O GRITO DOS EXCLUÍDOS(AS)

cartaz grito dos excluídos

Vida em Primeiro Lugar

O 26º Grito dos excluídos e excluídas tem como lema: “Basta de Miséria, Preconceito e Repressão! Queremos Trabalho, Terra, Teto e Participação”. A proposta do Grito dos Excluídos e Excluídas surgiu em 1994, no âmago da 2ª Semana Social Brasileira da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), cujo tema era Brasil, alternativas e protagonistas, inspirado no lema na Campanha da Fraternidade de 1995: A fraternidade e os excluídos.

A partir desta época, todos os anos na semana da Pátria, a Igreja propõe uma temática candente para ser refletida pelos cristãos. Como a expressão deixa entrever, é sempre em forma de grito frente a uma realidade que exige reflexão e tomada de decisão, porque a vida está ameaçada e excluída. O tema da vida sempre encabeça a motivação de fundo de todos os anos: a vida em primeiro lugar. A expressão vida em primeiro lugar sintetiza a perspectiva central do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo e, em consequência, da missão da Igreja, como cuidadora e protetora da vida. O fundamento é proveniente do próprio Cristo: “eu vim para que todos tenham vida e tenham em abundância” (Jo 10,10). A sociedade civil organizada luta pela vida, alicerçada nos direitos inalienáveis da vida humana que são assegurados pela Constituição Cidadã de 1988 (Art. 5). Neste sentido, se fundamenta o compromisso cidadão e cristão:  lutar para que os direitos sejam garantidos na integralidade como asseguram as leis constitucionais e o próprio Evangelho.

Por isso, o grito dos excluídos/as se constitui oportunidade para denunciar os agravos à vida das pessoas que mais sofrem, criar consciência coletiva dos descasos com a vida no seio da sociedade civil. Segundo Dom José Valdeci Santos Mendes, bispo de Brejo/MA e Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora da CNBB: “a proposta não só questiona os padrões de independência do povo brasileiro, mas ajuda na reflexão para um Brasil que se quer cada vez melhor e mais justo para todos os cidadãos e cidadãs. Assim, é um espaço aberto para denúncias sobre as mais variadas formas de exclusão”.[1]

Esta postura da Igreja, muitas vezes, sofre represálias, inclusive de grupos sociais que se identificam como cristãos, mas que não compreendem esta dimensão como parte integrante da missão da Igreja. Um número expressivo de cristãos católicos permanece apático por considerar a dimensão social e política da fé restrita a alguns setores eclesiais, ou responsabilidade das pastorais sociais da Igreja. Recentemente, os bispos atuantes no Brasil buscaram esclarecer os católicos sobre o atual momento da história brasileira e suas grandes preocupações, manifestando-se através de uma “carta ao povo de Deus”. Nela os prelados deixam claro qual a missão da Igreja no seio da realidade brasileira. No segundo parágrafo da carta destacam o seguinte:

Ela (Igreja) tem consciência de que ‘evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo’ (EG 176). Temos clareza de que ‘a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)’ (EG 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta (Carta ao povo de Deus, n. 2).

Estas palavras são profundamente necessárias em um cenário brasileiro em que a grande maioria das pessoas são cristãos. Muitos, no entanto, estão infectados pelos vírus da indiferença. Segundo o Papa Francisco: “para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença” (EG 54). Significa que, por diferentes formas, nossos católicos foram se acostumando a não perceber o vírus letal gerado pelo sistema capitalista. “Sem dar-nos conta – diz Francisco – tornamo-nos “incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe” (EG 54).

O chamamento de Francisco tem adquirido uma interpelação decisiva às Igrejas, no que se refere à educação da fé, porque uma evangelização que desconsidera a opção pelos pobres, que não assume a dor do outro, se torna incompatível com o Evangelho anunciado por Jesus Cristo (Lc 4,18-19). Contra espiritualismos e religiosidades sem consequência na vida concreta, os profetas da Bíblia e próprio Jesus usaram palavras duras e radicais. Como consequência desta opção foram perseguidos e martirizados. A Bíblia diz que Deus é amor. Só quem vive o amor-solidariedade pode encontrá-lo. O simples fato de continuar existindo pessoas vítimas de injustiças sociais não permite a Igreja viver a fé do modo como Deus ordenou. Cada pessoas carente ou empobrecida se constitui como um grito de que Deus está ausente. Isto é, a vida sofrida dos pobres e excluídos é o selo que encobre a face divina. Quanto mais a humanidade deixar aparecer a vontade de Deus na história, menos pobres e excluídos haverá.

Ora, optamos pela justiça e pela solidariedade porque devemos ser justos, mas também porque se não fizermos isso, nos distanciamos de Deus. Para quem crê, o grito do outro – do excluído é também o grito impotente e amoroso de Deus. Deus geme quando o pobre e faminto grita. Neste caso, como lembra-nos Papa Francisco, “a autêntica opção pelos mais pobres e abandonados, ao mesmo tempo que nos impele a libertá-los da miséria material e defender os seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor que os promove e dignifica”. E acrescenta que não “podemos contentar-nos com uma mensagem social”, porque “se dermos a vida por eles, pela justiça e a dignidade que merecem, não podemos ocultar-lhes que o fazemos porque reconhecemos Cristo neles e porque descobrimos a imensa dignidade a eles concedida por Deus Pai que os ama infinitamente” (QA 63).

Portanto, diante das injustiças e descasos com a vida, diz Francisco: “é preciso indignar-se, como se indignou Moisés (Ex 11,8), como Se indignava Jesus (Mc 3,5), como Se indigna Deus perante a injustiça (Am 2,4-8; 5,7-12”. Caso contrário, se pode habituar-se com o mal permitindo o processo de anestesiamento da consciência social, enquanto “um rasto de delapidação, inclusive de morte, por toda a nossa região, (…) coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do habitat dos camponeses e indígenas” (QA 15).

Assumir esta perspectiva conduz a compreender a vida espiritual em conexão inseparável da materialidade humana. Como bem esclarece Vitor Feller: “Se a maior miséria física é morrer de fome, então a maior miséria espiritual é deixar morrer de fome”. Os cristãos descomprometidos, na desculpa de buscarem o que julgam essencial, o religioso, o sacramental, na verdade se afastam da fonte da vida cristã: “o amor de Deus apaixonado pelos excluídos, sua revelação na pessoa e na história dos excluídos!”.[2] Com efeito, a vida neste mundo é para o cristão, não somente o tempo da decisão diante da salvação definitiva, como também da inauguração do Reino de Deus no mundo. Reino de justiça, de paz e de amor, no qual todas as pessoas participem de todos nos bens do mundo criados por Deus.

“Basta de Miséria, Preconceito e Repressão! Queremos Trabalho, Terra, Teto e Participação. Diante deste apelo do 26ª. Grito dos excluídos, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil:

Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”[3]

Diante desta escandalosa realidade cabe a nós cristãos clamar por esperança e restauração da dignidade de tantas pessoas. É hora de nos unir, abrir-nos a criatividade, agir, aprender juntos com os que estão próximos como escutar, ver, descer aos enlameados e amar. Cuidar dos que estão a margem, sem trabalho, sem teto, sem terra e gritar pelas pessoas que têm seus direitos roubados.

O Deus da vida sonhou com um mundo de vida em abundância para todos os seus filhos e filhas. Ele mesmo contemplou a criação e viu que tudo era muito bom. No entanto, a ganância, ambição e cobiça humana defraudar o direito à vida, gerando os excluídos. Em meio aos gritos dos excluídos somos desafiados/das a realizar ações proféticas, para colocar a vida em primeiro lugar.

Pe. Rogério L. Zanini

 

[1] Disponível em: https://diocesedebrejo.com.br/2020/07/28/carta-de-apoio-ao-26o-grito-dos-excluidos-e-das-excluidas/. Acesso em 2 de setembro de 2020.

[2] Vitor G. Feller. A revelação de Deus a partir dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995. p. 119.

[3] CNBB. Documento Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome (Abril de 2002), Introdução, 2.