É necessário continuar falando sobre racismo

No próximo domingo se assinala no calendário civil o Dia Nacional da Consciência Negra. Costuma-se dizer que é um dia de celebração e também de reafirmação das lutas do povo negro pela tão sonhada igualdade racial e social.

Celebrar a data é importante justamente porque a marca do calendário comemorativo não surgiu gratuitamente ou fruto do acaso. Foi consequência de muita luta de homens e mulheres negros.  Muitos que já não estão entre nós, mas deixaram este legado valioso. Celebrar também porque é alimento e força para continuar lutando para que verdadeiramente se viva em um país com condições de igualdade racial. Tornar célebre uma data implica em imprimir nos corações e na memória lembranças que não se perderão, justamente porque foram feitas célebres. Então é também reavivar a memória.

O dia 20 de novembro é, por outro lado, data propícia para reafirmação de algumas pautas muito caras ao povo negro. Entre elas, e com muita urgência, a superação do racismo.  O último pleito eleitoral, marcado pelo acirramento político, revelou situações explícitas de racismo. Sem reservas, muitos cidadãos disseram com palavras ou manifestam com gestos que se compreendem melhores devido à cor da pele. Não só se compreendem melhores, como se recusam a ver um cidadão negro como sujeito dos mesmos direitos. Algumas notícias, e não foram poucas, de fatos do cotidiano, revelam que esta forma de pensar não é algo incomum. Muitas pessoas realmente pensam assim e agem a partir dessa concepção de mundo. Felizmente o uso das redes sociais e o trabalho da imprensa têm funcionado como canais de denúncia dessa forma de pensar e agir desumana e ilegal. É necessário continuar denunciando porque apesar de alcance limitado, temos leis que coíbem tais práticas.  O Papa afirmou por ocasião da morte de George Floyd nos Estados Unidos: “não podemos tolerar nem fechar os olhos diante de nenhuma forma de racismo ou de exclusão e pretender defender o caráter sagrado de toda vida humana”. Para os cristãos enfrentar o racismo é compromisso de fé e de fidelidade ao Filho de Deus. Não é possível ignorar uma realidade tão negadora da dignidade humana.

Todavia, é necessário avançar para além da denúncia e punição.  É importante um reposicionamento cultural. No passado o racismo e as atitudes correlatas foram naturalizados, ou seja, enraizados na sociedade como se fossem normais e ajudaram a sustentar o projeto escravagista. Essa forma de conceber as relações penetrou na índole da maioria dos brasileiros somada a uma visão elitista e patrimonialista da sociedade. Resulta a falsa concepção de que, pelo fato da pessoa não ser negra ela seja melhor, como dito acima, e também o fato de que por pertencer a uma classe e ter bens, também a faz melhor, inclusive acima da lei. Por outro, lado se difundiu-se fartamente o “mito da democracia racial”, segundo o qual o Brasil era uma grande democracia de raças e culturas, onde todos viviam de forma harmônica articulando as diferenças sem maiores conflitos. Os fatos da história, sobretudo a desigualdade econômica mostrada em dados que coloca os negros entre os mais pobres desconstrói tal mito.

Cabe insistir que racismo é muito mais pernicioso que uma simples ofensa moral à pessoa devido a sua pertença étnico-cultural. Isto está tipificado no código de lei como racismo ou injúria racial passível de punição. O racismo, que sustentou o modelo de produção escravagista no passado hoje sustenta a desigualdade econômica. Deve certamente inquietar um olhar crítico os dados sociais e econômicos que colocam a população negra, maioria segundo IBGE, em percentuais e também em situação de vulnerabilidade social. Frisa-se que racismo é um grande impeditivo para que os negros e negras ascendam socialmente (DAp 533). Um jovem negro ou uma jovem negra pode ter todos os méritos e dons, virtudes e potencialidades, contudo o fato de serem negros torna a sua jornada mais árida e isso é experimentado no cotidiano. É ingênua a leitura de que a meritocracia é fator de ascensão para um jovem. Infelizmente esse discurso ainda tem muitos adeptos.  Muito mais forte e potente que a meritocracia está o racismo espalhado na sociedade e em nossas instituições. Contudo a face mais perversa do racismo não está nos impeditivos para os homens e mulheres negros colocarem seus dons a serviço da sociedade. Ela está na ameaça à vida, ao direito de completar o ciclo vital. No Brasil o racismo, matou, mata e continua matando. E as formas de morte são variadas. Por isso, é tão perverso.

Tal condição exige da população negra não só a celebração do dia 20 de novembro, que tem um caráter simbólico imenso, mas também reforçar a luta contra o racismo. E, no caso, o grande desafio, diante do recrudescimento visível das relações, está em ampliar o leque de apoios para além dos grupos afeitos. Hoje é pautada a necessidade de não apenas não se compreender como racista, mas ser antirracista. De um posicionamento de acomodação migra-se para uma atitude de reação. Os fatos do cotidiano cobram tal atitude.  O dia 20 de novembro cobra dos brasileiros de boa vontade essa convicção.

Pe. Ari Antonio dos Reis

Grupo de Pesquisa Negritude e Teologia – Itepa Faculdades