece à Igreja o apoio vigoroso, aos filhos da Igreja a solidez da fé, e constitui alimento da alma, fonte pura e perene da vida espiritual”.
A Igreja deve “formar-se continuamente na escuta da Palavra” (EG 174), já que “a evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus” (EG 175). Como discípula, a Igreja “tem necessidade de crescer na interpretação da Palavra revelada e na sua compreensão da verdade” (EG 40). Não se pode pensar a Igreja hoje deslocada do seu contato com a Sagrada Escritura, da mesma forma que não se pode dissociar a leitura e a interpretação da Escritura da vida da Igreja porque, como afirma Cardinalli, se correm “riscos de absolutização muito perigosos”. O primeiro “é se referir à Escritura como norma de fé absoluta e única, como sujeito à parte e, portanto, separado da dimensão eclesial”. Outro risco “é fazer o oposto e não viver a vida da Igreja à luz das Escrituras, tendendo, assim como aconteceu em certos períodos históricos, a formas de piedade devocional não enraizadas nas escrituras”[3].
A Divina força das Escrituras
Sabe-se que “a Palavra possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever” (EG 22). E, como Igreja, devemos “aceitar esta liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões e quebrando os nossos esquemas” (EG 22). De acordo com Szentmártoni,
a Palavra de Deus não é somente uma ação, mas também uma revelação endereçada aos homens, para suscitar neles um ato pessoal de obediência e para manifestar alguns conteúdos vitais de verdade. Dinamicamente, a palavra de Deus perturba, interpela, descobre; noeticamente, ilumina, explica, desenvolve, e por isso podemos falar de diversos tempos dialéticos da palavra de Deus e do ministério profético[4].
No Brasil, marcado por tantas desigualdades, mas, ao mesmo tempo, pela diversidade e pela riqueza cultural, o desafio parece ser ainda maior. Desde os grandes centros até o mais longínquo campo, a Igreja precisa ser presença ativa, que vive e testemunha a mensagem do Reino de Deus, conhecendo a realidade e anunciando a partir do contexto em que as pessoas vivem. As pequenas comunidades eclesiais missionárias, marcadas pela partilha de vida, pela vivência autêntica da vocação, pela Lectio Divina e pela espiritualidade que brota, de modo especial, do contato com Sagrada Escritura, surgem como propostas para fazer com que a Palavra de Deus toque o coração de todos aqueles que buscam sentido para sua vida e se abram à graça de Deus.
Assim, convém refletir, iluminados pela Dei Verbum, que propõe a construção de uma nova metodologia da Bíblia que contemple dois elementos: o compromisso concreto com todas as categorias de empobrecidos (materiais e existenciais) e os critérios técnicos e acadêmicos da exegese bíblica. Mas a mudança, sabe-se que vem do interno dos movimentos ou pessoas, por isso, seria oportuno vestir de uma nova roupagem essa pedagogia, acrescer-lhe outros instrumentais e propô-lo às comunidades.
Uma Igreja que escuta
Evidentemente é difícil, deveras impossível, descrever a relevância da Dei Verbum para a relação Sagrada Escritura com a vida da Igreja hoje em tão poucas linhas. Contudo, é fundamental dizer que o documento conciliar continua nutrindo e fecundando[5] a missão da Igreja hoje, considerando a Sagrada Escritura verdadeiramente como a alma de toda ação evangelizadora (cf. DV 24).
Para os tempos hodiernos, é fundamental dizer que a escuta da Palavra deve nos levar, também, à escuta de todos. Isso provoca a Igreja à sinodalidade, um constante caminhar juntos, na escuta atenta da Palavra, na celebração dos sacramentos, na conversação do Espírito, na vida de fé que provoca para uma ação concreta. A força que advém da Dei Verbum, baseada nas Sagradas Escrituras, impulsiona a Igreja a uma missão cada vez mais frutífera.
Portanto, a Escritura e a Tradição caminham juntas, ambas expressam o mesmo Evangelho de Jesus Cristo; – e o caráter histórico, dinâmico, que está incluso no processo de transmitir, de geração em geração, a fé. A Escritura e a Tradição – (e não só a Escritura) são expressão da Palavra de Deus.
Ms. Ir. Maria Luísa de Lucca
Professora da Itepa Faculdades
Doutoranda PUC-RS
Renan Paloschi Zanandréa
Bacharel em Teologia – Itepa Faculdades
[1] Cadernos do Concílio 5.
[2] “Venerar” indica “ao mesmo tempo, o paralelismo e a relação entre Sacramento e Escritura” (Cadernos do Concílio 5, p. 17). Pode-se dizer, quando se fala da relação Eucaristia e Palavra, que “o Banquete é certamente único, feito de Palavra e Sacramento” (Cadernos do Concílio 5, p. 17).
[3] Cadernos do Concílio 5, p. 16.
[4] SZENTMÁRTONI, Mihály. Introdução à Teologia Pastoral. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013. (Coleção Introdução às Disciplinas Teológicas). p. 28.
[5] cf. Cadernos do Concílio 5, p. 13.