SEMANA DOS POVOS INDÍGENAS

*Na foto: Irmã Cláudia Sousa Soares – descendente da etnia Pataxó Hã Hã Hãe com a Cacique Rumiqueika, pertencente à Etnia Pataxó de Rodelas, do estado de Minas Gerais

 

Texto de Irmã Cláudia Sousa Soares[1]

 

Na semana dos povos indígenas, rememoramos o dia do índio em 19 de abril.[2] Os povos originários, com suas lutas, desafios e resistências nos deixaram um rico exemplo de cuidado com a vida em todas as suas dimensões. Papa Francisco afirmou na ocasião do Sínodo sobre Amazônia: que o mundo deve respeitar as populações indígenas, deixando com que elas planejem seu próprio futuro, e condenou imposições culturais e ideológicas sob os povos originais.

Mesmo após um longo processo de expropriação, violência e injustiças, hoje os indígenas do Brasil estão espalhados por todo os lugares, encontram-se presentes nas universidades e nos mais diversos setores e profissões da sociedade. Testemunham e ensinam a cultura do bem viver, concepção de vida esta, que vai na contracorrente do chamado desenvolvimento capitalista, porque na concepção indígena, o bem viver contempla a vida em primeiro lugar, prima pela convivência harmoniosa com a natureza e todos os demais seres que habitam a Casa Comum, superando a tentação do ter e da ganância.

Segundo a pesquisadora da cultura indígena Iara Bonin,

a importância do paradigma do Bem Viver não está na realização imediata de uma ruptura, mas na retomada de um horizonte – um futuro com justiça e igualdade. A luta indígena pelo Bem Viver faz parte de uma ampla aliança pela preservação da vida no planeta Terra. Para pensar em Bem Viver é necessário beber da fonte ancestral, mas isso não significa fazer uma leitura utópica do passado, e sim pensá-lo como tempo que respalda a contínua produção do presente e do futuro. (Disponível em: https://cimi.org.br/o-bem-viver-indigena-e-o-futuro-da-humanidade/. Acesso em 19 de abril de 2021).

Outro elemento que chama a atenção, é que na própria etimologia a palavra Índio não expressa a plenitude da vida dos povos indígenas. Neste sentido, o escritor indígena formado na USP, Daniel da Etnia Munduruku, faz uma crítica em relação a palavra índio que “ao se referir aos povos indígenas com esta palavra, fomenta ainda mais o preconceito com os povos indígenas, já que no imaginário das pessoas são considerados selvagens”. Nos países próximos ao Brasil, Peru, Bolívia e Argentina, se utiliza a palavra indígena, pois se refere a cultura indígena. Sendo assim, o próprio indígena Munduruku, afirma que “a palavra indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros” (Disponível em: https://www.ufrgs.br/colegiodeaplicacao/wp-content/uploads/2020/06/Alfa-4-15-segunda-poli.pdf. Acesso em 19 de abril de 2021).

Neste contexto é que precisamos compreender, rememorar e atualizar sua cultura, com o objetivo da preservação da memória; denunciar os males praticados sobre estes povos, e sermos elos de resistência, junto aos primeiros habitantes da América.

Os males cometidos contra estes povos são inúmeros e todos conhecemos alguma forma de injustiça praticado contra eles, são históricas e cruéis. Mais recentemente, lembramos um fato conhecido e impactante no mundo todo, ocorrido no dia 20 de abril de 1997, no Brasil com o indígena Galdino, da Etnia Pataxó Hã-Hã- Hãe. Galdino foi assassinado por jovens estudantes em Brasília e teve 95% do seu corpo queimado, comprovando assim, o quanto a sociedade brasileira ainda é preconceituosa e brutal com relação aos indígenas. Desde, então, este dia ficou como um dia para recordar e fazer memória do Cacique Galdino, e desta memória, a de tantos indígenas que foram assassinados no Brasil.

Outro aspecto, é que se tornou comum e costumeiro, que nas escolas, sejam realizadas atividades com o objetivo de retomada da cultura indígena por ocasião da semana dos povos indígenas. As crianças são vestidas de indígenas, pintam o rosto e refazem aspectos da cultura dos povos originários. Contudo não se pode esquecer que por trás destes sinais se encontra-se revelada uma visão cultural e, não poucas vezes, é a manifestação de preconceitos evidentes.

Por isso, a ressignificação e retomada desta cultura milenar, precisa ser acompanhada de reflexões críticas para não estarem desconexas com a realidade. As mudanças passam pela formação crítica das pessoas, e para tanto faz-se necessário que se busque conhecer cada vez mais as diversas culturas existentes em nosso País, valorizando-as nas suas peculiaridades e nas suas diferenças, da mesma forma com as culturas alemã, italiana, portuguesa, africana e, tantas outras, que estão presentes em nosso querido Brasil.

Em consideração a esta particularidade permitem-me dizer uma breve palavra sobre minha descendência indígena. Sou Cláudia Sousa Soares, descendente da Etnia Pataxó Hã-Hã,Hãe. Meu nome indígena é Moxoró Onça Brauna. Moxoró significa aquela que vive, Onça é força e Braúna significa árvore do sertão que sobrevive com pouca água. Tenho orgulho de levar este nome, ele diz muito da minha história pessoal.

Algumas pessoas perguntam qual a diferença em ser indígena? Creio que cada cultura tem sua forma de compreender e se estabelecer. Para os povos indígenas, é algo que está intrínseco ao seu ser, é compreender e acolher a vida como um todo, sabendo que a natureza é uma extensão do seu próprio corpo, devemos cuidá-la assim como cuidamos do nosso corpo. Quanto ao ser, é algo profundo, é a razão de viver. Estive em contato com povos indígenas desaldeados e que vivem na cidade. Alguns desses, relataram uma grande tristeza e descontentamento por se afastarem das tradições indígenas, descontentamento e indignação por se afastarem do “ser índio”, o mais profundo. Quando não sabemos quem somos, corremos o risco de ficar à margem e de fato isto acontece com muitos povos indígenas que foram para zona urbana e não se encontraram nestes espaços. Penso que o desafio para os agentes de pastorais que atendem estas realidades é primeiro escutar, acolher e ensinar a sonhar. Quando não temos sonhos, corremos o risco de perdermos a razão de viver.

Os povos originários se fazem presente não apenas no nosso DNA, mas também na língua, na arte, na comida, na história e nas estórias contadas pelos nossos pais e professores. Rememorar a história e cultura destes povos, é tornar presente e honrar as tantas etnias que foram extintas e seus saberes. Lembramos que na perspectiva da fé Cristo redimiu todas as pessoas sem distinção algum. “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Ou nas palavras do Papa Francisco:

Cristo redimiu o ser humano inteiro e deseja recompor em cada um a sua capacidade de se relacionar com os outros. O Evangelho propõe a caridade divina que brota do Coração de Cristo e gera uma busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e solidariedade, um estímulo à cultura do encontro. A sabedoria do estilo de vida dos povos nativos – mesmo com todos os limites que possa ter – estimula-nos a aprofundar tal anseio (exortação apostólica: querida Amazônia, n 22).

 

[1]  Irmã Cláudia Sousa Soares – das Irmãs Ursulinas Filhas de Maria Imaculada; Pedagoga, bacharelanda em Teologia. Coordenadora do setor dos movimentos sociais popular da Itepa Faculdades e integrante do Grupo de Pesquisa – “Teologia e Negritude”.

[2] Com base na história, a escolha do dia 19 de abril é uma referência à data em que lideranças indígenas se reuniram pela primeira vez em assembleia, no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México em 1940. Fora do continente americano, a homenagem é feita no dia 9 de agosto, por determinação da Organização das Nações Unidas (ONU).