Mãe Preta, de Lucílio de Albuquerque. Há docilidade e ternura na cena, criando no expectador uma ligação afetiva com a mãe que amamenta, internalizando, contudo, um silencioso mal estar
MAULE, Mari Teresinha[1]
“…Um homem se humilha, se castram seu sonho, seu sonho é sua vida, e a vida é trabalho, e sem o seu trabalho, um homem não tem honra, e sem a sua honra, se morre, se mata, não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz” (Um Homem Também Chora- Guerreiro Menino).
“…Que pretendes mulher? Independência, igualdade de condições… Empregos fora do lar? És superior àqueles que procuras imitar, tens o dom divino de ser mãe. Em ti está presente a humanidade” (Cora Coralina).
Do Salmo 128, extraímos esta assertiva: comerás do fruto do teu trabalho, serás feliz e próspero. Para o ser humano o trabalho, quer seja manual ou intelectual, é ou deveria ser dignificante, pois possibilita que do resultado se possa ser feliz e próspero, como enuncia o salmista, ou como diz a letra da música de Fagner, sentir-se “honrado e feliz”. Contudo, da análise histórica, sociológica e das legislações trabalhistas, comprova-se que as relações de trabalho, sempre foram extremamente conflituosas e desiguais, principalmente em face da exploração da força do trabalho humano. Porém o resultado, sendo o lucro é privado gerando as desigualdades sociais e contribui para classificar a sociedade em classes.
Mais recentemente no Brasil, após algumas décadas de avanços na conquista dos direito trabalhistas, como, por exemplo, os que se encontravam previstos no artigo 7º da Constituição Federal de 1988, direitos estes duramente conquistados pelas lutas dos trabalhadores, sindicatos, organizações e movimentos sociais, sofreram um duro golpe com a reforma trabalhista, ocorrida no ano de 2017, com a precarização e perda de direitos previdenciários e trabalhistas assegurados em carteira, tais como: 13º salário, vale refeição, vale transporte, férias, auxílio doença, licença maternidade, entre outros.
Com a pandemia da COVID-19, esta situação agravou-se ainda mais, escancarando as condições de trabalho, em especial com a perda dos trabalhos formais. O IBGE apurou em 31 de março de 2021, que o número de pessoas desempregadas atingiu o patamar recorde de 14,3 milhões, contra 11,9 milhões registrados no ano anterior. O mesmo instituto mostrou um aumento crítico no número de trabalhadores informais no país estimado em 38,8% da população ocupada, o que representa 32,7 milhões de trabalhadores.[2]
Com relação a estes trabalhadores informais, que são os mais vulneráveis, houve uma sistemática e avassaladora perda de trabalho, como, por exemplo: diaristas, pedreiros, vendedores ambulantes, autônomos, prestadores de serviços, entre outros. Cenário este que se aflorou mais complexo com as medidas de isolamento social, que trouxeram como consequência o aumento da miséria e da fome.
O Papa Francisco, já denunciava fortemente o sistema socioeconômico, agravado, como dito, pela pandemia COVID-19, que assolou o mundo quando afirmara em sua, Exortação Apostólica:
hoje, tudo entra no jogo da competividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída (EG 53).
E, continua: “tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros” (EG 54), e que “por detrás desta atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus” (EG 57).
Se para os trabalhadores em geral a situação apresentada é extremamente caótica e grave, para uma parcela da população, ela é ainda mais sentida, para as mulheres em especial as mães. Segundo Aline Lima, esta realidade encontra-se materializada cotidianamente, pela dupla jornada de trabalho, pois que:
são as mulheres com suas múltiplas jornadas de trabalho dentro e fora de casa que produzem, diariamente, riqueza. São as mulheres com seus corpos que enfrentam cotidianamente o trabalho reprodutivo invisibilizado e o trabalho produtivo mal pago. São as mulheres as responsáveis pelo cuidado com as crianças, com os mais velhos, com a casa. Essas tarefas caminham na direção da sustentação e reprodução da vida e não são contabilizadas para o grande capital no trabalho não pago embutido em cada operário que está numa fábrica. É preciso lembrar que “a linha de produção começa na beira do fogão”, com um trabalho que cumpre um papel fundamental para a estrutura e funcionamento da sociedade. Essa invisibilidade imprime sobre nossos corpos a marca histórica da sobrecarga e da exploração.[3]
De modo que ao rememorar as datas do dia do trabalhador e da trabalhadora e o das mães, não podem ser dissociadas, dos elementos acima suscitados, qual seja, desta dimensão sócio estrutural presente no cotidiano e que nos conclama a uma transformação das estruturas de sociedade como tarefa e dever de todos.
A prática da denúncia neste tempo plural e desafiador em que vivemos é importante, e se trata de uma atitude corajosa e profética. Contudo, temos o dever de tomar atitudes práticas de criação, de espaços e ações que voltadas ao coletivo, façam despertar o potencial humanizador e transformador destas realidades; cultivar a coragem de superação e concretização da tão sonhada Esperança de Francisco defendida na Encíclica Fratelli Tutti (FT 55). Materializando assim, o conceito de igualdade, solidariedade, fraternidade e do bem viver com pequenas ações em pequenos grupos, nos pequenos espaços em que nos encontramos, para a transformação das realidades e de superação dos diversos tipos de relações de exploração e desigualdade que machucam individual e coletivamente a sociedade como um todo.
Essa inspiração e utopia se traduzem em poesia. Como exalta Joan Maragall:
Viver é desejar mais, sempre mais: desejar não por apetites, mas por esperança. A esperança é a marca da vida; amar até o ponto de poder dar-se pelo amado. Poder esquecer-se de si mesmo, isto é ser o que se é; poder morrer por alguma coisa, e isto é viver. Aquele que só pensa em si não é nada, está vazio; o que não é capaz de sentir o gosto de morrer, é porque já está morto. Somente quem for capaz de senti-lo, quem puder esquecer de si mesmo, quem souber dar-se, quem ama, em uma palavra, está vivo. E, então já não tem sentido pôr-se a andar. Ama, e faz o que queres.[4]
REFERÊNCIAS
FRANCISCO, Papa. Evangelli Gaudium – A Alegria do Evangelho. Edições CNBB. 2013.
FRANCISCO, Papa. Encíclica Fratelli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. editora Paulus. 2020.
G1- Desemprego fica em 14,2% no trimestre terminado em janeiro e atinge recorde de 14,3 milhões de pessoas. Disponível em <https//g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/31/desemprego-fica-em-142percent-no-trimestre-terminado-em-janeiro-aponta-ibge.ghtml. Acesso em abril de 2021.
BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1981.
LIMA, Aline. Quem paga nossa Conta? Reflexões sobre o trabalho das mulheres no mundo capitalista. CNBB. 6ª semana Social Brasileira. Mutirão pela Vida: por Terra, Teto e Trabalho: Território, Direitos Sociais e Cidadania. CADERNO 4 – 2020-2022.
TORRALBA, Francesc. Inteligência espiritual. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1993), Mestra em Desenvolvimento Regional Político Institucional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (1999). Especialista pela Universidade de Passo Fundo em Direito Civil e Direito Processual Civil (2015). Desde 1999 até o ano de 2018, docente na Universidade de Caxias do Sul e Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica e do Serviço de Assistência Jurídica gratuita na mesma instituição. Foi coordenadora do Curso de Direito do ano de 2013 a 2016, no Campus da UCS de Guaporé. Advogada atuante nas áreas de responsabilidade civil, administração pública, direito constitucional, processo civil, direito de família, direito do consumidor. Aluna da disciplina de Eclesiologia, disciplina isolada, do curso de Teologia da ITEPA Faculdades.
[2] Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/31/desemprego-fica-em-142percent-no-trimestre-terminado-em-janeiro-aponta-ibge.ghtml. Acesso em 19/04/2021.
[3] LIMA, Aline. Quem paga nossa Conta? Reflexões sobre o trabalho das mulheres no mundo capitalista. CNBB. 6ª semana Social Brasileira. CADERNO 4. p. 30-31.
[4] MARAGALL apud TORRALBA, Francesc. Inteligência espiritual. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 92.
1916 – mulheres trabalham em fábrica de munição em Londres. Imagem – Archive of Modern Conflict London Reuters