ESPIRITUALIDADE,
COMPROMISSO
E MISSÃO
v. 38, n. 131, Jul./Dez./2021
ISSN on-line: 2763-5201
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP
Catalogação na fonte: Bibliotecária Valderes de Rezende - CRB 10/2588
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T314
Revista Teopráxis, vol.1, n.1(1984-) / Instituto de Teologia e Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v. vol.38
- n°131, Jul.-Dez./2021. Semestral.
ISSN:1677-860X versão impressa (descontinuada)
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Periódicos I. Instituto de Teologia e Pastoral-ITEPA
SUMÁRIO
Editorial........................................................................................................................................................... 4
Rogério L. Zanini
Espiritualidade Cristã e compromisso social: Um desafio de amor................................7
Christian Spirituality and social commitment: A love challenge
Dom Sílvio Guterres Dutra, Elisandro Guindani e Renan Paloschi Zanandréa
Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do
Magistério recente da Igreja..................................................................................................................17
Foundations for a priestly spirituality in the light of the Church's recent Magistry
Dom Cleocir Bonetti e Leonardo Fávero
Paulo e a integração: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade..................... 39
Paulo and integration: culture, religion, corporeality and spirituality
Isidoro Mazzarolo
Francisco de Assis, a paz vem do beijo na face do irmão leproso......................................58
Francis of Assisi, peace comes from kissing the leper brother's face
Ivanir Antonio Rampon
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão:
A autêntica Espiritualidade Cristã é elemento imprescindível para a
identidade missionária da Igreja e de cada fiel cristão...........................................................66
To Stay in Love" (cf. Jn 15:9) to be mission: Authentic Christian Spirituality is an
essential element for the missionary identity of the Church and of every Christian believer.
Daniel Luz Rocchetti
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate:
uma santidade ordinária, simples e para todos..........................................................................80
The lay sanctity in light of the Gaudete et Exsultate Apostolic Exhortation:
an ordinary and simple sanctity for all
Vitoria Bertaso Andreatta De Carli
Mística e missão de acompanhadores: testemunhas do pertencimento
à comunidade de fé.....................................................................................................................................90
Mystics and followers' mission: witnesses of belonging to the community of faith
Ariél Philippi Machado, Clelia Peretti e Noêmia Fátima Lopes da Silva Debastiani
Cuidado, partilha, resiliência: princípio da igualdade e a violência de gênero....... 103
Care, sharing, resilience: principle of equality and gender violence
Mari Teresinha Maule
Leitura bíblica sob a ótica da mulher: espiritualidade e
empoderamento das mulheres............................................................................................................114
Bible Reading From The Perspective Of Women: spirituality and women's empowerment
Simone Furquim Guimarães e Luísa de Lucas
A espiritualidade no cristianismo: A essência do ser..............................................................124
Spirituality in christianity: The essence of being
Luciana Carmona Garcia e Aline Eloisa Da Silva
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
I
nternational License.
E
DITORIAL
Rogério L. Zanini*
Organizador
É com satisfação e alegria que apresentamos a edição da revista
Teopráxis denominada: Espiritualidade, Compromisso e Missão. Tema
pertinente e necessário em tempos que as compreensões da
espiritualidade se proliferam e ganham os diferentes rumos, mas nem
sempre manifestando fidelidade ao Espírito do crucificado-
ressuscitado. Como lembra o Papa Francisco: a católica de muitos
povos encontra-se hoje perante o desafio da proliferação de novos
movimentos religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros
que parecem propor uma espiritualidade sem Deus (EG 63). Para tal
fenômeno, Papa Francisco, indica duas causas. Uma, trata-se do
resultado duma reação humana contra a sociedade materialista,
consumista e individualista. A outra, fruto de um aproveitamento das
carências da população que vive nas periferias e zonas pobres (EG 63).
Muito próximo, ou mesmo como consequência imediata da distorção
da espiritualidade, está o esfriamento do compromisso e da missão
cristã. É o próprio Papa que faz este reconhecimento: quando mais
precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e luz ao mundo,
muitos leigos temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa
apostólica e procuram fugir de qualquer compromisso que lhes possa
roubar o tempo livre (EG 81). É no caldo destas questões que se
debruçam os textos desta edição da revista Teopráxis.
A seção abre com o artigo: Espiritualidade cristã e compromisso
social: Um desaio de amor. Os autores Dom Sílvio Guterres Dutra,
padre Elisandro Guindani e o seminarista Renan Paloschi Zanandréa
da Diocese de Vacaria, se debruçam em compreender e defender que a
espiritualidade cristã sempre esteve vinculada com o cuidado da vida.
Desde os primórdios, partindo da vida de Jesus até os nossos tempos, a
compreensão evangélica é de cuidado total com a vida. Contudo, foi
com Leão XIII, no século XIX, que o Magistério da Igreja publicou o
primeiro documento de cunho social. Os autores destacam que a Igreja
na América Latina também contribuiu para a reflexão. Concluem,
afirmando que é preciso colocar em prática os princípios evangélicos.
O Bispo da Diocese de Caçador, Dom Cleocir Bonetti,
recentemente ordenado, e o diácono Leonardo Fávero, da Diocese de
Erechim, refletem sobre os fundamentos para uma espiritualidade
sacerdotal à luz do magistério recente da Igreja. O artigo tem por objetivo
investigar em alguns dos principais documentos do Magistério pós
Concílio Vaticano II sobre a espiritualidade sacerdotal, juntamente
com algumas manifestações dos Papas João Paulo II, Bento XVI e
Francisco. Finalizam afirmando que o sacerdote precisa mostrar
profundo amor pela Igreja, viver com alegria a pertença eclesial,
testemunhando com a vida a comunhão com o Papa, os bispos, com o
presbitério e com todos os fiéis leigos.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 4-6, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.69
* Doutor e mestre em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS, especialista em Metodologia Pastoral
pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões - URI. Graduado em
Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral
(Itepa) e em História pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina - UNOESC.
Professor do Instituto de Teologia e Pastoral
(Itepa).
E-mail: zaninipastoral@hotmail.com
http://orcid.org/0000-0001-8771-37991
5
O biblista Isidoro Mazzarolo investiga Paulo e a integração: cultura, religo, corporalidade e
espiritualidade. Destaca que Paulo é um homem versátil, aberto e decidido em tudo o que diz e
faz. Ele pode ser definido como teólogo, filósofo, potico e místico. O autor se propõe a
percorrer alguns tópicos de reflexão em torno da importância do pensamento de o Paulo
como contributos concretos para a integração da espiritualidade e da sociedade.
Seguindo nosso percurso, o professor Ivanir Antonio Rampon, escreve: Francisco de
Assis, a paz vem do beijo na face do irmão leproso. Debruçando-se sobre a teologia narrativa,
faz uma leitura histórico-crítica da vida de Francisco. Sem preocupar-se com as exegeses
das fontes franciscanas, narra, brevemente, como surgiu e como se desenvolveu a opção
pelos pobres na vida de Francisco e como ele viveu a espiritualidade do seguimento a Jesus
Cristo, na conformidade com os pobres. Finaliza, afirmando que Francisco de Assis escutou
a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da
natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida.
Daniel Luz Rocchetti, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação
Missionária da CNBB, brinda-nos com o texto: O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser
missão: A autêntica espiritualidade cristã é elemento imprescindível para a identidade missionária
da Igreja e de cada iel cristão. O texto parte da reflexão missiológica atual, que apresenta o
conceito de missão proveniente do seio do próprio Deus cristão e passa em relevo os
documentos missionários do Magistério Pontifício recente e alguns documentos
missionários da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Neste itinerário investigativo,
Rochetti realça a importância de permanecer no amor de Deus. Conclui, afirmando que é
necessário permanecer no Amor do Senhor (Jo 15,9) para se produzir os diversos e
numerosos frutos missionários.
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: uma santidade
ordinária, simples e para todos é o artigo da doutora, mãe e leiga Vitoria Bertaso Andreatta De
Carli. Partindo do significado da santidade para o fiel cristão leigo, identifica alguns dos
principais traços da santidade que os fiéis cristãos leigos à luz da Exortação Apostólica
Gaudete et Exsultate são chamados a viver no mundo atual. Termina sua reflexão com as
palavras do Papa: o caminho da santidade é para todos e que não tenhamos medo de andar
por ele, despertando de fato o desejo da santidade e de compartilharmos uma felicidade que
o mundo não poderá tirar-nos (GE 177).
Mística e missão de acompanhadores: testemunhas do pertencimento à comunidade de é, é o
texto que investiga os elementos do magistério do Papa Francisco para a atuação do
catequista acompanhador, tendo como referência a vida em comunidade. Artigo de três
mãos, Ariél Philippi Machado, Clelia Peretti e Noêmia Fátima Lopes da Silva Debastiani
apresentam a convicção do caminho da continuidade e da criatividade que o Espírito é capaz
de despertar na evangelização através do processo de Iniciação à vida Cristã. Para eles, o
ministério do acompanhamento é antigo, se pensarmos nas primeiras comunidades que
tinham o costume de ouvir o ensinamento dos apóstolos, partir o pão e socorrer as
necessidades dos empobrecidos (At 2,42-47; 4,32-35; 5,11-16).
Mari Teresinha Maule, com seu texto: Cuidado, partilha, resiliência: princípio da
igualdade e a violência de gênero, tensiona a perspectiva da igualdade de gênero presente
inclusive no artigo 5º, da Constituição Federal de 1988. Este princípio traz em seu bojo a
interpretação que, pessoas colocadas em situações de vulnerabilidade diferentes, sejam
tratadas de forma desigual. Partindo deste princípio constitucional, e utilizando-se do
método da revisão bibliográfica, investida como se apresentam as relações interpessoais de
gênero na sociedade, expondo o projeto chamado circu(LAR), como experiência inovadora
na superação de realidades de violência.
ZANINI, Rogério L.
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 4-6, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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Leitura bíblica sob a ótica da mulher: espiritualidade e empoderamento das mulheres é a
contribuição que Simone Furquim Guimarães e Luísa de Lucas trazem para a discussão.
Assumem o desafio de refletir sobre a experiência de um curso com a temática Mulheres na
Bíblia no Primeiro Testamento, organizado e realizado pela Itepa Faculdades, através da
plataforma Google meet. O texto partilha impressões constatadas através das manifestações,
depoimentos e escritos das mulheres envolvidas no curso, o progressivo processo de
empoderamento pessoal e comunitário. Terminam dizendo: reafirmamos nossa fidelidade
a Deus que através da Palavra se fez carne segundo as Escrituras para salvar/libertar todas
as pessoas que estão nas periferias, no ocultamente, sem palavra, excluídas da sociedade e
que na sua grande maioria, são mulheres sem voz e sem vez.
O décimo e último artigo reflete: A espiritualidade no cristianismo: a essência do ser das
autoras Luciana Carmona Garcia e Aline Eloisa Da Silva. A espiritualidade é inerente ao ser
humano. O termo surgiu no período renascentista no século XV, baseado em algumas
ideias de Platão, filósofo do século IV a.C., que postulava sobre o dualismo corpo-alma, em
que a alma estaria aprisionada pelo corpo. Nos textos bíblicos do Novo Testamento, Paulo
exorta a comunidade de Coríntios a reconhecer que são templos do Espírito de Deus, que
habita toda criatura. As autoras declaram que o artigo visa contribuir com as pesquisas
relacionadas à temática, trazendo apontamentos sobre a importância e os benefícios que
uma vivência espiritual a partir da ótica cristã, pode proporcionar ao ser humano. Finalizam
afirmando que a espiritualidade é nuclear ao cristianismo, uma vez que, por meio da
presença do Espírito Santo, o ser humano é capacitado para o Bem e para toda Boa Obra,
como a justiça social, a solidariedade, o exercício da cidadania e o amor.
Almejamos que todos e todas que tenham acesso a estes textos encontram substancial
aprofundamentos, em especial para que juntos possamos crescer na espiritualidade do
seguimento, no compromisso com a causa dos pobres e na missão de fecundar comunidades cristãs
consequentes com os valores do Reino de Deus e sua justiça, como exigência do Evangelho
(Mt 6,33). Fica a provocação do Papa Francisco: perante as várias formas atuais de eliminar
ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e
amizade social que não se limite a palavras (FT 6).
ZANINI, Rogério L.
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 4-6, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
I
nternational License.
E
SPIRITUALIDADE CRISTÃ E
COMPROMISSO SOCIAL
Um desao de amor
C
HRISTIAN SPIRITUALITY AND
SOCIAL COMMITMENT
A love challenge
Dom Sílvio Guterres Dutra*
Elisandro Guindani**
Renan Paloschi Zanandréa***
Resumo: A espiritualidade cristã carrega a marca do cuidado com a vida.
Desde os primórdios, partindo da vida de Jesus até os nossos tempos, a
compreensão evangélica é de cuidado total com a vida. Contudo, foi com
Leão XIII, no século XIX, que o Magistério da Igreja publicou o primeiro
documento de cunho social. De até nossos dias, os papas mantiveram
certa regularidade na publicação desse tipo de documento, enriquecendo o
corpus da Doutrina Social. A Igreja na América Latina também contribuiu
para a reflexão com outros quatro documentos. Aqui, nos propomos a dar
um panorama geral da Doutrina Social da Igreja, refletindo sobre a
dignidade da pessoa humana, as diversas formas de ataque à vida e, por fim,
chegando à reflexão sobre a caridade, princípio motor de toda a Doutrina
Social e propulsora de um real compromisso social a partir da
espiritualidade cristã.
Palavras-chave: Espiritualidade. Compromisso Social. Doutrina Social.
Caridade.
Abstract: Christian spirituality carries the mark of care with life. From
the earliest times, starting with the life of Jesus until our own times, the
evangelical understanding is about the total care with life. However, it
was with Leo XIII, in the 19th century, that the Church's Magisterium
published the first social document. Since then until our days, the popes
have maintained a certain regularity in the publication of this type of
document, enriching the corpus of Social Doctrine. The Church in Latin
America has also contributed to the reflection with four other
documents. Here we propose to give an general overview of the Church's
Social Doctrine, reflecting about the dignity of the human person, the
several manners of attacks on life and, in the end, reaching the reflection
about charity, the motor principle of the whole Social Doctrine and
propeller of a real social commitment based on Christian spirituality.
Key-words: Spirituality. Social Commitment. Social Doctrine. Charity.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 7-16, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.55
* Bispo Diocesano de Vacaria/RS. Mestre em
Teologia Pastoral pela Pontifícia
Universidade Lateranense, Roma (2001).
E-mail: sguterresdutra@yahoo.com
https://orcid.org/0000-0002-9909-2704
** Pároco da paróquia Nª. Sra. da Conceição
(Caseiros/RS) e reitor do Seminário Maior
Nª. Sra. da Oliveira, Diocese de Vacaria/RS.
Professor da disciplina de Metodologia e
Prática Pastoral na Itepa Faculdades.
E-mail: eguindani@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-9827-3116
*** Licenciado em Matemática e bacharel em
Filosofia (Universidade de Passo Fundo
UPF); bacharelando em Teologia
(Itepa Faculdades). Seminarista do segundo
ano da etapa da Configuração, Diocese de
Vacaria/RS.
E-mail: renanpaloschizanandrea@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1303-7203
Recebido em 12/05/21
Aprovado em 22/08/21
8
INTRODUÇÃO
O Senhor Jesus, diante do doutor da Lei que quis pô-lo à prova, aponta qual é o
primeiro e maior mandamento: amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todo o teu entendimento!
1
(Mt 22,37).
Jesus toma uma expressão veterotestamentária, do conhecido Shemá Israel (Dt 6,4-9),
antiga e central profissão de judaica, e indica o maior mandamento. Desse primeiro e
maior mandamento temos um segundo, que está totalmente ligado a ele: amarás o teu
próximo como a ti mesmo (Mt 22,39). Aqui se condensa toda a doutrina de Jesus: como eu
vos amei, assim tambéms deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34b).
Respondendo a essa exigência do Senhor, os cristãos, desde as primeiras
comunidades, carregam a marca do cuidado mútuo. A Igreja, que [...] é em Cristo como
que sacramento isto é, sinal e instrumento, da união íntima com Deus e da unidade de todo
o gênero humano (LG 1), atenta aos sinais dos tempos e unida plenamente a Jesus,
desenvolveu a sua Doutrina Social. Ela tem por objetivo orientar os cristãos no cuidado com
o próximo, auxiliando na busca pela vincia do mandamento do amor deixado pelo Senhor.
Para compreender melhor a relação entre o compromisso social e a espiritualidade
cristã, este trabalho divide-se em três blocos. O primeiro faz um estudo geral e breve sobre a
Doutrina Social da Igreja (DSI). O segundo bloco trata do princípio básico da Doutrina
Social, que é a dignidade da pessoa humana e ainda aponta algumas formas de ataque à vida.
Por fim, o terceiro busca apresentar como que a solução para o problema: a caridade cristã,
que brota da espiritualidade e impulsiona para um sincero compromisso social.
1 DE LEÃO XIII A FRANCISCO: O CORPUS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA
Desde as primeiras comunidades a Igreja acumulou um patrimônio de reflexões
doutrinais, que carregam a marca do amor a Deus e do cuidado com o próximo. Partindo da
Sagrada Escritura e abraçando os elementos da Tradição, os ensinamentos magisteriais
foram se desenvolvendo, tendo sempre como princípio e guia as palavras e atitudes de Jesus.
Contudo, foi somente em 1891, com a Rerum Novarum (RN), do Papa Leão XIII, que o
Magistério da Igreja publicou sua primeira Encíclica Social.
A RN foi escrita, de modo especial, para tratar da questão operária. As situações política,
social e cultural do século XIX fizeram com que o Papa Leão XIII respondesse à situação dos
operários, que estavam sendo afetados pelos grandes males do conflito capital x trabalho,
fruto principalmente da revolução industrial. A busca excessiva pelo lucro gerou uma série de
problemas para os trabalhadores, surgindo várias tentativas de responder esse problema. Leão
XIII tratou essa questão de forma ampla, fazendo com que ela seja [...] explorada em todas as
suas articulações sociais e poticas, para ser adequadamente avaliada à luz dos princípios
doutrinais baseados na Revelação, na lei e na moral natural
2
(CDSI 89). Na encíclica, o Papa
apontou as causas do conflito, exclui o socialismo como solução, fez apontamentos sobre a
propriedade privada, a família, a ão do Estado, a posse e uso das riquezas, a dignidade do
trabalho, as obrigações de operários e patrões, o dever de proteger o trabalho dos operários, as
mulheres e as crianças e, por fim, indicou a solão definitiva: a caridade. A RN tem como
tema central a [...] instaurão de uma ordem social justa, em vista do qual é mister individuar
critérios de juízo que ajudem a avaliar os ordenamentos sociopolíticos existentes e formular
linhas de ação para uma sua oportuna transformação (CDSI 89).
1 Todos os textos bíblicos são citados a partir da seguinte referência: Bíblia Sagrada: tradução oficial da CNBB. Brasília:
Ed. CNBB, 2018.
2 Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI).
DUTRA, Sílvio Guterres; GUINDANI, Elisandro; ZANANDA, Renan Paloschi
Espiritualidade Cris e compromisso social: Um desafio de amor
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 7-16, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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Essa encíclica abriu caminho para uma vasta produção no campo social. Depois da
RN, o Magistério manifestou-se diversas vezes sobre questões de cunho social
3
.
Comemorando os aniversários da RN, temos quatro documentos: Pio XI com a
Quadragesimo anno (1931), na comemoração dos quarenta anos; no octogésimo aniversário,
o Papa Paulo VI publicou a Octagesima adveniens (1971); e João Paulo II publicou a Laborem
exercens (1981), sobre o trabalho, nos noventa anos, e a Centesimus annus (1991), nos cem
anos. Ainda nessa linha social temos Pio XI, com as encíclicas Non abbiamo bisogno (1931),
Mit brennender Sorge (1937) e Divini Redemptoris (1937). João XXIII, dentre outros, escreveu
Mater et Magistra (1961) e Pacem in terris (1963). O Concílio Vaticano II contribuiu com uma
série de documentos, dos quais destacamos a Constituição Pastoral Gaudium et spes e a
declaração Dignitatis humanae. Paulo VI com a instituição da Pontifícia Comissão Iustitia et
Pax, além das encíclicas Populorum progressio (1967), Humanae Vitae (1968) e Evangelii
Nuntiandi (1975). Além do citado anteriormente, João Paulo II publicou a Encíclica
Solicitudo rei socialis (1987) e solicitou a elaboração do Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
elaborado pelo Pontifício Conselho Iustitia et Pax. Bento XVI, dentre outros documentos,
publicou Deus Caritas Est (2005) e Caritas in Veritate (2009). Por fim, o Papa Francisco
também tem contribuído para a reflexão social com documentos magisteriais, dos quais
destacamos a encíclica Laudato Si' (2015), que trata do cuidado com a Casa Comum, e,
recentemente, a encíclica Fratelli Tutti (2020), sobre fraternidade e amizade social. A Igreja
na América Latina também fez um caminho nesse sentido, com as Conferências-gerais do
episcopado Latino-americano e do Caribe. Fruto delas, temos quatro grandes documentos:
de Medellín (1968), de Puebla (1979), de Santo Domingo (1992) e de Aparecida (2007).
A função de toda elaboração da Igreja, que resulta num corpus doutrinal sólido sobre a
questão social é, pois, evangelizar conforme o pedido do Senhor, levando a todos a Palavra
da vida que provoca para a mudança, para uma nova compreensão das relações. Sendo
assim, com o seu ensinamento social a Igreja quer anunciar e atualizar o Evangelho na
complexa rede de relações sociais (CDSI 62). O objetivo é a salvação integral do ser
humano, primeiro nesta vida terrena, mas pensando na vida futura, num caráter
escatológico. Evangelizar o social significa, nesse sentido, infundir no coração dos homens
a carga de sentido e de libertação do Evangelho, de modo a promover uma sociedade à
medida do homem porque à medida de Cristo: é construir uma cidade do homem mais
humana, porque mais conforme com o Reino de Deus (CDSI 63).
A reflexão da DSI carrega a marca da teologia, especificamente a da teologia moral,
pois refere-se ao agir humano. Ela reflete sobre três níveis do ensinamento da teologia
moral: o nível fundante das motivações; o diretivo das normas do viver social; o deliberativo
das consciências chamadas a mediar as normas objetivas e gerais nas situações sociais
concretas e particulares (CDSI 73, grifo nosso). Além disso, a DSI possui uma dupla função:
a de anunciar uma visão global do homem e da sociedade, formando e orientando; e a de
denunciar todas as formas de ataque à vida.
O corpus doutrinal no quesito social se desenvolveu sobre quatro pilares: a dignidade
da pessoa humana, o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade
4
. Esses quatro pilares são os
princípios fundamentais, que [...] constituem os verdadeiros e próprios gonzos do ensino
social católico (CDSI 160). Eles são permanentes e brotam da vasta experiência de ação
social por parte da Igreja. Os princípios da DSI [...] têm um caráter geral e fundamental,
3 Tendo em vista o objetivo deste trabalho, somos obrigados a escolher alguns documentos, dentre tantos, que foram
publicados pelo Magistério da Igreja.
4 Devido à natureza deste trabalho e a limitação de espaço para publicação, não é objetivo aprofundar os quatro
princípios, embora apareçam desdobrados, de uma forma ou outra, ao longo do texto. Mais sobre isso pode ser
encontrado em CDSI 105-208.
DUTRA, Sílvio Guterres; GUINDANI, Elisandro; ZANANDA, Renan Paloschi
Espiritualidade Cris e compromisso social: Um desafio de amor
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 7-16, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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pois que se referem à realidade social no seu conjunto (CDSI 161). Assim, esses princípios
tratam de todas as relações que envolvem a pessoa humana e suas relações, tanto com o
próximo, quanto com as instituições que fazem parte da sociedade.
A DSI indica que esses princípios devem guiar, de forma geral, a reflexão social da
Igreja. A partir deles, se fazem as análises de realidade e definem-se os planos de ão. Os
quatro princípios devem ser trabalhados sempre como uma unidade, articulados entre si, para
que possam, assim, atingir o seu objetivo: ser [...] aquela primeira articulação da verdade da
sociedade, pela qual cada consciência é interpelada e convidada a interagir com as demais, na
liberdade, em plena co-responsabilidade [sic.] com todos e em relação a todos (CDSI 163).
Noutra perspectiva, ao tentar compreender melhor os elementos que constituem a
DSI, acompanhando a reflexão do Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS, destacam-se quatro:
a) exigências éticas derivadas da dimensão social do Evangelho; b) imperativos
da realidade sócio-econômica [sic.] e político-cultural do mundo em que
vivemos; c) reflexão moral que confronta a mensagem evangélica com a situação
histórica; e d) ação ou práxis sócio-transformadora [sic.]
5
.
Esses elementos interagem entre si e adaptam-se conforme o contexto vivido. Isso
nos faz compreender que a DSI não é fechada ou acabada. Pelo contrário, ela carrega a
marca justamente de adaptar-se às necessidades econômicas, sociais e políticas,
contribuindo na reflexão, conforme a necessidade de cada contexto histórico.
Por fim, como nos indica o Papa João Paulo II, a DSI é de caráter interdisciplinar.
Para compreender a realidade política, econômica e social, a DSI [...] entra em diálogo com
diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas
provêm, e ajudando-as, por sua vez, a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de
cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação (CA 59).
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS ATAQUES À VIDA
O primeiro e fundamental princípio que norteia a reflexão social da Igreja é a
incomparável e inalienável dignidade da pessoa humana (CDSI 37; 105). Seguindo os princípios
da antropologia cris que se fundamenta, de modo especial, na Sagrada Escritura, o homem e a
mulher, criados à imagem e semelhaa de Deus (cf. Gn 1,26-27), são chamados à plenitude de
vida que se estende muito além das dimensões da exisncia terrena, porque consiste na
participação da ppria vida de Deus (EV 2). Essa relação direta com Deus faz com que a vida
humana possua um valor precioso, desde a vida terrena. É preciso, segundo o Papa Francisco,
dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer
circunsncia (FT 106). Por isso, toda pessoa tem direito à vida em abunncia (cf. Jo 10,10).
O ser humano, formado pela unidade corpo e alma, é um ser material, ligado a este
mundo mediante o seu corpo, e um ser espiritual, aberto à transcenncia (CDSI 129). Essa
compreeno nos faz concluir que o se pode desprezar o corpo nem o espírito, mas é preciso
trabalhar a partir dessa unidade, tal e qual foi criada por Deus. Por isso, o ser humano é aberto à
transcenncia. Primeiro, aberto ao infinito, aberto a Deus, pois carrega todas as caractesticas
necesrias para encontrar a Verdade. Isso ainda aponta para uma segunda característica, em que
todo ser humano tamm é aberto aos outros e ao mundo, mantendo uma relação de comunhão
e diálogo (CDSI 130). Na realidade, o próprio mistério da Trindade nos recorda que somos criados
à imagem desta comunhão divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos
sozinhos (EG 178).
5 Alfredo J. GONÇALVES, Doutrina Social da Igreja: História e Desafios. Disponível em: http://www.cefep.org.br/
doutrina-social-da-igreja-historia-e-desafios/. Acesso em: 19 mai. 2021.
DUTRA, Sílvio Guterres; GUINDANI, Elisandro; ZANANDA, Renan Paloschi
Espiritualidade Cris e compromisso social: Um desafio de amor
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 7-16, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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Aqui vai-se compreendendo que o ser humano foi criado para as relações. Fica claro que a
vida comunitária é uma característica natural que distingue o homem do resto das criaturas
terrenas (CDSI 149). Essa característica própria do ser humano, marcada pela necessidade de se
integrar e de colaborar com os demais, vivendo em comunhão, quando iluminada pela fé, carrega
um sentido ainda mais profundo. Compreende-se que, feita à imagem e semelhança de Deus (cf.
Gn 1,26), e constituída no universo visível para viver em sociedade (cf. Gn 2,20.23) e dominar a
terra (cf. Gn 1,26.28-30), a pessoa humana é, por isso, desde o princípio chamada à vida
social (CDSI 149). É parte, portanto, da própria natureza humana ser um ser social. É mediante o
intermbio com os outros, a reciprocidade dos serviços e o diálogo com seus irmãos, [que] o
homem desenvolve as próprias virtualidades; responde, assim, à sua vocão (CIgC 1879).
Buscando o desenvolvimento integral da pessoa, todas as instituições, nas diversas
instâncias, devem ter como primado o ser humano. Dessa forma, a pessoa não pode ser
instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por
qualquer que seja a autoridade (CDSI 133). Somente quando toda pessoa é reconhecida em
sua dignidade, será possível crescer, individual ou comunitariamente.
A Gaudium et Spes destaca a importância da igual dignidade de todas as pessoas, o que
nos provoca para o cuidado. Ainda que entre os homens haja justas diferenças, a igual
dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e
justas (GS 29). Esta compreensão de que todos possuem direito a vida digna e em abundância
nos leva, dentre outras coisas, a compreender a relação intensa que existe entre todos os seres
humanos: único e irrepevel na sua individualidade, todo homem é um ser aberto à relação
com os outros na sociedade (CDSI 61). É na relão com o próximo que cada pessoa busca
cumprir o mandamento: também s deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13,34b). Essas
relações se dão entre os indivíduos, nas famílias, nos grupos, no trabalho, em meio às diversas
estruturas sociais, como nos campos da economia, da política e da cultura.
Contudo, nos diversos períodos da história, mesmo sendo de um valor inestimável, a
vida humana nem sempre foi cuidada e valorizada. Nos tempos hodiernos, diversas são as
facetas de ataques à vida, como aponta o Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2020:
eugenia; desigualdade; globalização econômica; aborto; eutanásia; suicídio e suicídio
assistido; crianças que perdem suas famílias; desemprego; ansiedade; stress; acidentes de
trânsito; desatenção aos povos indígenas, às mulheres e aos pequenos agricultores; tráfico
de drogas, de pessoas, de órgãos; individualismo; mau uso das redes sociais e abuso dos
meios de comunicação. O Papa Francisco também faz apontamentos sobre as sombras no
mundo atual que ameaçam a vida, destacando o medo, a falta de atenção às minorias, a
cultura do descarte, a globalização e a não atenção aos direitos humanos
6
. Antes ainda, no
Concílio Vaticano II, a Igreja condenava tudo que pudesse destruir a vida. Esses ataques
corrompem a civilização, desonram os que os praticam e ofendem a Deus. A GS considera
infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie
de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola
a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e
mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto
ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-
humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho,
em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como
pessoas livres e responsáveis (27).
6 Elisandro GUINDANI e Renan P. ZANANDRÉA, Fratelli Tutti: algumas palavras iniciais. Disponível em: https://
www.diocesevacaria.com.br/fratelli-tutti-algumas-palavras-iniciais/. Acesso em: 27 abr. 2021.
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João Paulo II por sua vez, também aponta problemas que afetam e violam a vida,
chegando a algo que pode ser considerado como estrutura de pecado, cuja marca é a
imposição de uma cultura anti-solidária [sic.], que em muitos casos se configura como
verdadeira cultura de morte’” (EV 12). Esta cultura é promovida por correntes políticas,
culturais e econômicas, que carregam a marca de ser basicamente eficientista. Assim,
continua o Papa, a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil
ou considerada como um peso insuportável, e, conseqüentemente [sic.], rejeitada sob
múltiplas formas (EV 12).
É aqui que entra, podemos dizer, a necessidade de uma verdadeira e profunda
espiritualidade. É por meio dela que [...] o homem supera a totalidade das coisas e penetra
na estrutura espiritual mais profunda da realidade (CDSI 128). É da vida de oração que o
cristão é chamado à ação. Ela é o eco constante de seu compromisso apostólico em sua
consciência espiritual
7
. É somente à luz da fé, por meio da oração, e de modo especial pela
meditação da Palavra, que será [...] possível, sempre e em toda parte, reconhecer Deus [...],
procurar a sua vontade em todo o acontecimento, ver Cristo em todos os homens, [...], ter
um conceito exato do verdadeiro significado e do valor das coisas temporais, em si mesmos
e em ordem ao fim do homem (AA 4).
O contato com Jesus, que se pela proximidade com as pessoas e por uma profunda
e autêntica espiritualidade, impulsiona para o anúncio nas situações concretas da vida, para
que todos sejam iluminados pela fé. Esse anúncio não se limita [...] a encontrar soluções,
mas torna humanamente aceitáveis inclusive as situações de sofrimento, de modo que nelas
o homem não se perca nem esqueça a sua dignidade e vocação (CA 59).
3 A CARIDADE COMO PROPULSORA DO COMPROMISSO SOCIAL
Com o Papa Francisco iniciamos a última parte deste trabalho: tanto o anúncio como
a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais (EG 180). E mais: O amor
(caritas) ao outro por ser quem é impele-nos a procurar o melhor para sua vida (FT 94).
Quem faz a experiência com Cristo é impelido a cuidar da vida, a provocar mudaas sociais.
o Documento de Aparecida (DAp) falava do encontro com Cristo, que se dá, de
modo especial, na Igreja (246). Se também na Sagrada Escritura, lida na Igreja (247-249),
e na Sagrada Liturgia (250), sendo a Eucaristia o lugar privilegiado (251-253). Ainda, o
encontro pessoal com Cristo se pelo sacramento da reconciliação (254) e por meio da
oração pessoal e comunitária (255). Jesus se faz presente em cada comunidade que vive a fé,
a fraternidade, o amor. Também naqueles que lutam pela paz, o bem comum e a justiça, nos
pobres, aflitos e enfermos (256-257).
É preciso que todo o apostolado tenha a caridade como fonte, origem e força.
Seguindo Cristo, que se fez Ele objeto de caridade, é preciso amar e cuidar, levando Cristo
ao próximo. Bernard apresenta quatro formas de caridade, ampliando as noções sobre o que,
de fato, é a caridade: 1) a invisível, que é praticada pela oferta e pela oração; 2) a intelectual,
quando se ilumina o próximo com a palavra, o exemplo, os escritos; 3) a coletiva, onde se
busca tratar das condições de vida de cada ser humano; 4) a interpessoal, da qual jamais
podemos nos esquivar, porque é a manifestação mais concreta e imediata do amor
8
.
O cuidado com os mais necessitados, especialmente pobres e enfermos, mulheres e
crianças, precisa ser a manifestação do encontro pessoal com Jesus Cristo. Essas são obras que
emergem da caridade de Cristo. Ainda neste sentido, o decreto AA segue indicando que,
7 Charles A. BERNARD, Introdução à Teologia Espiritual, p.110.
8 Charles A. BERNARD, Introdução à Teologia Espiritual, p.132.
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atualmente, com os meios de comunicação mais rápidos, de algum modo vencida
a distância entre os homens e feitos membros como de uma família os
habitantes de todo o mundo, estas atividades e obras tornam-se mais urgentes e
universais. Hoje, a ação caritativa pode e deve abranger todos os homens sem
exceção, assim como todas as necessidades. Onde quer que se encontrem
necessitados de comida e de bebida, de vestuário e de habitação, de
medicamentos, de trabalho, de instrução, dos indispensáveis meios para levarem
uma vida verdadeiramente humana, onde quer que haja atormentados por
tribulações e pela doença ou quem sofrer o exílio ou a prisão, mesmo a
caridade cristã os deve procurar e encontrar, confortá-los com desvelado carinho
e ajudá-los com os necessários recursos (4).
O Evangelho nos faz compreender que existe uma conexão íntima entre
evangelização e promoção humana (EG 178). Nos lembra o Papa Francisco que evangelizar
é tornar o Reino de Deus presente no mundo (EG 176). Assim, o ser humano responde à
intenção de Deus sempre que age no mundo, trabalha nele e o transforma. O objetivo é
formar um universo no qual todas as coisas encontrem seu cumprimento e seu significado
no homem, que é capaz de participar conscientemente do prolongamento da atividade
criadora de Deus
9
. Isso provoca, também, para o cuidado com a Casa Comum. É preciso,
para que os homens cresçam, amadureçam e santifiquem-se, a constante abertura a Deus,
aos irmãos e a toda criação. Nesse sentido, destaca o Papa Francisco, tudo está interligado, e
isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do
mistério da Trindade (LS 240). O Papa Bento XVI também fala da preocupação da Igreja
com a criação e indica a necessidade de uma ecologia do homem. Para ele, o sistema
ecológico se rege pelo respeito de um projeto que se refere tanto à convivência em
sociedade como ao bom relacionamento com a natureza (CV 51).
O configurar-se a Cristo, vivendo conforme o Evangelho, nos coloca diante de uma
nova hierarquia de valores, que provoca para um olhar mais profundo sobre a vida
espiritual e moral. Segundo Bernard, todos os valores confluem para a caridade, mas a
caridade faz com que o homem saia de si mesmo e leva ao sacrifício
10
. A caridade, portanto,
leva ao sacrifício de doar-se aos outros, como o próprio Cristo o fez na Cruz. É o amor
(caritas) que revela, segundo o Papa Francisco, a estatura espiritual da vida humana (FT 92).
Sem a caridade, as virtudes correm o risco de serem mera aparência, não construindo de
fato uma vida em comum. Alerta o Papa: pessoas que creem que pensam que a sua
grandeza está na imposição de suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade,
ou em grandes demonstrações de força. Contudo, continua, em primeiro lugar está o
amor, o amor nunca deve ser colocado em risco (FT 92).
O amor de Deus por nós e o conhecimento cada vez mais profundo do espírito do
Evangelho, [...] provoca na vida da pessoa e nas suas ações uma primeira e fundamental
reação: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros (EG 178). Trata-se não apenas de
uma relação pessoal com Deus, mas sim de ter um contato próximo com nossos irmãos,
dando a resposta de amor a Deus por meio do compromisso de amor para com o próximo:
um exige tão estreitamente o outro que a afirmação do amor a Deus se torna uma mentira
se o homem se fechar ao próximo ou, inclusive, o odiar (DCE 16).
Falando da espiritualidade dos leigos em ordem ao apostolado, o decreto AA aponta a
caridade como meio pelo qual se pratica o bem para com todos os seres humanos,
especialmente para com os que praticam a mesma fé. É a caridade que torna os leigos [e
todos os cristãos] capazes de exprimirem na sua vida, realmente, o espírito das bem-
aventuranças (AA 4). É preciso levar a todos o primeiro anúncio, o querigma, que carrega
9 Charles A. BERNARD, Introdução à Teologia Espiritual, p.105.
10 Charles A. BERNARD, Introdução à Teologia Espiritual, p.87.
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uma marca, segundo o Papa Francisco, inevitavelmente social: no próprio coração do
Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do
primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade (EG 177).
Um questionamento é o de se é possível viver isso realmente ou é apenas uma utopia?
Para tentar responder a essa questão, podemos olhar para a história e identificar inúmeros
cristãos que viveram conforme o Evangelho, viveram a santidade, testemunhando Cristo e
tornando o Reino de Deus presente no mundo. Figuras como São Francisco de Assis,
Santa Tereza de Calcutá, Santa Dulce dos Pobres e Santo Oscar Romero são exemplos de
pessoas que viveram a caridade cristã. Dentre tantos, fazemos menção aqui ao cearense
Dom Hélder Camara
11
, que estava sempre cercado pelos pobres, pelos excluídos. Nada fazia
sem consultar o seu maior Amigo. Emprestava seus olhos, ouvidos, boca, coração a Jesus
12
.
O Arcebispo de Olinda e Recife tinha consciência de que sua ação e sua palavra eram
expressão da sua união mística com Cristo. Vivia a sua vida na presença do amor e da
misericórdia do Pai e aberto às inspirações do Espírito Santo
13
.
O modelo de Dom Hélder e dos demais santos nos faz lembrar que rezar e servir,
amar e contemplar, são realidades indispensáveis para o discípulo de Jesus Cristo (DGAE
102). Além disso, sem oração não existe vida cristã autêntica. Sem caridade, a oração não
pode ser considerada cristã (DGAE 102). Somente vivendo uma profunda vida espiritual é
possível perceber Deus nas coisas simples e nos que mais precisam. É a caridade que nos
impele a sair de nosso comodismo e ir ao encontro, promovendo uma cultura de paz, amor,
fraternidade e solidariedade.
A Lumen Gentium é clara em dizer: o dom principal e mais necessário é a
caridade (42). Ela é o meio pelo qual podemos chegar a Deus ao servir o próximo.
Contudo,
para a caridade crescer e frutificar na alma como boa semente, todo fiel deve
ouvir de bom grado a palavra de Deus e cumprir nas obras a sua vontade, deve,
frequentemente [sic.], com o auxílio da sua graça, aproximar-se dos sacramentos
sobretudo da eucaristia, e tomar parte nos atos de culto; deve aplicar-se
constantemente à oração, à abnegação de si mesmo e ao serviço dedicado dos
seus irmãos, e ao exercício constante de todas as virtudes (LG 42).
Todos os fiéis são chamados à vivência da caridade. Ela é o sinal do verdadeiro
discípulo de Cristo (LG 42). É preciso optar preferencialmente pelo pobre e necessitado.
Apenas com o olhar da caridade, levando à percepção da dignidade do outro, é que os
pobres são reconhecidos e apreciados em sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo
próprio e cultura e, por conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade (FT 187).
Nosso serviço e configuração a Jesus se por meio [...] da ajuda prestada ao faminto, ao
sedento, ao estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado como também à criança ainda
não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte (EV 87). Esse é o caminho da
salvação, o caminho para uma vida digna e em abundância para todos.
11 Dom Hélder Pessoa Camara nasceu no Ceará em 1909. Foi destaque entre seus colegas de estudo, chegando a ser
Secretário de Educação do Estado do Ceará, o que o fez ser expulso do Estado, ingressando na Arquidiocese do Rio de
Janeiro. Foi ordenado bispo auxiliar desta Arquidiocese em 1952. Em 1964 foi nomeado Arcebispo de Olinda e Recife
por Paulo VI, seu amigo espiritual. Dom Hélder participou do Concílio Vaticano II e atuou nas Conferências de
Medellín e Puebla. É conhecido como Dom da Paz por sua atuação especial como defensor dos direitos humanos, dos
pobres e marginalizados. Mais dados podem ser obtidos em: Ivanir A. RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder
Camara. São Paulo: Paulinas, 2013.
12 Ivanir A. RAMPON, Dom Helder Camara: dom de Deus para os pobres. In: Convergência, Ano LI, 494, p.589-598,
Brasília: CRB, set. 2016. Disponível em: http://www.crbnacional.org.br/site/wpcontent/uploads/2017/12/
CONVERGENCIA_494.pdf. Acesso em: 10 mar. 2021. p.596.
13 http://www.crbnacional.org.br/site/wpcontent/uploads/2017/12/CONVERGENCIA_494.pdf. Acesso em: 10 mar.
2021. p.596.
DUTRA, Sílvio Guterres; GUINDANI, Elisandro; ZANANDA, Renan Paloschi
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Por fim, retomemos as expressões de Leão XIII: a solução definitiva para o problema
social, na época a questão operária, hoje as mais diversas citadas ao longo do texto, é a
caridade. É preciso que todos alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos
pequenos, a caridade, senhora e rainha de todas as virtudes. Somente a caridade, que
compendia em si todo o Evangelho, e que sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o
antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século (RN 37).
CONCLUSÃO
O ser cristão carrega a marca do compromisso social. A Igreja, desde os primórdios,
cuidou e defendeu a vida. É evidente que muitas vezes e de muitos modos os membros da
Igreja também foram agentes de ataque e desvalorização da vida, atitudes que jamais
encontraram respaldo na legítima Doutrina e muito menos no Evangelho. A Doutrina da
Igreja, por sua vez, sempre esteve próxima e preocupada com todos.
Contudo, de Leão XIII até os dias de hoje, encontramos uma série de documentos que
tratam sobre aspectos da Doutrina Social, aprofundando a reflexão e fazendo apontamentos
específicos sobre a ação social da Igreja, tendo como base a inalienável e inegociável
dignidade da pessoa humana e a caridade como meio para se chegar a uma vida digna e em
abundância para todos.
A espiritualidade cristã precisa produzir mudanças sociais. Não se pode compreender
o ser cristão sem uma mudança real de vida. Nos tempos atuais, diante de uma cultura de
morte, da falta de cuidado com o ser humano e com toda criação, todos os seres humanos, e
de modo especial os cristãos, são chamados a cuidar da vida. Temos o dever, seguindo a
ideia primitiva do Criador, de sermos cocriadores, auxiliando Deus em sua obra, vivendo o
amor verdadeiro, aquele que faz ser para os outros. Esse amor nos permite transcender nosso
pequeno círculo familiar ou de amigos, para chegar a todos, sem exceção.
O desafio está, portanto, em sair do discurso. É preciso ir além e colocar em prática os
princípios evangélicos. Fica a provocação do Papa Francisco: perante as várias formas
atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de
fraternidade e amizade social que não se limite a palavras (FT 6).
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
FUNDAMENTOS PARA UMA
ESPIRITUALIDADE SACERDOTAL
À LUZ DO MAGISTÉRIO RECENTE
DA IGREJA
FOUNDATIONS FOR A PRIESTLY
SPIRITUALITY IN THE LIGHT OF THE
CHURCH'S RECENT MAGISTRY
Dom Cleocir Bonetti*
Leonardo Fávero**
Resumo: Este artigo intitulado de Fundamentos para uma espiritualidade
sacerdotal à luz do Magistério recente da Igreja tem por objetivo investigar
alguns dos principais documentos do Magistério pós Concílio Vaticano II a
respeito da espiritualidade sacerdotal, juntamente com algumas
manifestações dos Papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco. O texto,
portanto, se divide em três partes: inicialmente, um enfoque à vida de
oração essencial do presbítero; em seguida, direciona a reflexão ao exercício
da caridade, da pregação e da celebração dos sacramentos; para finalmente,
fundamentar o valor da obediência e do espírito sacerdotal de pobreza como
um estilo de vida sacerdotal/presbiteral.
Palavras-chave: Espiritualidade sacerdotal. Presbíteros. Magistério. Papa
Francisco. Oração.
Abstract: This article, entitled Fundamentals for a priestly spirituality in
the light of the recent Magisterium of the Church, wants to investigate
some of the main documents of the Magisterium after the Second Vatican
Council on priestly spirituality, along with some manifestations of the
Popes John Paul II, Benedict XVI and Francisco. The text, therefore, is
divided into three parts: initially, it focuses on the essential prayer life of the
priest; then, it directs the reflection to the exercise of charity, preaching and
the celebration of the sacraments; to finally ground the value of obedience
and the priestly spirit of poverty as a priestly lifestyle.
Keywords: Priestly Spirituality. Priests. Magisterium. Pope Francis.
Prayer.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 17-38, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.62
* Bispo da Diocese de Caçador/SC. Graduado
em Filosofia pela Faculdade Nossa Senhora
Imaculada Conceição, em Viamão (FAFIMC)
e em Teologia pelo Instituto de Teologia e
Pastoral (Itepa), em Passo Fundo. Pós-
graduado em Psicopedagogia pela Faculdade
Nossa Senhora Imaculada Conceição.
Mestrado em História da Igreja pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma.
https://orcid.org/0000-0002-5514-8569
** Diácono da Diocese de Erexim. Acadêmico
do Semestre do Curso de Bacharelado em
Teologia pela Itepa Faculdades. Formado em
Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia
Berthier (Ifibe).
E-mail: leonardo.favero@live.com
https://orcid.org/0000-0001-7084-8590
Recebido em 15/07/21
Aprovado em 22/09/21
18
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O magistério da Igreja diz muito sobre a espiritualidade sacerdotal. E o faz sobretudo com
o Decreto Presbyterorum Ordinis sobre o ministério e a vida dos sacerdotes do Concílio Vaticano II;
com o Diretório para o ministério e a vida dos presteros da Congregão para o Clero e com a
Exortação Aposlica Evangelii Gaudium do Papa Francisco; am de algumas homilias, mensagens e
discursos dos Papas Jo Paulo II, Bento XVI e Francisco. Importa conhecermos o que o
magistério nos pede atualmente, especialmente com relação aos presbíteros, que em nosso
contexto recebem a miso de zelar, em colaboração com os bispos, pelo povo de Deus com
cuidados de pastor (cf. Is 40,11) a exemplo do Bom Pastor (Jo 10,14), Jesus Cristo.
O magistério recente insiste que a espiritualidade do sacerdote consiste na profunda
relação de amizade com Cristo. Por isso, no século XXI, a Igreja reconhece que
Cada sacerdote age num contexto histórico particular, com os seus vários
desafios e exigências. Exatamente por isto, a garantia de fecundidade do
ministério radica numa profunda vida interior. Se o sacerdote não conta com o
primado da graça, não poderá responder aos desafios dos tempos, e cada plano
pastoral, por mais elaborado que possa ser, estaria destinado à falência
1
.
Assim como no passado, a Igreja soube interpretar os sinais do seu tempo e atuou
quase que em todos os setores da sociedade daquela época. Ela hoje está atenta a tudo aquilo
que envolve o ser humano em suas diversas dimensões. Por isso, solenemente declara na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes: [...] as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo (GS 1). Isso significa que nada do que é humano é estranho à Igreja
2
.
Dentre os discípulos de Cristo, os sacerdotes se revestem de uma particular
relevância
3
e ocupam na Igreja uma função especial, [...] como participantes da missão dos
apóstolos, servidores do Evangelho, é dada por Deus a graça de serem ministros de Cristo
Jesus junto a todos os povos, para que o culto prestado a Deus por todos seja aceito e
santificado pelo Espírito Santo (PO 2). E para dar cumprimento a essa missão, lhes [...] são
muito importantes as virtudes a que se dá, com razão, muito valor, como a bondade do
coração, a sinceridade, a força de ânimo e a constância, o senso de justiça, a afabilidade no
trato
4
e a busca da [...] sempre maior santidade, com os meios recomendados pela Igreja, a
fim de se tornarem instrumentos cada dia mais aptos ao serviço de todo o povo de Deus
5
.
Assim, a Igreja reconhece que os sacerdotes,
[...] estão hoje empenhados nos diversos campos de apostolado que requerem
generosidade e dedicação completa, preparação intelectual e, sobretudo, uma
vida espiritual amadurecida e profunda, enraizada na caridade pastoral, que é a
sua via específica para a santidade e que constitui também um autêntico serviço
aos fiéis no ministério pastoral.
6
Por isso, buscaremos compreender os fundamentos da espiritualidade sacerdotal em
três aspectos: na vida de oração; no exercício da caridade, da pregação e da celebração dos
sacramentos; e na obediência e no espírito sacerdotal de pobreza.
l1 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.89.
2 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da doutrina social da igreja, n.455.
3 Cf. FRANCISCO, Mensagem do Papa Francisco para do 53º Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
4 FRANCISCO, Mensagem do Papa Francisco para do 53º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, n.3.
5 FRANCISCO, Mensagem do Papa Francisco para do 53º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, n.12.
6 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.90-91.
BONETTI, Cleocir; VERO, Leonardo
Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do Magisrio recente da Igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 17-38, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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2 UMA VIDA DE ORAÇÃO
A Igreja está atenta às tensões hodiernas que fazem aumentar o risco do exercício do
ministério se tornar menos eficaz. Por isso, os Padres Conciliares reconheceram que,
No mundo de hoje tanta coisa a fazer e tantos são os problemas a resolver
com rapidez, que ninguém pode se ocupar com tudo sem se atrapalhar. Os
padres, no meio das ltiplas obrigações de ofício e tendo que atender a tantas
coisas diferentes, tornam-se frequentemente ansiosos, com dificuldades para
levar uma vida interior razoável, no meio de tão diversas atividades dentro de
certa harmonia e unidade (PO 14).
Perante o desafio de harmonizar a sua vida interior com a sua ação exterior é preciso
não deixar de reservar o primado da vida espiritual que se [...] ao estar sempre com
Cristo e ao viver com generosidade a caridade pastoral, intensificando a comunhão com
todos
7
.
Ao reconhecermos que foi na oração de Jesus ao Pai pelos seus apóstolos que o
sacerdócio da Nova Aliança foi concebido (Cf. Jo 17,15-20), reconhecemos que toda a sua
atividade quotidiana derivava da oração
8
e o sacerdote é chamado, a exemplo de Jesus, a
encontrar tempo para rezar. O diálogo pessoal com Cristo, [...] é uma prioridade pastoral
fundamental, é condição para o nosso trabalho para os outros! E a oração não é algo
marginal: a profissão do sacerdote é precisamente rezar, também como representante do
povo que não sabe [...] ou não encontra tempo para fazê-lo
9
, afirma o Papa Bento XVI.
Então, precisamos ter sempre presente que [...] o primeiro de todos os auxílios espirituais é
a dupla mesa da Sagrada Escritura e da eucaristia (PO 18), afinal, é justamente porque,
quando [...] guiados pela e alimentados pela leitura divina, os padres se tornam capazes
de identificar os sinais da vontade de Deus e os impulsos da graça em todos os
acontecimentos, tornando-se cada dia mais dóceis ao Espírito Santo, no cumprimento de
sua missão (PO 18).
É nessa perspectiva as exortações proferidas pelos bispos nas ordenações:
Por isso, fazendo da Palavra o objeto da tua contínua reflexão, crê sempre no que
lês, ensina o que crês, realiza na vida o que ensinas. Deste modo, enquanto com a
doutrina darás alimento ao Povo de Deus e com o bom testemunho da vida lhe
servirás de conforto e sustento, tornar-te-ás construtor do templo de Deus, que é
a Igreja. [...] Sê, portanto, consciente do que fazes, imita o que realizas e dado
que celebras o mistério da morte e da ressurreição do Senhor, leva a morte de
Cristo no teu corpo e caminha na novidade de vida. E, enfim, em relação à guia
pastoral do Povo de Deus para conduzi-lo até o Pai: Por isso não deixes nunca
de ter o olhar fixo em Cristo, bom Pastor, que veio, não para ser servido, mas
para servir e para procurar e salvar os que estavam perdidos
10
.
Sendo assim, sem fazer do estudo, da contemplação e do conhecimento da Escritura
algo essencial na sua vida e no seu ministério, o presbítero verá seu ministério pastoral se
tornar frágil, porque o alicerce que usou é a areia e o a rocha (Cf. Mt 7,21.24-27). Além
disso, a Palavra de Deus assume na vida do presbítero um carro-chefe: ela é para ser crida,
ensinada, vivida e testemunhada.
Ademais, o presbítero precisa ter a consciência de que, ao ser ministro de Cristo, ele
associa a si, em sua carne, o mistério da morte e ressurreição do Senhor. Esse é o caminho
7 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.96.
8 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.103.
9 BENTO XVI, Vigília por ocasião da conclusão do Ano Sacerdotal (10 de junho de 2010).
10 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.105.
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para desenvolver a harmonia entre a vida interior e a vida exterior. Para o Papa Bento XVI,
uma vez que, [...] o sacerdócio se tornou algo de novo: não é uma questão de
descendência, mas um encontrar-se no mistério de Jesus
11
, é justamente nele, que o
sacerdote deve integrar sua vida, em todas as dimensões, e alicerçar seu ministério. Desse
modo, [...] entramos numa comunhão existencial com Ele, que o seu e o nosso ser
confluem, se compenetram reciprocamente
12
.
Portanto, a Igreja insiste que,
Tal vida espiritual deve ser encarnada na existência de cada presbítero mediante
a liturgia, a oração pessoal, o estilo de vida e a prática das virtudes cristãs que
contribuem para a fecundidade da ação ministerial. A própria conformação a
Cristo exige que o sacerdote cultive um clima de amizade e de encontro pessoal
com o Senhor Jesus, fazendo experiência de um encontro pessoal com ele, e de
colocar-se a serviço da Igreja, seu Corpo, à qual o sacerdote demonstrará amar
pelo cumprimento fiel e incansável dos deveres próprios do seu ministério
pastoral
13
.
Desse modo, a fim de cultivar a vida espiritual, nunca deve faltar ao presbítero: a
celebração eucarística cotidiana
14
centro da vida espiritual, fonte e alimento do ministério
pastoral
15
; a reconciliação frequente
16
, que favorece uma contínua conversão do coração ao
projeto de Jesus; a direção espiritual
17
para discernir a vontade de Deus; a recitação da
liturgia das horas
18
, o exame de consciência
19
, a lectio divina
20
, os retiros espirituais
21
, a
devoção mariana
22
, aspecto particularmente significativo para o crescimento espiritual e
ministerial de todo cristão; a vida austera, pois o ministério ordenado exige renúncias e
sacrifícios que somente uma e equilibrada pedagogia ascética pode favorecer
23
; e outros
meios que possam fazê-lo crescer espiritualmente, vocacionalmente, ministerialmente.
Quanto aos sacramentos da Eucaristia e Reconciliação, abordaremos adiante. Mas,
dentre esses outros modos de cultivar a espiritualidade, destacamos a lectio divina, que [...]
consiste em permanecer prolongadamente sobre um texto bíblico, lendo-o e relendo-o,
quase ruminando-o, como dizem os Padres, e espremendo, por assim dizer, todo o seu
sumo, para que alimente como linfa a vida concreta
24
.
O Papa Francisco sintetiza com maestria o método da lectio divina e nos mostra sua
finalidade e seus frutos. Para ele,
11 BENTO XVI, Homilia do Papa Bento XVI na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (13 de abril de 2006).
12 BENTO XVI, Homilia do Papa Bento XVI na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (05 de abril de 2007).
13 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.98-99.
14 Cf. PO, 5; 18; PDV, 23; 26,38,46,48; CDC, cânn.246,1; 276,2,2º.
15 Na Mensagem do Papa João Paulo II para o 37ª Dia Mundial de Oração pelas Vocações, no ano de 2000, o Papa João Paulo II
afirmou que [...] a Eucaristia constitui o momento culminante no qual Jesus, no seu Corpo doado e no seu Sangue
derramado pela nossa salvação, desvela o mistério da sua identidade e indica o sentido da vocação de toda pessoa de fé,
que consiste no fazer-se dom para os outros, à exemplo do que fez Jesus ao doar seu Corpo e Sangue; e nisso cita
Santo Agostinho: Sede aquilo que recebeis e recebei aquilo que sois (Discurso 271 1: Nella Pentecoste) indicando que o
fiel que se nutre daquele Corpo entregue e daquele Sangue derramado recebe a foa de transformar-se também em dom.
16 Cf. PO, 5;18; CDC, cânn. 246, 4; 276,2,5º; PDV, 26; 48.
17 Cf. PO, 18; CDC, cân. 239; PDV, n.40; 50; 81.
18 Cf. PO, 18; CDC, cânn. 246, 2; 276,2,3º; PDV, 26; 72; CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A
DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Respostas Celebratio integra acerca de algumas questões sobre a obrigatoriedade
da recitação da Liturgia das Horas (15 de novembro de 2000).
19 Cf. PO, 18; PDV, n.26; 47; 51; 53; 72.
20 Cf. PO, 4; 13; 18; PDV, 26; 47; 53; 70; 72.
21 Cf. PO, 18; PDV, 80.
22 Cf. PO, 18; PDV, 36; 38; 45; 82.
23 Cf. JOÃO PAULO II, Mensagem do Papa João Paulo II para o 27ª Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
24 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.121.
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uma modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor nos quer
dizer na sua Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la
por lectio divina. Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração,
para lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está
separada do estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem central
do texto; antes, pelo contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir
aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida. A leitura
espiritual de um texto deve partir do seu sentido literal. Caso contrário, uma
pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe convém, o que serve para
confirmar suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas
mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para proveito próprio e
passar esta confusão para o povo de Deus (EG 152).
Desse modo, no contato com a Palavra de Deus, o Espírito penetra no coração do
prestero. Ao se tornar íntimo da Palavra, o presbítero descobri o que ela lhe diz,
primeiro, pela literalidade, depois pelo estudo exegético. O presbítero deve resistir à
tentação de adaptar a Escritura aos seus interesses, mas sim mergulhar no mistério de
Deus que se revela mediante o texto bíblico. Assim, em espírito de contemplação, o
prestero encontrará alimento na Palavra e a anunciaao povo de Deus, cujo cuidado
lhe é confiado.
Outro modo de cultivar a espiritualidade é a recitação da liturgia das horas. O
Concílio Vaticano II afirma que aqueles [...] que rezam assim, cumprem, por um lado, a
obrigação própria da Igreja, e, por outro, participam da imensa honra da Esposa de Cristo,
porque estão em nome da Igreja diante do trono de Deus, a louvar o Senhor (SC 85). Ela é a
[...] oração que Cristo, unido aos seu Corpo, eleva ao Pai (SC 84) e por isso, é uma
obrigação de amor
25
.
Assim sendo, para ser fonte de espiritualidade, ao rezar a liturgia das horas,
[...] é necessário interiorizar a Palavra divina, estar atentos ao que o Senhor me diz
nesta Palavra, escutar o comentário dos Padres da Igreja ou também do Conlio
Ecumênico Vaticano II, aprofundar na vida dos Santos e também no discurso dos
Papas, na segunda Leitura do Ofício das Leituras, e rezar com esta grande invocação
que são os Salmos, com os quais somos inseridos na orão da Igreja
26
.
uma riqueza espiritual neste ofício, que fornece, inclusive, um todo de oração
herdado dos mosteiros. Ao entrar no profundo mistério da oração, recordando as ordens
monásticas, Bento XVI afirmava que,
Os pensamentos não devem vaguear aqui e ali por detrás das preocupações e das
expectativas da vida quotidiana; os sentidos não devem ser atraídos pelo que ali,
no interior da Igreja, casualmente os olhos e os ouvidos gostariam de captar. O
meu coração deve abrir-se docilmente à palavra de Deus e estar recolhido na
oração da Igreja, para que o meu pensamento receba a sua orientação das
palavras do anúncio e da oração. E o olhar do meu coração deve estar dirigido
para o Senhor que está no meio de nós: eis o que significa ars celebrandi o justo
modo de celebrar. Se eu estou com o Senhor, então com o meu ouvir, falar e agir
atraio também o povo dentro da comunhão com Ele
27
.
Assim, ao trazer para a centralidade do encontro com o Senhor na oração as
dificuldades e os acontecimentos cotidianos, o sacerdote não as exclui nem as combate, mas as
integra e oferece ao Pai. O cotidiano é confrontado e iluminado pela Palavra no silêncio da
oração do sacerdote que [...] deve ser alguém que vigia. Deve estar alerta diante dos poderes
25 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.150.
26 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.151.
27 BENTO XVI, Homilia do Papa Bento XVI na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (05 de abril de 2007).
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Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do Magisrio recente da Igreja
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ameaçadores do mal. Deve manter o mundo desperto para Deus. Deve ser alguém que está em
: firme diante das correntes do tempo. Firme na verdade. Firme no compromisso do bem
28
.
Ligado à vigilância está a escuta do povo. Para o Papa Francisco,
O pregador deve também pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os
fiéis precisam ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um
contemplativo do povo. Dessa forma descobre as aspirações, as riquezas e as
limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caracterizam este ou aquele aglomerado humano, prestando atenção ao povo
concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo aos problemas que
apresenta (EG 154).
Desse modo, através da oração constante, o presbítero encontra maneiras de discernir
como relativizar as adversidades e temer os sucessos. O modo de fazer isso é olhando para a
prática de Jesus, como anteriormente afirmamos, mas isso é realizado com e na oração. Isso
pode ser intuído na oração do salmista: nossos olhos estão fitos no Senhor (Cf. Sl 122(123),
2). Ter os olhos fixos no Senhor significa contemplar com toda a existência a pessoa e a
prática do Filho. Fazendo isso, ele terá condições de enfrentar as adversidades e não se
deixar desviar pelos sucessos, permanecendo firme no caminho da missão assumida. Na
prática, trata-se da [...] sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a
mensagem de Deus, e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer.
Procura-se descobrir o que o Senhor tem a dizer nessas circunstâncias (EG 154).
Portanto, a firmeza do sacerdote não é para si, mas para o rebanho, para o Povo fiel
de Deus que lhe é confiado. Nesse sentido, afirma o Papa Francisco,
As pessoas agradecem-nos porque sentem que rezámos a partir das realidades da
sua vida de todos os dias, as suas penas e alegrias, as suas angústias e esperanças.
E, quando sentem que, através de s, lhes chega o perfume do Ungido, de
Cristo, animam-se a confiar-nos tudo o que elas querem que chegue ao Senhor:
Reze por mim, padre, porque tenho este problema, abençoe-me, padre, reze
para mim”… Estas confidências são o sinal de que a unção chegou à orla do
manto, porque é transformada em súplica súplica do Povo de Deus
29
.
E ao tomar consciência disso, o sacerdote encontra sua profunda identidade de ser
ministro de Cristo, chamado a estar próximo DEle e do povo de Deus. Então, outra vez
ecoa com sabedoria o discurso do Papa São João Paulo II pelo 30º aniversário do Decreto
Presbyterorum Ordinis:
A identidade sacerdotal é uma questão de fidelidade a Cristo e ao povo de Deus,
ao qual somos mandados. A consciência sacerdotal não se limita a algo de
pessoal. É uma realidade continuamente examinada e sentida pelos homens,
porque o sacerdote é tomado dentre os homens e estabelecido para intervir nas
suas relações com Deus. [...] Assim como o sacerdote é um mediador entre Deus
e os homens, muitas pessoas se dirigem a ele pedindo as suas orações. A oração,
num certo sentido, cria o sacerdote, especialmente como pastor. Ao mesmo
tempo, cada sacerdote cria-se a si mesmo graças à oração
30
.
Por isso, entendemos que a Igreja, sabiamente, insiste na identidade sacerdotal dos
presbíteros, para que tenham uma consciente e constante vida de oração. Consciente
porque ela é despertada pelos condicionamentos da realidade histórica que exigem do
presbítero uma resposta evangélica discernida à luz da Palavra e do Espírito. Constante
28 BENTO XVI, Homilia do Papa Bento XVI na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (20 de março de 2008).
29 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (28 de março de 2013).
30 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.153.
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porque sempre mais o presbítero é chamado para estar em comunhão com o Senhor, a ser
íntimo dEle através do encontro com Cristo na oração pessoal e comunitária. Para tanto
mais ser fiel à persona christi, tanto mais deve, através da oração, se deixar preencher pelo seu
Espírito que lhe foi confiado com a unção.
Entretanto, o Papa Francisco reconhece que existe ainda hoje,
[...] uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e
relaxamento, que leva a viver os próprios deveres como mero apêndice da vida,
como se não fizessem parte da própria identidade. Ao mesmo tempo, a vida
espiritual confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam
algum alívio, mas não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no
mundo, a paixão pela evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes
evangelizadores não obstante rezem uma acentuação do individualismo, uma
crise de identidade e um declínio do fervor. São três males que se alimentam
entre si (EG 78).
O individualismo, a crise de identidade e o declínio do fervor, sobretudo missionário,
são riscos frequentes que os presbíteros estão sujeitos. Se eles não forem enfrentados e
discernidos à luz da Palavra, os presbíteros acabam por desenvolver um complexo de
inferioridade e [...] não se sentem felizes com o que são nem com o que fazem, não se
sentem identificados com a missão evangelizadora. Acabam por sufocar a alegria da missão
numa espécie de obsessão por serem como todos os outros e terem o que possuem os
demais (EG 79). Essa situação os leva a perder sua identidade presbiteral e cristã e, ademais,
[...] a tarefa da evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo
muito limitado (EG 79).
O Papa Francisco faz diversos alertas, dentre eles, quanto à acédia egoísta e
paralisadora (EG 8), camuflada de uma tristeza adocicada
31
; à tristeza sem esperança (EG
83); ao pessimismo estéril e sufocante (EG 85); e à desertificação espiritual (EG 86). Tudo
isso é confrontado com uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo
tempo nos comprometa com os outros. Afinal, afirma:
Nisto está a verdadeira cura: de fato, o modo de nos relacionarmos com os
outros que, em vez de nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística,
contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir
Deus em cada ser humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência
agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino para
procurar a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom (EG 92).
O percurso que o Papa Francisco sugere como via de solução destes riscos e
tentações é a fraternidade. Ela é [...] a arte do encontro, embora haja tanto desencontro
na vida (FT 215), com todos, também com as periferias do mundo porque [...] de todos
se pode aprender alguma coisa: ninguém é inútil, ninguém é supérfluo (FT 215). Além
disso, propõe que se dê [...] à nossa capacidade de amar uma dimensão universal (FT 83)
que favoreça a cultura do encontro (FT 30), uma Igreja em saída (EG 24) e a conversão
pastoral (EG 25).
Por isso, [...] o compromisso missionário não é algo que vem acrescentar-se à vida
cristã como se fosse um ornamento, mas, pelo contrário, situa-se no âmago da própria fé: a
relação com o Senhor, implica ser enviados ao mundo como profetas da sua palavra e
testemunhas do seu amor
32
. Desse modo, afirma o Papa Francisco,
31 FRANCISCO, Mensagem do Papa Francisco para o 57ª Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
32 FRANCISCO, Mensagem do Papa Francisco para o 54ª Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
BONETTI, Cleocir; VERO, Leonardo
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É impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de sólidas
convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num estilo de
vida que os leva a agarrarem-se a seguranças econômicas ou a espaços de poder e
de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a vida pelos
outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário! (EG 80).
Por isso, apesar de todas as dificuldades a serem enfrentadas, algumas assumidas e
outras carregadas, o estilo de vida do presbítero é semelhante ao de São José. O seu silêncio,
em comparação ao silêncio orante do presbítero
[...] não manifesta um vazio interior, mas, ao contrário, a plenitude de fé que ele
traz no coração, e que orienta todos os seus pensamentos e todas as suas ações.
Um silêncio que, como o do santo Patriarca, conserva a Palavra de Deus,
conhecida através das Sagradas Escrituras, comparando-a continuamente com os
acontecimentos da vida de Jesus; um silêncio impregnado de oração constante,
de oração de bênção do Senhor, de adoração da sua santa vontade e de confiança
sem reservas na sua providência
33
.
Portanto, no sincio do coração, na aparente solio, o presbítero estabelece a comuno
com o Senhor. Ao lado dEle, encontrará a força e os meios para reaproximar as pessoas a Deus,
para acender a chama da , para suscitar o compromisso da vincia da e a partilha em favor
do bem comum. E essa sensibilidade espiritual cultivada na oração se manifesta pastoralmente no
exercio da caridade, na pregão da Palavra e na celebração dos sacramentos.
3 O EXERCÍCIO DA CARIDADE, DA PREGAÇÃO E DA CELEBRAÇÃO DOS SACRAMENTOS
A harmonia de vida do ministério pastoral, sem ser alheia à espiritualidade, mas com
as suas atividades cotidianas, sejam ordinárias ou extraordinárias, expressam [...] a caridade
pastoral, intimamente conexa à Eucaristia, que constitui o princípio interior e dinâmico
capaz de unificar as múltiplas e diversas atividades pastorais do presbítero e conduzir os
homens à vida da Graça
34
. Assim sendo, toda e qualquer atividade, realizada com um
espírito de doação de si, [...] deve ser uma manifestação da caridade de Cristo, da qual o
presbítero saberá exprimir atitudes e comportamentos, até a doação total de si em benefício
do rebanho que lhe foi confiado
35
.
Isso porque, o presbítero é configurado a Jesus Cristo que é a Cabeça da Igreja.
Segundo o Papa João Paulo II,
É "Cabeça" no sentido novo e original de ser "servo", segundo as suas próprias
palavras: "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a
própria vida em resgate por todos" (Mc 10,45). O serviço de Jesus atinge a
plenitude com a morte na cruz, ou seja, com o dom total de si mesmo, na
humildade e no amor: "Despojou-se a si próprio, assumindo a condição de servo
e tornando-se igual aos homens; aparecendo em forma humana, humilhou-se a
si mesmo fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz" (Fil 2,7-8). A
autoridade de Jesus Cristo Cabeça coincide, portanto, com o seu serviço, o seu
dom, a sua entrega total, humilde e amorosa pela Igreja. E tudo isto em perfeita
obediência ao Pai: Ele é o único verdadeiro servo sofredor, conjuntamente
Sacerdote e Vítima (PDV 21).
Ao fazer-se, a exemplo de Cristo o, sacerdote e vítima, com o exercício do seu
ministério, o presbítero deverá ser próximo dos sofredores, dos pequenos, daqueles em
dificuldades, dos marginalizados e, sobretudo, dos pobres e dos doentes, e todos aqueles que
33 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.104.
34 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.106.
35 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.107.
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Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do Magisrio recente da Igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 17-38, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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muitas vezes são desprezados e esquecidos. Afinal, como afirma o Papa Francisco na
Evangelii Gaudium, [...] hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio
trazer. que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa e os
pobres (EG 48).
Por isso, [...] para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teogica que
cultural, sociológica, potica ou filosófica. [...] Esta preferência divina tem conseqncias na vida
de de todos os crisos. (EG 198). Sem a compreeno teológica dessa oão, o significado
profundo da caridade pastoral corre o risco de ser esvaziado pela gica do funcionalismo. E,
nessa perspectiva, o sacerdócio acaba reduzido apenas aos seus aspectos funcionais, de modo que
[...] ser padre consistiria em realizar alguns servos e garantir algumas prestões de trabalho
36
.
Essa mentalidade faz do sacercio não mais uma vocação à qual o homem respondeu com seu
sim, e se torna uma profissão eclesiástica como qualquer outra. A Igreja o é mais uma
expreso do mistério do amor de Deus, o sinal e instrumento da uno com Deus e da unidade
de todo o nero humano como proclamou o Concílio Vaticano II. Mas uma empresa
meramente humana, frequentemente submissa à economia, que sustenta um profissional do
sagrado, ou então, submissa à potica. Como afirma o Papa Francisco, [...] é verdade que os
ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não
podem renunciar à dimensão política da existência que implica uma ateão constante ao bem
comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral (FT 276).
Um alerta nos é dado pelo Papa Bento XVI quando afirma,
[...] enquanto sacerdotes de Jesus Cristo, fazemo-lo com zelo. As pessoas não
devem jamais ter a sensação de que o nosso horário de trabalho cumprimo-lo
conscienciosamente, mas antes e depois pertencemo-nos apenas a s mesmos.
Um sacerdote nunca se pertence a si mesmo. As pessoas devem notar o nosso zelo,
atras do qual testemunhamos de modo credível o Evangelho de Jesus Cristo
37
.
Pelo próprio fato do anúncio e do testemunho do Evangelho perpassarem o todo do
ministério, [...] o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e
expressão irrenunciável de sua própria essência. Assim como a Igreja é missionária por
natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efetiva com o
próximo (EG 179). E, por isso, [...] a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como
uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a
Tradição da Igreja (EG 198).
Contudo, Francisco alerta que
Ao mesmo tempo, que rejeitar a tentação de uma espiritualidade intimista e
individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a
lógica da encarnação. o risco de que alguns momentos de oração se tornem
desculpa para evitar de dedicar a vida à missão, porque a privatização do estilo de
vida pode levar os cristãos a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade (EG 262).
E o antídoto para essa tentação e esse risco, como aponta o Papa Francisco, é o
testemunho dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que se
mantiveram [...] transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e
capazes de uma grande resistência ativa. [...] temos de reconhecer que o contexto do
Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à
defesa da dignidade humana (EG 263).
36 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.108.
37 BENTO XVI, Homilia do Papa Bento XVI na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (05 de abril de 2012).
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Em tudo isso, o presbítero é chamado a doar-se a si mesmo. O dom de si é, ao mesmo
tempo, uma tarefa e uma resposta livre e responsável do sacerdote. Para o Papa João Paulo
II,
O conteúdo essencial da caridade pastoral é o dom de si, o total dom de si mesmo
à Igreja, à imagem e com o sentido de partilha do dom de Cristo. A caridade
pastoral é aquela virtude pela qual nós imitamos Cristo na entrega de si mesmo e
no seu serviço. Não é apenas aquilo que fazemos, mas o dom de nós mesmos que
manifesta o amor de Cristo pelo seu rebanho. A caridade pastoral determina o
nosso modo de pensar e de agir, o modo de nos relacionarmos com as pessoas. E
não deixa de ser particularmente exigente para nós (PDV 23).
O zelo pastoral pelo anúncio do Evangelho pode levar muitos sacerdotes ao cansaço e
à exaustão. Contudo, o Papa Francisco nos faz perceber que [...] uma chave da fecundidade
sacerdotal reside na forma como repousamos e como sentimos que o Senhor cuida do nosso
cansaço
38
. Afinal,
Pode acontecer também que, ao sentir o peso do trabalho pastoral, nos venha a
tentação de descansarmos de um modo qualquer, como se o repouso não fosse
uma coisa de Deus. Não caiamos nesta tentação! A nossa fadiga é preciosa aos
olhos de Jesus, que nos acolhe e faz levantar o ânimo: Vinde a Mim, todos os
que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos (Mt 11,28). Se uma
pessoa sabe que, morta de cansaço, pode prostrar-se em adoração e dizer:
Senhor, por hoje basta!, rendendo-se ao Pai, sabe também que, ao fazê-lo, não
cai, mas renova-se, pois o Senhor que ungiu com o óleo da alegria o povo fiel de
Deus, também a unge a ela: Muda a sua cinza em coroa, o seu semblante triste
em perfume de festa e o seu abatimento em cantos de festa (cf. Is 61,3)
39
.
Desse modo, o Papa Francisco nos faz perceber que o cansaço pastoral, fruto de
dedicação ao povo de Deus, do consumir-se em favor do rebanho, é um cansaço santo, um
cansaço que se torna uma fonte de espiritualidade, de novidade e [...] uma graça que está ao
alcance de todos nós, sacerdotes
40
. E, ademais, [...] o povo fiel não nos deixa sem atividade
direta, a não ser que alguém se esconda num escritório ou passe pela cidade com vidros
escuros. E este cansaço é bom, é um cansaço saudável. É o cansaço do sacerdote com o
cheiro de ovelhas
41
.
Contudo, é preciso estar alerta que nem todo cansaço é assim. Há aquele que podemos
chamar de o cansaço dos inimigos: [...] o diabo e os seus sectários não dormem. [...] Aqui o
cansaço de enfrentá-los é mais árduo. Não se trata apenas de fazer o bem, com toda a fadiga
que isso implica, mas é preciso também defender o rebanho e defender-se a si mesmo do
mal
42
. E, além desse, o cansaço de nós próprios, que, segundo Francisco, [...] este
cansaço é o mais autorreferencial: é a desilusão com nós mesmos. [...] Trata-se do cansaço
que resulta do querer e o querer, [...] de jogar com a ilusão de sermos outra coisa
qualquer
43
. Nesse sentido, o cansaço pastoral deve também ser discernido na oração e
assumido como uma graça que o Senhor concede ao seu ministro com cheiro de ovelha,
anunciador do Evangelho.
Portanto, nesse conjunto de atividades que fazem parte da missão presbiteral, o Papa
João Paulo II afirma que a caridade pastoral,
38 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
39 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
40 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
41 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
42 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
43 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (02 de abril de 2015).
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[...] constitui o princípio interior e dinâmico capaz de unificar as múltiplas e
diferentes atividades do sacerdote. Graças a ela, pode encontrar resposta a
exigência permanente e essencial de unidade entre a vida interior e tantas
atividades e responsabilidades do ministério, exigência sempre mais urgente
num contexto sociocultural e eclesial fortemente assinalado pela complexidade,
desagregação e dispersão. Somente a concentração de cada instante e de cada
gesto à volta da opção fundamental e qualificante de dar a vida pelo rebanho
pode garantir esta unidade vital, indispensável para a harmonia e para o
equilíbrio espiritual do sacerdote: A unidade de vida - recorda o Concílio - pode
ser conseguida pelos presbíteros seguindo, no desempenho do próprio
ministério, o exemplo de Cristo Senhor, cujo alimento era o cumprimento da
vontade d'Aquele que o tinha enviado a realizar a sua obra (...) Assim,
representando o Bom Pastor, no mesmo exercício pastoral da caridade,
encontrarão o vínculo da perfeição sacerdotal que tornará efetiva a unidade
entre a sua vida e atividade (PDV 23).
A atividade pastoral do ministro de Cristo implica na pregação, e esta exige fidelidade
à Palavra. Uma vez que, Cristo confiou aos Apóstolos e à Igreja a missão de pregar a Boa
Nova a todos os homens, transmitir a é preparar um povo para o Senhor, revelar,
anunciar e aprofundar a vocação cristã; isto é, a chamada que Deus dirige a cada homem
44
.
O caráter missionário da transmiso da e a exigência de autenticidade e de
conformidade com a da Igreja se fazem indispensáveis. Afinal, o Magisrio compreende que o
[...] minisrio da palavra não pode ser abstrato ou distante da vida das pessoas; ao contrário, ele
deve referir-se diretamente ao sentido da vida do homem, de cada homem, e, portanto, deverá
entrar nas questões mais vivas que se colocam à consciência humana
45
. Esse cuidado com os
destinatários do Evangelho e com a fidelidade à Palavra é sinal do caráter missionário da
pregação, que rompe as fronteiras geográficas e existenciais ou condicionantes, de modo que,
para cada pessoa humana, uma palavra de vida nova e eterna. E, inclusive, [...] deve ser
feito com sentido de extrema responsabilidade, consciente de que se trata de uma questão de
xima importância, enquanto está em jogo a vida do homem e o sentido da sua exisncia
46
.
Sendo assim, hoje, [...] o presbítero deve dar o primado ao testemunho de vida, que
faz descobrir a potência do amor de Deus e torna persuasiva a sua palavra
47
. Isso significa
que não [...] descuidará da pregação explícita do mistério de Cristo aos crentes, aos não
cristãos e aos não crentes; da catequese, que é a exposição ordenada e orgânica da doutrina
da Igreja; e da aplicação da verdade revelada à solução dos casos concretos
48
. Isso porque
[...] a fé depende da pregação e a pregação, por sua vez, se atua pela Palavra de Cristo (Rm
10,17), o que exige que os presbíteros sejam [...] não as testemunhas, mas também os
anunciadores e transmissores da fé
49
.
Por isso, o Papa Bento XVI afirma que,
Consequentemente, as suas palavras, as suas opções e atitudes devem ser cada
vez mais uma transparência, um anúncio e um testemunho do Evangelho;
permanecendo na Palavra, é que o presbítero se tornará perfeito discípulo do
Senhor, conhecerá a verdade e será realmente livre (VD 102).
Ou seja, a pregação não pode ser reduzida à mera comunicação de ideias e
pensamentos próprios ou manifestações de experiências pessoais, nem às explicações
44 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.119.
45 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.120.
46 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.120.
47 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.120.
48 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.20-121.
49 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.122.
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simplicistas de acento psicológico, sociológico, filantrópico ou ideológico. Por isso, o
Diretório afirma que para ser eficaz e credível, é importante que o presbítero [...] conheça,
com um sentido crítico construtivo, as ideologias, a linguagem, os laços culturais, as
tipologias difundidas pelos meios de comunicação e que, em grande parte, condicionam as
mentalidades
50
. E, além disso, o presbítero deve evitar a excessiva retórica, típica da
comunicação de massa. Desse modo, é indispensável ao presbítero a consciência da missão
própria do anunciador do Evangelho, como instrumento de Cristo e do Espírito, que
pastoralmente ele desenvolve e concretiza seu ministério.
O anúncio da Boa-Nova está intimamente ligado, na pastoral cotidiana, à catequese.
Por isso, [...] é importante que ele [o presbítero] saiba integrar tal atividade num projeto
orgânico de evangelização, garantindo, antes de tudo, a comunhão da catequese da própria
comunidade com a pessoa do Bispo, com a Igreja particular e com a Igreja universal
51
.
Desse modo, [...] o sacerdote deverá ser o catequista dos catequistas, formando com eles
uma verdadeira comunidade de discípulos do Senhor, que sirva como ponto de referência
para os catequizandos
52
.
Se o serviço da Palavra é o elemento fundamental do ministério presbiteral, o seu
coração é, sem dúvida, a Eucaristia, que é, sobretudo, a presença real, no tempo, do único e
eterno sacrifício de Cristo. Ela [...] é princípio, meio e fim do ministério sacerdotal
53
.
Jesus, afirma o Papa Francisco, [...] nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana
da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22,19). A alegria evangelizadora
refulge sempre no horizonte da memória agradecida (EG 13). E, justamente por isso, ela,
[...] embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos,
mas um remédio generoso e um alimento para os fracos (EG 47). E isso implica
radicalmente na ação pastoral do presbítero, porque não é controlador da graça, mas
facilitador para o seu acesso.
Apresentamos aqui o apelo do Papa Francisco aos sacerdotes e leigos de Buenos
Aires: [...] prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a
uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças (EG 49). O caminho é a missão, vivida com compaixão, com amor e misericórdia.
E não uma vida fechada e focada nos bens, nas seguranças das estruturas do mundo.
O Concílio Vaticano II afirma que, uma profunda e íntima [...] conexão entre a
centralidade da Eucaristia, a caridade pastoral e a unidade de vida do prestero
54
. Por
isso, justamente pelo fato do mistério do sacerdócio o vincular mais propriamente ao
Verbo encarnado, [...] o presbítero empresta a Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, a
inteligência, a vontade, a voz e as os para, mediante o seu ministério, poder oferecer
ao Pai o sacrifício sacramental da redenção, deverá fazer próprias as disposições do
Mestre e viver, como Ele, sendo dom, para os seus irmãos
55
. E mais, é seu dever e
obrigação [...] aprender a unir-se intimamente à oferta, colocando sobre o altar do
sacrifício toda a sua vida como sinal manifestativo do amor gratuito preveniente de
Deus
56
.
E, ainda que [...] o sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo
que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-
50 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.124.
51 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.127.
52 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.128.
53 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.130.
54 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.130.
55 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.131.
56 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.131.
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se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o
poder (EG 104). De modo que [...] a configuração do sacerdote com Cristo Cabeça isto é,
com a fonte principal da graça não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos
demais (EG 104).
Por isso, o mistério da unidade entre Eucaristia e ministério sacerdotal é tão estreito e
forte que a celebração eucarística tem um valor insubstituível na vida do presbítero. Ela é
fonte e ápice (Cf. LG 11; SC 10; PO 18) de toda ação litúrgica e, mesmo que a liturgia não
seja sua única atividade (SC 9), ela deve ser celebrada cotidianamente, como antes
afirmamos. Inclusive, e esse é um ponto de tensão especialmente no contexto da pandemia
do coronavírus, que a orientação para celebração cotidiana é tão forte que ela supera o
impedimento de o presbítero celebrar mesmo sem a presença de algum fiel
57
.
A celebração eucarística deve ser vivida como momento central do dia e do ministério
cotidiano, [...] fruto dum desejo sincero e ocasião de encontro profundo e eficaz com
Cristo. Na Eucaristia, o sacerdote aprende a doar-se a cada dia, não apenas nos momentos
de grande dificuldade, mas também nas pequenas contrariedades diárias
58
, sem se descuidar
de que ela [...] é, antes de tudo, celebrada para a glória de Deus e em ação de graças pela
salvação da humanidade
59
.
Segundo o Papa Francisco,
O encontro com Jesus na Escritura conduz-nos à Eucaristia, onde a própria
Palavra atinge a sua eficácia máxima, porque é a presença real dAquele que é a
Palavra viva. Ali, o único Absoluto recebe a maior adoração que pode ser dada a
ele neste mundo, porque é o próprio Cristo quem se oferece. E quando o
recebemos em comunhão, renovamos a nossa aliança com ele e lhe permitimos
realizar cada vez mais a sua ação transformadora (GeE 157).
O presbítero é chamado a desenvolver uma profunda espiritualidade eucarística,
capaz de torná-lo consciente de que, através da sua ação litúrgica-sacramental, o memorial
do mistério da entrega do Senhor se repete no tempo e se torna acessível aos homens e
mulheres de hoje. Assim, reconhecemos que dons de Deus que são sempre atuais e
contêm [...] uma força que transcende todos os tempos e as circunstâncias: a Palavra do
Senhor sempre viva e eficaz, a presença de Cristo na Eucaristia que nos alimenta e o
Sacramento do Perdão que nos liberta e fortalece (ChV 229).
Os presbíteros são, também, ministros da reconciliação. Os sacerdotes são [...] por
vontade de Cristo, os únicos ministros do sacramento da reconciliação [...] enviados a
chamar os pecadores à conversão e a reconduzi-los ao Pai mediante o julgamento da
misericórdia
60
. Através deles é restabelecida [...] a amizade com Deus Pai e com todos os
seus filhos na sua família que é a Igreja
61
. Se, com a pregação catequética, o pastor exorta os
fiéis à consciência da ortodoxia e, com o testemunho, à ortopráxis, no nível sacramental, ele
deve estimular a dor pelo pecado e a confiança na graça, superando qualquer redução da
reconciliação a uma atividade psicológica ou meramente formalística
62
.
Por isso, [...] ele é o primeiro a saber que a prática deste sacramento o fortalece na
e na caridade para com Deus e para com os irmãos
63
, porque na confissão frequente ele
aprende a compreender os outros, e é estimulado a [...] colocá-lo no centro das
57 Cf. CDC, cân. 904; CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.132.
58 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.132.
59 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.138.
60 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.142-143.
61 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.143.
62 Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.147.
63 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.147.
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preocupações pastorais
64
, como o fez o Santo Cura DArs.
Segundo o Papa Francisco, [...] a verdadeira no Filho de Deus feito carne é
inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação
com a carne dos outros. Na sua Encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da
ternura (EG, n. 88). E como um modo próprio para experimentar a ternura do amor de
Deus, Francisco, ainda, recorda que, [...] com convicção, ponhamos novamente no centro
o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da
misericórdia (MV 17). Afinal, no sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados,
que são verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos
nossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, é mais
forte também do que isso (MV 22).
Para o Papa Francisco,
A Igreja tem a missão de anunciara misericórdia de Deus, coração pulsante do
Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa.
A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao
encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está
comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser
reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada. É determinante
para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela
mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no
coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar
ao Pai, devem irradiar misericórdia (MV 12).
Ao irradiar com sua vida e ministério a misericórdia do Pai, o presbítero cumpre mais
fielmente a missão que lhe foi confiada e, mais ainda, revela que [...] a misericórdia não é
contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador,
oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar (MV 21).
E, ademais, paralelamente à Reconciliação, o presbítero deve exercer o ministério da
direção espiritual, sendo eles mesmos assíduos a ela e [...] com a ajuda do acompanhamento
ou conselho espiritual [...] é mais fácil discernir a ação do Espírito Santo na vida de cada
indivíduo
65
.
Para o Papa Francisco,
Embora possa soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve conduzir cada vez
mais para Deus, em quem podemos alcançar a verdadeira liberdade. Alguns
crêem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta que
ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde possam
sempre voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes,
que giram indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum.
O acompanhamento seria contraproducente, caso se tornasse uma espécie de
terapia que incentive esta reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser
uma peregrinação com Cristo para o Pai (EG 170).
O presbítero deve se exercitar na arte de escutar o outro, de ir ao seu encontro e
estabelecer com ele uma relação de proximidade, de amizade, de fraternidade. Assim, ele
será capaz de fazer despertar o anseio de corresponder aos apelos que Deus faz na vida de
todas as pessoas. Então, de errantes, animados pelo Espírito, nos tornamos todos peregrinos
com Cristo rumo ao Pai.
Portanto, segundo o Papa Francisco,
64 BENTO XVI, Carta de proclamação do Ano Sacerdotal por ocasião do 150º aniversário do Dies natalis de João Maria Vianney
(16 de junho de 2009).
65 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.149.
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Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa diante de Deus
e a sua vida em graça são um mistério que ninguém pode conhecer plenamente a
partir do exterior. O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma
pessoa a partir do reconhecimento da maldade objetiva das suas ações (cf. Mt
18,15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade (cf.
Mt 7,1; Lc 6,37). Seja como for, um válido acompanhante não transige com os
fatalismos nem com a pusilanimidade. Sempre convida a querer curar-se, a pegar
no catre (cf. Mt 9,6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar para
anunciar o Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e
curar, conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos
acompanha, ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros e
habilita-nos a encontrar as formas para despertar neles a confiança, a abertura e
a vontade de crescer (EG 172).
Sendo assim, os presbíteros devem ser companheiros e zelar pela justiça, devem
conhecer o povo de Deus que está sob seus cuidados e caminhar com ele. Ao zelar pela
justiça, saberá como orientar de volta ao caminho quando se desviarem, denunciando sem
dúvida o erro, mas o fazendo sempre com misericórdia. Afinal, como afirma o Papa, o
acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue no âmbito do serviço à
missão evangelizadora (EG 173).
4 A OBEDIÊNCIA E O ESPÍRITO SACERDOTAL DE POBREZA
A obediência é uma virtude indispensável ao presbítero. Sua raiz última e sentido
profundo se encontra no mistério de entrega do próprio Cristo na Cruz, que revela o valor
salvífico da obediência e da fidelidade à vontade do Pai. São Paulo escrevia aos Filipenses
que Cristo [...] foi obediente até a morte e morte de cruz (Fl 2,8) e a Carta aos Hebreus
atesta que Jesus [...] aprendeu por experiência a obediência pelas coisas que sofreu (Hb
5,8). Percebemos [...] que a obediência ao Pai está no próprio coração do Sacerdócio de
Cristo
66
e que a obediência está estreitamente unida à caridade. Na caridade pastoral, como
afirmava São Paulo VI, se supera a relação de obediência jurídica, a fim de que ela seja
voluntária, leal e segura
67
.
Por isso, consideramos que,
Como para Cristo, assim também para o presbítero, a obediência exprime a total
e alegre disponibilidade de se cumprir a vontade de Deus. Por isso, o sacerdote
reconhece que esta vontade é manifestada também pelas indicações dos legítimos
superiores. Esta disponibilidade deve ser entendida como uma verdadeira
realização da liberdade pessoal, consequência duma escolha amadurecida
constantemente diante de Deus na oração. A virtude da obediência, requerida
intrinsecamente pelo sacramento e pela hierarquia da Igreja, é claramente
prometida pelo clérigo, primeiro no rito da ordenação diaconal e, depois, no da
ordenação presbiteral. Mediante ela, o presbítero fortalece a sua vontade de
comunhão, entrando, assim, na dinâmica da obediência de Cristo, feito Servo
obediente até a morte de Cruz (cf. Fl 2,7-8)
68
.
O amadurecimento e o discernimento da obediência fazem com que o presbítero se
doe a si mesmo, de modo que a sua vontade pessoal se torna aquilo que o Espírito lhe pede
na Igreja. Não é possível ser servo sem obediência. Um serviço rebelde, no sentido negativo
do termo, rompe com o mistério eclesiológico e a fraternidade cristã, que são fundamentais
para sua identidade. O Decreto Presbyterorum Ordinis, sobre o mistério da Igreja afirma que
66 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.109.
67 PAULO VI, Carta Encíclica Sacerdotalis caelibatus, n.93.
68 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.109.
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[...] o ministério sacerdotal, porém, sendo ministério da própria Igreja, em comunhão
hierárquica com todo o corpo se pode desempenhar (PO 15). E, ainda, sobre a fraternidade
afirma:
[...] a caridade pastoral instiga que os presbíteros, agindo nesta comunhão,
entreguem a sua vontade por obediência ao serviço de Deus e dos seus irmãos,
recebendo com espírito de e executando o que lhes é preceituado ou
recomendado pelo Sumo Pontífice, pelo próprio Bispo e outros superiores,
entregando-se e super-entregando-se, de todo o coração, a qualquer cargo,
ainda que humilde e pobre, que lhes seja confiado (PO 15).
Nesse sentido, a obediência do sacerdote é uma obediência libertadora das vontades
meramente pessoais e de outras potestades. Além disso, a obediência é fundamental para a
realização da vocação. Uma vez que é um chamado de Deus, ela expressa a vontade DEle
para o sujeito. Sem obediência a esse chamado, que é discernido pela Igreja e sacramentado
na ordenação, a vocação sacerdotal se torna um projeto humano e não aquele dom [...]
conferido por Deus no coração de alguns homens, [que] exige da Igreja propor-lhes um
sério caminho de formação (RFIS 1). Caminho este, que conduz a [...] uma especial
obrigação de respeito e obediência ao Sumo Pontífice e ao Ordinário próprio
69
. Isso porque
[...] o presbítero está agregado ao serviço duma Igreja particular, cujo princípio e
fundamento de unidade é o Bispo, que tem sobre ela todo o poder ordinário, próprio e
imediato, necessário para o exercício do seu múnus pastoral
70
e do qual é colaborador nas
obrigações pastorais e na ação evangelizadora.
E em segundo lugar, a obediência à hierarquia eclesial liberta da obediência a
quaisquer outros poderes. Pelo fato de que [...] a obrigação de adesão ao Magistério em
matéria de fé e de moral está intrinsecamente ligada a todas as funções que o sacerdote deve
desenvolver na Igreja
71
, a obediência deve ser compreendida pelo sacerdote, como uma
recusa à submissão a qualquer outra força que possa afastá-lo da unidade com Cristo, com a
Igreja, com o Bispo, com o povo de Deus ao qual é enviado como pastor e cuidador.
Podemos considerar, nesse momento, que uma ruptura com essa perspectiva quando a
espiritualidade do mercado conquista o coração do presbítero e ele não mais é pastor das
ovelhas, mas um mercenário que foge ao sinal do perigo ou se beneficia das próprias
ovelhas (Cf. Jo 10,12-13).
Podemos considerar que, assim como as partes do corpo estão sujeitas à cabeça, na
Igreja, corpo de Cristo cabeça, o ordenamento hierárquico e as normas [...] servem para
proteger adequadamente os dons do Espírito Santo confiados à Igreja
72
. Por isso, o
presbítero [...] assume generosamente o empenho de observar fielmente todas e cada uma
das normas, evitando aquelas formas de adesão parcial, segundo critérios subjetivos, que
criam divisão e se repercutem, com notável dano pastoral, também sobre os fiéis leigos e
sobre a opinião pública
73
. E, além disso, a adesão ao estatuto canônico [...] é fonte de
liberdade, enquanto não impede, mas estimula a espontaneidade amadurecida do
presbítero, que saberá assumir uma atitude pastoral serena e equilibrada, em relação ao que
está estabelecido, criando a harmonia
74
necessária na vida e no ministério do presbítero, do
sacerdote, do pastor.
69 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.111.
70 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.111-112.
71 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.112.
72 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.113.
73 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.113.
74 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.114.
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Outro elemento que é essencial para o presbítero é o espírito sacerdotal de pobreza. O
seu sentido profundo é [...] a pobreza de Jesus [que] tem uma finalidade salvífica. Cristo,
sendo rico, fez-se pobre por nós, para que nos tornássemos ricos pela sua pobreza (2Cor
8,9)75. Sobretudo o exemplo do esvaziamento, que São Paulo chama de Kenosis, [...] deve
levar o presbítero a conformar-se com Ele, na liberdade interior, em relação a todos os bens
e riquezas do mundo
76
.
Segundo o Papa Francisco, o sacerdote foi ungido [...] em Cristo com óleo da alegria,
e esta unção convida-nos a acolher e cuidar deste grande dom: a alegria, o júbilo sacerdotal.
A alegria do sacerdote é um bem precioso tanto para si mesmo como para o povo fiel de
Deus
77
. A alegria que é impregnada no sacerdote pela unção do Espírito traz consigo o
desejo de seguir o Senhor por toda a vida e, ao contemplar a Kenosis de Cristo, se reconhece
pequeno diante da [...] grandeza incomensurável do dom que nos é dado para o ministério
relega-nos entre os menores dos homens
78
.
Para Francisco,
O sacerdote é o mais pobre dos homens, se Jesus não o enriquece com a sua
pobreza; é o servo mais inútil, se Jesus não o trata como amigo; é o mais louco
dos homens, se Jesus não o instrui pacientemente como fez com Pedro; o mais
indefeso dos cristãos, se o Bom Pastor não o fortifica no meio do rebanho. Não
ninguém menor que um sacerdote deixado meramente às suas forças; por isso, a
nossa oração de defesa contra toda a cilada do Maligno é a oração da nossa Mãe:
sou sacerdote, porque Ele olhou com bondade para a minha pequenez (cf. Lc 1,48).
E, a partir desta pequenez, recebemos a nossa alegria. Alegria na nossa pequenez
79
.
Alegria na pequenez é a alegria na Kenosis, no seguimento sincero e radical a Jesus Cristo
animado pelo Espírito. Nesse sentido, o Magistério reconhece que [...] na verdade, dificilmente
o sacerdote se tornará verdadeiramente servo e ministro dos seus fis, se estiver excessivamente
preocupado com as suas comodidades e com um excessivo bem estar
80
. Eno, ecoa a pergunta:
[...] que aproveita o homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua alma? E que coisa
poderia o homem dar em troca da sua alma? (Mc 8,36-37). Desse modo, [...] cada sacerdote é
chamado a viver a virtude da pobreza, que consiste essencialmente em entregar o coração a
Cristo, que é o verdadeiro tesouro, e não às riquezas materiais
81
.
Ao viver a virtude da pobreza o presbítero encontrará uma profunda alegria no
sacerdócio. Isso porque, segundo o Papa Francisco, trata-se de [...] uma alegria que nos
unge. Quer dizer, penetrou no íntimo do nosso coração, configurou-o e fortificou-o
sacramentalmente
82
. Essa alegria também é [...] uma alegria incorruptível. A integridade
do Dom ninguém lhe pode tirar nem acrescentar nada é fonte incessante de alegria [...] a
propósito da qual prometeu o Senhor que ninguém no-la poderá tirar
83
. E, ainda, [...] a
alegria do sacerdote está intimamente relacionada com o povo fiel e santo de Deus, porque
se trata de uma alegria eminentemente missionária
84
.
O sacerdote é pobre de alegrias meramente humanas porque ele faz muitas renúncias
para encontrar e assumir sua identidade presbiteral. Para o Papa Francisco,
75 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.169.
76 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.170.
77 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
78 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
79 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
80 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.170.
81 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.170.
82 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
83 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
84 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
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O sacerdote que pretende encontrar a identidade sacerdotal indagando
introspectivamente na própria interioridade, talvez não encontre nada mais
senão sinais que dizem saída: sai de ti mesmo, sai em busca de Deus na
adoração, sai e ao teu povo aquilo que te foi confiado, e o teu povo terá o
cuidado de fazer-te sentir e experimentar quem és, como te chamas, qual é a tua
identidade e fazer-te-á rejubilar com aquele cem por um que o Senhor prometeu
aos seus servos. Se o sais de ti mesmo, o óleo torna-se rançoso e a unção não
pode ser fecunda. Sair de si mesmo requer despojar-se de si, comporta pobreza
85
.
É, portanto, o compromisso missionário assumido no sacramento da Ordem que faz
com que aquele óleo perfumado da uão produza frutos no ministério do presbítero. E, além
disso, há a fidelidade, chave para a fecundidade, cujos [...] filhos espirituais que o Senhor dá a
cada sacerdote, [...] todos eles o esta Esposa que o sacerdote se sente feliz em tratar como
sua predileta e única amada e ser-lhe fiel sem cessar. É a Igreja viva
86
. E, por isso, [...] a
obediência à Igreja no serviço: disponibilidade e prontidão para servir a todos, sempre e da
melhor maneira
87
. Essa disponibilidade, fruto da obediência, [...] faz da Igreja a Casa das
portas abertas, refúgio para os pecadores, lar para aqueles que vivem na rua, casa de cura para
os doentes, acampamento para os jovens, sessão de catequese para as crianças
88
.
É com esse espírito que o presbítero deverá administrar os bens que lhe são
confiados. Nesse sentido, o Magistério deixa claro que,
O sacerdote, cuja parte de herança é o Senhor (cf. Nm 18,20), sabe que a sua
missão, como a da Igreja, se realiza no seio do mundo e que os bens criados são
necessários para o desenvolvimento pessoal do homem. Porém, ele usará tais
bens com espírito de responsabilidade, moderação, reta intenção e distância,
próprio de quem tem o seu tesouro nos céus e sabe que tudo deve ser usado para
a edificação do reino de Deus (Lc 10,7; Mt 10,9.10; 1Cor 9,14 Gl 6,6)
89
.
E mais,
[...] que o presbítero evite dar motivos, até a mais leve insinuação, relativos ao
fato de que possa conceber o próprio ministério como uma oportunidade para
obter benefícios, favorecer os seus ou buscar posições privilegiadas. Ele, ao
contrário, deve estar em meio aos homens para servir os outros sem medida,
seguindo o exemplo de Cristo, o Bom Pastor (cf. Jo 10,10). Recordando, além
disso, que o dom que recebeu é gratuito, esteja disposto a dar gratuitamente (Mt
10,8; At 8,18-25) e a empregar para o bem da Igreja e para obras de caridade o
que recebe por ocasião do exercício do seu múnus, depois de ter providenciado à
sua honesta sustentação e ao cumprimento dos deveres próprios do estado
90
.
Isso nos mostra que o sonho de uma Igreja pobre para os pobres (EG 198) recebe novo
impulso com o pontificado de Francisco. O prestero [...] é obrigado levar uma vida simples
e a abster-se de tudo o que pode ter sabor de vaidade, abraçando assim a pobreza voluntária,
para seguir mais de perto a Cristo
91
. E, por isso, [...] em tudo (habitação, meios de transporte,
rias, etc.), o prestero elimine todo o tipo de requinte e de luxo. [...] deve lutar diariamente
para não cair no consumismo e numa vida mole, que hoje invade a sociedade
92
.
85 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
86 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
87 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
88 FRANCISCO, Homilia do Papa Francisco na Missa Crismal de Quinta-feira Santa (17 de abril de 2014).
89 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.170-171.
90 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.171.
91 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.171-172.
92 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.172.
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É, portanto, pelo testemunho da pobreza evangélica que a credibilidade da sua
pregação e a eficácia do seu apostolado se realizam. O presbítero,
Amigo dos mais pobres, reservapara eles as mais delicadas atenções da sua
caridade pastoral, com a opção preferencial por todas as pobrezas, velhas e
novas, tragicamente presentes no mundo, recordando sempre que a primeira
miséria de que deve ser libertado o homem é o pecado, raiz última de todo o mal
93
.
A opção pelos pobres, exigência do espírito sacerdotal de pobreza, exige que, antes de
mais nada, o sacerdote se reconheça amigo dos pobres, e por isso a sua relação com eles
deve ser pautada por aquele amor que emana do coração do próprio Deus e se sentir
corresponsável pela condição na qual eles se encontram. A exemplo de Cristo que se fez
pobre entre os pobres, o sacerdote é chamado para estar junto daqueles obrigados à margem
do caminho, e, movido pelo mesmo amor que fez o samaritano socorrer o caído, se fazer
próximo e derramar vinho e óleo nas feridas profundas da existência humana, material e
espiritual.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No exercício do seu ministério, os presbíteros deverão manifestar o desprendimento,
o desapego e uma profunda experiência de e de encontro com Jesus Cristo. Eles devem
ter a consciência de que, pelo fato de serem ministros de Cristo pelo sacramento da Ordem,
associam a si o mistério da morte e ressurreição do Senhor. E para sustentar a vontade
contínua de doar-se com alegria às responsabilidades do ministério, carecem de uma
firme, cujas convicções são maduras, livres e generosas.
Isso significa que o presbítero, ao oferecer a sua vida a serviço do Evangelho, deve
buscar tornar credível seu anúncio, através das diversas formas de caridade e do testemunho
da santidade cristã, manifestadas num estilo de vida sóbrio, simples, obediente e humilde. E,
em vista disso, faz a opção por aqueles que têm a sua dignidade ferida: os pobres e
marginalizados, os migrantes e os que fazem da rua seu lar, os humildes, os doentes e
idosos. Assim, a vivência de um espírito sacerdotal de pobreza faz renunciar à arrogância, à
indiferença, ao desprezo e à intolerância, às tentações do carreirismo, do poder, dos likes e
da mídia; da vida fútil e vazia.
Essas renúncias poderiam causar desânimo e desvio por caminhos aparentemente
mais cômodos. Contudo, assim como os dons de Deus se multiplicam justamente onde
fé, oração e caridade, o espírito sacerdotal de pobreza se torna vínculo de união entre o
presbítero e Cristo, ressignificando as dificuldades e o cansaço pastoral. Por isso, não pode
haver fidelidade vocacional nem espírito de pobreza fora de um caminho espiritual
vigoroso. Desse modo, o estilo de vida de um presbítero exige um constante cuidado da vida
divina recebida no Batismo, com todos os meios que favoreçam seu desenvolvimento, tais
como: a celebração eucarística cotidiana que é centro da vida espiritual, fonte e sustento do
ministério pastoral; a reconciliação frequente, que favorece uma contínua conversão; a
direção espiritual, a fim de discernir a vontade de Deus; a recitação da liturgia das horas, o
exame de consciência, a lectio divina, os retiros espirituais; a devoção mariana; a vida austera,
pois o ministério ordenado exige renúncias e sacrifícios que somente uma e equilibrada
pedagogia ascética pode favorecer; e outros meios que possam fazê-lo crescer
espiritualmente, vocacionalmente, ministerialmente.
93 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.172.
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Então, reconhecemos que a espiritualidade sacerdotal alicerçada na vida de oração,
no exercício da caridade, da pregação, da celebração dos sacramentos e, ainda, as virtudes da
obediência e do espírito de pobreza é fundamental para que o presbítero seja um
verdadeiro pastor da comunidade que lhe é confiada. Ele, à imagem de Cristo, Bom Pastor,
oferece a sua vida por toda a Igreja, comunidade que reúne o Povo de Deus. Por isso, [...] o
sacerdote existe e vive para ela; por ela reza, estuda, trabalha e se sacrifica; por ela está
disposto a dar a vida, amando-a como Cristo, dirigindo para ela todo o seu amor e a sua
estima
94
.
Assim, sua vida como pastor será dedicada a todos e cada um dos membros da sua
comunidade, [...] esclarecendo as suas consciências com a luz da verdade revelada,
defendendo a autenticidade evangélica da vida cristã com autoridade, corrigindo os erros,
perdoando, sanando as feridas, consolando as aflições, promovendo a fraternidade
95
.
Obviamente, isso não será isento de possíveis conflitos eclesiológicos, políticos e de
outras ordens. Contudo, para ser bom guia do seu povo, o presbítero precisa estar sempre
atento aos sinais dos tempos: a respeito da Igreja universal, da história humana, da realidade
concreta da sua comunidade. Para ter melhores condições de discernir esses sinais, ele deve
se atualizar constantemente [...] no estudo das ciências sacras e dos diversos problemas
teológicos e pastorais, e o exercício duma sábia reflexão sobre os dados sociais, culturais e
científicos que caracterizam nosso tempo
96
.
Finalmente, ele precisa mostrar profundo amor pela Igreja, que é sua mãe e mestra, e
viver com alegria a pertença eclesial, testemunhando com a vida a comunhão com o Papa,
os bispos, com o presbitério e com todos os fiéis leigos. O presbítero é um homem chamado
por Deus e enviado pela Igreja para ser sinal de comunhão na comunidade de fiéis que lhes
são confiados.
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94 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.154.
95 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.154.
96 CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Diretório para o ministério e a vida dos presbíteros, p.155.
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BONETTI, Cleocir; VERO, Leonardo
Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do Magisrio recente da Igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 17-38, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
38
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BONETTI, Cleocir; VERO, Leonardo
Fundamentos para uma espiritualidade sacerdotal à luz do Magisrio recente da Igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 17-38, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
PAULO E A INTEGRAÇÃO
cultura, religião, corporalidade
e espiritualidade
PAULO AND INTEGRATION
culture, religion, corporeality
and spirituality
Isidoro Mazzarolo*
Resumo: Paulo é um homem versátil, aberto e decidido em tudo o que diz e
faz. Ele pode ser definido como teólogo, filósofo, político e místico. Neste
artigo propomos alguns tópicos de reflexão em torno da importância do seu
pensamento como contributos concretos na integração da espiritualidade e
da sociedade.
Palavras-chave: Paulo. Religião. Cultura. Espiritualidade. Integração.
Abstract: Paul is a versatile man, open and decisive in everything he says
and does. He can be difined as teologian, philosopher, politician and mystic.
In this aerticle we propose some topics for reflection on the importance of
his thinking as concrete contributions to the integration of spirituality and
Society.
Key words: Paul. Religion. Culture. Spirituality. Integration.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 39-57, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: http://dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.50
* Possui bacharelado em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do RS
(1980), mestrado em Exegese do Antigo
Testamento - Pontifício Instituto Bíblico de
Roma (1986) e doutorado em Textos seletos
dos evangelhos sinóticos pela Pontifícia
Universidade Católica - Rio (1992). Pós-
doutor pela École Biblique et Archéologique
Française de Jerusalém (Israel), 1996. É
membro da ABIB (Associação Brasileira de
Pesquisa Bíblica), parecerista científico de
diversos periódicos nacionais de teologia e
membro da Comissão do INEP que elabora o
processo do ENAD, em teologia. Atualmente
é professor de exegese bíblica na PUCRS
(PUC de Porto Alegre) e assessor de cursos
bíblicos a nível nacional.
Email: mazzarolo.isidoro@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9620-1517
Recebido em 11/03/21
Aprovado em 23/07/21
40
INTRODUÇÃO
Depois de Alexandre, o Grande, o mundo ocidental não foi mais o mesmo. O
helenismo, com seus princípios da arte, da filosofia, do belo e da integração de povos e
culturas possibilitou a superação de muitos paradigmas excludentes, séculos anteriores.
O helenismo não é uma religião, mas pode ser chamado de uma teosoia. É nesse
quadro de grandes mestres que nosso Apóstolo vive a sua infância, mesmo sendo de cultura
judaica, em Tarso. A navegação em três mares concomitantes, isto é, a religiosidade judaica,
a cultura grega e o domínio político romano, permitem a Paulo uma visão e compreensão
de mundo e espiritualidade para além da cultura judaica.
Ao conhecer o cristianismo, Paulo adapta, cria, inova e insere nesses mundos aquilo
que ele conheceu por revelação, no caminho para Damasco (At 9,1-19).
A INFLUÊNCIA DO HELENISMO E A MUDANÇA DE PARADIGMAS
A disciplina é a espontaneidade ligada à reação da responsabilidade e, ambas estão
relacionadas com a disciplina e a compaixão
1
. Paulo uniu a ternura ao vigor porque soube
formar uma consciência interior de alto nível espiritual. Ele sabia viver na abundância, sem
escandalizar, e na indigência sem se desesperar:
11
Digo isto, não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda
e qualquer situação.
12
Tanto sei estar humilhado como também ser elogiado; de tudo e em todas as
circunstâncias, tenho experiência, tanto de fartura como de fome; assim de
abundância como de necessidade;
13
tudo posso naquele que me fortalece.
14
Todavia, fizestes bem, associando-vos na minha tribulação.
15
E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti
da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber,
senão unicamente vós outros;
16
porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o
bastante para as minhas necessidades (Fl 4,10-16).
O caminho do conhecimento proporciona o desenvolvimento das capacidades de auto
superação, de transcender a dor e a formação de solidez de caráter. Nisto, como ele descreve
aos Filipenses, no seu intento de agradecer os donativos recebidos, que sabia viver em
situações adversas e extremas. Essas experiências práticas contribuíram para a formação da
consciência livre e madura, no diálogo com as culturas diferentes.
Falar de influência helenística no pensamento paulino pode provocar algumas reações
compreensíveis.
2
autores que justificam todo o comportamento de Paulo a partir das
estruturas judaicas e com alguns argumentos corretos negam qualquer peso da cultura grega
na teologia do Apóstolo. Essa posição, no entanto, não abarca a totalidade do raciocínio e da
teologia de Paulo. Não reconhecer a presença das ideias de liberdade, de justiça e de ética
helenística na estrutura mental de Paulo é desconhecer a própria teologia do Apóstolo. Um
judeu seria incapaz de fazer a passagem do singular (cultura judaica) para o plural (culturas,
1 Danah ZOHAR, e Ian MARSHALL, QS Inteligência Espiritual, p.223.
2 Romano PENNA, Paulo e os componentes gregos do seu pensamento. In: Atualidade Teológica, (2009), p.55. Penna
refere no seu artigo que Albert Schweitzer, em 1930, o qual afirmou que quem quer encontrar traços helenísticos no
pensamento paulino pode ser comparado a quem quer transportar a longa distância água em uma cesta. Certamente
Schweitzer tinha outras intenções quando fez essa afirmação, pois o mais simples dos exegetas percebe que na
pedagogia de Jesus e na de Paulo estão traços indeléveis que não são encontrados nas tradições veterotestamentárias e
tão pouco no pensamento judaico pós-cristão.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 39-57, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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raças e gênero) que compõem de modo axial o pensamento e a universalidade do método de
evangelização paulino.
A cultura e a filosofia helenística tinham como princípios a liberdade e os direitos
sociais das pessoas em sociedade. Tanto na vida do dia a dia como nas instituições, o
helenismo moldava os hábitos dos povos estrangeiros que tinham contato com eles. Os
judeus que viviam em ambientes helenísticos, muitas vezes participavam de atividades nos
teatros e outros eventos cívicos dos gregos e isso gerava uma grande diferença entre os
judeus helenistas e os judeus da Palestina, onde as normas sociais eram muito mais rígidas
no contato com os pagãos
3
.
Como jovem, na cidade de Tarso, muito helenizada, certamente como judeu de
caráter ortodoxo, influenciado pelos seus pais, Paulo aprendeu de seus professores de
escolas primárias que a injustiça é perversidade de caráter e testemunho da ignorância. Essa era
um dos princípios éticos da filosofia platônica que ensinava que o justo é sábio e o injusto é
um idiota
4
. Algumas vezes Paulo perdoa, mas outras vezes ele é severo e não aceita a
injustiça como ingenuidade ou idiotice (Gl 1,6-10; 3,1-3). Ele, de modo magistral e
insuspeitável, segue as pegadas de Jesus passo a passo (Mt 5,20) e insiste na retidão de
caráter que era a base do cristianismo, mas também o fundamento da ética helenística.
Podemos suspeitar que Jesus tenha conhecido esses princípios helenísticos da justiça
acima e antes da religião, mas Paulo, seu primeiro e mais forte amigo, o patenteia em todas
as suas pegadas missionárias e em cada letra de seus escritos. O helenismo não era uma
religião ou uma filosofia unívoca, mas tinha como princípios éticos a justiça e a retidão de
caráter como caminhos para a felicidade escatológica
5
.
O helenismo não influenciou apenas Paulo, mas toda a teologia cristã dos primeiros
séculos. Enquanto os grandes filósofos desapareciam, surgiam as escolas como a Didascalica
e a Neoplatônica de Amônio Sacas e da Alexandria de Orígenes e Plotino que se tornaram
os primeiros grandes ambientes de helenistas convertidos ao cristianismo
6
. Ao penetrar nas
esferas do mundo greco-romano, o cristianismo, especialmente com Paulo e seus
companheiros adotaram o método dos u`poqh/kai (ensinamentos) que eram experiências
curtidas pelos mais vividos e transmitidas aos inexperientes
7
. Paulo insiste muito com os
cristãos da Galácia dizendo que quando eram infantos ou menores (nh,pioi) na e
dependentes das coisas rudimentares do mundo (stoicei,a tou/ kosmou/), não tinham o
conhecimento necessário para distinguir as verdades fundamentais da fé, da justiça e da
liberdade em Cristo (Gl 4,3).
O contexto dessa referência de Paulo está na dinâmica da paternidade divina. Os
Gálatas que viviam sob uma forte influência helenística, tinham como pai Zeus, a grande
divindade grega. Paulo usa um esquema jurídico para justificar a nova filiação em Deus, a
partir de Jesus Cristo. Antes de Jesus Cristo todos estavam sob a lei (os judeus) e sem lei (os
pagãos), por isso, dependentes ou escravos dos rudimentos do mundo. No entanto, agora
chegou a redenção e a verdadeira filiação divina, onde todos podem, sob a impulsão do
Espírito Santo, invocar o mesmo Deus como Abbá (Pai, Gl 4,1-7)
8
. O Abbá grego era o pai
dos deuses que se chamava de Zeus e tinha um filho chamado Hermes, que também tinha
3 P. BORGEN, Early Christianity and Hellenistic Judaism, p.1-44. Nesse capítulo o autor discute a relação e a influência do
helenismo sobre o judaísmo da diáspora. Citando diversas vezes Filon, afirma que os judeus participavam com relativa
frequência nos teatros, banquetes e cerimônias com os pagãos.
4 PLATÃO, A República, p.32-33.
5 I. MAZZAROLO, O Apóstolo Paulo, o Grego, o Judeu e o Cristão, p.70.
6 M. SPINELLI, Helenização e recriação de sentidos, p.14.
7 W. JAEGER, Paideia, A formação do homem grego, p.239.
8 I. MAZZAROLO, Carta de Paulo aos Gálatas, p.117.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
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visitado os humanos com bondade e compaixão, mas não se encarnou, não comungou da
experiência humana e exerceu a solidariedade e o amor. Hermes continuou como um mito.
O helenismo tinha como meta principal, através do adestramento, do exercício, dos
jogos e da ascese tornar as pessoas livres, capazes e, eticamente, responsáveis pelos seus
atos, pois o homem livre era aquele perfeito na sua moralidade, ainda que essa perfeição
fosse relativa, mas esse era o objetivo
9
. Paulo fala da perfeição através da aproximação de
Jesus e da redenção alcançada pela sua embaixada no mundo. Estar atrelado aos mitos,
crendices, legalismos e outros aspectos vinculados diretamente ao mundo, para Paulo, era
ser escravizado por coisas pequenas e revelava infantilidades, por isso ele insistia na
maturidade da fé, da justiça e do amor. Vencer as tentações do mundo era tornar-se maior
do que elas, era ser maior ou adulto na ética, na justiça e na verdade (Rm 12,1-5).
Nessa perspectiva, Paulo exorta os cristãos de Roma a uma mudança de paradigmas e
à não conformação com esquemas caducos do passado. Paulo pede uma nova forma
mentis, um novo jeito de pensar sobre a realidade e as situações e não ter conceitos errados
a respeito da realidade. Cada um deve medir-se com a estatura que tem diante de Deus e
essa estatura do amor na direção do próximo
10
. O helenismo ajudou muito o cristianismo na
superação de fronteiras excludentes oriundas do judaísmo, de modo especial no que tange
ao gênero e aos conceitos de eleição e circuncisão (cf. Rm 10,12; Gl 3,28; Cl 3,11). Paulo
pensa sempre num horizonte pneymatológico para superar o aprisionamento das coisas
elementares do mundo (Gl 4,3; Cl 2,8). A seu exemplo, mais tarde, Clemente Romano
escrevendo aos Coríntios insiste de que o pneyma permeia todas as partes do organismo
humano, uma ideia que provém da medicina grega
11
.
Uma forte herança do helenismo sobre Paulo foi a liberdade religiosa pagã que lhe
permitiu fazer uma leitura comparativa com o judaísmo. Todo o contexto posterior à
revelação no caminho para Damasco provocou uma reflexão teológica, sociológica e ética
em Paulo entre o judaísmo e o helenismo.
O helenismo se caracterizou muito pela sua agregação à cidade (pólis). As cartas de
Paulo, exceto Filemon e as pastorais, o dirigidas aos cristãos das cidades, congregados ao
redor de centros de poder. Desta forma o cristianismo paulino é um cristianismo da pólis e
não do campo ou rural. Eram as cidades que possuíam teatros, ginásios, academias
filosóficas e centros de administração e poder. As cidades facilitavam a comunicação
universal do grego em contraste com as vilas do campo que possuíam seus próprios
idiomas ou dialetos. As cidades favoreciam os próprios casamentos entre cidadãos e
visitantes ou novos habitantes que se naturalizavam nelas
12
.
O judaísmo se caracterizava por ser uma religião absolutamente fechada, reducionista
e excludente enquanto o helenismo se caracterizava por posições quase ao contrário, isto é,
includentes. Os gregos não tinham preconceitos de culturas, línguas ou costumes
estrangeiros, porque faziam apenas uma distinção na estratificação social: livres ou escravos.
Livres eram todos aqueles que possuíam conhecimento, formação e instrução mental e
escravos eram os sem formação, prisioneiros de guerras e pessoas vendidas como
mercadorias.
A religião no mundo greco-romano era uma questão de escolha individual. Havia
deuses principais e secundários, mas não havia uma monolatria e muito menos um
monoteísmo. O judaísmo, como uma religião fechada, negava qualquer opção diferente e
9 I. MAZZAROLO, O Apóstolo Paulo, o Grego, o Judeu e o Cristão, p.89.
10 I. MAZZAROLO, Carta e Paulo aos Romanos, Educar para a maturidade e o amor, p.149.
11 W. JAEGER, Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, p.32.
12 R. WALLACE, e W. WYNNE, The Three Worlds of Paul of Tarsus, p.95.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
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por isso perseguia todos os que oferecessem qualquer alternativa de culto ou prática. Paulo
(Saulo), como judeu conservador se distinguia na perseguição aos cristãos dando
demonstração das fortes convicções de que não podia haver nenhum culto ou prática fora
do judaísmo (At 8,1-3). Na carta aos Gálatas ele testemunha essa conduta nos tempos da
juventude em Jerusalém: Ouvistes, certamente, da minha conduta de outrora no judaísmo,
de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus e progredia no judaísmo mais
do que muitos compatriotas da minha idade distinguindo-me no zelo pelas tradições
paternas (Gl 1,13). De modo análogo é o testemunho do Apóstolo diante dos judeus de
Jerusalém, segundo o relato de Lucas:
Eu sou judeu, nasci em Tarso, da Cilícia, mas criei-me nesta cidade, educado aos
s de Gamaliel na observância exata da Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus,
como vós, todos no dia de hoje. Persegui de morte este Caminho, prendendo e
laando na prisão homens e mulheres como o podem testemunhar o sumo
sacerdote e todos os anciãos. Deles cheguei a receber cartas de recomendação para
os irmãos em Damasco e para me dirigi, a fim de trazer algemados para
Jerusalém os que lá estivessem para serem aqui punidos (At 22,3-5).
A religião era um fator de condenação e isso diferenciava radicalmente dos costumes
pagãos. Após o encontro com o Senhor no caminho de Damasco, Paulo recupera tudo o que
aprendeu na sua infância em Tarso e ele reconhece que a sua fase da juventude no judaísmo
tinha sido um desastre. No discurso de Jerusalém, na sua fase final de missão (At 22,3-5),
Paulo faz uma confissão de reconhecimento do pecado e também evidencia que essa prática
de perseguição e morte feria a lei máxima do Decálogo: o matarás (Ex 20,13). Os pagãos
não matavam por questões de religião e Paulo reencontra o princípio do Decálogo, mesmo
que todas as justificativas de pena de morte tenham sido um código tardio, mas incorporado
às tradições mosaicas. Os rabinos acrescentaram ao Decálogo um código de doze casos de
pena de morte (Lv 20,8-27), mas todos eles eram contrários ao Decálogo que interditava
qualquer forma de morte.
O pensamento de Paulo, depois de Damasco, foi sendo estruturado por uma simbiose
das duas culturas, a judaica e a helenística sob a ótica do cristianismo. Nesse aspecto, o
cristianismo paulino, as cartas, o estilo e as formas literárias se tornam devedoras da cultura
helênica. Hock afirma que Paulo aprendeu o grego como qualquer criança de sua idade,
soletrando sílabas breves e longas, depois aprendiam listas de palavras. Essas listas de
palavras continham também um conjunto especial de nomes próprios:
a. Divindades: Zeus, Ammon, Atlas;
b. Heróis homéricos: Aquiles, Agamenon, Ajax;
c. Filósofos: Tales, Zenão, Xenofonte;
d. Escritores: Homero, Lísias, Menandro;
e. Personagens nas comédias de Menandro: Demeas, Moschion, Sikon.
Depois de lerem essas listas de palavras os estudantes já começavam a ler mais e iniciar
os exercícios de conversação.
13
Paulo transitava tão bem na língua grega que quando foi dar
depoimento aos judeus de Jerusalém, eles ficaram estupefatos ao ouvi-lo falar em hebraico
(At 22,2). De modo semelhante, no início de sua missão apostólica na Antioquia (At 11,20-
26), ele foi trazido de Tarso, onde ainda não era muito aceito, para a Antioquia a fim de
pregar aos helenistas e aos próprios gregos, dada sua eloquência e capacidade de raciocínio.
Paulo, como judeu helenizado, cultivava a religião de seus ancestrais, mas vivia em
um ambiente muito eclético e transitava tranquilamente entre judeus conservadores,
13 R. F. HOCK, Paulo e a educação greco-romana, p.175.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
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helenistas ou pagãos adoradores de deuses. No mundo greco-romano, mas especialmente
entre os gregos, havia diferentes categorias de adoradores: uns eram sárkikoi ou sarkinói
(materialistas ou carnais, 1Cor 3,1-3), outros psychikoi (naturais, psicológicos, 1Cor
15,44.46) e outros pneumátikoi (espirituais, 1Cor 2,13; 9,11; 14,1; 15,44). Os sarkikói ou
carnais eram o que podiam ser considerados os ateus da época, os quais eram diferenciados
dos espirituais (1Cor 3,1)
14
. Os carnais estavam em contraposição com os espirituais e longe
da possibilidade de receber os mistérios de Cristo em virtude de sua imaturidade no
conhecimento de Cristo
15
. Os nh,pioi (infantos) ou, na verdade, imaturos na e na virtude,
não eram considerados maus ou perversos, mas ingênuos como crianças que necessitavam
de leite ou de ensinamentos básicos como a papinha para crianças e depois ensinamentos
mais radicais e discernentes como é o alimento sólido para um adulto. A analogia dos
estágios da vida com os estágios da maturidade da tem uma finalidade catequética muito
importante, pois não é possível transpor etapas na vida, visto que cada etapa tem os seus
tempos e momentos.
Crossam afirma, a partir das inscrições de nomes encontrados numa coluna de
mármore pertencente à sinagoga em Afrodisia, que essa sinagoga era frequentada por
judeus, prosélitos e pagãos adoradores de Deus
16
. Essa inscrição pode revelar que o
judaísmo na diáspora não era tão fechado quanto o da Palestina.
O ambiente helenístico na Acaia, especialmente em Atenas e Corinto era muito forte
nas especulações das religiões mistéricas, na gnôsis e na sabedoria e filosofias esotéricas. O
demiurgo (Archon) era o centro do mistério da sabedoria divina
17
. Esse ambiente filosófico,
mistérico, esotérico, crente e pagão favoreceu e influenciou muito o cristianismo primitivo,
não nas ideias, mas também no estilo, nos conceitos e na confrontação dos símbolos do
credo cristão com os mitos pagãos.
Diversos Autores classificam Paulo como gnóstico, mas eles próprios desconhecem a
pedagogia do Apóstolo:
20
Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que
vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que
vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei.
21
Aos sem lei, como se
eu mesmo o fosse não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo,
para ganhar os que vivem fora do regime da lei.
22
Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo
para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.
23
Tudo faço por
causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele.
24
o sabeis vós
que os que correm no estádio, todos, na verdade, correm, mas um leva o
prêmio? Correi de tal maneira que o alcanceis.
25
Todo atleta em tudo se domina;
aqueles, para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível.
26
Assim
corro também eu, não sem meta; assim luto, não como desferindo golpes no ar.
27
Mas castigo o meu corpo e o subjugo à escravidão, para que, tendo pregado a
outros, o venha eu mesmo a ser desqualificado (1Cor 9,20-27).
Paulo tinha a consciência clara da necessidade da enculturação. Por causa de sua
elevada consciência espiritual ele sabia onde estava e também tinha clareza de onde estava o
centro de suas motivações. Ele sabia que para chegar a Cristo era possível partir de
caminhos diversos. O Evangelho não era uma proposta exclusiva para uma cultura ou
nação, mas uma mensagem de libertação, de vida nova, de justiça e de amor para todos os
14 I. MAZZAROLO, Primeira Carta aos Coríntios, p.70: enquanto os estoicos estavam mais próximos do espiritualismo, os
filósofos se alocavam em um racionalismo puro e os cínicos se classificavam como materialistas ou ateus.
15 E. PAGELS, The Gnostic Paul, p.59.
16 J.D. CROSSAN, e J.L. REED, Em busca de Paulo, p.32-33.
17 E. PAGELS, The Gnostic Paul, p.58.
MAZZAROLO, Isidoro
Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 39-57, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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povos. A inserção do Evangelho necessita, antes, da inserção do Evangelizador, ele precisa,
antes de tudo, conhecer o ambiente onde vai anunciar. O Evangelizador é como um
Semeador. Se o Semeador conhece o terreno, sabe a forma de semear, o tempo da
preparação da terra e a semente adequada. A formação do Evangelizador é fundamental no
êxito do anúncio do Evangelho. Paulo, o homem das três culturas sabia navegar em mares
calmos e em mares revoltos, pois se assim podemos comparar a Igreja de Filipos com as
Igrejas de Corinto e da Galácia. A Igreja de Filipos é uma comunidade que ama, que sofre e
que assume a pedagogia do Evangelho, enquanto as Igrejas de Corinto e da Galácia formam
grupos de resistência e traição à Boa Nova levada pelo Apóstolo.
O helenismo era uma cultura aberta, não tinha preconceitos de raça, língua ou
religião. O fundamental para os gregos era que a pessoa tivesse um desenvolvimento
intelectual e fosse possuidor daquilo que eles chamavam de gnôsis ou conhecimento. Os
gregos amavam a perfeição total e ela dependia de uma flexibilidade corporal: cabeça, tronco
e membros, por isso os exercícios físicos faziam parte para a flexibilidade mental e a
abertura espiritual através da arêtê ou virtude. A Virtude era o aperfeiçoamento do
indivíduo na sua parte motora ou física, na sua flexibilidade mental e na sua eticidade.
A moral intelectual dos estoicos passa a ser uma moral religiosa, ainda que seus
princípios fossem mais filosóficos que religiosos. O eixo central da ética estoica é o homem
bom, que signiica ser perfeito na sua moralidade. A perfeição moral decorre de uma vivência
concomitante de quatro virtudes principais:
a. Inteligência;
b. Fortaleza;
c. Circunspecção;
d. Justiça
18
.
No estilo epistolar, Paulo é devedor dos grandes clássicos gregos, tanto nas cartas
parenéticas quanto as querigmáticas. Na carta da alforria de Onésimo, Paulo escreve a
Filemon não em tom jurídico, mas com um argumento de autoridade moral, fazendo valer
os princípios de primazia ou paternidade espiritual. Barbaglio compara a carta de Paulo a
Filemon com as cartas de Plínio a seu amigo Sabiniano
19
. Na mesma direção via o
comentário de Vielhauer, afirmando que Paulo usa em suas cartas o estilo dos grandes
escritores como Cícero. Cícero afirmava que uma forma é escrever quando se pressupõe
que o único leitor é o indicado na introdução e outro é quando se pressupõe que a carta seja
lida por muitos leitores. Nesse raciocínio é possível fazer uma comparação com as cartas
paulinas, pois algumas como Gálatas, Romanos e Coríntios foram escritas para muitos
leitores, enquanto Filemon (e as pastorais 1,2Tm e Tt) tem um leitor único como pressuposto
20
.
O helenismo representava uma cultura e uma religiosidade mistas. Depois do
surgimento do magno império helenístico com Alexandre, o Grande, a cultura helênica se
voltou para o Oriente e muitos aspectos das culturas e religiões do Oriente assumiram
características gregas. Por sua vez, a cultura grega assimilou muitos aspectos das divindades
orientais, tornando-se uma síntese entre Oriente e Ocidente. Mais tarde, quando os
romanos conquistaram todas as bordas do mar Mediterrâneo copiaram muitos modelos
culturais e religiosos dos povos conquistados. O Partenon de Atenas e o Panteon de Roma
representavam, ao menos em parte, essa simbiose de culturas e religiosidades.
O estilo apologético do tipo de diatribes está presente em muitos textos paulinos. Em
Rm 7,1-6, Paulo faz uma introdução e determina explicitamente quem são seus adversários:
18 I. MAZZAROLO, O Apóstolo Paulo, o Grego, o Judeu e o Cristão, p.89.
19 G. BARBAGLIO, As cartas de Paulo II, p.416, citando STUHLMACHER, Philemon, p.22-23.
20 P. VIELHAUER, História da literatura cristã primitiva, p.90.
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Paulo e a integrão: cultura, religião, corporalidade e espiritualidade
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são os conhecedores da lei, quer sejam judeus, quer sejam romanos. Depois (Rm 7,7-8) ele
enfoca o objeto da disputa que é a lei.
Paulo tinha consciência dos conflitos, dos opositores e também de tantos que o
acolhiam e recebiam. O Evangelho não caia sempre em terreno fértil, muitas vezes caia no
meio de espinhos. Tudo isso gerava uma tensão, mas também uma dinâmica (Gl 1,6-10;
3,1-3) de modo análogo que as teorias da física quântica na tensão das células em rede.
Muitas vezes os conflitos eram externos, com adversários e opositores, outras, eram
internos, com os próprios colegas de serviço, como com Pedro e Apolo (1Cor 1,10-16) ou
com Pedro, João e Tiago (At 15,1-23).
Na ótica do Evangelho estava o caminho da fraternidade universal. A fraternidade é o
conceito quântico da alma universal. A terra e todos os seres são um organismo vivo. O
contrário é a miopia de alguém ver-se sozinho sem acreditar em si mesmo. A justiça
significa agir para que todos tenham seus direitos e a fraternidade esteja com todos os
homens e mulheres.
21
A LIBERTAÇÃO DE PARADIGMAS ARCAICOS
A força da mente que produz conhecimento é mecânica quântica. A ação de conhecer,
produzir ciência, buscar a liberdade, a paz e a justiça são manifestações da energia quântica
da consciência.
A libertação ou a liberdade não é sinônimo de anarquia ou simples desprezo pelas
coisas do passado, mas o seguimento ao novo estado de vida e missão à luz e assistência do
Espírito Santo (Gl 5,13-26). Jesus foi o grande Mestre da libertação mostrando na palavra e
no gesto a necessidade de superação de paradigmas culturais. No Evangelho de Marcos
(1,21-2,12), logo após chamar os primeiros quatro discípulos, mostrou de modo claro e
patente a pedagogia do Reinado de Deus curando endemoninhados, doentes, a sogra de
Pedro, um leproso e um paralítico. Em seguida chamou Levi, um cobrador de impostos,
para integrar o grupo dos discípulos. Levi, pela sua profissão, estaria sempre no estado de
impureza. E, para acentuar o perfil integrador de sua missão, Jesus, participou da despedida
de Levi dos seus amigos, os quais eram todos pecadores, justamente para criticar as formas
arcaicas do judaísmo da época (Mc 2,13-17).
A libertação, na perspectiva do discurso, é patenteada no Sermão da Montanha (Mt 5-
7). Iniciando pelas bem-aventuranças (Mt 5,1-12), Jesus coloca os alicerces do Reino do
Céus os quais contrastam com os alicerces do mundo, dos poderosos e dos mafiosos. De
modo enfático, Jesus afirma que veio para dar pleno cumprimento à Lei e aos Profetas (Mt
5,17-20) e, repassando os principais tópicos das tradições antigas de Israel, começou
dizendo: Ouvistes o que foi dito aos antigos...? Eu, porém, vos digo..." (Mt 5,21-48)!
O Reinado de Deus estava sendo anunciado pela Palavra e pelos gestos. O que havia
sido dito aos antigos, de agora em diante, perdia a validade. Era a nova Economia da
Salvação e, era mister, inserir na História, a pedagogia do Messias. Assim, na abertura do
Evangelho de Lucas, Jesus, lendo o livro de Isaías na sinagoga de Nazaré, pronunciou:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a
recuperação da vista para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar
um ano de graça do Senhor (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).
21 D. ZOHAR e I. MARSHALL, QS Inteligência Espiritual, p.262.
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Nessa citação do profeta Isaías, Jesus não pediu emprestados cristérios judaicos
tradicionais de interpretação das Escrituras, mas colocou os novos paradigmas na missão de
evangelizar os pobres, libertar os presos e restaurar a vista dos cegos. Alargando os
horizontes, Jesus foi mostrando na dimensão antropológica a profundidade das mudanças a
serem impressas na mente e no coração dos seus discípulos, especialmente no confronto
com os pecadores, as mulheres e os estrangeiros.
É na schia de Jesus que Paulo, depois de sua conversão, encontra respaldo seguro de
caminhar e, para isso, teve que enfrentar a oposição de Cefas e Tiago (At 15,7b-21; Gl 2,1-
14). Paulo absorve de Jesus o caminho de libertação, de tal forma que, quando teve a visão e
a missão no caminho para Damasco, não voltou a Jerusalém para saber de Cefas e os outros
o que deveria fazer, mas depois do encontro com Ananias, partiu para a Arábia anunciando
o Evangelho:
Quando, pom, Aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua
gra, houve por bem, revelar em mim o seu Filho, para que eu o evangelizasse entre
os gentios, o consultei carne, nem sangue, nem subi a Jerusalém aos que eram
apóstolos antes de mim, mas fui à Abia e de lá voltei a Damasco (Gl 1,15-17).
Paulo não é movido pela nostalgia, pelo saudosismo ou complexos do passado.
Retroativamente ele vê uma história que precisa ser superada e pouca coisa deve ser levada
adiante. Ele se desprende do passado de modo inigualável. Aquilo que era o máximo (a Lei),
agora tem um perfume de estrume (Fl 3,8), em outras palavras, sabe seguir o ensinamento
de Jesus como exigência do discipulado: deixar pai, mãe, irmãos e outros pinduricalhos da
vida para abraçar de modo integral a nova missão: evangelizar o mundo. O passado não pesa
muito, o que vai contar agora é o futuro: um olhar para a nova etapa da vida, assumida com
audácia, coragem e firmeza. Para tanto, Paulo soube adaptar-se e tansformar-se no caminho
da missão. Ele realizou a própria transformação e a integração da sua pessoa como uma
integração transpessoal.
22
Paulo mudou muito, pois de judeu tradicionalista passou a judeu em Cristo.
23
Ele
passou de perseguidor a arauto incomparável e imbatível de Jesus Cristo ressuscitado. Tudo
isso, no entanto, não teria sido possível sem a libertação dos paradigmas dos antepassados e
o assumir de um novo olhar do ser humano, dae do amor como síntese e ápice de toda a lei.
A física quântica é considerada a física das possibilidades por acreditar nas
capacidades criativas. No âmbito da liberdade paralelos entre o funcionamento da nossa
mente e as teorias quânticas.
24
Paulo foi um homem superdotado que acreditou nas
possibilidades de formar, educar e integrar culturas e povos diferentes dentro de uma
mesma perspectiva: a pedagogia de Jesus. Por isso, não fazia distinção de judeu ou pagão,
homem ou mulher... (Gl 3,28; Cl 3,11; Rm 10,12). Ele rompeu com todos os dogmas das
tradições para propor uma nova forma mentis que é capaz de ver qualquer espaço como
lugar para propor o evangelho e qualquer coração como terreno fértil para implantar o
amor e a solidariedade.
A lei, como letra fria da sentença e do juízo, muitas vezes sem coração, não redime e
não transforma, por isso, a amor não é dogmático. Era preciso recriar espaços de calor
humano para a abertura de novos paradigmas, como a circuncisão:
Porém judeu é aquele que o é interiormente e a verdadeira circuncisão é a do coração, no
espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus (Rm 2,29).
22 D. ZOHAR e I. MARSHALL, QS Inteligência Espiritual, p.255.
23 J. D. G. DUNN, Jesus, Paulo e os Evangelhos, p.187.
24 F. CAPRA, O ponto de mutação, p.72.
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A letra, como preceito puro, mata e, não contribui para o perdão, a graça e a
integração do diferente (2Cor 3,6).
Quem crê na física das possibilidades crê na promessa de Abraão e na justiça de Deus
(Rm 4,1-3), pois ninguém é justificado pelas obras da lei, mas pela em Jesus Cristo (Gl
2,16) e, por isso, transpõe barreiras culturais e religiosas para viver de modo radical o amor.
E para a liberdade que Cristo nos libertou, Permanecei firmes, portanto, e não
vos deixeis prender de novo sob o jugo da escravidão (Gl 5,1).
A comunidade da Galácia originou uma crise sem precedentes na missão de Paulo.
Presos a estruturas antigas, muitos cristãos, depois de serem evangelizados pelo Apóstolo,
não só voltavam atrás, mas persuadiam outros a fazer o mesmo ameaçando os resultados da
implantação do Evangelho no centro da Ásia Menor. A circuncisão, as prescrições
alimentares, as separações nas assembleias e outras prescrições, segundo esses neohereges
(novos hereges de cada época), deveriam ser impostas também aos pagãos.
Paulo e Barnatinham feito um acordo com Pedro, João e Tiago, em Jerusalém (At
15,1-29). O primeiro Concílio ecumênico surgir exatamente pela influência de fofoqueiros
de Jerusalém que foram até a Antioquia espiar a liberdade dos cristãos que o seguiam as
tradições dos judeus, mas simplesmente o Evangelho. Eles ensinavam que, caso os cristãos
não praticassem a circuncisão e com ela os outros preceitos culturais judaicos, não poderiam
se salvar (At 15,1.5). O conflito foi o acentuado, que a Igreja da Antioquia decidiu enviar
Paulo e Barnabé para Jerusalém a fim de elucidar a questão. A assembleia foi tensa, mas teve
um final feliz.
Paulo discursou e apresentou as razões da nova metodologia pastoral no processo de
evangelização dos pagãos. Pedro, em seu discurso afirmou que Deus aprouve enviar o
Espírito Santo aos gentios do mesmo modo que ao de origem judaica e que não deveria ser
imposto a eles um jugo quem mesmo os discípulos podiam suportar (At 15,8-10). Tiago,
que a essa altura dos acontecimentos estava na dianteira da Igreja de Jerusalém, concluiu
que Paulo e Barnabé poderiam continuar a evangelizar os pagãos sem exigir deles os
princípios dos costumes judaicos. Tiago propõe quatro tópicos como exigências a serem
observadas pelos pagãos que assumiam o cristianismo:
a. Abster-se das carnes contaminadas dos ídolos;
b. Afastar-se das prostituições;
c. Não comer carnes sufocadas (com sangue);
d. Não comer alimentos que contivessem sangue (At 15,20).
As conclusões conciliares, passadas a limpo no papel, eram muito felizes e prometiam
acabar com as tarefas dos fofoqueiros e maldosos que semeavam discórdias e falsas
acusações por onde passavam. Na prática, no entanto, elas não eram assim digeríveis. Paulo,
na Carta aos Gálatas, lamenta que tivesse sido necessária tanta teimosia para defender os
pagãos e que houvesse tanta deslealdade da parte dos irmãos de origem judaica (Gl 2,1-10).
O Concílio de Jerusalém abriu as fronteiras da liberdade e a criatividade, ainda que
com muitas resistências, dificuldades e conflitos entre os seus primeiros protagonistas,
como foi o caso típico da Galácia, mas também em Corinto com a formação de grupos e
correntes diferentes entre Cefas e Apolo com Paulo (1Cor 1,10-16). Contudo, o aperto de
mão entre Tiago e Paulo permitiu, desde cedo, o surgir de duas eclesiologias, uma voltada
para os cristãos de origem judaica e outra direcionada para o mundo greco-romano. Para
todos aqueles que estavam envolvidos no universo dos preceitos da circuncisão e quisessem
abraçar a cristã, não haveria nenhum conflito se desejassem continuar praticando os
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preceitos dos alimentos, mas eles deveriam abrir-se para a acolhida daqueles que,
culturalmente, vinham de outros ambientes e povos. Para os que ingressavam nas
comunidades de fé, vindos do paganismo, necessitavam abdicar de muitos ritos pagãos e
práticas que eram consideradas contrárias aos princípios do Evangelho. Jesus Cristo era um
só, ontem, hoje e sempre (Hb 13,8)
25
.
Os primeiros cristãos tinham bastante clareza da centralidade da em Jesus Cristo,
mesmo tendo conflitos bastante acirrados com discípulos teimosos e conservadores:
Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação
a que fostes chamados, 2 com toda a humildade e mansidão, com longanimidade,
suportando-vos uns aos outros no amor, 3 esforçando-vos diligentemente por
preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz; 4 um Corpo e um
Esrito, como também fostes chamados numa Esperança da vossa Vocação; 5
um Senhor, uma, um só Batismo; 6 um Deus e Pai de todos, o qual é
sobre todos, age por meio de todos e está em todos (Ef 4,1-6).
A centralidade da Nova Aliança passava pela consciência de um Senhor e um
Deus, mas as formas para chegar a Deus e as expressões de fé poderiam ter matizes diversos
entre os diferentes grupos. As rmulas de orações e os ritos podem ser diversificados, mas
a deve estar alicerçada no mesmo Cristo. Para que essa unidade na diversidade fosse
alcançada era mister que cada um fizesse a sua caminhada própria de mudança e não se
deixasse iludir por questões que não tinham importância para a fé:
Ninguém vos julgue por questões de comida e bebida, ou a respeito de festas
anuais ou de lua nova e sábados, que são apenas sombra de coisas que haviam de
vir, mas a realidade é o corpo de Cristo (Cl 2,16).
O apego ao passado, com ritos, fórmulas, festanças e tradições dificultava o abraçar da
e a vivência da novidade cristã. A comunidade da Galácia foi, nos tempos de Paulo, um
paradigma desse apego, os quais acreditavam que a prática da circuncisão e regimes de
alimentos e práticas sociais, asseguravam a salvação (cf. Gl 5,1-12). Esse tema se constituía
em um nó porque os judaizantes acreditavam que eram o povo da promessa e a salvação era
uma herança e não uma conquista que exigia renúncias de arquétipos velhos e assumir
paradigmas novos
26
. Barbaglio afirma que os judaizantes pressionavam Paulo e os seus
colaboradores. Paulo, no entanto, reage afirmando que readmitir a circuncisão em
ambientes cristãos era negar o papel salvífico e exclusivo de Jesus Cristo morto e
ressuscitado
27
. Paulo conhecia bem as práticas judaicas embutidas no rótulo da circuncisão
e por isso enfrentava Cefas e os outros judaizantes (Gl 2,11-14). A tradição dos Evangelhos,
que Paulo deve ter conhecidos entre frases escritas e tradição oral dos discípulos não reporta
uma única linha ou informação sobre a circuncisão e por isso que a escravidão da lei e a
liberdade da fé em Jesus Cristo eram absolutamente incompatíveis.
Aos fracos (apegados à lei e tradições) cabia compreensão, mas não havia nada a
imitar nele (Rm 14,1-9). Os fracos eram os cristãos que vinham do judaísmo, mas não
conseguiam superar as suas tradições para alcançar a liberdade da em Jesus Cristo. Por
isso, nos ensinamentos de Jesus estava clara a exigência:
Se alguém vem a mim e não odeia o próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos,
irmãs e até a própria vida não pode ser meu discípulo (Lc 14,26).
25 I. MAZZAROLO, Atos dos Apóstolos ou Evangelho do Espírito Santo, p.199-200.
26 I. MAZZAROLO, Carta de Paulo aos Gálatas, p.136-137. Na teologia e antropologia paulina, a circuncisão era um
retorno ao Sinai e uma negação à dinâmica cristã.
27 G. BARBAGLIO, As Cartas de Paulo II, p.95.
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A libertação dos paradigmas arcaicos exigia uma separação das coisas antigas. Não se
trata de odiar os familiares e parentes, mas separar-se de todos os elementos que podem
significar vínculo com um passado superado. As tradições são a memória que qualquer um
carrega, mas a sua grande maioria pertence ao mundo da saudade. Muitas vezes seria como
renunciar a um avião e optar por um jumento para percorrer longas distâncias. A saudade é
um sentimento nobre, mas não move o presente.
A parênese é clara: ... ficai firmes a fim de que nos vos deixeis prender outra vez sob
o jugo da escravidão (Gl 5,1). Essa escravidão era aquela das tradições antes do evento Jesus
Cristo, mas os Gálatas tinham caído no engodo da vaca fria e tinham sido enfeitiçados
por maus operários (Gl 3,1). Agora recebem nova advertência dos perigos de retornar ao
passado, depois de terem recebido a revelação de Jesus Cristo através do Espírito.
A prática da lei era a anulação da Cruz de Cristo (1Cor 1,17). Nessa perspectiva, era
preciso abandonar muita coisa do passado, libertando-se de preconceitos culturais que
impediam a beleza do Evangelho, tais como, as diferenças entre judeus e gregos, livres e
escravos e homens e mulheres (Gl 3,28; Cl 3,11).
A liberdade é a maturidade de discernimento, a capacidade de distinguir e optar.
Tanto a dependência cega dos princípios rabínicos atribuídos a Moisés na Torah, quanto a
prática obcecada dos ritos idolátricos geravam regimes de escravidão e submissão quer
religiosa, quer social. A liberdade, no entanto, exigia uma maior maturidade e gerava uma
responsabilidade sócio-econômica-religiosa com maior grau de comprometimento.
Paulo sabia quanto era pesado o jugo das leis rabínicas (os 636 preceitos) e o que eles
geravam. Em nome desses preceitos os judeus conservadores matavam os que o
cumpriam essas leis acreditando estar purificando os costumes, no entanto, estavam
transgredindo o Decálogo. Era mister libertar o ser humano das amarras de costumes e
práticas arcaicas a fim de conferir maior liberdade, autonomia e dignidade as pessoas. A
contribuição do helenismo, sob essa ótica, foi fundamental na vida de Paulo. A liberdade
era, em alguns casos, exagerada no mundo greco-romano, por isso Paulo advertia que a
liberdade não poderia servir de pretexto para a libertinagem ou os abusos do individualismo
e a absolutismo, considerados os desejos da carne (Gl 5,13). Na exortação paulina estava
explícito o ensinamento do aperfeoamento do amor à luz da assistência do Espírito Santo, pois
um antagonismo entre as obras da carne (libertinagem ou escravio) e as obras do Espírito:
16
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne.
17
Porque a carne milita contra o Esrito, e o Espírito, contra a carne, porque são
opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer.
18
Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.
19
Ora, as obras da carne
são conhecidas e o: prostituição, impureza, lascívia,
20
idolatria, feitiçarias,
inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, partidarismos,
21
invejas,
bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos
declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdao o reino de Deus os que
tais coisas praticam.
22
Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz,
longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
23
mansidão, domínio próprio.
Contra estas coisas não há lei.
24
E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne,
com as suas paixões e concupiscências.
25
Se vivemos no Esrito, andemos
também no Espírito.
26
Não nos deixemos possuir de vã gria
28
, provocando uns
aos outros, tendo inveja uns dos outros (Gl 5,16-26, grifos do autor).
As obras da carne estão em conflito com os frutos do Espírito. As obras da carne dominam
a pessoa e ela pratica atos contrários ao seu próximo e ofendem a Deus. O pecado
desqualifica o ser humano e ele deixa de espelhar a beleza divina da sua criação, por isso
28 A expressão grega kenodoxia significa, literalmente, a glória vazia, a glória fútil e inútil. A tradução glória traduz
melhor o grego, pois o lexema português vanglória pode significar mais o orgulho ou ambição.
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Jesus crucificou as paies vencendo as tentões e realizando as obras juntamente com Seu Pai.
Paulo trabalha com muita precisão a tensão dialética dos opostos que, não raro, alguns
ingênuos o acusam de dualista. A libertação tem duas dimensões: a. ética, sociológica,
antropológica, econômica e política; b. mental, espiritual, da razão e da consciência. A
liberdade era um tema muito caro a Paulo e ele vinculava a liberdade à capacidade de amar
profundamente a exemplo de Jesus Cristo. A liberdade e o amor superavam as diferenças
entre circuncisos e incircuncisos ou entre pagãos e judeus, pois Deus não faz acepção de
pessoas (Dt 10,17). Dunn afirma que, no substrato teológico do Apóstolo, estava a
libertação da corrupção, da escravidão, pois é uma prerrogativa dos filhos de Deus
29
.
A liberdade, se mal interpretada e assumida, pode servir de pretexto para a
licenciosidade e libertinagem. Disso Paulo estava absolutamente consciente, mas também
sabia que sem liberdade não poderia haver maturidade. Nas discussões parenéticas com os
cristãos de Corinto (cf. 1Cor 1-3) ele conhecia bem os caminhos tortuosos das imaturidades,
mesmo dentro das comunidades mais instruídas, especialmente quando começavam a fazer
partidos e divisões por causa dos evangelizadores: uns eram simpatizantes de Cefas, outros
de Apolo, outros de Paulo e outros se declaravam independentes. Tudo isso, ainda que de
modo livre, não era um caminho para a construção de comunidades sólidas arraigadas em
Jesus Cristo e não nos evangelizadores (1Cor 1,10-16).
A lei do Espírito é a libertação do pecado e da morte (Rm 8,2). Portanto, alcançar a
liberdade era e é conhecer de modo profundo e real a verdadeira missão diante do
evangelho. Quem vive segundo a carne, pode confundir a verdade com as tradições e não
raro, caducas, por isso é mister conhecer a dimensão do Espírito. A letra mata, mas o
Espírito vivifica (2Cor 3,6). E se estabelecem duas vias distintas, pois quem segue a letra da
lei procede segundo a carne e se preocupa com as coisas da carne, mas quem segue a lei do
Espírito constrói sua caminhada à luz da inspiração e da dinâmica da conversão (Rm 8,5-11).
Depois da visão no caminho para Damasco, Paulo se preocupou em escutar o Espírito
e foi libertando-se da lei mosaica e das tradições antigas. Não voltou a Jerusalém para
consultar os que eram apóstolos antes dele, nem consultou a carne ou o sangue, isto é,
tradições e representantes do passado (Gl 1,15-16), mas dirigiu-se a judeus e pagãos de
Damasco e depois ficou três anos evangelizando no deserto da Arábia. Paulo testemunha a
força do Espírito o qual não pede para voltar ao passado, mas libertando-se das coisas
antigas, impulsiona para frente, para o futuro carregando apenas o exemplo e o testemunho
sapiencial e profético da história.
A lei da circuncisão também era uma forma de escravidão, pois embutida na
circuncisão estava a observância estrita de muitos outros preceitos do passado de tal forma
que Paulo critica abertamente a intromissão da sua liberdade entre os pagãos por parte dos
que eram considerados notáveis na liderança da igreja primitiva (Gl 2,1-10). Depois de sua
conversão, Paulo considerava a circuncisão como uma escravidão cultural e religiosa e esta
não contribuía para a caridade e a misericórdia em prol dos desfavorecidos. A privação ou
os preconceitos com alimentos, bebidas e ritos de pureza serviam muito mais para excluir
pessoas do que para aproximar.
A liberdade é o princípio divino da dignidade do ser humano. A liberdade é
responsabilidade, é compromisso, é a expressão verdadeira da maturidade antropológica e
ética. Quem o tem maturidade corre o risco de justificar a libertação para praticar a anarquia
e a desobediência. Paulo exorta para assumir a liberdade com maturidade (Gl 5,13-15), pois
29 J. D. G. DUNN, A teologia do Apóstolo Paulo, p.741.
30 I. MAZZAROLO, Carta de Paulo aos Gálatas, p.143.
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a liberdade é transformação, criatividade, construção de novos paradigmas e novas formas
de viver a justiça e o amor
30
. A essência da lei é o amor, isto é, uma única palavra (Gl 5,15).
A liberdade é alcançada numa batalha em duas direções: a. Uma interna vencer-se a
si mesmo. Não faço o bem que eu quero, mas o mal que não desejo (Rm 7,19); b. Outra
externa os adversários e inimigos externos, como os que enfeitiçavam os cristãos na
Galácia (Gl 3,1). Em Éfeso, na prisão, Paulo teve que lutar com os animais peçonhentos em
virtude do acúmulo de sujeira que havia no ambiente (1Cor 15,32), ainda que alguns autores
interpretem esse depoimento como metáfora, ou seja, os animais seriam os inimigos que ele
tinha nessa cidade e que o condenaram.
Portanto, a liberdade exige uma consciência clara dos objetivos e metas, é uma
verdadeira luta e, sem dúvida, um exemplo de coragem e discernimento (Fl 1,30; Cl 2,1;
1Tm 6,12). A expressão usada por Paulo e avgw,n que significa luta, combate ou peleja
aguerrida e, como dissemos acima, pode ser interna para alcançar a própria liberdade e
também externa, para promover a harmonia e a paz.
O COSMOPOLITISMO GREGO NA TEOLOGIA DE PAULO
As metrópoles gregas eram distintas de muitas outras cidades pelo seu caráter
cosmopolita. Do grego polis é cidade e politês se entende cidadão. O latim traduz esse termo
por urbs (cidade). O cosmopolitismo grego tinha um diferencial no tratamento das pessoas
comparado com os outros povos. A compreensão da cidadania ou da vida na polis (cidade)
helênica assumia muitos aspectos específicos no tratamento dos seus habitantes. Os gregos
não tinham preconceitos entre si e também na relação com outros povos. Platão se
preocupava com a vida nas cidades e discutia formas de convivência sem discriminações. O
surgimento de Felipe II e depois seu filho, Alexandre, o grande, deram ao mundo antigo
uma nova compreensão de cidadania. Os paradigmas gregos compreendiam os cidadãos
dentro de duas categorias: a. os livres; b. os escravos. Normalmente, a distinção dessas duas
categorias era pautada na questão do conhecimento (gnôsis). Aqueles(as) que possuíssem
boa instrução e formação eram considerados cidadãos livres, mesmo sendo estrangeiros,
visitantes ou imigrantes. As pessoas instruídas assimilavam melhor os costumes dos povos
que visitavam ou nos lugares novos de estabelecimento. A liberdade dependia muito da
formação, pois esta conferia autonomia, maturidade e responsabilidade. Vemos muito
claramente essa compreensão na obra a República de Platão.
Paulo sabe fazer isso depois de sua conversão. Ele assimila todos os valores
importantes do helenismo e os incorpora na simbiose cristã, como veremos abaixo.
Os bárbaros, para os gregos, eram pessoas sem instrução e usavam a força brutal para
submeter e massacrar os outros. A barbárie é sinônimo de ignorância e perversão, por isso,
uma pessoa instruída e educada está mais longe dessas práticas. O cosmopolita pode ser
aquele que viaja pelo mundo todo, mas pode ser aquele que não viaja, mas valoriza o que de
belo e bom existe em cada cultura, em cada rito e mesmo em cada filosofia de vida.
Os judeus tinham um princípio cosmopolita que era uma máxima das tradições dos
antepassados: Deus não faz acepção de pessoas (Dt 10,17). No entanto, outros preceitos
culturais foram abandonando essa máxima e, através dos conceitos de puro e impuro,
homem e mulher, bárbaro e cita a aproximação se enfraqueceu e aumentou o
distanciamento para com as outras culturas.
Jesus, na sua pedagogia da inclusão quebrou todos esses paradigmas de exclusão e
aproximou de si e dos seus discípulos ricos e pobres, adultos e crianças, santos e pecadores,
homens e mulheres. Jesus convida para ser seu discípulo um cobrador de impostos (fiscal da
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Receita) considerado permanentemente impuro porque trabalhava seis dias com dinheiro
sujo e pessoas impuras (Mt 9,9). Os fariseus recebiam o dinheiro dos cobradores de taxas,
multas e impostos, mas não depois de receber o dinheiro não se misturavam com eles. Jesus
convida um destes a fazer parte do seu grupo seleto.
Jesus também aceita um convite gerador de conflitos quando Simão, o fariseu, o
convida para uma refeição em sua casa e, de modo surpreendente, surge uma mulher de
reputação. Ao conversar com essa mulher, Jesus não está preterindo o fariseu, mas
acolhendo a mulher. Jesus não despreza o fariseu escravo dos seus esquemas puritanos, por
isso aceita o convite de visitá-lo mas ele, ao ver o tratamento dispensado por Jesus à mulher
prostituta, se exclui da possibilidade de inclusão (Lc 7,36-50).
Um fato diferente acontece na passagem de Jesus por Jericó (Lc 19,1-10). Quando
Jesus se convidou para a visita na casa dele, um rico corrupto e ladrão, Zaqueu recebeu Jesus
com alegria, fez festa e é provável que ele tenha convidado seus amigos corruptos para esse
encontro no qual ele fez a confissão de sua conversão.
Essa pedagogia de Jesus foi absorvida de maneira magistral por Paulo. A sua infância
foi vivida em ambientes muito abertos, livres e acolhedores e, desta forma, associou a
liberdade helenística à pedagogia de Jesus, onde não podia haver diferenças entre judeu e
grego, livre e escravo, homem e mulher e bárbaro e cita (Rm 10,12; Gl 3,28; Cl 3,11).
O cosmopolitismo grego tinha alguns princípios quânticos em sua filosofia e
antropologia política que gerava sentido de pertença e responsabilidade. O cristianismo
acentuou muito a consciência de pertença ao Universo e ligação interpessoal na rede
humana como filiação divina.
Uma forma o diferente, mas esquecida que falembrar que a realidade possui
inúmeras possibilidades de ter, ser ou estar sendo constituída neste exato e ínfimo
instante de tempo, por inúmeras formas ou maneiras, do ponto onde sua vida está
para trás ao infinito, e do ponto onde sua vida está para frente ao infinito, em
eventos igualmente incontáveis e imeras conexões sendo que a maior de todas elas
é a conexão com a Criação. Pois tudo, mas tudo é campo e energia no campo, e
energia pode ser aumentada, diminuída, compensada, trocada, e finalmente
direcionada dentro deste campo que a tudo e a todos conecta no infinito Universo
31
.
O câncer do mundo é a iniquidade e a corrupção que patrocinam as guerras, a fome e
as injustiças. A energia quântica é a consciência dessas conexões que são a vida, a esperança
e a alegria no Cosmos. Isso exige uma consciência de uma pátria celeste, uma pátria comum
onde todos se sentirão irmãos, células de um mesmo corpo (Fl 3,20).
O ser humano não apenas é apenas parte do universo, mas ele é o universo em
movimento, em formação e criação. À medida que ele vai tendo consciência dessa pertença,
também vai criando o próprio universo quântico
32
.
A INCLUSÃO DA MULHER NA TEOLOGIA E NAS IGREJAS DE PAULO
Antes de estudarmos a situação da mulher nas igrejas de Paulo, vamos fazer uma
caminhada rápida em torno da compreensão e tratamento dispensado pela cultura oriental.
A mulher no antigo Egito
Os textos referentes à situação da mulher egípcia não são unívocos, mesmo porque a
31 J. TEIXEIRA JUNIOR, A Era do raciocínio quântico, p.37.
32 Deepack CHOPRA, Você é o universo, p.24-25.
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história deste povo é das mais longas e complexas. Segundo alguns egiptólogos antigos e
outros recentes, a mulher, na sociedade egípcia, gozava da melhor posição em relação à
mulher de qualquer outro povo. A civilização egípcia baseava sua legislação pública sobre a
igualdade dos sexos. É no Egito que a condição da mulher é mais favorecida. Ela tem,
praticamente, os mesmos direitos que o homem, o mesmo poder jurídico. Esta condição é
singular e não existe além ou fora do Egito antigo, onde o solo pertence ao rei e às classes
superiores. Para as questões particulares de propriedade fundiária é apenas uma questão de
usufruto. Para efeitos de propriedade privada, a mulher guarda seus direitos e dignidade de
pessoa. Ela pode casar-se livremente e, se quiser, pode recasar-se a seu gosto
33
.
Isto deve ser tão verdade que causa uma reação fora, especialmente na Grécia. Sólon
diz a Aristóteles que está indignado com os costumes egípcios, que o escandalizam.
Heródoto, por sua vez, surpreende-se ao saber que no Egito as mulheres gerenciam os
negócios enquanto os seus maridos ficam em casa, ocupados com a tecelagem (Herodoto,
II,35)
34
. Esta observação de Heródoto é desconcertante para o espírito dos gregos de seu
tempo: a liberdade da mulher, no Império dos Faraós, contrapõe-se aos costumes
helenísticos, de modo especial no período aristotélico. Nesse período, o poder, no Egito,
estava nas mãos da mulher.
No Novo Egito, de 1580 a 660, a partir da invasão dos Hicsos, a mulher egípcia
experiencia outra realidade. Na XVIII dinastia o rei (faraó) Amosis está empenhado em
libertar o reino do domínio Hicso e, então, ele passa o poder à esposa Ahmose-Nefertari.
Neste período, as mulheres do Egito desempenham política e socialmente um papel muito
importante. E Amosis vai pedir à esposa um monumento à sua mãe, à sua avó e à bisavó,
numa homenagem ascendente à mulher. Depois dela, uma série de rainhas ocuparam o
poder egípcio, numa longa sucessão feminina, na política, todas elas, contudo,
emparentadas pela linha de consanguinidade
35
.
Nas cosmogonias semíticas, a mulher é colocada num lugar inferior devido às
justificações religiosas: Deus criou o homem, em seguida a mulher (Gn 2,7.18-24). Nada disso
está nos sistemas teológicos do Egito. diferentes sistemas elaborados pelos teólogos
egípcios antigos para explicar a criação do mundo. O deus primordial saiu do caos inicial e
tendo criado deferentes casais divinos, então decide criar a humanidade, esta comportando
dois sexos sem que haja superioridade ou anterioridade de um sobre o outro. Esta igualdade
dos sexos está explícita no texto mitológico do deus Rê, criador do Universo. Da mesma
foram podem ser abordados os diferentes sistemas teológicos que reportam à criação, a
partir de um deus primordial único e depois os casais divinos. Assim, em Heliópolis, o deus
Atum procria por si próprio o primeiro casal divino; Shu, o princípio masculino e Tefnout, o
princípio feminino. Por sua vez, eles procriam outro casal: Nout, o céu, masculino e Geb, a
terra, feminino. Depois são gerados outros dois casais: Isis - Osiris e Nephtys - Seth. Nos
textos egípcios, referentes aos nomes ou províncias ou deuses o nome feminino
normalmente aparece antes, talvez pelo fato da divindade feminina ser mais considerada
36
.
A mulher na cultura judaica
Na cultura judaica os preconceitos contra a mulher começavam no dia do nascimento,
pois as mulheres que dessem à luz um menino ficavam impuras durante sete dias e no
oitavo era realizada a circuncisão do menino, depois ela continuava por mais trinta e três
33 L-R. NOUGIER, La femme, 63; citando Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe,139-40.
34 L-R. NOUGIER, La femme, 63; citando Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe,139-40.
35 NOUGIER, La femme, 123-4
36 NOUGIER, La femme, 125.
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dias impura. Quando dessem à luz a uma menina ficavam impuras durante duas semanas e,
depois, mais sessenta e seis dias (Lv 12,2-5). O tempo da impureza simplesmente duplicava
no nascimento de meninas e isto pode demonstrar que as mulheres eram prejudicadas desde
o dia em que abriam os olhos para a vida.
Na sociedade israelita, a mulher ocupava um espaço semelhante ao do pagão, do
estrangeiro, do publicano e da criança
37
. O Evangelho de Mateus nos reporta essa realidade
ao narrar as duas multiplicações dos pães de Jesus. Os que se alimentaram eram em número
de cinco mil, sem contar as mulheres e crianças (Mt 14,21) e de, aproximadamente, quatro mil,
sem contar as mulheres e crianças (Mt 15,38).
As mulheres dificilmente ou quase nunca alcançavam a maturidade. Se fossem
solteiras eram as filhas de fulano e se fossem casadas eram as esposas de beltrano
38
. O
homem é o verdadeiro proprietário da mulher que comprou (Ex 20,17). O marido é o dono
ba´al da esposa, do mesmo modo que é proprietário de um animal, de uma casa ou campo
(Ex 21,3.22; 2Sam 11,26; Pr 12,4). Ainda que a fidelidade consanguínea viesse através da
mulher, quem, realmente, mandava era o homem.
O texto do Cântico dos Cânticos é uma denúncia clara de protesto contra essa
sociedade machista de domínio e apropriação da mulher. No início do primeiro poema, a
Amada denuncia o regime de escravidão diante dos seus irmãos ou possuidores de tal forma
que ela não pode cuidar da própria vinha, isto é, da sua dignidade e identidade (Ct 1,5-6).
Na conclusão do livro ela rejeita o dinheiro ou dote que Salomão pagaria pela sua compra e
afirma que ela é a dona de si própria e de sua vinha (Ct 8,12). Podemos considerar o texto
dos Cânticos como um primeiro sinal de protesto contra a exploração da mulher e, por
extensão, da exploração dos camponeses, dos pobres e das pessoas humildes. É um Cântico
de libertação a favor da dignidade da vida, do matrimônio como aliança de amor, da
superação das questões de racismo, gênero e restauração das relações antropológicas,
começando pela família
39
.
A mulher na cultura helênica
O judaísmo, no período helenístico, resistiu ferrenhamente aos princípios de
liberdade e de autonomia das mulheres. O judaísmo rejeitava todos os costumes gregos e
com eles também a convivência com a mulher na sociedade, na vida pública e cultural. No
helenismo muitas mulheres ocupavam cargos destacados na vida pública e religiosa. As
sacerdotisas, as pitonisas e outros cargos eram muito importantes para a cultura grega e
depois romana. Vale lembrar as divindades femininas no mundo helenístico como Diana,
Vênus, Afrodite e muitas outras.
Essa segregação da mulher, segundo Capra se deve a concepções antigas das culturas
orientais quando distinguiram o yin e o yang. O yin é o feminino, conservador, intuitivo e
receptivo; o yang é o masculino, exigente, agressivo e racional. Nessa compreensão houve uma
supervalorização do racional e nele se desenvolveu o androcentrismo com desprezo à mulher
40
.
A Paideia grega era a maior virtude para um homem ou mulher grega. Segundo
Diógenes, a educação é a graça para o jovem, consolo para o ancião, abundância para o
37 I. MAZZAROLO, O Apóstolo Paulo: o Grego, o Judeu e o Cristão, p.93, citando D. BALCH, Let the Wives be submissive; The
Domestic Code i 1Peter, Michigan, Scholars Press, 1981.
38 R. DE VAUX, Le Instituzioni dell´Antico Testamento, p.36.
39 I. MAZZAROLO, Cântico dos Cânticos; Uma leitura política do amor, p.233-242.
40 F. CAPRA, O Ponto de Mutação, p.36-38.
41 Cf. I. MAZZAROLO, O apóstolo Paulo, p. 64, citando BARCLAY, W., Hellenistic Thought in the New Testament Times,
373, o qual aporta Laertius DIOGENES, vi,68.
42 W. JAEGER, Paideia, A formação do homem grego, p.4.
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56
pobre e ornamento para o rico
41
. A educação não era uma propriedade individual, mas
pertencia por essência à comunidade. O ser humano é um zwon politikou
42
(animal
político) e deveria preparar-se para a convivência na cidade, na sociedade e na comunidade. Na
sua abertura para a comunidade universal os gregos também tinham alguns princípios sociais
ou mandamentos: honrar os deuses, honrar pai e mãe, respeitar os estrangeiros entre outros
43
.
Na administração doméstica, os gregos não destacavam claramente a quem cabia a
responsabilidade maior. A oikosnomía era uma questão de autossuficiência. No estoicismo e
platonismo, a mulher era a dona da casa. Na estruturação familiar, Platão entendia que a
mulher tinha dotes mais adequados para a educação e cuidados com as crianças e também a
arrumação da casa enquanto o homem estava mais preparado para os trabalhos do campo.
Desta forma, havia alguns cuidados para proteger a condição da mulher, mesmo que isso
não fosse a solução total para uma condição ideal na vida quotidiana
44
.
A busca por uma ética que preservasse as condições dos homens livres estava pautada
na justiça: Assim como a saúde é o bem supremo do corpo, a justiça é o bem supremo da
alma. A justiça é o bem supremo da alma sempre que concebemos a mesma como valor
moral da personalidade
45
.
A cultura grega, especialmente com Platão, investe na formação integral da pessoa e,
no contexto da sociedade ideal que era a República, as mulheres e as crianças deveriam ser
educadas de modo semelhante aos homens, pois elas deveriam ser as futuras esposas dos
guardiães e essa tarefa se tornaria mais próspera quando elas próprias pudessem assumir a
função de guardiães
46
.
No início do cristianismo os grandes filósofos estavam em decadência, mas as suas
filosofias não. O platonismo, o estoicismo e o epicureismo continuavam muito vivos e eles
conviveram e rivalizaram com o cristianismo nascente, como analisa o filósofo Spinelli:
No caso do Estoicismo e do Epicurismo, eles exerciam tanta força persuasiva nos
indivíduos, a ponto de se tornarem os movimentos rivais da expansão do
Cristianismo. O livro dos Atos dos Apóstolos, escrito com a finalidade de
transmitir a ação apostólica para os novos pregadores, apresenta-os como se
fossem um obstáculo: Quando Paulo estava em Atenas [...], certos filósofos
epicureus e estoicos discutiam com ele e alguns diziam O que ainda quer ensinar
esse charlatão? E outros: Parece que é o anunciador de uma divindade estranha. Por
isso convidaram Paulo ao Areópago, onde lhe perguntaram: Podemos então saber
qual é essa nova doutrina que estás pregando? Coisas estranhas chegam aos nossos
ouvidos, por isso queremos saber do que se trata (At 17,16-21, grifo do autor)
47
.
A cultura grega era uma civilização aberta e para todos os que possuíssem
conhecimento, a formação esperada e a gnôsis os caminhos estavam abertos. Vale dizer que
também havia escravos, excluídos e marginalizados por uma série de outras razões.
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43 W. JAEGER, Paideia, A formação do homem grego, p.23.
44 I. MAZZAROLO, O apóstolo Paulo, p.72.
45 PLATÃO, A república, p.444.
46 W. JAEGER, Paideia, A formação do homem grego, p.814.
47 M. SPINELLI, Helenização e Recriação de Sentidos, p.15.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
FRANCISCO DE ASSIS,
A PAZ VEM DO BEIJO
NA FACE DO IRMÃO LEPROSO
1
FRANCIS OF ASSISI,
PEACE COMES FROM KISSING
THE LEPER BROTHER'S FACE
Pe. Ivanir Antonio Rampon*
Resumo: Neste breve texto de teologia narrativa, faremos uma leitura
histórico-crítica da vida de Francisco. Embora esteja pressuposto, não
iremos apresentar um estudo exegético das fontes francisclarianas. Nosso
objetivo é mais humilde: narrar, brevemente, como surgiu e como se
desenvolveu a opção pelos pobres na vida de Francisco e como ele viveu a
espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo, na conformidade com os pobres.
Palavras-chave: Francisco. Alegria. Paz. Ecologia. Pobres.
Abstract: In this brief text on narrative theology, we will make a
historical-critical reading of the life of Francis. Although presupposed, we
will not present an exegetical study of Francisclarian sources. Our objective
is more humble: to narrate, briefly, how the option for the poor emerged
and developed in Francis' life and how he lived the spirituality of following
Jesus Christ, in conformity with the poor.
Keywords: Francis. Joy. Peace. Ecology. Poor.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 58-65, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: https://dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.54
* Possui graduação em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo (1996), em
Teologia pela Itepa Faculdades (2000),
mestrado em Teologia pela Faculdade Jesuíta
de Filosofia e Teologia (2004), doutorado em
Teologia Espiritual pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma (2011). É
professor da Itepa Faculdades.
Email: iarampon@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-2882-440X
Recebido em 14/03/21
Aprovado em 12/06/21
1 Este texto foi elaborado a partir da dissertação de mestrado do autor intitulada A opção
pelos pobres em São Francisco de Assis (2005).
59
São Francisco de Assis, ainda muito jovem e cheio de sonhos, ouviu a chamada
de Jesus para ser pobre como Ele e restaurar a Igreja com o seu testemunho. A
tudo renunciou com alegria e é o santo da fraternidade universal, o irmão de
todos, que louvava o Senhor pelas suas criaturas (CV 52).
Francisco de Assis, ainda hoje, exerce forte atração, inclusive fora da esfera cristã. São
inúmeras as pessoas devotas do santo, as apaixonadas pelo profeta, as admiradoras da sua
ternura às criaturas, as maravilhadas pelo seu espírito pacifista, as extasiadas pelo seu vigor
na defesa de um grande ideal de vida e as fascinadas pela sua opção radical pelos pobres.
Francisco não tinha um belo corpo, nem grande ciência e títulos de nobreza. Faltava
tudo o que poderia fazê-lo figurar entre os homens ilustres da cristandade, embora tenha
sido escolhido, em 1999, pela revista Times, o homem do milênio.
A força de Francisco estava em querer viver o Evangelho... Quando a Igreja queria ser
a senhora do mundo, ele quis ser o menor de todos; quando a burguesia queria muito
dinheiro, ele quis ser o mais pobre entre os pobres; quando se faziam guerras santas e
cruzadas contra os muçulmanos, ele quis dialogar com o sultão do Egito; quando o
machismo impedia uma maior atuação das mulheres, ele valorizava Clara e outras. Desde
modo, Francisco encontrou um rosto de Deus diferente daquele do senhorio da Igreja e das
guerras santas. Seu Deus estava ligado ao que havia de mais fraco e menor no mundo.
Neste breve texto, vamos expor alguns pontos teológicos-espirituais, fazendo uma
leitura histórico-crítica da vida de Francisco. É provável que o leitor ou a leitora intuirá a
sintonia espiritual existente entre Francisco de Assis e o Francisco de Roma; entre o
Francisco da Perfeita Alegria e o da Alegria do Evangelho. Intuirá que ambos cantam e nos
convidam a cantar Laudato Si´ mio Signor; buscam e nos convidam a construir um mundo de
Fratelli Tutti. No dizer do próprio Papa:
Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para
Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo
que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. (...)
Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e
abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o
seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com
simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a
natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a
preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na
sociedade e a paz interior (LS 10).
1 UM TÍPICO JOVEM BURGUÊS
Francisco de Bernardone nasceu por volta de 1182, filho de Joana e Pedro
2
. Seu pai
era um dos homens mais ricos de Assis, pertencente à classe dos burgueses. Estes detinham
o poder econômico, mas não o político. Pedro sonhava que através de seu filho Francesco
conseguiria a ascensão social e política.
A infância de Francisco foi marcada pelos tumultos de guerras entre papado e
império, entre nobres e burgueses. O adolescente frequentou a escola e a catequese na Igreja
de São Jorge, onde aprendeu a fazer cálculos algo necessário para a sua classe social. Com
2 Fazemos uma leitura crítica das Legendas (textos hagiográficos), no sentido, de através das coincidências, diferenças e
até contradições existentes nelas, apresentar os dados históricos mais aceitáveis pelos estudiosos do francisclarianismo.
Quem é versado naqueles estudos, sabe, por exemplo, que o mesmo autor, Frei Celano, escreveu duas Legendas com
diferenças bem notáveis entre elas e com fins diferentes. Neste breve artigo, não vamos nos deter na análise histórica-
exegética dos textos e contextos francisclarianos, tendo, no entanto, a análise por pressuposta. Por ser um texto-resumo,
não colocaremos a bibliografia.
RAMPON, Ivanir Antonio
Francisco de Assis, a paz vem do beijo na face do irmão leproso
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60
quinze anos ajudava seu pai na loja, mas não gostava tanto de ser comerciante. Preferia sair
com os amigos para as festas e cantorias, fazer gracejos e ser o centro das atenções.
Distinguia-se pela voz melodiosa, estilo alegre e elegante e esbanjamento de dinheiro. Por
isso, logo se tornou o líder da juventude mais rica de Assis.
Em 1198, aproveitando uma brecha do Conde Conrado, os burgueses expulsam seus
rivais, os nobres, de Assis e proclamam a independência comunal. Como outros jovens
burgueses, Francisco deve ter vibrado com os ares de liberdade. Entre os expulsos estava
uma menina de cinco anos, chamada Clara de Favarone. Mas os nobres logo se aliaram com
os cidadãos de Perusa, cidade inimiga de Assis. Francisco, com 20 anos, participou da
guerra. Perusa venceu e Francisco foi feito prisioneiro.
Por um ano, o jovem sentiu na carne os sofrimentos da prisão superlotada, os maus
tratos, os rigores do inverno, a alimentação deficiente, as doenças. Por pouco não morreu!
Resgatado pelo pai, demorou quase um ano para se recuperar das doenças e da depressão.
Recuperado, preparou-se para participar de mais uma guerra com um famoso cavaleiro. A
vitória daria a sua família o título de nobreza. Enfim, Francesco iria realizar o sonho do pai.
Durante a ida para a guerra, no entanto, decidiu abandonar as armas para o desencanto do
pai. Ao mesmo tempo, a loja foi se tornando insuportável. Francisco preferia ir para os vales
da Úmbria rezar e ficar junto aos mais pobres, os leprosos.
2 A FORÇA DE UM BEIJO NO IRMÃO POBRE
Na verdade, tudo começou a mudar quando certa vez lhe apareceu um leproso com o
rosto deforme, de carnes purulentas, com mãos apodrecidas à espera de esmolas. Francisco
sentiu repugnância e até raiva por causa daquela aproximação. A primeira reação foi a de
desviar aquele rosto. Dando meia volta com o seu cavalo, tentou fugir. Mas percebendo a
sua covardia, desceu do cavalo e correu até o leproso deixando-lhe o calor de um beijo. O
leproso ficou atônico.
Francisco sentiu uma grande felicidade. Sentiu uma doçura no corpo e na alma! O
beijo o fez sentir o corpo e a alma do irmão pobre e infeliz; fez abandonar famílias e
riquezas. Pouco tempo depois irá morar entre os leprosos, pobre entre os pobres! Será o
mais novo sem-teto e sem fortuna, no entanto, feliz.
3 RECONSTRUINDO A IGREJA DOS POBRES
Depois do beijo no leproso, o amor a Deus crescera em Francisco. Por isso, ele
procurava locais solitários para ficar com o Senhor. Certo dia, foi a a Igreja de São
Damião. Nela havia um crucifixo bizantino que, do ponto de vista estético, não era
considerado belo. Em uma manhã de janeiro, ele estava rezando com os olhos fixos naquele
crucifixo quando, segundo as fontes francisclarianas, percebeu o crucifixo convidando-o
para restaurar a Igreja:
Francisco, não vês que minha casa está destruída? Vai, portanto, e restaura-a
para mim. Tremendo e admirando-se, ele diz: Fá-lo-ei de boa vontade,
Senhor. Ele entendeu que lhe fora dito daquela Igreja, que por causa da extrema
antiguidade, ameaçava uma ruína próxima. Por causa desta palavra que lhe foi
dita, ficou repleto de tanto júbilo e iluminado de tanta luz que na sua alma sentiu
verdadeiramente que fora o Cristo Crucificado quem lhe falara.
Foi então até a loja de seu pai, pegou alguns brocados dirigindo-se, em seguida, a
cavalo, até a feira de Foligno. Vendeu as roupas e até o animal, e entregou o dinheiro ao
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sacerdote de São Damião para que este procurasse reconstruir a Igreja e sustentar os pobres.
Mas o padre não aceitou porque tinha medo da reação de Pedro Bernardone. Frustrado,
Francisco jogou o dinheiro fora. De fato, não era o dinheiro que iria reformar a Igreja, mas
a solidária opção pelos pobres.
4 TIRANDO AS ROUPAS BURGUESAS
Refletindo sobre seu modo de proceder, Francisco intuiu que teria um conflito com o
pai. Cheio de medo, foi se esconder, sendo visitado por um amigo que lhe levava alimentos.
No esconderijo, sentiu uma confusão sentimental. Por um lado, estava alegre aquele beijo
transformara a sua vida e, por outro, estava com medo da reação dos familiares, dos
amigos, da cidade. Suas angústias eram explicitadas na constante oração. Aos poucos, seu
espírito foi sentido serenidade. Depois de um mês, regressou a Assis decidido a apresentar
as razões de sua opção e enfrentar as consequências. Acusado pelo pai de mau uso do
dinheiro, em público tirou as roupas e disse:
quero restituir-lhe com espírito alegre não somente o dinheiro que é
proveniente de seus bens, mas também as vestes. Agora direi livremente: Pai
nosso que estais nos céus, não pai Pedro Bernardone, a quem devolvo - eis aqui -
não somente o dinheiro, mas entrego também todas as vestes.
Após renunciar à herança diante do bispo da cidade, Francisco viajou para Gubbio,
levando uma vida de oração e de serviço aos leprosos. Mas, o desejo de reconstruir a igreja
de São Damião não lhe saía da cabeça. Por isso, retornou a Assis e iniciou a reconstrução
sentindo nas mãos os calos de pedreiro. Ele peregrinava pelas ruas mendigando pedras para
reconstruir a casa do amigo Jesus e dos amigos pobres. De fato, a igrejinha de São Damião
era periférica e sem importância. Lá os pobres se encontravam para rezar.
Enquanto, reconstruía igrejinha, o padre, seu amigo, resolveu repartir a comida com
o pedreiro, mas este não concordou com tal privilégio pois o diferenciava da maioria dos
pobres. Então, resolveu ir mendigar seu próprio alimento. Lágrimas rolaram de seu rosto e
o estômago se revoltou diante do mexidão considerado comida de cães. Ele, que antes
presidira banquetes de ricos, alimentava-se, agora, da comida de mendigos e leprosos.
Francisco, no entanto, ainda não compreendia que mais do que reconstruir as
paredes, era preciso reconstruir a Igreja dos pobres. Aos poucos, compreendera a
profundidade de seu chamado vocacional: reconstruir a casa do amigo, buscando a
irmandade na paz e na solidariedade com os pobres, justamente, quando a instituição
eclesial, estava mergulhada em guerras e na busca de domínios.
5 FAZENDO NOVAS AMIZADES
O Poverello fez várias amizades com esmoleres de Assis com quem repartia os
alimentos recolhidos e, vários deles, devem tê-lo ajudado a reconstruir a Igreja,
transportando pedras e levantando muros. Perto de o Damião estava o leprosário de São
Salvador. Lá, com seus novos amigos, Francisco ficava horas e até semanas. Seus gestos
eram de carinho, atenção, acolhida, cuidado. Com eles rezava, cantava, brincava, aprendia,
chorava, enfim, vivia! Desde modo reconstruía a Igreja de pedra, mas também a Igreja de
seu coração com as pedras das novas amizades. Se por um lado, havia pedras que
machucavam, havia outras que ajudavam a construir a Igreja dos pobres de Jesus Cristo.
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6 A IRMÃ CLARA
Aos poucos, a radicalidade de Francisco começou despertar admiração em outros
jovens. Alguns fizeram gestos ousados, abandonando a nobreza e a burguesia para viverem,
com ele, a pobreza e a irmandade. Entre as jovens, estava Clara de Favarone Offreduccio,
uma bela moça de treze anos, de família nobre. Ela teria dado esmolas, às escondidas dos
familiares, para que que Francisco comprasse pedras usadas na reforma da igreja de São
Damião, não imaginando que seria, posteriormente, uma das pedras mais preciosas da
igrejinha dos pobres. O rosto iluminado de Francisco lhe parecia autêntico, verdadeiro, sem
formalismos corteses, sem gestos ensaiados, sem enganos sociais. Era tudo diferente do que
via em sua própria casa, entre nobres...
Francisco tocara o coração de Clara, mas também fora tocado pelo dela a ponto de ir
procurá-la para os secretos encontros. O detalhe mencionado é importante, pois destaca a
mediação do Poverello na vida de Clara, mas também a busca de Clara, uma vez que depois os
Offreduccio tentaram culpá-lo pela loucura dela... No Testamento, a Poverella enfatiza que a
decisão de deixar tudo para seguir a Jesus na pobreza e humildade foi pessoal e livre. Para ela, a
iniciativa foi de Deus e o Caminho é Jesus Cristo: o Filho de Deus fez-se para nós o Caminho
(cf. Jo 14,6; 1Tm 4,12), que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de
verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo. Franciscoo é o caminho, mas Jesus é
o caminho de ambos. Portanto, Clara percebia o Poverello como parceiro exemplar de caminhada.
7 A PREGAÇÃO DA PAZ
Francisco e seus primeiros companheiros descobriram que reconstruir a casa do
Crucificado não era somente colocar pedra sobre pedra, mas retornar ao Evangelho da
pobreza e da missão. Era dirigir-se ao encontro dos homens e mulheres, sem ouro nem
prata, sem nenhum poder de senhorio, sem garantias deste mundo, mas impulsionado pelo
sopro de humildade que havia levado o Filho de Deus a vir anós, caminhando humilde e
pobre nos caminhos do mundo para anunciar a Boa Notícia.
Começaram a andar pelas ruas, povoados e cidades desejando a paz e convidando as
pessoas para ouvirem a pregação numa das praças. Iniciavam a pregação desejando a paz,
pois sabiam que os corações eram alimentados por guerras, cobiças, ganâncias, egoísmos,
paixão pelo dinheiro. Em seguida convidavam para a mudança de vida, ou seja, para que
buscassem viver com mais coerência a mensagem de Jesus.
Conseguiram penetrar no íntimo de muitos de seus ouvintes, despertando
admirações. O carisma francisclariano contagiou e continua contagiando milhares de
pessoas que partem pelo mundo anunciando a paz, com as mãos e corações desarmados...
Neste sentido, a paz não é algo intimista e nem se limita a acordos políticos estratégicos,
mas é renovação de si e da sociedade. A paz anda de mãos dadas com a irmandade e tem
caráter pessoal, social e cósmico.
O novo movimento religioso e popular contrastava com a situação hegemônica
eclesial. Abades e bispados eram verdadeiros senhores feudais e suas grandes preocupações
giravam em torno da arrecadação de impostos, preparação de pompas e guerras. Conforme
Leclerc, mais que reflexo evangélico, a Igreja era uma grande potência do mundo, longe do
Evangelho
3
. Estava instalada numa cristandade sólida em que o Evangelho o soava bem.
Francisco recusa-se a instalações fixas e pomposas e sua preocupação era anunciar, como
pobre, o Evangelho da Paz.
3 Eloi LECLERC, Francisco de Assis: o retorno ao Evangelho, p.45.
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No século XIII, as moedas de ouro e prata passaram a ser mais apreciadas e desejadas.
Porém, onde elas aumentavam também aumentava a falta de irmandade. Francisco e seus
primeiros irmãos ao dirigirem-se às cidades locais onde moravam comerciantes,
cambistas, artesões... e pobres renunciavam o pacto com o ídolo. Perceberam que a pessoa
anunciadora da Boa Nova da Paz não poderia concorrer na busca de riquezas e poder.
Somente a pobreza era caminho verdadeiro de irmandade.
8 LUTANDO PARA SALVAR O IDEAL
Em menos de dez anos, milhares de jovens juntaram-se a eles, renunciando riquezas e
vivendo a minoridade entre os pobres. No entanto, com o crescimento do grupo, houve
conflitos, pois, havia os que defendiam a necessidade de abandonar a vida entre os pobres e
morar nos palácios, buscando o sucesso da Fraternidade (do grupo). As buscas de fama,
glória, honras os afastavam do mundo dos pobres e os devolviam para o mundo que
Francisco renunciara após o beijo recebido de um leproso. O Fratello lutou contra isto até
morrer. A luta para salvar o ideal lhe custou muitas dores, acusações, desrespeitos.
9 FAZENDO A PAZ COM OS IRMÃOS MUÇULMANOS
O ano de 1219 é histórico para as pessoas que sonham com a paz e o diálogo inter-
religioso. Francisco e Iluminado foram até os cruzados e mantiveram contato com Melek-
el-Kamel, o sultão do Egito. O Poverello, então, deparou-se com uma poderosa cristandade
sedenta de guerra ao passo que ele era um pobre cristão com sede de paz. O seu bom
relacionamento com o sultão e outros muçulmanos o fez entender que a problemática
estava na submissão dos sarracenos aos interesses impostos pela cristandade sequiosa de
glória, poder e dinheiro. Ao proclamar a paz, Francisco rompia com o esquema de opressão.
Se a opção pelos pobres tivesse sido a opção da Igreja naquele momento, a paz teria sido
possível.
10 FIDELIDADE AO DEUS-CRUCIFICADO
Em 1223, Francisco celebra com intensidade o Natal do Menino pobre e indefeso
nascido em Belém. No mundo em que o dinheiro falava mais alto, e clérigos e frades
buscavam honrarias e grandezas, era preciso redescobrir a pobreza e a humildade de Deus.
No ano seguinte, Francisco e alguns dos primeiros companheiros dirigiram-se ao
Monte Alverne, a fim de meditar durante a Quaresma de São Miguel. Na metade de
setembro de 1224, Francisco, sentindo-se um vil verme e inútil servo, em prantos,
suspirava a Deus pois, meditava sobre o seu fracasso em todos os empreendimentos. Foi,
então, que compreendeu profundamente que o seu Deus era o Jesus cruciicado. Assim,
morreria sem sucesso, a saber, sem ver os muçulmanos convertidos, o sultão batizado, a
Igreja sendo mais sinal do Evangelho, o mundo mais fraterno e pacífico, a Ordem vivendo a
opção pelos pobres em conformidade com os pobres. Até na morte seria um autêntico
seguidor de Cristo pobre e crucificado.
Depois do retiro no Alverne, Francisco continuou sua missão de pobre pregador da paz
e de servidor dos leprosos. Queria recomeçar tudo e até voltar a ser desprezado como
antigamente.
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11 O CÂNTICO AO IRMÃO SOL
No inverno de 1225, todo o vigor do corpo de Francisco se enfraqueceu. A carne
estava consumida e a pele aderida aos ossos. Estava sendo doloroso suportar a cegueira e as
outras enfermidades. Assim, ele quis retornar a São Damião para ficar com Clara e as outras
irmãs. Depois de uma noite de grandes tormentos, mas também de certeza de que
participaria da plenitude do Reino de Deus, compôs um novo louvor ao Senhor que
recebeu, posteriormente, dois complementos, um sobre o perdão e a paz e outro referente à
irmã morte.
É impressionante as coincidências das conclusões dos novos estudos sobre ecologia e
as profundas intuições que Francisco poetizou no Cântico ao Irmão Sol. O Fratello
percebeu a transparência de Deus nas criaturas e o rosto de Cristo nos pobres. Ele não
uniformizou todos os seres, mas também não admitia que o ser humano fosse o monarca
das outras espécies. A sua busca da irmandade cósmica encontrava fundamento espiritual na
opção pelos pobres.
12 A IGREJA MAIS AMADA É A PEQUENINA DOS PEQUENOS ...
Em setembro de 1226, chegando a hora do trânsito, vários iros se dirigiram a
Assis para se despedirem e receberem a bênção do Poverello. Francisco, que nesta
ocaso estava hospedado no Palácio do bispo, quis ir até a Porcncula, a pequenina
casa de Deus e dos pobres, a igreja segundo ele mais amada pela Virgem Maria, local
onde Clara e outras pessoas abraçaram a opção pelos pobres. O Poverello desejava que
aquela igrejinha fosse a caba, o coração e o símbolo do movimento religioso e
popular minotico.
Enfim, o Poverello ditou o seu Testamento recordando que vivia em pecados, mas o
Senhor o conduziu entre os leprosos; que, em seguida, deixou o mundo da burguesia e
engajou-se na opção pelos pobres. Depois o Senhor lhe deu irmãos com quem vivia a
alegre identificação com os pobres. O Testamento recorda que nos primeiros tempos
viviam a pobreza, a alegria e oração devota, mas que as inovações trouxeram dificuldades
para a vivência da forma vitae. Finaliza desejando bênção aos irmãos que observarem, sem
glosas, a Regra Bulada e o Testamento.
13 A IRMÃ-MORTE
Nas primeiras horas do dia 3 de outubro de 1226, Francisco pediu que lhe lessem o
relato da paixão de Jesus, segundo João. No final do relato, mesmo não sendo sacerdote,
pediu um pão, invocou a bênção, o partiu e distribuiu, repetindo o gesto de Jesus na Santa
Ceia. Quis dizer algo, mas não conseguiu falar. Houve um profundo silêncio interrompido
pelo Cântico ao Irmão Sol que se estendeu pelo bosque.
Às cinco da tarde, o Poverello quis que o desnudassem e o colocassem sobre a terra.
Após resistências iniciais, os irmãos atenderam o último pedido. Então disse: ... felizes os
que perseverarem nas coisas que começaram... e, iniciou a recitação do Salmo 142, sendo
acompanhado pelos demais irmãos. Foi a última vez que ficou nu antes de renascer para a
eternidade. As irmãs cotovias esvoaçaram e cantaram sobre a cabana. Durante a noite,
houve muitas preces na região da Úmbria. Chorava-se a ausência de Francisco e
proclamava-se o Santo de Assis.
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Portanto, Francisco de Assis escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres,
escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de
vida. Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações’”
3
.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
RAMPON, Ivanir Antonio. A opção pelos pobres em São Francisco de Assis. Belo Horizonte: Instituto
Santo Inácio (FAJE). Dissertação de Mestrado sob a orientação do Prof. Dr. João Batista Libanio,
2004.
4 Do filme de Wim Wenders O Papa Francisco Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018) =
FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social, n.48.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
O PERMANECER NO AMOR (CF.
JO 15,9) PARA SER MISSÃO
A autêntica Espiritualidade Cristã é
elemento imprescindível para a
identidade missionária da Igreja
e de cada el cristão
TO STAY IN LOVE" (CF. JN 15:9)
TO BE MISSION
Authentic Christian Spirituality is an
essential element for the missionary
identity of the Church and of every
Christian believer.
Daniel Luz Rocchetti*
Resumo: O artigo se propõe apresentar a missão como fruto mais autêntico
de uma espiritualidade cristã. Partindo da reflexão missiologia atual que
apresenta o conceito de Missio Dei, no qual reconhece-se em Deus a fonte da
missão e essa um atributo da divindade. Neste transbordamento divino sobre
a criação e a humanidade, Jesus Cristo é o ápice da missão de Deus. E é a
partir d'Ele que Igreja e cada fiel torna-se um colaborador da e na Missio Dei.
Assim para o fiel em particular, é a partir do encontro com Jesus Cristo, que
se decide como seu discípulo, busca-se configurar-se a Ele para que Ele
mesmo continue a Sua missão. Percorrendo os documentos missionários do
Magistério Pontifício recente e alguns documentos missionários da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, descobre-se a importância de
permanecer no amor de Deus, isto é, em comunhão e fidelidade a Ele para
ser um missionário, seja doando a vida, rezando pelas missões ou
contribuindo com elas.
Palavras-chave: Espiritualidade Missionária. Missio Dei. Magistério
Missionário. Identidade.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 66-79, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.60
* Sacerdote Palotino (Sociedade do
Apostolado Católico); Bacharel em Filosofia
pelo Instituto Teológico do Mosteiro de São
Bento/RJ (1999); Bacharel em Teologia pela
Instituto Teológico do Mosteiro de São Bento/
RJ (nível eclesiástico 2003, convalidação
2015); Bacharel em Missiologia pela Pontifícia
Universidade Urbaniana Roma/Itália
(2008); Mestre em Missiologia pela Pontifícia
Universidade Urbaniana Roma/Itália
(2010); Doutor em Missiologia pela Pontifícia
Universidade Urbaniana Roma/Itália
(2015); Assessor da Comissão Episcopal
Pastoral para a ão Missionária e
Cooperação Intereclesial da CNBB.
Email: danielrocchetti@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1247-1171
Recebido em 26/06/21
Aprovado em 16/08/21
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
Abstract: The article proposes to present the mission as the most authentic
fruit of a Christian spirituality. Starting from the current missiology
reflection that presents the concept of Missio Dei, in which the source of the
mission is recognized in God, and the mission, an attribute of divinity. In
this divine overflow on creation and humanity, Jesus Christ is the
culmination of God's mission. And it is from him that the Church and every
believer becomes a collaborator of and in Missio Dei. Thus, for the faithful, it
is from the encounter with Jesus Christ himself, which one decides to follow
as his disciple, seeking to configure himself to him so that He himself may
continue His mission. Through the missionary documents of the recent
Pontifical Magisterium and some missionary documents of the National
Conference of Bishops of Brazil, one discovers the importance of 'remaining
in the love' of God, that is, in communion and fidelity to Him to be a
missionary, whether donating life, praying for missions or contributing to
them.
Keywords: Missionary Spirituality. Missio Dei. Missionary Magisterium.
Identity.
INTRODUÇÃO
Três personagens importantes e singulares na história da Igreja
nos inspiram ao escrevermos este texto. São já conhecidos dos meios e
ambientes missionários, porque colocados sobre os altares como
padroeiros das missões: São Francisco Xavier, Santa Teresinha do
Menino Jesus e a Venerável Pauline Jaricot.
Suas vidas nos são conhecidas, e sua ligação com a Igreja
missionária também. Sabemos que Francisco Xavier, com sua
disponibilidade em ir, serve de inspiração e exemplo a quem deseja
doar-se à missão, comprometendo toda a vida por esta causa, a ponto
de ir a fronteiras longínquas, despojando-se das seguranças que o
próprio lugar, a própria cultura e os próprios laços poderiam oferecer.
Santa Teresinha apresenta-se como modelo missionário de
outro tipo, tão importante quanto aquele acima relatado. Ela, dando-
se a Deus exclusivamente, consagrou a sua vida em uma clausura
carmelitana e direcionou esta entrega pela Igreja e a sua fecundidade
missionária, dando suporte oracional a quem, fora dos muros do
convento e no mundo de fronteiras desconhecidas, pudesse
testemunhar a fé. A oração, como a Pequena Flor do Carmelo ensina,
é já missão!
E ainda, a Venerável Pauline Jaricot, sendo alcançada pelas
notícias de missionários franceses em longínquas terras e sabendo das
realidades que enfrentavam para anunciar a Boa Nova do Evangelho,
além de mobilizar as amigas para rezarem por tais missionários,
compreenderam que poderiam ser missionárias contribuindo com as
missões. As doações faziam a missão acontecer e, ainda hoje, são
através delas que a Providência Divina se faz presente nos lugares mais
pobres e simples onde a Igreja se faz presente.
Mas porque recordamos destas três pessoas e poderiam ser
tantas mais aqui listadas? Porque se tornaram oficialmente padroeiros
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 66-79, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
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1 Adroaldo PALAORO, A Paixão pela missão nas periferias, Acesso em https://www.centroloyola.org.br/revista/outras-
palavras/espiritualidade/335-a-paixao-pela-missao-nas-periferias.
ROCCHETTI, Daniel Luz
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 66-79, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
ou inspiradores da Missão? o! Isto seria pouco. Apesar de tantos exemplos concretos
que cada um nos deixou, um algo especial e fecundo que alimenta as suas vidas. Há um
algo que une Francisco Xavier, Teresa do Menino Jesus e Pauline Jaricot que poderíamos
identificar em sua espiritualidade... uma espiritualidade missionária.
É bem verdade que hoje, na atualidade do Magistério de Papa Francisco e no
seguimento da vivência e das opções teológicas do Magistério Episcopal Latino
Americano, a realidade da periferia, do eixo-fora do centro, se tornou um lugar teológico.
É, de fato, como que um ponto de partida para a reflexão teológica e a missão. Assim
explica o autor Adroaldo Palaoro, jesuíta: Na vivência à missão, devemos ter sempre
diante dos nossos olhos a pessoa de Jesus Cristo. Com sua vida e sua palavra, Ele
descentraliza o mundo a partir da periferia, terra privilegiada, de onde podemos
contemplar a história e a própria humanidade. Cada passo na direção das periferias do
mundo também é um passo contemplativo em busca do encontro com o Senhor da
História, que nos chama de baixo e de fora’”
1
!
No entanto, o presente artigo se propõe mesmo acessar aquela mentalidade comum
e muito atual, identificada a partir da observação do autor, que postula apenas ser
suficiente uma relação com o Divino, com Jesus Cristo através dos momentos litúrgico,
sacramentais e oracionais, sem que estes transbordem necessariamente em um
compromisso ministerial, pastoral e missionária. A partir desta realidade tão comum
encontrada em nossas paróquias e comunidades e recorrendo aos exemplos dos três
personagens apenas citados, por este artigo pretende-se ajudar a refletir que uma madura
relação discipular com Jesus Cristo, partindo do centro ou partindo da periferia, sempre
precisará transbordar na missão.
1 ACOLHER UM DEUS QUE VEM, SEGUIR UM DEUS QUE VAI
Quando estamos à margem de um rio caudaloso, vemos um movimento de águas
constantes. O rio desce e segue seu trajeto rumo ao oceano. Um pedaço de madeira ali
lançado segue o mesmo destino. Se lançarmos um barco, ele seguirá a corrente... Se
mergulharmos naquelas águas, também nós sairemos em baixo: a corrente das águas
nos levará. Teremos entrado, seremos levados, sairemos de cena e o rio corrente
continuará o seu percurso.
Relata os Atos dos Apóstolos que Paulo e Timóteo chegaram à Macedônia,
instalando-se em Filipos, que era uma colônia romana. Diz-se que passaram ali alguns
pares de dias. Em um bado, ambos saíram pela porta da cidade em direção a um rio,
onde pensavam que se pudesse fazer oração (Cf. At 16,13). Em alguma outra tradução,
diz-se que buscavam um lugar onde encontrar oração. À margem de um rio! Ali,
inspirados por aquela paisagem poderiam se retirar, refletir, meditar, salmodiar e levantar
louvores a Deus. E, porque não, inspirados pelo movimento daquelas águas, pensarem-se
alcançados pela graça de Deus, abraçados e carregados por Ele? Afinal, assim com um rio,
Deus vem ao nosso encontro, acolhe-nos e nos carrega, levando-nos e enviando-nos.
69
1.1 Nosso Deus é Amor que vem!
Sabemos que a Igreja é, por sua natureza, missionária (AG 2). Este foi o desejo
expresso de Nosso Senhor Jesus Cristo quando Ele, Ressuscitado, enviou a Igreja em
missão: Ide, pois, e fazei discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, e do
Filho e do Espírito Santo (Mt 28,19; cf. Mc 16,16). Mas, sendo essencialmente
missionária, é interessante descobrir que não é a Igreja que tem uma missão, senão que é
a miso quem tem uma Igreja.
De fato, a origem da natureza missionária da Igreja encontra-se no amor fontal de
Deus, na caridade de Deus
2
. A origem da missão é Deus. Ela brota do coração da Trindade,
como Amor Fontal. Deus atua para fora de si criando, redimindo e santificando. Desde
sempre, portanto, Deus sai de si, buscando realizar o Seu projeto de vida, e vida
comunicada
3
. A Trindade é a fonte e a causa da missão:
A Igreja das origens, que vive muito da missão e se sente arrastada por uma dimica
missioria, o conhece qualquer definição missionária puramente pastoral. Utiliza,
pelo contrio, o conceito de missiones para exprimir como a Trindade se abre, a
partir de dentro, ao mundo, com o envio do Filho e do Espírito
4
.
Karl Barth, teólogo protestante, empenhou-se bastante em demostrar que a origem
da missão está ligada à essência mais profunda de Deus, que é Amor (cf. 1Jo 4,8). Karl Barth
conclui, então, que a missão não é obra humana, mas divina. É até mesmo um atributo
divino: Deus é um Deus missionário
5
.
David Bosch, uma referência importantíssima na Missiologia Atual, ensina que missão
designa primordialmente a missio Dei (missão de Deus), isto é, a autorrevelação
de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o
mundo, a natureza e a atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto
o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a
boa nova de que Deus é um Deus-para/pelas-pessoas
6
.
A missão como revelação de Deus e de sua realidade mais profunda foi demonstrada
de forma mais eminente e plena no envio do Filho para a salvação do mundo (cf. Jo 3,16).
Jesus Cristo, o Filho de Deus, Sumo Sacerdote e Apóstolo do Pai (cf. Hb 3,1) se tornou o
arquétipo e modelo de qualquer missão
7
. Ele, enviado do Pai, para revelar Deus, que é
Amor. Tudo o que podemos conhecer de Deus, aprendemo-lo graças à revelação de Cristo
e à obra do seu Espírito em nós. Ele foi mandado ao mundo pelo Pai para salvar o mundo
8
.
Panazzolo repercute que Jesus é o Único mediador, o revelador do mistério divino no
mundo, ou seja, revelador do grande plano do amor divino, a missão de Deus a Missio Dei!
E como tal, o autor debruça-se sobre a pessoa de Jesus e vai lançando luzes sobre Ele: Jesus é
o enviado do Pai, na força do Espírito Santo; Jesus fala do Pai; Jesus reza; Jesus ensina a
rezar; Jesus promete e envia o Espírito Santo; Jesus chama e envia em missão
9
.
2 CNBB, Programa Missionário Nacional, p.29.
3 Cf. João PANAZZOLO, Missão para todos. Introdução à Missiologia, p.13.
4 Giampetro DAL TOSO, A missio na Trindade, origem da missio da Igreja, p.58.
5 Cf. David BOSCH, Missão Transformadora Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, p.466-470.
6 David BOSCH, Missão Transformadora Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, p.28.
7 David BOSCH, Missão Transformadora Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, p.59.
8 Giampetro DAL TOSO, A missio na Trindade, origem da missio da Igreja, p.61.
9 Cf. João PANAZZOLO, Missão para todos. Introdução à Missiologia, p.35-50.
ROCCHETTI, Daniel Luz
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 66-79, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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De tudo isso se conclui que a grande paixão de Jesus foi o Pai e que, portanto, a nossa
grande paixão também deve ser Ele: o Pai no mais íntimo de nosso corão. A intimidade de
Jesus com o Pai é modelo de nossa relação de confiaa filial, de ternura e carinho com Ele. Se
não vos tornardes como criaas, não entrareis no Reino dos céus (Mt 18,3), isto é, se do fundo
do nosso coração não soubermos chamar a Deus de Pai não entraremos no Reino dosus.
Foi a partir dessa intimidade que Jesus nos manifestou o plano do Pai, o plano salfico
do Pai. E qual é esse plano? Que o Pai seja tudo em todos. assim todos seremos felizes
como o Pai é feliz. É isso o que constitui de fato o Reino de Deus: Deus Pai tudo em todos (cf.
1Cor 15,28). E o quanto necessitamos de um Pai... de um Pai que também é e (cf. Is 49,15)
10
!
O encontro com Jesus Cristo, então, é algo essencial para a vida cristã. É a condição
imprescindível para se descortinar ao homem, seja no coletivo e como no singular, todo
aquele plano divino: De tal modo Deus amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito,
para que todo o que nele crer o pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3,16). Deus não faz
acepção de pessoas; Ele é para todos, sem exclusão alguma (cf. At 10,34-35; Rm 2,11; Tg
2,1): todos são convidados a estarem com Ele, entrarem em Sua intimidade, permanecerem
em Seu Amor (cf. Jo 9,15).
1.2 Jesus, Revelador do Amor do Pai
Foi o Papa Bento XVI quem escreveu, de forma tão clara, o que já compreendíamos
sobre o início e toda a vida cristã. Disse ele:
Ao início do ser cristão, não uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que à vida um novo
horizonte e, desta forma, o rumo decisivo (DCE 1).
Em ambiente latino americano, os Bispos reunidos em Assembleia Episcopal em
Aparecida reafirmaram esta realidade e foram ainda mais incisivos, pois atrelaram à
experiência do encontro com Jesus à decisão de anuncia-Lo; a compasso daquela mesma
opção encontrada no Senhor, de um cuidado particularmente especial para com os pobres e
marginalizados, em tensão libertadora
11
:
Necessitamos de um novo Pentecostes! Necessitamos sair ao encontro das
pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e
compartilhar o dom do encontro com Cristo, que tem preenchido nossas vidas
de sentido, de verdade e de amor, de alegria e de esperança! Não podemos ficar
tranquilos em espera passiva em nossos templos, mas é urgente ir a todas as
direções, para proclamar que o mal e a morte não têm a última palavra, que o
amor é mais forte, que fomos libertos e salvos pela vitória pascal do Senhor na
história, que Ele nos convoca em igreja e quer multiplicar o número de seus
discípulos na construção do seu reino em nosso Continente (DAp 548)!
Partir de Cristo. Partir do encontro com Ele. Re-partir d'Ele. aqui uma
centralidade sublinhada na qual não se pode ignorar: a vida cristã gira em torno de Jesus
Cristo e acontece a partir d´Ele. A cristã é, primeiramente, acolhimento do amor de
Deus revelado em Jesus Cristo, adesão sincera à sua pessoa e uma livre decisão de caminhar
em seu seguimento
12
.
10 João PANAZZOLO, Missão para todos. Introdução à Missiologia, p.50.
11 Faz-se, aqui, referência a toda a caminhada da Igreja Latino-Americana com suas Conferências Episcopais (Rio de
Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo) e seus profetas e mártires.
12 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, Diretório para a Catequese, n.18.
ROCCHETTI, Daniel Luz
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
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Este encontro com Jesus Cristo somente é possível porque o Seu Espírito, derramado
sobre a Igreja desde em Pentecostes e hoje e continuamente, o permite e o promove. O
Papa Paulo VI vem ensinar que não seria possível haver evangelização senão sob a ação do
Espírito Santo, que desceu sobre Jesus de Nazaré, conduzindo-O em todo o Seu caminhar e
no anunciar do Seu Reino; quando ia ao encontro dos pecadores, dos pobres e de todas as
pessoas, naquelas periferias geográficas e existenciais; e também ali, na Cruz, quando se
cumpriam as Escrituras. Ali o Espírito de Cristo foi derramado sobre a Humanidade. Mais
tarde, segundo o Papa, este mesmo Espirito manifestou-se entre os discípulos e os
apóstolos, enchendo-os de coragem para partirem em todos as partes do mundo (EN 75).
Ele é a alma desta mesma Igreja. E ele que faz com que os fiéis possam entender
os ensinamentos de Jesus e o seu mistério. Ele é aquele que, hoje ainda, como nos
inícios da Igreja, age em cada um dos evangelizadores que se deixa possuir e
conduzir por ele, e põe na sua boca as palavras que ele sozinho não poderia
encontrar, ao mesmo tempo que predispõe a alma daqueles que escutam afim de
a tornar aberta e acolhedora para a Boa Nova e para o reino anunciado (EN 75).
Sendo o protagonista principal da evangelização, o Espírito Santo é aquele que impele
a anunciar o Evangelho e também é aquele que prepara o íntimo das pessoas para acolher
esta Palavra EN 75); e não como Palavra, mas como Pessoa, Jesus Cristo, Ressuscitado,
como ensinou Papa Bento XVI.
É o Espírito quem nos faz reconhecer em Jesus de Nazaré o Senhor (cf. 1Cor
12,3), que faz ouvir o chamado ao seu seguimento e nos identifica com Ele: Se
alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo (Rm 8,9). É Ele
quem, fazendo-nos filhos no Filho, testemunha a paternidade de Deus, faz-nos
conscientes da nossa filiação e nos concede a audácia de chamá-lo Abá, ó
Pai (Rm 8,15). É Ele quem infunde o amor e gera a comunhão.
A missão de Deus, a Missio Dei, qual um rio, na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4)
manifestou-se na Encarnação, Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo e na vida
da Igreja, que é seu Corpo. Ele é, na ação do Espírito Santo, a fonte que nasce e manifesta
água pura, vida em plenitude para que todos que se aproximam e matam sua sede. E esta
notícia deve se espalhar.
2 A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ É, POR ELA MESMA, ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA
O Papa João Paulo II ensina que a espiritualidade missionária se refere diretamente a
Jesus Cristo. Quer dizer, portanto, que a espiritualidade missionária é a espiritualidade
cristã: experiência cristã e ardor missionário são, portanto, relativos um ao outro e devem
ser praticamente compreendidos como sinônimos (RM 88). Por sua vez, o Papa Francisco
ensina que a vida é missão (EG 15) e por isso, o que toca à vida cristã, toca também à
consciência e espiritualidade missionárias.
A espiritualidade que deve alimentar cada fiel é a do seguimento à pessoa de Jesus
Cristo. E por espiritualidade entende-se uma vida animada pelo Espírito, a partir daquele
encontro com Jesus que é decisivo. Deste encontro com Ele descortina-se um convite de
discipulado, de configuração e de missionariedade (PMN p.36). Nota essencial da
espiritualidade missioria é a comunhão íntima com Cristo: não é posvel compreender e viver
a missão, senão na refencia a Cristo, como Aquele que foi enviado para evangelizar (RM 88).
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2.1 Encontrar-se com Cristo, ser seu Discípulo e configurar-se a Ele
foi dito que o início da vida cristã está no encontro com Jesus Cristo vivo,
ressuscitado, presente no mundo através de sua Igreja. Este encontro dá novo sentido à vida
de cada homem e de cada mulher.
Este encontro vem acompanhado de um convite de seguimento: Vem e segue-me (cf.
Mt 19,21). O Vinde e Vede (cf. Jo 1,38) que Nosso Senhor fala àquele que lhe perguntara
onde habitava, é um mesmo convite feito a cada um que foi encontrado por Ele. Vinde e
vede. Começa aí um caminho de seguimento que poderia ser chamado de discipulado ou de
iniciação à Vida Cristã, já que assim vai se buscando aprender sobre a e a viver conforme
os ditames desta mesma fé.
A evangelização é um processo eclesial, inspirado e sustentado pelo Espírito
Santo, por meio do qual o Evangelho é anunciado e se espalha pelo mundo. No
processo de evangelização, a Igreja:
Impulsionada pela caridade, impregna e transforma toda a ordem temporal,
assumindo as culturas e oferecendo a contribuição do Evangelho para que
possam ser renovadas a partir de seu interior;
Aproxima-se de todos com atitude de solidariedade, coparticipação e diálogo,
assim dando testemunho da novidade da vida cristã, para aquele que os
encontram possam ser provocados a se interrogar sobre o significado da
existência e sobre as razões de sua fraternidade e esperança.
Anuncia explicitamente o Evangelho por meio do primeiro anúncio,
chamando à conversão;
Inicia à e à vida cristã, mediante o itinerário catecumenal (catequeses,
sacramentos, testemunho de caridade, experiência fraternal), aqueles que se
convertem a Jesus Cristo, ou aqueles que retomam o caminho de seu
seguimento, incorporando alguns e reduzindo outros à comunidade cristã;
Mediante a educação permanente da fé, a celebração dos sacramentos e o
exercício da caridade, alimenta nos fiéis o dom da comunhão e suscita a missão,
enviando todos os discípulos de Cristo para anunciar o Evangelho no mundo,
com obras e palavras
13
.
O culmine deste caminho discipular é a miso, que compreendida em termos de
Missio Dei, é a colaboração da Igreja e de cada fiel ao agir missionário mesmo de Deus. O
discípulo, a compasso dos ensinamentos de Nosso Senhor e aberto à ação do Espírito
Santo vai se tornando configurado a Cristo, esvaziado de si tal como Ele, escolhendo os
encontros com os pobres e mais pobres e pecadores, e para que Ele enfim, continue Sua
missão. Esta é, segundo o Papa João Paulo II, o elemento mais característico da
Espiritualidade Missionária.
Tal espiritualidade exprime-se, antes de mais, no viver em plena docilidade
ao Espírito, e em deixar-se plasmar interiormente por Ele, para se tornar
cada vez mais semelhante a Cristo. Não se pode testemunhar Cristo sem
espelhar a Sua imagem, que é gravada em nós por obra e graça do Espírito.
A docilidade ao Espírito permitirá acolher os dons da fortaleza e do
discernimento, que são tros essenciais da espiritualidade missionária
(RM 87).
O Papa Francisco, em uma recente catequese sobre os sacramentos, ensinou que o
batismo permite que Cristo viva em nós e a nós que vivamos unidos a Ele, para colaborar na
Igreja, cada um segundo a própria condição, para a transformação do mundo. Ao ser
batizado, então, torna-se um missionário. E mais, ele ainda explicou que o Batismo
13 DIRETÓRIO PARA A CATEQUESE, n.31.
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O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
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cristifica-nos, quem recebeu o Batismo e é cristificado assemelha-se a Cristo, transforma-
se em Cristo, tornando-se deveras outro Cristo
14
.
2.2A Espiritualidade Missionária no recente Magistério Pontifício
Mesmo sendo claro que a espiritualidade cristã se refere à uma espiritualidade
missionária, no sentido de que, ao alimentar a e a relação com Cristo Jesus, torna-se Seu
discípulo e vai assumindo os Seus mesmos sentimentos (cf. Fl 2,5-8), cristificando-se,
tornando-se outro Cristo e por isso, sendo missão. Mesmo assim, algo que poderíamos
identificar como característicos de uma espiritualidade missionária.
O Decreto Ad Gentes sobre a atividade missionária da Igreja, ao reconhecer que a
caridade de Deus Pai, Princípio sem Princípio, é a fonte da missão ancora em realidades
espirituais o próprio agir missionário (AG 2). O próprio Deus Trinitário flui para o mundo,
a fim de nos abrir o caminho da salvação
15
. Sendo assim, o missionário tem a que ver com
uma espiritualidade autêntica, honesta e fecunda, no sentido de cultivo mesmo de
intimidade. Pois, o enviado entra, portanto, na vida e missão dAquele que a si mesmo se
aniquilou tomando a forma de servo (Fl 2,7). Por conseguinte, deve estar pronto a
perseverar toda a vida na vocação, a renunciar a si e a todas as suas coisas, e a fazer-se tudo
para todos (AG 24). Para tanto, a vida espiritual deverá ser terreno fértil para o cultivo das
características e qualidades do missionário e ser alimentada e promovida missionariamente
já desde o tempo da formação. Cheio de viva e esperança indefectível, o missionário seja
homem de oração (AG 25).
Algum tempo depois do evento conciliar, o Papa Paulo VI convoca um Sínodo dos
Bispos sobre o tema da Evangelização. As reflexões dos padres sinodais deram-lhe
elementos importantes para que ele escrevesse a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. E
nela, além de profundas reflexões e direcionamentos, abordou a temática do Espírito da
Evangelização, no capítulo VII do documento. E dentre os primeiros elementos desta
dimensão, o Paulo VI sublinha a precedência ativa do Espírito Santo na atividade
missionária. Nunca será possível haver evangelização sem ação do Espírito Santo (EN 75).
Desde Sua ação sobre a pessoa de Jesus Cristo em todo o correr da vida encarnada do Filho,
até à Epifania do Espírito no Cenáculo e Seu preenchimento na vida da Igreja, o Espírito
Santo agiu e age. Ele é alma desta Igreja (EN 75). E assim, Paulo VI ensina que será Ele a
fazer entender os ensinamentos de Jesus, agindo através da Igreja, conduzindo missionários
e missões, encontros e aberturas. O Sumo Pontífice vem ainda exortar que as técnicas de
evangelização são boas, obviamente; mas, ainda as mais aperfeiçoadas não poderiam
substituir a ação discreta do Espírito Santo (EN 75).
Desde este ensino explícito de que o Espírito Santo é o agente principal da
evangelização, Paulo VI lança um olhar sobre os missionários e missionários, convidando-
os à uma abertura a este Espírito para tornarem-se testemunhas autênticas (EN 76), artífices
da unidade (EN 77), servidores da verdade (EN 78), animados pelo amor (EN 79) e seguindo
os exemplos fervorosos dos santos (EN 80).
Ouve-se repetir, com frequência hoje em dia, que este nosso século tem sede de
autenticidade. A propósito dos jovens, sobretudo, afirma-se que eles têm horror
ao fictício, aquilo que é falso e que procuram, acima de tudo, a verdade e a
transparência.
14 FRANCISCO, Audiência Geral, 11 de abril de 2018. Acesso em: www.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/
2018/documents/papa-francesco_20180411_udienza-generale.html
15 Giampetro DAL TOSO, A missio na Trindade, origem da missio da Igreja, p.60.
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Estes sinais dos tempos deveriam encontrar-nos vigilantes. Tacitamente ou
com grandes brados, sempre porém, com grande vigor, eles fazem-nos a
pergunta: Acreditais verdadeiramente naquilo que anunciais? Viveis aquilo em
que acreditais? Pregais vós verdadeiramente aquilo que viveis?
Mais do que nunca, portanto, o testemunho da vida tornou-se uma condição
essencial para a eficácia profunda da pregação. Sob este ângulo, somos, até certo
ponto, responsáveis pelo avanço do Evangelho que nós proclamamos (EN 76).
Celebrando os 25 anos do Decreto Conciliar Ad Gentes e os 15 anos da Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi, o Papa João Paulo II escreveu outro importante documento
missionário: a Carta Encíclica Redemptoris Missio. Assim como Paulo VI, João Paulo II
dedicou um capítulo inteiro para abordar os temas específicos acerca da Espiritualidade
Missionária. E ele, por sua vez, confirma o protagonismo do Esrito Santo mas
atribui-Lhe uma responsabilidade e obra até eno o explorada: o missionário
deveria viver em plena docilidade ao Esrito, deixando-se plasmar interiormente por
Ele, para se tornar mais semelhante a Cristo. Não se pode testemunhar Cristo sem
espelhar a Sua imagem, que é gravada em nós por obra e gra do Esrito. A docilidade
ao Espírito permitirá acolher os dons da fortaleza e do discernimento, que são traços
essenciais da espiritualidade missionária (RM 87). Para o Papa João Paulo II, o
missionário deveria viver o mistério de Cristo enviado de tal forma que encarnasse as
caractesticas apostólicas Ele (RM 88), amando a Igreja e os homens como Ele amou
(RM 89) e buscando uma santidade de vida que fosse eloquente por ela mesma, pois
mesmo que não houvesse possibilidade de pregar o Evangelho e mesmo fadado ao
silêncio, a vida do missionário evangelizaria por si (RM 90).
O Papa Bento XVI não dedicou um documento especificadamente à queso
missionária, mas deu importantes contribuões para esta reflexão atras de outros
documentos, das Mensagens para o Dia Mundial das Missões e através das suas
Catequeses. Pom, de forma o especial e próxima a V Conferência Geral do
Episcopado da América Latina e Caribe, em Aparecida Brasil, no ano de 2017 se
tornou ocaso para importantes reflexões. Por causa do teor o missionário desta V
Conferência, o Papa Bento XVI apontou diversos pontos, ressaltando sempre a
primazia do encontro com Jesus como icio de vida cris o que ele já havia apontado
em sua primeira Enclica Deus Charitas Est, e da importância de compreender a
identidade missionária da Igreja, que a missão é paradigma de toda atividade
eclesial
16
. Na homilia de abertura para a V Confencia, ele ensinou que a Igreja é
discípula e missionária do Amor revelado por Cristo, missiorio do Pai e que a Igreja
o faz proselitismo, mas cresce por atração, pois está associada a Cristo que atrai para
si com a foa de Seu amor
17
. Indispensável para uma vida cristã missionária fecunda, o
Pontífice defende que é necessário educar o povo para a leitura e a meditação da
Palavra de Deus: que ela se transforme no seu alimento para que, pela sua própria
experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Caso
contrário, como poderão anunciar uma mensagem, cujo conteúdo e esrito o
conhecem profundamente? Temos que fundamentar o nosso compromisso missionário
e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus
18
. Para ele, o cultivo de uma
16 Cf. BENTO XVI, Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2012. Acesso em: www.vatican.va/content/benedict-xvi/
pt/messages/missions/documents/hf_ben-xvi_mes_20120106_world-mission-day-2012.html
17 Cf. BENTO XVI, Homilia na Santa Missa de inauguração da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e
do Caribe, 2007. Acesso em: www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2007/documents/hf_ben-
xvi_hom_20070513_conference-brazil.html
18 BENTO XVI, Discurso na Sessão Inaugural dos trabalhos da V Conferência, 2007. Acesso em: https://www.vatican.va/
content/benedict-xvi/pt/speeches/2007/may/documents/hf_ben-xvi_spe_20070513_conference-aparecida.html
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espiritualidade que evidencie a centralidade de Jesus Cristo, do início ao fim da vida de
um fiel, atras da Liturgia e dos Sacramentos, do contato com a Palavra de Deus, da
vivência comunitária e a serviço dos necessitados é essencial para que a missão
aconteça.
O Papa Francisco, por sua vez, iniciou o seu pontificado colocando balizas e
chaves missionárias bem claras e evidentes. A Exortão Apostólica Evangelii Gaudium
abordou acerca do anúncio do Evangelho no mundo atual e evidenciou a urgência da
Igreja compreender-se em saída, em movimento e em missão. A Alegria do Evangelho
enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se
deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do
isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta Exortão,
dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora
marcada por esta alegria e indicar caminhos para o percurso da Igreja nos pximos
anos (EG 1). Também neste documento há um catulo, o Catulo V, no qual ele
aborda elementos de uma espiritualidade missionária. Segundo ele, os evangelizadores
devem se abrir sem medo à ação do Esrito Santo, pois foi assim que Ele, como
protagonista da missão, sempre atuou na vida da Igreja desde os icios.
o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com
ousadia (parresia), em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo
contracorrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados na oração, sem a qual toda a
ação corre o risco de ficar vã e o anúncio, no fim de contas, carece de alma. Jesus
quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não com palavras mas
sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus (EG 259).
Confirmando a atuão protagonista e prioriria do Esrito Santo, o Papa
Francisco arguiu, tal qual Bento XVI, que o encontro pessoal com o amor de Jesus
que nos salva é a primeira grande motivão missionária (EG 264) e é o que preenche
de alegria e brilho a vida do missionário (EG 2-3). Para isso, o exercício de uma vida
de oração sincera, colocando-se diante de Nosso Senhor, em contato com os
Sacramentos e a Sua Palavra, encontrada nas Sagradas Escrituras, nos eventos da
História, e entre os pobres. Tamm, o Santo Padre indica que outra fonte desta
espiritualidade missionária é o reconhecer-se povo, estando em meio a ele, fazendo-
se um com ele, tendo prazer espiritual em ser povo (EG 271). É, segundo ele, uma
aproximão às chagas do Senhor, tocando-as porque ainda estão abertas, quando
tocamos a miséria humana (EG 270). Para tal, para tocar as misérias do humano e o
se prejudicar por elas, mas servir e transformá-las, curando-as, o missiorio
professa uma na sutil naquela ão silenciosa e misteriosa do Ressuscitado e do Seu
Espírito. Segundo ele, a Ressurreão não é algo do passado, mas tem uma força de
vida que penetrou no mundo (...). É uma força sem igual (EG 276). Enfim, completa
a sua exposição sobre temas referentes à uma Espiritualidade Missionária referindo-
se a o Paulo como grande intercessor, além de missiorio e pregador. Segundo ele
e o exemplo do Apóstolo, a interceso é uma das formas de oração que não distancia
da realidade, mas ao contrário, faz o missionário emergir ainda mais naquela situão
para fazê-la crescer aos olhos e no corão de Deus, pois a intercessão é como
fermento no seio da Trindade (EG 283).
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2.3 A Espiritualidade Missionária nas atuais Diretrizes Gerais para Ação
Missioria da Igreja do Brasil 2019-2023 e no Programa Missiorio
Nacional 2019-2023
As atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-
2023 são de grande teor missionário. O seu objetivo geral é marcadamente
missionário, pois aponta à evangelizão neste país cada vez mais urbano, pelo
anúncio da palavra de Deus, formando discípulos e discípulas de Nosso Senhor,
formando comunidades eclesiais missionárias, coerentes com a oão evangélica
pelos mais pobres, no cuidado da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus
(DGAE 2019-2023 p.13), que não é comida e bebida, mas justiça, paz e alegria no
Espírito Santo (cf. Rm 14,17).
As Comunidades Eclesiais Missionárias, objetivo concreto das DGAE 2019-
2023 e contrastantes nesta atual realidade individualista, foram propostas a partir da
imagem da Casa, para promover um ambiente de lar, propício como é a
relacionamentos saudáveis e vitais. Esta Igreja nas Casas, tendo a casa como
ilustração é a imagem de maior proximidade às pessoas, o lugar onde vivem, mesmo
àquelas que têm a rua como casa. Ela indica a proximidade relacional entre as
pessoas que ali convivem. Indica igualmente a necessidade da Igreja se fazer cada
vez mais presente nos locais onde as pessoas estão, seja onde for (DGAE 2019-
2023, 6). Assim, a imagem de uma casa com suas colunas foi então apresentada para
ilustrar este objetivo eclesial: o pilar da Palavra, contemplando a iniciação à vida
eclesial e a animação bíblica da vida e da pastoral; o pilar do Pão, apresentando a
liturgia e a espiritualidade como espaço de fortalecimento; o pilar da Caridade, a
servo à vida plena e o pilar da Ação Missioria, entendendo que a Igreja precisa
se autocompreender em estado permanente de missão.
No tocante ao pilar do Pão, onde frisam-se a liturgia e a espiritualidade como
espaços de restauração e fortalecimento, identifica-se a necessidade de o fiel cristão
missionário acessar constantemente esta força provinda do encontro e da unidade
com Jesus Cristo e o Espírito Santo, através da vida eucarística, sacramental e
comuniria (DGAE 2019-2023, 93). A Palavra de Deus com sua centralidade vai
normatizando a vida da comunidade, pois apresenta Jesus Cristo como o orante por
excelente e a Sua oração como paradigma de toda orão (DGAE 2019-2023, 95).
Esta oração é iluminadora para a vida da Igreja, pois da contemplação parte-se à
ação, como Jesus ensinou; no entanto
na pastoral, é preciso superar a ideia de que o agir é uma forma de oração.
Quando confundimos agir com rezar, chegamos a abreviar ou dispensar os tempos
de oração e de contemplação. Quando reduzimos tudo ao fazer, corremos o risco
de nos contentar apenas com reuniões, planejamentos e eventos. Estes são
importantes no cotidiano pastoral, mas não substituem a vida de oração. Ao
contrário, devem decorrer dela e a ela conduzir (DGAE 2019-2023, 97).
Esta espiritualidade de seguimento a Jesus, que vive da intimidade com Ele e a partir d'Ele,
inspira missão, cuidado e compaixão é a que se pode identificar no rol dos santos e beatos desta
Igreja do Brasil: São Jo de Anchieta, no encontro com os ingenas; Santa Dulce dos Pobres, a
serviço dos mais necessitados; Santa Paulina, cuidadora dos escravos libertos e deixados à própria
sorte; Beata Nhá Chica, intercessora e catequista de tantas pessoas (DGAE 2019-2023, 98)...
Todos partem de uma profunda experiência de fé e de comunidade cristã e transbordam em uma
saída efetiva do seu lugar ao lugar onde o outro se encontra (DGAE 2019-2023, 99).
ROCCHETTI, Daniel Luz
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 66-79, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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O Programa Missionário Nacional 2019-2023 (PMN), documento que nasceu ao lado
das DGAE 2019-2023 e a ela está intimamente ligado, contempla algumas de suas páginas
ao tema da Espiritualidade Missionária. Mais especificadamente, o PMN une a reflexão
missiológica à espiritualidade para iluminar, lançando luzes sobre as realidades e os desafios
que se apresentam à Igreja e para propor prioridades, atividades e ões missionárias.
Naquelas páginas, o PMN confirma que espiritualidade é vida animada pelo Espírito e que
desde o encontro com Jesus, decisivo, dão-se passos de discipulado, configuração a Cristo e
envio ao mundo. E ensina, reassumindo e sintetizando tudo o que foi dito até agora pelo
Magistério Missionário Pontifício e pela Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil, isto é,
que a espiritualidade missionária alimenta-se da escuta da Palavra de Deus, da docilidade ao
impulso do Espírito Santo, da vida sacramental, da vivência eucarística em comunidade, da
caridade apostólica, do testemunho profético inspirado em quem ofereceu sua vida, da
santidade de vida, da abertura à universalidade da missão e da fidelidade a Deus, a exemplo
de Maria (PMN p.36-41).
CONCLUSÃO
O Papa Francisco, em uma de suas mensagens para o Dia Mundial das Missões, foi
cirúrgico e direto: A missão é uma paixão por Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, uma paixão
pelas pessoas. E completou:
Quando nos detemos em oração diante de Jesus crucificado, reconhecemos a
grandeza do seu amor, que nos dignifica e sustenta e, simultaneamente,
apercebemo-nos de que aquele amor, saído do seu corão trespassado,
estende-se a todo o povo de Deus e à humanidade inteira; e, precisamente
deste modo, sentimos também que Ele quer servir-Se de nós para chegar
cada vez mais perto do seu povo amado e de todos aqueles que O procuram
de coração sincero. Na ordem de Jesus Ide , estão contidos os cerios e
os desafios sempre novos da miso evangelizadora da Igreja. Nesta, todos
o chamados a anunciar o Evangelho pelo testemunho da vida
19
.
Há, nitidamente uma importância singular da vida espiritual para que a Missão de
Deus, a Missio Dei, que é Amor que transborda sobre a humanidade, se realize alcançando as
pessoas e a humanidade inteira através de quem se dispõe a acolher este transbordamento.
A espiritualidade é como seiva de vida que norteia a existência do cristão. E este,
apaixonando-se por quem lhe amou por primeiro (cf. Rm 8,5), acaba por testemunhar a
cristã, com obras e com palavras, partilhando a vida para gerar mais vida.
Esta dinâmica da missão que nasce do Amor Infinito e Incondicional de Deus, que
envia, irradia, expande, dilata, transborda e se difunde, alcança as pessoas e as convida à
Sua intimidade, ao Seu seguimento e à Sua colaboração. Todos são envolvidos neste
movimento de Amor que é recebido, vivido e compartilhado. E cada um o faz a seu
modo, seguindo sua vocação e estado de vida.
Quando este artigo começava a ser escrito, três personagens foram recordados:
o Francisco Xavier, Santa Teresinha do Menino Jesus e a Venerável Pauline Jaricot.
Sem dúvida alguma, todos os três fizeram a mesma e única experiência, própria de uma
honesta espiritualidade cristã e missionária: desde um encontro com Jesus, a decisão de
empreender um caminho de discipulado, cuja abertura ao Esrito configurasse o fiel a
Nosso Senhor e por fim, ocorresse o envio. Mas cada um dos apenas citados, foi
missionando a seu modo, segundo o próprio estado de vida que abrou. Todos, no
19 FRANCISCO, Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2015. Acesso em: www.vatican.va/content/francesco/pt/
messages/missions/documents/papa-francesco_20150524_giornata-missionaria2015.html
ROCCHETTI, Daniel Luz
O Permanecer no Amor (cf. Jo 15,9) para ser missão
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 66-79, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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entanto, missiorios... pom cada um a seu modo!
Assim, podemos ver São Francisco Xavier doando a sua vida em fronteiras
geogficas e existenciais no terririo asiático; e encontramos Santa Teresinha
enclausurando-se num Carmelo e oferecendo suas orações pela Igreja Missionária; por
fim, vemos outra jovem francesa, Pauline Jaricot, reunindo suas amigas para rezarem,
oferecerem sacrifícios e recolherem doões para os missiorios em terras distantes.
Assim, a vida doada, as orações feitas e as doações entregues o ts formas diferentes
de colaboração missionária que expressam, por sua vez, a única e mesma identidade
missionária.
Conclui-se, portanto, que é permanecendo no Amor do Senhor (cf. Jo 15,9) que
se produzem os diversos e numerosos frutos missiorios. E foi o que disse Jesus,
afirmando que quem crê em mim. Conforme diz a Escritura: do seu interior fluirão
rios de água viva (Jo 7,38). E Ele ainda completa: quem crê em mim, fará as obras que
eu fo, e fará ainda maiores do que estas (Jo 14,12).
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Passo Fundo, v.38, n.131, p. 66-79, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
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A SANTIDADE LAICAL À LUZ DA
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
GAUDETE ET EXSULTATE
uma santidade ordinária, simples e para todos
THE LAY SANCTITY IN LIGHT OF
THE GAUDETE ET EXSULTATE
APOSTOLIC EXHORTATION
an ordinary and simple sanctity for all
Vitoria Bertaso Andreatta De Carli*
Resumo: O presente artigo tem como ponto de partida a pergunta: O que
signiica para o iel cristão leigo ser santo? O texto pretende identificar alguns dos
principais tros da santidade a que estão chamados os fiéis cristãos leigos à luz
da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate sobre o chamado à santidade no
mundo atual, assim como, trazer luz a mensagem que o Pontífice quer laar
hoje para a Igreja no que tange ao verdadeiro significado da vida cristã. A
Exortação, na esteira do Vaticano II, procede à revalorização da vocação cristã
com uma adequada compreensão do carácter teogico da secularidade,
tornando a mensagem cristã significativa e com real incidência na vida dos fiéis
cristãos e em especial, dos leigos que encontram na sua relação com o mundo
(secularidade) a característica própria e específica no Povo de Deus. O todo
proposto neste trabalho será o bibliográfico-analítico.
Palavras-chave: Exortação apostólica Gaudete et Exsultate. Laicato.
Santidade. Secularidade. Vocação.
Abstract: This article has as a starting point the question: What does it mean for
the faithful lay Christian to be holy? The text intends to identify some of the main
features of sanctity to which the faithful lay Christian are called in light of the
Apostolic Exhortation Gaudete et Exsultate on Paul Francis call to holiness in
todays world, as well as to shed light on the message that the Pontiff wants to
send out today for the Church with regard to the true meaning of the Christian
life. The Exhortation, in the wake of Vatican II, proceeds with the revaluation of
the Christian vocation with an adequate understanding of the theological
character of secularity, utilizing words that have a practical impact and making
the Christian message meaningful and with a real incidence on the lives of the
Christian faithful and in particular of the lay people who find in their relationship
with the world (secularity) the proper and specific characteristic in the People of
God. The method proposed in this work will be bibliographic-analytical.
Keywords: Apostolic Exhortation Gaudete et Exsultate. Laity. Sanctity.
Secularity. Vocation.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 80-89, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.66
* Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
PUCRS. Mestre em Teologia pela PUCRS.
Doutora em Teologia pela PUCRS.
Email: andreattadecarli@terra.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4082-2001
Recebido em 26/05/21
Aprovado em 17/07/21
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INTRODUÇÃO
A exortação apostólica Gaudete et Exsultate do Papa Francisco de 19 de março de 2018
sobre o chamado à santidade no mundo contemporâneo, tem como objetivo promover a
santidade comum e ordinária de todos os crentes em Cristo, reafirmando ao mesmo tempo
a atualidade do chamamento à santidade no mundo de hoje.
Mundo com certeza muito diferente em relação a 1964, ano da promulgação da
Constituição Dogmática Lumen Gentium cujo quinto capítulo é consagrado à chamada
universal à santidade na Igreja, um dos principais temas do Concílio Vaticano II. Mundo,
também, que não considera a santidade como um de seus pilares, pouco se ouve falar sobre
a mesma. Possivelmente por essa razão que o Santo Padre quis refletir sobre o tema.
O assunto reveste-se de relevância também para a comunidade eclesial, tendo em
vista que a vocação universal à santidade não foi uma temática que a teologia pós-conciliar
aprofundou como se esperava. Será apresentada a estrutura da Gaudete et Exsultate, a figura
do fiél cristão leigo e logo algumas respostas que o documento traz ao homem e suas
profundas aspirações como caminho da santidade laical.
1 UMA APROXIMAÇÃO A GAUDETE ET EXULTATE: ALEGRAI-VOS E EXULTAI (MT 5,12)
A linguagem do documento é simples e compreensível, quase familiar, íntima, sem
que isso signifique superficialidade com relação aos conteúdos e em constante referência à
espiritualidade inaciana. Dirige-se ao leitor com à segunda pessoa do singular (tu), o que
ajuda a criar um clima de intimidade e de diálogo, quer deixar consequências no
interlocutor. Para o teólogo português Miguel de Salis Amaral É como se um pai, numa
conversa de fim de refeição, ou num momento de intimidade familiar junto à lareira, nos
estivesse a contar o sentido da vida
1
.
O documento é a terceira Exortação Apostólica
2
escrita por Francisco. Como diz no
subtítulo tem como tema O chamado à santidade no mundo atual. Logo no início
interpela o leitor ao afirmar que Deus quer-nos santos e espera que não nos resignemos
com uma vida medíocre, superficial e indecisa... (GE 1). Com essas palavras demonstra que a
santidade o é uma oão, mas um convite de Deus que irrompe na vida de cada cristão (GE 2).
A Exortação tem como objetivo promover a santidade comum e ordinária de todos. É
fruto maduro de uma reflexão de Francisco que dirige-se a todos os cristãos ao se referir à
grande viagem da vida cristã, com suas lutas, suas provas, seus momentos fáceis e difíceis
3
.
Para o papa Francisco a santidade não se identifica somente com as mulheres e homens
beatificados e canonizados pois O Espírito Santo derrama a santidade por toda a parte, no
santo povo fiel de Deus(GE 6). Prossegue lembrando que estamos rodeados de testemunhos
que nos encorajam a não parar no caminho, nos estimulam a seguir caminhando em direção à
meta(GE 3). Logo, os santos nunca são indivíduos isolados da Igreja, mas pertencem
inteiramente ao Corpo Místico de Cristo. Essa é a dimensão comunitária da santidade.
O documento se divide em cinco capítulos. É um texto para refletir, para ajudar a
examinar a própria vida à luz de Deus. A Exortação define de forma esplêndida a
espiritualidade da vida cotidiana. No primeiro capítulo (O chamado à santidade) descreve os
inúmeros aspectos da santidade e as diferentes maneiras de alcançá-la por parte de todos os
homens batizados, porque o Senhor chama todos à santidade (GE 10).
1 Miguel de Salis AMARAL, Uma conversa conidencial sobre o desejo de ser santos, p.3.
2 As duas primeiras foram a Evangelium Gaudium (24/11/2013) e Amoris Laetittia (19/03/2016).
3 Miguel de Salis AMARAL, Uma conversa conidencial sobre o desejo de ser santos, p.3.
DE CARLI, Vitoria Bertaso Andreatta
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: uma santidade ordiria, simples e para todos
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 80-89, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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No segundo (Dois inimigos sutis da santidade) fala sobre duas falsas formas de santidade
que poderiam desviar o cristão de seu caminho, a saber: o gnosticismo e o pelagianismo.
(GE 35). No terceiro capítulo, à luz do mestre, faz um longo comentário sobre as Bem-
aventuranças como a passagem em que Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que
significa ser santo (GE 63). No quarto (Algumas características da santidade no mundo atual)
expõe algumas das características indispensáveis para compreender o estilo de vida ao qual o
Senhor chama, alguns aspectos que manifestam o amor a Deus e ao próximo como a
suportação, a paciência e a mansidão (GE 112-121); a alegria e o senso de humor (GE 122-
128); a ousadia e o ardor ( GE 129-139); a vida em comunidade (GE 140-146) e a
importância da oração constante (GE 147-157).
No último capítulo (Luta, vigilância e discernimento) lembra que a vida cristã é uma luta
permanente (GE 158) e que exige vigilância e o dom divino do discernimento. Finaliza com
um ponto consagrado a Virgem Maria porque ela viveu como ninguém as bem-aventuranças
de Jesus (GE 176) e exortando que toda a Igreja promova o desejo de santidade.
A Exortação é dirigida a todos, todos são chamados à santidade que está presente
desde o Batismo e que vai acontecendo não exclusivamente com fórmulas, não com
ideias e esquemas, mas com uma familiaridade e intimidade com Deus que nos abre aos
outros. É uma realidade na qual se progride e se cresce, não é apenas uma realidade a que se
chega
4
. Apesar do texto ser dirigido a todo Povo de Deus parece ter em primeiro plano os
cristãos que se ocupam preferencialmente das coisas do mundo, ou seja, do secular (o
mundo criado por Deus como dom). Mas quem são os fiéis cristãos leigos?
2 FIÉIS CRISOS LEIGOS: VÓIS SOIS O SAL DA TERRA. [...] VÓS SOIS A LUZ DO MUNDO
(MT 5,13-14)
Os fiéis leigos são todos os cristãos, exceto os membros de ordem sacra e do estado
religioso.
5
Os leigos pelo Batismo foram incorporados a Cristo, constituídos no Povo de
Deus e a seu modo participantes do múnus (missão) sacerdotal, profético e régio de Cristo,
tornando-se, assim, também co- responsáveis pela missão de todo o povo cristão na Igreja e
no mundo (cf. LG 31). A missão dos leigos é originária do próprio Jesus Cristo.
Toda a Igreja tem responsabilidade com o secular (mundo, espaço-tempo), mas é o fiel
leigo quem deve se ocupar preferencialmente do mesmo. A índole secular é o que caracteriza-o
no Povo de Deus (cf. LG 31). Como ensina Álvaro del Portillo, a consideração da índole secular,
como nota específica do laicato, pressupõe considerar o mundo o como o âmbito em
que vive, mas como realidade relacionada a uma ordem que tem Cristo no seu centro, isto é,
a relação com o mundo não poderia entrar na definição do fiel leigo do cristão corrente,
como membro do Povo de Deus se o mundo não tivesse relação com a missão da Igreja
6
.
A compreensão da realidade de que toda a Igreja tem uma dimensão secular, isto é
uma responsabilidade sobre o mundo, implica dizer que seja realizada de modos
distintos por sacerdotes, religiosos e leigos
7
. Os leigos m uma missão na Igreja e no
4 Para José Luis Illanes a santidade constitui uma plenitude, segundo o uso linguístico e eclesial. Não deve ser
considerada apenas como uma realidade a que se chega, mas que, partindo do renascer do Batismo, é vista como uma
realidade na qual se progride e se cresce: o que denomina como dinamismo da santidade (José Luis ILLANES, Tratado
de Teologia Espiritual, p.136).
5 Conforme a descrição do fiel criso leigo contida na Constituão Lumen Gentium: Pelo nome leigos aqui são compreendidos
todos os cristãos, exceto os membros da ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. [...] (LG 31).
6 Álvaro del PORTILLO, Fieles y laicos en la Iglesia, p.199-200.
7 O Concílio Vaticano II não chegou a discernir os modos distintos de como se configura a relação do cristão com o
mundo, segundo a diversidade de vocações, ministérios e carismas na Igreja. Segundo Ramiro Pellitero, a doutrina do
Concílio Vaticano II é incompleta nesse sentido (cf. Ramiro PELLITERO, La identidad de los cristianos laicos y su índole
secular a la luz del Concilio Vaticano II, p.495).
DE CARLI, Vitoria Bertaso Andreatta
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: uma santidade ordiria, simples e para todos
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mundo
8
que não pode ser entendida em oposição. Realizando sua missão no mundo,
realizam sua missão na Igreja e o porque o mundo e a Igreja se identifiquem. É que a
Igreja vive no mundo e é formada por homens que são do mundo, ainda que não sejam
mundanizados. É precisamente no lugar que ocupam no mundo que devem exercitar a
participação que lhes é própria nos tria munera Christi (múnus sacerdotal, profético e
régio).
A vocação laical redescoberta com o Concílio Vaticano II, como possibilidade de
seguir de perto a Cristo em meio às tarefas humanas no mundo, concebe a missão da Igreja
em dois âmbitos: anunciar a mensagem de Cristo e de sua graça aos homens e impregnar
e aperfeiçoar toda a ordem temporal com o Espírito evangélico (AA 5). O trabalho santo e
santificador dos leigos, para restaurar a ordem temporal, tem caráter teologal e eclesial e,
por essa razão, constitui uma verdadeira vocação.
9
O fiel leigo deve procurar viver um
equilíbrio entre as tarefas seculares e as tarefas eclesiais.
Entretanto, transcorridos mais de 50 anos do CVII, a vivência da condão laical com
sentido vocacional, que significa viver a exisncia tal como ela é e como realização da vocação à
santidade, é ainda pouco frequente. É preciso superar a noção restrita de vocação. Nesse ponto se
encontra a importância da Gaudete et Exsulte do Papa Francisco que enfrenta a questão de que
todos eso chamados à santidade no mundo atual dando dois passos: a) superando o conceito
restrito de vocação e b) sublinhando o sentido vocacional de toda a exisncia cristã.
3 SANTIDADE LAICAL SEGUNDO A GAUDETE ET EXSULTATE: BUSCAR E ENCONTRAR DEUS EM
TODAS AS COISAS
Partindo da máxima sapienti est distinguire, oportuno investigar a relação e a distinção
entre as palavras santidade, espiritualidade, vocação e missão para melhor compreendê-las
no contexto dos ensinamento da Gaudete et Exsultate. Por serem realidades intimamente
relacionadas, se interpenetram sendo, por vezes, compreendidas como termos unívocos
(sinônimos), o que causa certa confusão
10
.
A palavra santidade, de modo geral, na Teologia, é considerada como a plenitude da vida
cristã (o ideal cristão), isto é, a santidade cristã é o fim a que se dirige, progressivamente,
toda a vida espiritual rumo à plenitude do amor a Deus e ao próximo
11
. O motor para a
santidade é a graça do Batismo. Por isso, o cristão não deve fazer nada além de frutificar o
que o Espírito Santo plantou em sua vida e a Igreja fornece os meios essenciais para a
mesma, ou seja, a Palavra, os Sacramentos, os santuários, a vida nas comunidades, o
testemunho dos santos e uma incontável beleza que deriva do amor do Senhor
12
.
8 O mundo e a vida espiritual não o realidades paralelas, contemporâneas e indiferentes: em outras palavras, a
espiritualidade cristã não é uma espiritualidade sem mundo, mas uma espiritualidade encarnada (José Luis ILLANES,
Tratado de Teologia Espiritual, p.297).
9 Vicente BOSCH, Santiicar el mundo desde dentro: Curso de Espiritualidad Laical, p.407.
10 Nos primeiros séculos do cristianismo, diferentemente da compreensão contemporânea, o termo espiritualidade era
equivalente às palavras martírio e santidade ou cristianismo vivido em plenitude, posto que o nível de santidade era
elevado. A quase total identificação se dava tanto de forma prática como teórica, pois ainda que se admitia a santidade à
margem do martírio, todo cristão era um mártir em potencial em razão de que estar disposto à morte cruel era
considerado o mesmo que viver santamente a vida cristã (cf. Javier SESÉ, Historia de laespiritualidad, p.26-29).
11 No mesmo sentido, conforme Ancilli: La santidad es la plenitud, la perfección del ser y de darse. Un ser que es vida, que es
movimiento, alcanza la perfección cuando llega a su término, a su in; tratándose de la vida cristiana, de la vida espiritual, este in es
Dios. Por tanto, la perfección de la vida espiritual tiene que consistir en la unión con Dioscontemporáneo. Pero es precisamente el
amor el que nos une con Dios, in último del hombre: Dios es amor: y quien permanece en el amor, permanece en Dios, y Dios en
él (1Jo 4,16) (E. ANCILLI, Santidad cristiana. In: ______. Diccionario de espiritualidad, p.351).
12 Vitoria B. Andreatta DE CARLI, A Espiritualidade laical e sua índole secular à luz do Concílio Vaticano II: a santidade no
cotidiano, p.91.
DE CARLI, Vitoria Bertaso Andreatta
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: uma santidade ordiria, simples e para todos
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p. 80-89, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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De sua parte a espiritualidade cris é considerada como a vivência espiritual concreta
do ser humano que tem como meta o ideal da vida cristã (santidade)
13
. A espiritualidade tem
necessidade de ser traduzida de forma concreta na situação que cada pessoa humana é
chamada a viver. É vida de comunhão tanto na dimensão vertical (vida em Cristo no
Espírito Santo) quanto na dimensão horizontal que diz respeito à existência humana.
Todo cristão está chamado à santidade como a meta de sua vida (Vocação Universal à
Santidade na Igreja, cap. V da Lumen Gentium). Portanto, a santidade é uma vocação que
comporta um chamado por parte de Deus e, ao mesmo tempo, um envio. Todo cristão é
chamado a viver a plenitude do amor a Deus e ao próximo que deve ser buscada em toda
condição de vida ordinária
14
. O fiel cristão leigo desaprendeu a acreditar na sua vocação à
santidade, por isso, precisa tomar consciência do convite de Deus que irrompe em sua vida,
que o une a Ele e o estimula a ser como Deus
15
.
No âmbito da vocação se enconta a missão que deve cumprir e que se dá na Igreja e no
mundo: tarefas complementárias e necessárias.
16
Parafraseando o papa Francisco cada
santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num momento
determinado da história, um aspecto do Evangelho (GE 19). E mais adiante acrescenta não
é que a vida tenha uma missão, mas a vida é uma missão (GE 27).
Prosseguindo rumo ao objetivo do presente estudo, que é o de mostrar alguns dos
aspectos da santidade laical apresentados por Francisco na Exortação Gaudete et Exsultate,
buscar-se-á compreender qual a mensagem teológica pastoral que o papa quer transmitir
para explicar e vivificar a vida espiritual do cristão do nosso tempo.
Considerando a realidade do mistério de Cristo, o primeiro aspecto a ser salientado
na Gaudete et Exsultate diz respeito à santidade como experiência de Deus pois Deus quer-nos
santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa (GE
1). Essa experiência que é o mistério da comunhão com Deus pela fé, esperança e caridade
vai se forjando através da amizade com Deus, que é uma arte de aprender a amar e ser
amado por Deus
17
.
Alinhado com a doutrina que, apresenta a união com Deus como uma das
coordenadas centrais da santidade e da espiritualidade cristã, o Papa sublinha que o que quer
recordar com esta exortação é a chamada à santidade que o Senhor faz a cada um de
nós (GE 10), ou seja, uma santidade para todos. É um chamado pessoal que nasce do
encontro pessoal com o Senhor para o qual é necessária retirar-se em solidão, olhar para
dentro de si e não se admirar com um mestre tão bondoso
18
como dizia Santa Teresa.
Nesse sentido, prossegue Francisco, que a santidade é para todos e é dada pela estatura que
Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a
nossa vida sobre a sua. Assim, cada santo é uma mensagem que o Espírito Santo extrai da
riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo (GE 21).
13 Para A. G. Matanic muitos são os sinônimos utilizados pelos autores para indicar espiritualidade. Nos documentos
pontifícios, com frequência, são utilizados os seguintes sinônimos: caminho, método, forma, gênero de vida, doutrina,
ascética, ensinamento espiritual, fisionomia ou família religiosa, espírito, escola espiritual (MATANIC, Atanasio.
Espiritualid. In: Ermanno ANCILLI, Diccionario de Espiritualidad, p.13).
14 Vitoria B. Andreatta DE CARLI, A Espiritualidade laical e sua índole secular à luz do Concílio Vaticano II: a santidade no
cotidiano, p.172.
15 Miguel de Salis AMARAL, Uma conversa conidencial sobre o desejo de ser santos, p.2.
16 Para Álvaro del Portillo, prescindir de uma dessas dimensões é esquecer da condição de fiel do leigo, seria como
imaginar um ramo verde e florido, que não pertença a nenhuma árvore e, por outro lado, esquecer daquilo que é
próprio e peculiar do leigo, ou mesmo, não compreender suficientemente as características dessas tarefas apostólico-
seculares e seu valor eclesial; seria como reduzir a frondosa árvore da Igreja à monstruosa condição de puro tronco(cf.
Álvaro del PORTILLO, Fieles y laicos en la Iglesia, p.171-172).
17 Miguel de Salis AMARAL, Uma conversa conidencial sobre o desejo de ser santos, p.3.
18 Caminho de Perfeição 28,2.
DE CARLI, Vitoria Bertaso Andreatta
A santidade laical à luz da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: uma santidade ordiria, simples e para todos
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O Papa Francisco demonstra que a santidade conduzida pelo modo de viver cristão
(espiritualidade) o parte do ser humano após avaliar custos e benefícios, mas irrompe de
um convite de Deus na vida de cada cristão, que os une com Deus e os estimula a amar
como Deus ama. Se trata de descobrir a ardente presença de um Pai que ama pessoalmente,
reconhecendo a paternidade de Deus que reside no âmago do cristianismo. (GE 20-21).
E desta confiança no amor paternal e pessoal de Deus, a alma do ser humano é
convidada a abrir-se à alegria que o mundo não pode dar, mas que também nunca poderá
tirar (GE 125). E é nesse sentido que Francisco fala muitas vezes da alegria, podendo-se
dizer que a espiritualidade cristã é alegria no Espírito Santo (Rm 14,17) (GE 122). Assim,
uma das chaves de leitura para compreender a visão de santidade e, logo, da espiritualidade
cristã, que nos Francisco aparece no título da exortação Alegrai-vos e exultai, citação
literal de Mt 5,12
19
.
Outra característica que é apresentada no texto é a de uma santidade concreta que
percebe o mundo como lugar a buscar um estado de permanente comunhão com Deus
como ensina o cardeal Suenens: Quando aceito a vontade de Deus sobre mim, sobre a
minha vida e as minúncias da minha existência, tal como decorre, com limites e entraves,
comungo com Deus: já não em comunhão eucarística, mas em comunhão vital, ao longo do
dia, ao longo da vida.
20
O crescimento da vida espiritual, considerada como a vida de encontro e trato com
Deus, se na vida concreta de cada cristão. São as atitudes de cada dia que fazem o crente
crescer sob o impulso da graça divina e, por isso, diz Francisco: gosto de ver a santidade no
povo paciente de Deus: nos pais que criam os filhos com tanto amor, nos homens e
mulheres que trabalham, a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas
idosas que continuam a sorrir (GE 7).
Ao falar sobre a vida de oração salienta a necessidade de existir unidade entre a é e a
vida do cristão: peço, porém, que não se entenda o silêncio orante como uma evasão que
nega o mundo que nos rodeia(GE 152). Dito em outras palavras, é nas circunstâncias em
que se vive, que o cristão vai encontrar-se com Deus e com o próximo.
O Papa Francisco retoma uma das características fundamentais do Concílio Vaticano
II, que é a abertura da espiritualidade cristã ao mundo. É o caráter teológico da secularidade
que significa que o mundo não é apenas o cenário no qual os cristãos se movem e atuam,
mas é fruto da ação criadora de Deus e ferido pelo pecado, portanto, necessita ser
transformado para ser reconduzido para Deus. E esse aspecto é fundamental para os leigos
que têm o mundo como objeto de sua vocação.
Importante dizer que o conceito sobre a espiritualidade dentro da Igreja quase sempre
teve contornos monacais com a escassa valorização das realidades terrenas, com a separação
entre o sagrado e o profano e na relação entre a vida terrena e a vida eterna. Mas o Papa,
neste documento e na esteira da renovação da espiritualidade cristã do Vaticano II, usa duas
expressões: os santos ao da porta (GE 7) e a classe média da santidade (GE 7), que
podem parecer apenas sociológicas, mas que significam que Deus quer acompanhar-nos no
caminho da vida
21
.
Francisco deixa claro esta nova perspectiva, desenvolvida no Concílio e difundida no
pós-Concílio, de mudança do paradigma da santidade cristã: se passa do paradigma da
santidade monástica ou religiosa para a santidade universal, mais integrada na vida e missão
19 Cf. Maria Clara BINGEMER, Santidade: chamado à humanidade: reflexões sobre a exortação apostólica Gaudete et
Exsultade, p.9.
20 Card. L.J. SUENENS, Vida cotidiana, vida cristã, p.22.
21 AMARAL, Miguel de Salis. Uma conversa conidencial sobre o desejo de ser santos, p.5
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da Igreja e do cristão e, portanto, com distintas modalidades que dão lugar a uma diferença
de espiritualidades, sublinhando a universalidade da santidade para todo cristão
22
.
Outrossim, Francisco faz questão de explicar o que não é a espiritualidade cristã que
conduz à santidade, apresenta uma caricatura da mesma com erros nocivos ou ideologias
que mutilam o coração do Evangelho: um compromisso social sem a união pessoal com o
Senhor(GE 100) ou uma que considera o compromisso social superficial, mundano e
inmanetista (GE 101-103), materializando aquilo que é transcendente.
Denomina de gnosticismo atuala ideologia segundo a qual é considerado crente
aquele que é capaz de compreender e, assim, que a santidade consistiria no conhecimento
sem repercussão na vida pessoal e na vida dos outros. E, ainda, o erro do pelagianismo, o
qual supervaloriza de forma exclusiva o esforço pessoal como se a santidade fosse fruto
apenas do esforço do homem e não da graça.
CONCLUSÃO: DAR-VOS-EI TAL ALEGRIA QUE NENHUM HOMEM -LA PODERÁ TIRAR (JO 16,22)
Considerando a simplificação que acompanha toda afirmação de caráter esquemático,
mas objetivando responder às exigências espirituais de nossa época, que se orientam por
valores concretos, vitais e existenciais, se propõe uma síntese dos principais resultados do
estudo sobre a santidade laical à luz da Gaudete et Exultate:
a) A vocação cristã é universal tanto em sentido subjetivo (todos são chamados à
santidade) como objetivo (abarca todas as circunstâncias da vida do ser humano), bem
como, é realizadora do ser humano. A chamada (vocação) implica sempre uma missão, uma
função ou uma tarefa a realizar como membro do Corpo de Cristo (GE 10,14,19);
b) Para alcançar a santidade a plena configuração com Jesus Cristo que é amor é
preciso percorrer um caminho, que é o modo de viver característico da cristão, ou seja, a
espiritualidade cristã (GE 11). A vida espiritual do leigo se desenvolve em duas coordenadas
ou componentes irrenunciáveis: a vertical de comunhão com Deus, de união com Cristo pela
e caridade e a horizontal, de inserção nas realidades temporais e participação nas atividades
terrestres. Essas duas coordenadas constituem o núcleo da santidade laical, são elementos
indispensáveis para que os leigos vivam sua vocação e missão na Igreja e no mundo (GE 26);
c) Deve-se viver a santidade no dia a dia, em todas as atividades Gosto de ver a
santidade [...] nesses homens e mulheres que trabalham para levar o pão para suas casas (GE
7); És um trabalhador? Seja santo cumprindo com honradez e competência teu trabalho de
serviço aos irmãos. [...] Tens alguma autoridade? santo lutando pelo bem comum e
renunciando aos teus interesses pessoais (GE 7,14);
d) É destacado o valor teológico da secularidade. A perspectiva espiritual de
Francisco, que aprendeu com Santo Inácio de Loyola, é a de buscar e encontrar Deus em
todas as coisas (GE 31);
e) A vida cristã não pode ser individualista, nem extramundana e nem mesmo
ativista (GE 35);
f) Para estar unido a Cristo como o sarmento à vide, o leigo, como todo o cristão,
necessita de oração ainda que pareça óbvio, recordemos que a santidade é feita de uma
abertura habitual à transcendência, que se expressa na oração e na adoração. [...] Não
acredito em santidade sem oração (GE 147). E junto à vida de oração é preciso uma luta
decidida contra os inimigos da alma e para crescer nas virtudes. Ninguém resiste se opta
em ficar parado (GE 162-163);
22 Cf. MARTI, Pablo. La Espiritualidad Cristiana em el Concilio Vaticano II, p.162.
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g) A alegria é sinal pelo qual se reconhece os discípulos de Cristo e que os santos
ilustram isso com sua vida e, portanto, é expressão de uma espiritualidade cristã verdadeira
(GE 122-128);
h) Na espiritualidade cristã deve estar presente o mistério da comunhão com Deus, o
chamado universal à santidade e à missão apostólica
i) A espiritualidade cristã acontece no mundo e para a transformação do mundo (GE 25).
O Papa Francisco percorre um caminho de aproximação na busca de Deus e que
demonstra a vitalidade do sentido religioso no mundo atual, considerando que a
espiritualidade cristã continha na tradicional literatura espiritual uma categoria teológica
que mantinha uma atitude negativa com relação ao mundo. Retoma o impulso original do
Vaticano II que é o de anunciar o Evangelho de maneira nova desde a necessidade em falar
de Deus aos homens desse tempo de um modo mais compreensível
23
.
Na Gaudete et Exsultate o mundo é considerado como missão quando o cristão o vê não
com aversão, mas com amor profundo e teologal, ou seja, o contempla em Deus e desde
Deus, fonte do verdadeiro amor. Deus confiou ao cristão a tarefa de restaurar o mundo em
sua bondade original e portanto, o amor teologal ao mundo deve ser uma dimensão
constitutiva de todo cristão na vivência de sua espiritualidade a caminho da santidade.
Uma chave de leitura deste documento esta na alegria como primeiro sinal para
compreender a santidade e como expressão da espiritualidade cristã. A alegria que deriva do
estado de Graça de Deus na alma pois o sorriso é um convite ao estado de graça; aliás, é da
Graça que deriva, como a flor da haste
24
. É prova da vitalidade cristã porque, do amor de
caridade, segue-se necessariamente a alegria...(GE 122). Francisco transmite a mensagem
de forma audível, significativa e pode-se dizer até emocionante (quase pessoal). Vai no
essencial: colocar Deus no centro.
Não se pode deixar de mencionar que o Papa apresenta as Bem-aventuranças como
modelo para a vivência de uma espiritualidade no mundo de hoje. Verdadeira manifestação
da espiritualidade cristã na vida concreta: carteira de identidade do cristão (GE 63). E
como se faz para chegar a viver a espiritualidade e ser santo? A resposta é simples: é
necessário fazer - cada qual a seu modo aquilo que Jesus disse no sermão das Bem-
aventuranças (GE 63).
Aqui reside o ponto de partida que Francisco utiliza ao reapresentar as bem-
aventuranças como um programa de vida que Jesus nos propõe
25
: poucas e simples
palavras, mas práticas para todos, porque o cristianismo é uma religião prática: de ação e
deve ser praticada não pensada
26
. Nesse sentido afasta uma espiritualidade abstrata que
separa a oração da ação, inserindo-a no contexto da cotidianiedade.
Outros aspectos poderiam ser ressaltados, mas os apresentados servem para abrir
horizontes de reflexão no campo teológico e pastoral e trazem alguns dos desafios que
temos quando queremos falar de modo adequado da espiritualidade cristã hoje, como
caminho à santidade no mundo atual. O Papa nos anima, dizendo que este caminho da
santidade é para todos e que não tenhamos medo de andar por ele, despertando de fato o
desejo da santidade e de compartilharmos uma felicidade que o mundo não poderá tirar-
nos (GE 177).
Por fim, Francisco deseja, como fez João Paulo II ao final do milênio, pôr de novo a
programação pastoral sob o sinal da santidade (GE 11). Uma intenção que carrega muitas
23 Cf. Santiago MADRIGAL, El giro eclesiológico em larecepción del Vaticano II, p.21.
24 Card. L.J. SUENENS, Vida cotidiana, vida cristã, p.85.
25 FRANCISCO. Meditações matutinas na Santa Missa: O bilhete de identidade do cristão, passim.
26 FRANCISCO. Meditações matutinas na Santa Missa: O bilhete de identidade do cristão, passim.
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consequências, entre as quais, se destaca a necessidade de reconhecer a vocação e missão dos
leigos na Igreja, com a consciência da dignidade e santidade do seu caminho vocacional,
descobrindo e vivendo seu chamado a renovar o mundo com Cristo.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
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International License.
MÍSTICA E MISSÃO DE
ACOMPANHADORES
testemunhas do pertencimento à
comunidade de fé
MYSTICS AND
FOLLOWERS' MISSION
witnesses of belonging to the community
of faith
Ariél Philippi Machado*
Clelia Peretti**
Noêmia Fátima Lopes da Silva Debastiani***
Resumo: O presente artigo objetiva evidenciar os elementos do magistério
do Papa Francisco para a atuação do catequista acompanhador, tendo como
referência a vida em comunidade. Caracteriza-se por ser uma pesquisa
documental-bibliográfica, extraída de fontes do magistério e outras fontes,
contendo as diretrizes que tratam da importância do acompanhamento para
a ação evangelizadora. Composto de três partes: a primeira aborda a
contribuição de acompanhadores para a vida em comunidade; a segunda
apresenta um ícone bíblico para inspirar a missão de acompanhadores nos
dias atuais; e a terceira, traz a indicação de características da mística e missão
de acompanhadores em processo de catequese sistemática. Concluindo que a
redescoberta da importância dos acompanhadores, desde as comunidades da
primeira hora, é uma ousadia, que é motivo de conversão para os estilos
pastorais e estruturais da Igreja hoje.
Palavras-chave: Acompanhadores. Comunidade de fé. Catequese.
Abstract: This article aims to highlight the elements of Pope Francis'
magisterium for the performance of the accompanying catechist, having
community life as a reference. It is characterized by being a documentary-
bibliographic research, extracted from teaching sources and other sources,
containing guidelines that address the importance of monitoring for the
evangelizing action. Composed of three parts: the first addresses the contribution
of companions to community life; the second features a biblical icon to
inspire the mission of present-day companions; and the third, indicates the
characteristics of the mystique and mission of companions in the process of
systematic catechesis. Concluding that the rediscovery of the importance of
companions, from the communities of the first hour, is a bold move, which is a
reason for conversion to the pastoral and structural styles of the Church today.
Keywords: Accompanying. Faith Community. Catechism.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 90-102, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.61
* Mestre em Teologia pela PUCPR (2021).
Especialista em Catequese - Iniciação à Vida
Cris pela Faculdade Católica de Santa
Catarina (2017). Licenciado em Matemática,
Bacharel em Filosofia e Bacharel em Teologia.
E-mail: ariel.philippi@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6961-2740
** Doutora em Teologia pela EST. Mestre em
Educação pela PUCPR. Professora adjunta no
Programa de Pós-Graduação Mestrado e
Doutorado e do Bacharelado em Teologia da
Ponticia Universidade Católica do Paraná
PUCPR. s-doutora em Fenomenologia pelo
Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche
e Pontifícia Universidade Lateranense Roma.
Especialista em Gestão de Escolas pela PUCPR
e em Educação a Distância pela UnB. Possui
Licenciatura em Pedagogia e em Hisria;
Bacharelado em Teologia. der do Grupo de
Pesquisa Teologia, Gênero, Educação PUCPR
E-mail: clelia.peretti@pucpr.br
https://orcid.org/0000-0003-2062-0883
*** Especialista em Catequese - Iniciação à Vida
Cristã pela Faculdade Calica de Santa Catarina
(2017). Arquivista na Diocese de Chape
E-mail: noemiadebastiani@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0446-0349
Recebido em 06/04/21
Aprovado em 23/08/21
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INTRODUÇÃO
Em março de 2013 o mundo acompanhou a eleição de um Papa vindo do fim do
mundo. Essa era a primeira novidade de um pontificado que vem oferecendo à Igreja novas
inspirações, novas expressões e, sobretudo, novas atitudes. O arcebispo de Buenos Aires,
Jorge Mario Bergoglio, eleito no dia 13 de março de 2013, iniciou uma nova era para a
Igreja Católica no Terceiro Milênio, a era da Igreja samaritana, que sai de si mesma e
alcança as periferias existenciais e geográficas, para oferecer o óleo da cura e o vinho da
alegria.
Papa Francisco é o ícone da Igreja peregrina, atenta aos detalhes, às pessoas
esquecidas e deixadas à margem. Para Francisco, a missão da Igreja realiza-se numa
compreensão espacial dos processos, que ele denomina modelo de poliedro (EG 236), e por
meio de uma pedagogia integradora, tanto dos recursos quanto de interlocutores.
Considerando os apelos recentes do magistério de Francisco, especialmente daqueles
registrados na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sobre o anúncio do Evangelho no
mundo atual, publicada em 2013, o presente artigo apresenta uma reflexão a respeito da arte
do acompanhamento, destacada como mística para os processos de crescimento tanto da
quanto da humanização de nossas relações (EG 169).
Ocorrido o processo sinodal para reflexão sobre a família, celebrado em duas etapas,
2014 e 2015, acolhemos a comovente Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia,
sobre o amor na família, publicada em 2016, cristalizando a noção de que [...] o trabalho da
Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha (EG 291). A Exortação concentra, no
Capítulo VIII, os pilares de uma pastoral renovada, capaz de acompanhar, discernir e
integrar as fragilidades tanto das famílias quanto da sociedade.
Ainda na esteira do Papa Francisco, temos a Exortação Apostólica Pós-Sinodal
Christus Vivit, aos jovens e a todo povo de Deus, publicada em 2019, pela qual imagina-se o
baú de desejos dele para uma Igreja rejuvenescida, contemporânea aos desafios e às
potencialidades de nossos dias, para que, despertando os adultos, atuantes nas diferentes
modalidades da Igreja e da sociedade, sejam capazes de escutar e acompanhar as novas
gerações. Desse modo, a Igreja cumpre com sua vocação de ser sinal da presença de Jesus
Cristo (EN 6) que torna tudo novo e enche de vida todas as realidades que o acolhem (CV 1).
Diante do exposto, a reflexão será desenvolvida com o objetivo de evidenciar os
elementos do magistério do Papa Francisco para a atuação do catequista acompanhador,
tendo como referência a vida em comunidade.
Neste sentido, a primeira seção aborda a importância da arte do acompanhamento
nos diferentes âmbitos da vida humana, mas especialmente para a vida em comunidade,
tendo a em Jesus Cristo como referência. Celebrar com as capacidades das pessoas e
ajudá-las a superar seus desafios é motivo de alegria e impulso para despertar cada membro
no exercício do acompanhamento de novos filhos e filhas na fé.
Na segunda seção é apresentado o ícone bíblico de Ananias, Paulo e Barnabé, como
inspiração de processos de acompanhamento nas comunidades. No agir deles, encontramos
traços para a mística e missão para as pessoas que são convidadas a desempenhar o
ministério do acompanhamento de novos irmãos e irmãs na fé.
Para a terceira seção está reservada a perspectiva da educação na fé, em processo
sistemático de catequese, momento em que o ministério de acompanhadores tem forte
expressão e surge como fator de renovação eclesial e pastoral, demonstrando a perspectiva
samaritana e horizontal da Igreja.
MACHADO, Arl Philippi; PERETTI, Clelia; DEBASTIANO, Nmia tima Lopes da Silva
Mística emissão de acompanhadores: testemunhas do pertencimento à comunidade de fé
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1 A ALEGRIA DO ACOMPANHAMENTO
Acompanhar é uma necessidade evidente no contexto da sociedade plural e diversa
em que estamos inseridos. A diversidade cultural é uma conquista de nossa época, ao
mesmo tempo em que pode significar um risco, ameaça ou confusão de ideias. Neste espaço
de ofertas distintas e de múltiplas opções, instala-se o desafio para a Igreja de oferecer
recursos humanos capacitados na arte de acompanhar e guiar seus membros em um
caminho de escolhas saudáveis em vista da promoção da dignidade humana.
Encontramo-nos todos neste emaranhado de caminhos possíveis, na tentativa de
fazer a melhor escolha possível, tomar aquela atitude que preencha de significado os
próximos passos a serem dados. E assim, tomamos consciência da importância que existe
em uma tomada de decisão. Decidir é uma das maneiras de demonstrar nossa personalidade
e singularidade no mundo das possibilidades.
A diversidade de rostos é a expressão visível da unicidade interior de cada ser
humano; é por isso que cada pessoa reivindica, com justiça, o direito de ser
identificada e chamada com seu nome. Reduzi-la a um número ou a um objeto
entre os demais, seria desconhecer sua irrepetibilidade soberana
1
.
é possível acompanhar se nos permitirmos encontrar. O acompanhamento não é
realizado em uma oficina de trabalho ou na esteira de uma fábrica, mas é acontecimento
progressivo, passível de surpresas, encantos e reparos. Inúmeras são as inspirações
bíblicas que nos mostram o povo de Deus como itinerante na fé e, no itinerário de suas
vidas, fazem a experiência de que o próprio Deus caminha, protege e dá sustento para a
caminhada.
Por meio da arte do acompanhamento é possível recuperar a alegria de sentir Deus
presente, caminhando conosco no dia a dia, conduzindo-nos por meio da presença e
atuação e pessoas disponíveis a acolher, integrar e apontar novos rumos para nossas vidas.
Deste modo, a exortação sobre o acompanhamento trazida pelo Documento de Aparecida é
um imperativo para nossas lideranças comunitárias: Requer-se, portanto, capacitar aqueles
que possam acompanhar espiritual e pastoralmente a outros (DAp 282).
O acompanhamento é uma arte porque, como resposta à sociedade que não quer
perder tempo, depende do exercício da virtude da paciência. Na Evangelii Gaudium, o Papa
Francisco explica a necessidade de uma pedagogia do acompanhamento:
Por isso, faz falta uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar
à plena apropriação do mistério. Para se chegar a um estado de maturidade, isto
é, para que as pessoas sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e
responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma paciência imensa (EG 171).
A certeza de poder contar com uma pessoa, ter referência para as dúvidas e medos,
para as alegrias e expectativas, é uma contribuição ímpar da miso da Igreja. Saber-se
acompanhador é descobrir novas estratégias de evangelização que ultrapassam as linhas
determinadas pelos planos e cronogramas institucionais. A maior contribuição de
acompanhadores é agregar, por meio de suas experiências, os valores necessários à
comunidade de e também à sociedade em geral, percebendo caminhos da plena
realização pessoal.
Após a realização do Sínodo sobre a juventude, em sua mensagem final ao povo de
Deus, os padres sinodais afirmaram o seguinte:
1 Carlo ROCCHETTA, Teologia da ternura: um evangelho a descobrir, p.76.
MACHADO, Arl Philippi; PERETTI, Clelia; DEBASTIANO, Nmia tima Lopes da Silva
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O acompanhamento não pode se limitar ao caminho de crescimento espiritual
nem às práticas da vida cristã. Igualmente frutuoso é o acompanhamento ao
longo do percurso de progressiva aceitação de responsabilidades na sociedade
2
.
Ao que seguimos refletindo sobre a contribuição social da fé, no diálogo com as
culturas, sendo fermento na massa para que os valores evangélicos contribuam de maneira
eficaz para a vida em plenitude de todas as pessoas.
1.1 Acompanhadores da vida e na fé
Representa um desafio para a Igreja, neste início do século XXI, refletir e promover a
nova evangelização, conduzindo os seus fiéis a uma verdadeira reiniciação à vida cristã,
através de um itinerário que ofereça uma formação integral: litúrgica, catequética e
sociotransformadora, renovando o caráter de toda pessoa batizada. A nova evangelização
depende da formação e do empenho de cristãos convictos.
A tarefa primeira de lideranças e agentes da evangelização é testemunhar o
encantamento de terem encontrado o Senhor. A alegria que vem pela fé no Ressuscitado é a
razão para manter nossas comunidades, lugares de transmissão da fé e da promoção da vida.
Nestes contextos, algumas pessoas são destinadas ao cumprimento da tarefa de acompanhar
a vida e a de novos membros e de tantos outros que precisam de uma presença amiga e
ajuda em seus processos de discernimento.
O Documento de Aparecida lança algumas pistas para a reflexão e instituição do
ministério de acompanhadores nas comunidades:
Nossa alegria, portanto, baseia-se no amor do Pai, na participação no mistério
pascal de Jesus Cristo que, pelo Espírito Santo, nos faz passar da morte para a
vida, da tristeza para a alegria, do absurdo para o sentido profundo da existência,
do desalento para a esperança que não engana. [...] Conhecer Jesus Cristo pela fé
é nossa alegria; segui-lo é uma graça, e transmitir esse tesouro aos demais é uma
tarefa que o Senhor nos confiou ao nos chamar e nos escolher (DAp 17-18).
Nestas linhas, percebemos que a realizão de um caminho de acompanhamento realiza-se
numa trajeria de partilha de vida e experncias marcantes, que entendemos como sentido de
vida. O relato evangélico das bem-aventuranças ilustra essa perspectiva do acompanhamento,
trando um itinerário de vincias, onde cada gesto, cada palavra ou cada atitude da pessoa
revela sua inspirão primeira: a vida de Jesus de Naza, crucificado-ressuscitado.
Como luzeiros para o cotidiano da vida, os acompanhadores precisam, inicialmente,
de intimidade com Jesus e vida de oração, conhecer o Evangelho por dentro, lendo e
meditando, sempre na relação com os fatos e experiências de seus dias. O acompanhamento
acontece no tempero da espiritualidade bíblica, tendo Jesus Cristo por referência. Jesus
gostava de anunciar o evangelho como fonte da alegria do reino, como programa de
felicidade e como pista para buscar a vivência da felicidade no dia a dia
3
.
Esta intimidade do acompanhador com os relatos bíblicos eleva-se na condição para
que as comunidades ofereçam boas experiências de cooperação mútua para iluminar os fatos
da vida por meio das experiências de fé. Os padres sinodais recomendam a necessidade de
promover um acompanhamento integral, em que os aspectos espirituais estejam bem
integrados com os humanos e sociais
4
.
2 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.55.
3 Frei PATRÍCIO, Espiritualidade do avental, p.133.
4 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.57.
MACHADO, Arl Philippi; PERETTI, Clelia; DEBASTIANO, Nmia tima Lopes da Silva
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Esta compreensão do ser humano, integral e integradora, é o desafio fundamental a
ser incorporado pela Igreja e seus agentes, para que respondam à vocação recebida e
comuniquem em todas as partes, o dom do encontro com Jesus Cristo, transbordando de
gratidão e alegria, tendo como sinal concreto a vida fraterna e comunitária.
1.2 Acompanhar a vida em comunidade
Compreender-se como acompanhador da vida e na fé significa ter vínculos profundos
com outras pessoas, saber-se pertencente a um convívio maior, formar comunidade.
A vocação ao discipulado missionário é con-vocação à comunhão em sua Igreja.
Não discipulado sem comunhão. Diante da tentação, muito presente na
cultura atual, de ser cristãos sem Igreja e das novas buscas espirituais
individualistas, afirmamos que a em Jesus Cristo nos chegou através da
comunidade eclesial e ela nos uma família, a família universal de Deus na
Igreja Católica. A nos liberta do isolamento do eu, porque nos conduz à
comunhão. Isso significa que uma dimensão constitutiva do acontecimento
cristão é o fato de pertencer a uma comunidade concreta na qual podemos viver
uma experiência permanente de discipulado e de comunhão com os sucessores
dos Apóstolos e com o Papa (DAp 156).
De onde brota a missão específica do acompanhador, enquanto vinculado e membro
edificante da comunidade, sabe-se capaz de conduzir novos membros para este ritmo de vida que
é fruto de comunhão, de partilha e de confiaa. Acompanhar é, em primeiro lugar, ser Igreja,
movimentar-se como sinal da presença de Jesus, independe de cargos, títulos ou funções. Basta
assumir a proposta do Evangelho de [...] ensinar tudo quanto foi ordenado (Mt 28,16).
De acordo com Zacharias Heyes:
A Igreja como proclamadora e serva de Deus deveria ser o primeiro lugar em
que as pessoas têm um encontro com Deus e, no encontro umas com as outras,
reconhecem Deus. [...] O conceito de igreja, que provém da palavra grega
ekklesia, significa nada mais nada menos do que a comunhão daqueles que se
reúnem em torno de Deus
5
.
A tarefa da pessoa acompanhadora está em perceber a singularidade e o talento de
cada membro novo da comunidade, de maneira que tudo concorra para a promoção da
ekklesia, no sentido de espaço onde o Ressuscitado habita. Partindo de Pentecostes (At 2,1-
10) é possível perceber como é rica a experiência de comunidades que compreendem os
sinais de Deus, encontram na caridade a linguagem comum da fé (At 2,42-47) e partem para
anunciar tamanha novidade a todos os povos (At 4,18-20; 5,40-42; 6,1-7).
Esta peregrinação da Igreja, que antecipa um caminho itinerante entre
acompanhadores e aqueles que a comunidade lhes confia, é sinal para o mundo de uma nova
mentalidade de relações, onde dividir a vida não é um risco nem mesmo invasão de
privacidades. Acompanhar é um método novo diante de fenômenos que buscam a massa, a
invisibilidade da pessoa e conceitos relativizados do bem e da justiça.
Diante dos riscos de um esvaziamento de critérios, os padres sinodais afirmaram:
No interior da sociedade e das comunidades eclesiais, cada vez mais
interculturais e multirreligiosas, é necessário um acompanhamento específico no
que diz respeito à diversidade, para que seja valorizada como mútuo
enriquecimento e possibilidade de comunhão fraterna, contra a dupla tentação
do fechamento na própria identidade e do relativismo
6
.
5 Zacarias HEYES, Como encontrar Deus...e por que nem é necessário procurá-lo, p.74-75.
6 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.55.
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Uma breve passagem pelos textos bíblicos favorece a assimilação da importância que
existe para as comunidades investirem na formação de pessoas para a missão do
acompanhamento da vida e na fé. Quando a comunidade dos seguidores de Jesus começou a
se espalhar havia o risco das perseguições; era eminente o risco de morte. Mas, a vida em
comunidade, o testemunho e a partilha dos bens entre os irmãos e irmãs dava força e
coragem, demonstrava o caráter de vida nova que a fé é capaz de gerar.
Passemos, pois, para uma consideração sobre a comunidade cristã relatada em Atos
dos Apóstolos, em especial, Ananias, Paulo e Barnabé, que nos inspiram na organização de
comunidades-ekklesia em nossos dias.
2 UM ÍCONE BLICO DO ACOMPANHAMENTO: ANANIAS, PAULO E BARNABÉ
A comunidade da primeira hora foi acompanhada pelas aparições do Ressuscitado e,
principalmente, pelo testemunho concreto daquelas pessoas que caminharam nas pegadas
de Jesus de Nazaré. Deixando Jerusalém, os apóstolos empenharam suas vidas na difusão do
Evangelho e dos valores de um novo reino instaurado pelo Messias, o Emanuel.
No livro dos Atos dos Apóstolos encontramos relatos curiosos e, ao mesmo tempo,
inspiradores para novas práticas pastorais em nossos dias. Concentrando-nos no capítulo
nove, podemos extrair inspirações para a organização do papel e do perfil de
acompanhadores. No relato deste capítulo temos a conversão de Paulo, a conversão de
Ananias e a mediação de Barnabé
7
. Uma tríade necessária no momento de pensar o
acompanhamento da vida e da em nossas comunidades. Convertem-se a pessoa
acompanhada e a comunidade que a acolhe, mediante a atuação de lideranças que exerceram
o acompanhamento.
De um lado temos Paulo, que, em seu itinerário de perseguição das comunidades
cristãs, é surpreendido por uma experiência de que modificou por completo sua vida. Na
estrada de Damasco, o judeu temente cair por terra todo zelo pela religião dos judeus e
todo o seu aprendizado sobre leis e costumes. Além do relato em Atos, na Carta aos Gálatas
(1,11-24), o próprio Paulo explica sua missão de apóstolo extraordinário.
E sobre esta passagem, Mazzarolo explica:
Deus não revelou a Paulo uma Lei, um Mandamento ou Norma, mas o seu Filho
(1,16), e essa manifestação se constituiu na especificidade diferencial do Apóstolo
em relação aos profetas e patriarcas. O Filho, por sua vez, revelou o Pai, Sua
vontade e Seu projeto. Jesus afirmava que os seus discípulos não eram mais
servos, mas, amigos, porque aos amigos é dado conhecer toda a verdade e a
profundidade dos mistérios divinos e, ao mesmo tempo, a grandeza e
responsabilidade da missão (Jo 15,15)
8
.
Grande foi a ruptura que marcou a experiência de ser acolhido gratuitamente por
Deus, enquanto ele o perseguia. Dessa experiência pessoal de Paulo é possível indicar
que a pessoa responsável pelo acompanhamento precisa estar aberta para as surpresas
da vida. Cada encontro é uma oportunidade de vida nova, novas descobertas e novo
sentido para viver.
No itinerário do acompanhamento é preciso ter postura de equilíbrio e maturidade.
Para Zacharias,
7 Carlos MESTERS & Francisco OROFINO, Atos dos Apóstolos, p.125.
8 Izidoro MAZZAROLO, A vocação de Paulo Segundo Gl 1,11-2,10, p.48.
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Nenhum ser humano precisa se envergonhar da sua história, do seu caminho, do
seu corpo a ponto de perder toda esperança para o futuro. Muitas vezes uma
pessoa sente um grande alívio quando ela pode contar toda a história de sua vida
sem ser julgada. Nas histórias de cura na Bíblia, Jesus nunca fala do passado,
nunca pergunta o que a pessoa fez ou deixou de fazer. Ele interage com a pessoa
como ela é naquele momento, Ele a aceita como ela é
9
.
Paulo é modelo das nossas vidas diárias, quando passamos tempo agarrados em
situações que estão mais para formalismos do que para a graciosidade que existe na presença
autêntica e vibrante das pessoas.
Ao mesmo tempo, Paulo é encontrado por Ananias, que representa os nossos grupos,
as nossas preferências, os nossos confortos das estruturas e padrões fechados. Ananias é
uma liderança de e, mesmo na dúvida sobre o encontro com o famoso perseguidor de
cristãos, ouve o chamado de Deus e coloca-se como servidor.
Ananias vai ao endereço indicado, entra, impõe as mãos e afirma três coisas:
chama Paulo de meu irmão, promete a ele uma nova visão e anuncia o dom do
Espírito Santo. São as três coisas que acontecem com toda pessoa que entra
numa comunidade: passa a ser irmã ou irmão, adquire uma visão nova das coisas
e recebe o dom do Espírito Santo. Ao dizer Saulo, meu irmão!, Ananias recebe o
perseguidor como irmão na comunidade. [...] Nasceu um novo Paulo, pronto
para a nova missão! A conversão, porém, não é apenas um fato que acontece
uma vez por toda. Ela é um processo que vai acontecendo no dia-a-dia e que se
prolonga pela vida afora
10
.
A pessoa que se entrega à tarefa do acompanhamento precisa estar disponível para
uma caminhada de proximidade, mas ao mesmo tempo, de confiança nos frutos que os
novos irmãos e irmãs são capazes de produzir. A missão desempenhada por Paulo não foi
diferente, pois, além do episódio da acolhida da comunidade cristã de Damasco precisou
romper com os seus antigos companheiros. Toda conversão exige uma renúncia e para esta
atividade, em específico, é necessária a presença de acompanhadores.
Ao lado de Paulo, portanto, temos Ananias que conduz a iniciação à fé. E temos
também o protagonismo de Barnabé, responsável pela mediação e inserção de Paulo na
comunidade cristã de Jerusalém.
Ao chegar a Jerusalém, tentava juntar-se aos discípulos; mas eles o temiam, pois
não acreditavam que fosse discípulo. Então Barnabé o apresentou aos apóstolos,
e conto como ele havia visto o Senhor no caminho, como lhe havia falado e com
qual ousadia anunciara o nome de Jesus em Damasco. Saulo permaneceu em
Jerusalém, movimentando-se livremente; anunciava corajosamente o nome de
Jesus, conversava e discutia com os judeus de língua grega, que tentavam
eliminá-lo (At 9,26-29).
Após os momentos de perseguição aos cristãos, Paulo teve dificuldades para
estabelecer a convivência com a comunidade dos seguidores de Jesus. Barnabé reconhece a
sinceridade de Paulo e, com auxílio do Espírito Santo, ajuda a comunidade a fazer o
discernimento e dar oportunidade para acolher Paulo.
O legado de Barnabé para o perfil de catequistas acompanhadores é a virtude de
acreditar nas pessoas. Quem acompanha sabe reconhecer que a situação de cada pessoa
diante de Deus e a sua vida de graça são um mistério que ninguém pode conhecer
plenamente a partir do exterior (EG 172).
9 Zacarias HEYES, Como encontrar Deus...e por que nem é necessário procurá-lo, p.58.
10 Carlos MESTERS & Francisco OROFINO, Atos dos Apóstolos, p.129.
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Temos então, as seguintes inspirações: Ananias, representando as nossas
comunidades; Paulo, que caracteriza acompanhadores e acompanhados simultaneamente; e
Barnabé, que simboliza a caminhada progressiva da transmissão e educação na no chão
das comunidades. A partir dessas personagens, enquanto peregrinamos entre as Damascos e
Jerusaléns de nossos dias, podemos investir em processos formativos para as pessoas que se
dedicam em abraçar a tarefa especial de conduzir novos membros da comunidade ao
encontro vivo e verdadeiro com o Ressuscitado.
3 MINISTÉRIO DE ACOMPANHADORES: MÍSTICA E MISSÃO
O contexto hodierno de vivência da exige experiências que expressam o sentido da
comunidade, da vida fraterna e de comunhão. O apelo do Papa Francisco para que as
comunidades instalem processos de acompanhamento deve-se ao fato de que:
Numa civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente,
obcecada com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa
curiosidade, a Igreja tem necessidade de um olhar solidário para contemplar,
comover-se e parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias (EG 169).
O processo de conversão de Paulo foi marcado pela participação de Ananias, como
acolhida e iniciação à fé, e de Barnabé, mediador para a vida em comunidade. Fica evidente
como foi importante o acompanhamento que Paulo recebeu de ambos, tendo como
centralidade as experiências concretas de em Jesus Cristo que sustentavam as
comunidades recém formadas.
Ananias, Paulo e Barnabé ajudam a compreender a estruturação do catecumenato das
comunidades dos primeiros séculos, instituição que era responsável pela acolhida e
condução na das pessoas que procuravam ser iniciadas à vida cristã. No catecumenato
primitivo, as pessoas simpatizantes com a cristã eram acompanhadas por um introdutor
ou acompanhante, escolhidas entre a comunidade dos iniciados, tendo como referência o
testemunho concreto de vida e a participação ativa na liturgia. O Ritual de Iniciação Cristã
de Adultos explica: O candidato que solicita sua admissão entre os catecúmenos é
acompanhado por um introdutor, homem ou mulher, que o conhece, ajuda e é testemunha
de seus costumes, fé e desejos
11
.
A vocação e missão do introdutor, de acordo com a antiga tradição catecumenal, é
reconhecida como minisrio, ou seja, é um serviço da Igreja para o bem dela própria e de
seus membros. Esse ministério, portanto, não se limita ao momento ritual. Trata-se de
um minisrio de ajuda, que começa antes do tempo do catecumenato ou catequese, é
ativo em todo o seu desenrolar e é substituído pelo padrinho ou madrinha apenas no final
de todo o processo
12
.
As reflexões do Sínodo para as Juventudes sobre a vida de e discernimento
vocacional, despertou novamente o tema dos acompanhadores, que prestaram um serviço
de alto nível no início das comunidades cristãs. De muitas maneiras, os jovens pediram-nos
para qualificar a figura dos acompanhadores. O serviço de acompanhamento é uma
verdadeira missão, que exige disponibilidade apostólica daqueles que o prestam
13
.
11 RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS, p.28.
12 CNBB, Itinerário catequético: iniciação à vida cristã um processo de inspiração catecumenal, p.58.
13 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p. 59.
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3.1 Mística e Missão do Catequista acompanhador
A necessidade de acompanhar pessoas é uma resposta ao sentimento de fragmentação
que vemos acontecer na sociedade, tanto na esfera das instituições públicas quanto no
ambiente religioso. Diante da complexidade que caracteriza nossa época, acentua a distância
entre as pessoas, especialmente entre as juventudes. Mas também crianças e adolescentes,
adultos e idosos são afetados pelas poucas oportunidades de encontros intergeracionais,
fragmentando também os vínculos de pertença e transmissão de valores.
Impressiona o número de jovens nas comunidades juvenis que enfrentam
problemas emocionais sérios. Destacam-se três marcas da juventude na atualidade:
o medo de sobrar, por causa do desemprego, o medo de morrer precocemente, por
causa da vioncia e a vida em um mundo conectado, por causa da internet
14
.
Sabemos que o [...] ambiente digital caracteriza o mundo contemporâneo (CV 86), e
que [...] a web e as redes sociais criaram uma nova maneira de se comunicar e criar
laços (CV 86). Mas, mesmo parecendo paradoxal, a geração nascida no ambiente digital
desenvolve um terceiro medo acrescido à relação acima, que é viver conectado como fuga
ao medo do isolamento
15
.
Em vista dessa realidade e de outras mais peculiares, próprias das regiões e
comunidades, onde a chega e se desenvolve, sugerimos breves considerações sobre a
mística e missão de catequistas acompanhadores. Catequistas, aqui, entendidos como
lideranças das diferentes expressões eclesiais, que são chamadas a abraçar um estado, onde a
presença, o testemunho de vida, o silêncio, a escuta e a vida de oração são fundamentais
para o ministério do acompanhamento.
Aquele que acompanha caminha junto, mas não substitui o jovem. Ele o ajuda a
ter os instrumentos necessários para assumir sua vida, fazer escolhas livres,
permanecer firme em seus propósitos. Um acompanhador deve manter sempre
viva a esperança na capacidade que o jovem tem de participar na vida da Igreja
sendo protagonista e cultivar a semente da fé em seu coração sem expectativa de
ver os frutos do trabalho, pois é Deus quem faz crescer e frutificar (1Cor 3,6)
16
.
A mística que envolve o ministério de acompanhadores é pautada pela itinerância,
um ser-com, estar ao lado para as dúvidas e partilhas, para emprestar o ouvido e vibrar em
cada conquista. Ao desafiar pela implantação de uma pedagogia do acompanhamento, o
Papa Francisco desafia todas as pessoas constituídas de autoridade, e expõe os traços da
espiritualidade da arte de acompanhar:
Neste mundo, os ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem
tornar presente a fragrância solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja
deverá inicias os seus membros sacerdotes, religiosos e leigos nesta arte do
acompanhamento, para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias
diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3,5) (EG 169).
No episódio dodescalço que toca a terra, Moisés pode sentir, fazer a experiência com
o transcendente, aquele Outro que dialoga consigo. Acompanhar é estar preparado para o
contato, participar da tensão das realidades, acolher o outro na sua inteireza, deixar-se tocar.
Para tanto, é preciso oferecer boa formação aos ministros do acompanhamento, de modo que
tenham boa capacitação para servirem na comunidade por meio da ternura e da afetividade.
14 CNBB, Evangelização da juventude: desaios e perspectivas pastorais, p.20.
15 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, Diretório para a Catequese, p.229.
16 Denise Alves de CASTRO, Acompanhamento e Discernimento Vocacional: o jovem à luz do Documento Preparatório da XV
Assembleia do Sínodo dos Bispos: os jovens, a é e o discernimento vocacional, p.28.
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Reforçando a mística do acompanhador, temos a parábola do samaritano (Lc 10,25-
37), que ilustra também, um caminho de acolhida, acompanhamento e desaparecimento
que ensina autonomia. O samaritano foi além das boas intenções. Usou do seu azeite para
suavizar a dor das feridas; usou do seu vinho para desinfetar as lesões; usou de sua
montaria para carregar aquele homem assaltado; usou do seu dinheiro em favor de um
pouco de conforto; usou de seu tempo quando se dispôs a voltar para pagar os gastos em
excesso. E, permitiu que as feridas da vida fossem ressignificadas pela proximidade, pelo
cuidado e pela dignidade.
A mística revela a missão, de maneira que presença e ausência são os passos a serem
dados pelo acompanhador. Ou seja, acompanhar exige colocar-se à disposição tanto do
Espírito do Senhor quanto de quem é acompanhado, com todas as suas qualidades e
habilidades e, em seguida, ter a coragem de humildemente se afastar.
17
Estar presente é
assumir o chamado e fazer-se disponível para a missão de acompanhar. De igual modo, o
momento de ausentar-se é também uma missão, pois, é necessário perceber os momentos
de liberdade e autonomia de quem é acompanhado para que a caminhada continue, à
distância com breves acenos e sinais, mas na liberdade das escolhas.
Para contribuir com comunidades que desejam investir com criatividade ao desafio
proposto pelo Papa Francisco, além dos temas oferecidos pelas demais ciências, seguiremos
com breves comentários sobre o perfil do acompanhador, encaminhado como pista de ação
pelo Sínodo dos Bispos.
3.2 Perfil e competências do Catequista acompanhador
O Documento Final do Sínodo da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos
bispos assim se refere ao citar o perfil do acompanhador:
A consciência de que acompanhar é uma missão que exige profundas raízes na
vida espiritual ajudá-lo-á a se manter livre em relação aos jovens que
acompanha: respeitará o resultado de sua jornada, auxiliando-os com a oração e
alegrando-se com os frutos que o Espírito produz naqueles que lhe abrem o
coração, sem tentar impor-lhes suas próprias vontades e preferências. Do
mesmo modo, será capaz de colocar-se a serviço, em vez de ocupar o centro das
atenções e de assumir atitudes possessivas e manipuladoras que criam
dependência em vez de liberdade. Esse profundo respeito também será a melhor
garantia contra os riscos de desvio e abuso de todos os tipos
18
.
Como mencionamos, a arte do acompanhamento é um serviço e uma missão
necessária à Igreja, para ser oferecida a todas as pessoas. No contexto da XV Assembleia
Geral do Sínodo dos bispos, surgem pistas para o catequista acompanhador que acolherá em
seu apostolado as pessoas adultas, jovens e adolescentes, idosos e crianças.
Dessa maneira,
[...] o acompanhante não pode ser qualquer pessoa de boa vontade. Essa missão
tem que ser reservada para quem já fez sua opção de vida e se encontra feliz no
caminho tomado para ajudar o jovem a fortalecer seu relacionamento com o
Senhor, estar atento às revelações de Deus em sua vida e a decidir quais as
respostas que dará a Deus
19
.
17 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.59.
18 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.59.
19 Denise Alves de CASTRO, Acompanhamento e Discernimento Vocacional: o jovem à luz do Documento Preparatório da XV
Assembleia do Sínodo dos Bispos: os jovens, a é e o discernimento vocacional, p.27-28.
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Seguimos na trilha dos elementos apontados pelo Documento Final do Sínodo para as
Juventudes, a fim de caracterizar breves sinais para o perfil e consequentes competências de
catequistas acompanhadores.
O primeiro elemento é a exigência do respeito pelo processo de cada pessoa e
resultado da jornada. Acompanhar não existe ponto de chegada, é um estar-com e logo saber
dizer até breve. O resultado não é para o acompanhador, mas é uma conquista para quem
está sendo acompanhado, e cada pessoa precisa ser respeitada em seus limites e potencialidades.
Por isso, o respeito é caracterizado pela proximidade que não é invasiva nem
opressora, mas desperta coragem e vigor para as decisões necessárias ao longo do caminho.
De acordo com o Papa Francisco, esta competência realiza-se com o exercício de caminhar
ao lado. Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar
respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a
amadurecer na vida cristã (EG 169).
O segundo elemento é a dinâmica e constância na vida de oração e abertura ao
Espírito. É o testemunho concreto do acompanhador de que suas escolhas são pautadas
pelas conversas que tem com o Senhor, a quem entrega todo seu destino com confiança
operante e paciência corajosa. Ensinam os padres sinodais que, [...] um bom acompanhador
é uma pessoa equilibrada, de escuta, e oração, que se enxerga com as suas próprias
fraquezas e fragilidades
20
.
A abertura ao Espírito é uma virtude de espera e autêntica. Na contramão do
mundo acelerado e da vida que concorre à base da pressa, a vida de oração nos insere na
dinâmica do tempo de Deus. E a experiência kairológica é rica de sentidos e significados
para as escolhas que fazemos no cotidiano. É o que ensina o Papa Francisco na Exortação
sobre o chamado à santidade no mundo atual:
A oração, precisamente porque se alimenta do dom de Deus que se derrama na
nossa vida, deveria ser sempre rica de memória. A memória das obras de Deus
está na base da experiência da aliança entre Deus e o seu povo. Se Deus quis
entrar na história, a oração é tecida de recordações: não da recordação da
Palavra revelada, mas também da própria vida, da vida dos outros, do que o
Senhor fez na sua Igreja. [...] Contempla a tua história quando rezas e, nela,
encontrarás tanta misericórdia (GE 153).
A abertura ao Espírito torna o acompanhador competente para criar vínculos com a
pessoa que acompanha, fortalecendo os elos de pertencimento e vida comunitária, que
depois serão celebrados, isto é, comemorados em suas orações e ações litúrgicas.
O terceiro elemento para o perfil de acompanhadores é o discernimento para não
ocorrer imposição de suas vontades e preferências nas escolhas da pessoa acompanhada.
Não pode exercer essa missão quem foi mandado ou obrigado a acompanhar os jovens por
simples obediência a uma autoridade, mas quem tem realmente a vocação de acompanhar,
pois é um serviço muito delicado
21
.
Para o Papa Francisco, [...] hoje mais do que nunca precisamos de homens e
mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de
proceder em que reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar (EG
171). Daqui decorre a competência para a liberdade de escolhas, que precisam demonstrar
que existe crescimento na trajetória do acompanhamento com gestos e atitudes que revelam
a opção fundamental de um caminhar para Deus, de acordo com cada estado de vida.
20 DOCUMENTO final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos, p.59.
21 Denise Alves de CASTRO, Acompanhamento e Discernimento Vocacional: o jovem à luz do Documento Preparatório da XV
Assembleia do Sínodo dos Bispos: os jovens, a é e o discernimento vocacional, p.27.
MACHADO, Arl Philippi; PERETTI, Clelia; DEBASTIANO, Nmia tima Lopes da Silva
Mística emissão de acompanhadores: testemunhas do pertencimento à comunidade de fé
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.90-102, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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O quarto elemento é a atitude de servir, com sensibilidade aos sinais da pessoa que
busca o acompanhamento durante o tempo que permanecem juntos no itinerário. O serviço
mais significativo em nossos dias é a escuta, que exige presença por completo do
acompanhador. Trata-se de ouvir o outro que está se revelando em suas palavras. O sinal
dessa escuta é o tempo que dedico ao outro. [...] Essa escuta atenta e desinteressada indica o
valor que a outra pessoa tem para nós, além de suas ideias e escolhidas de vida (CV 292).
Neste elemento está a competência da comunicação, que exige atenção aos gestos, os
movimentos e aos pequenos detalhes da vida das pessoas. Comunicar é um movimento
anterior ao uso dos instrumentos e técnicas. Trata-se de comportamento. Assim, a
comunicação que se pela escuta é uma competência ímpar para acompanhar pessoas.
Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da
cômoda condição de espectadores (EG 171). A escuta atenta e generosa será correspondida
pela confiança e entrega das pessoas, fortalecendo a vida fraterna e a espiritualidade de
comunhão que caracterizam o discipulado missionário de Jesus Cristo.
O quinto elemento é o respeito pela dignidade humana. O processo de abertura ao
Espírito e a escuta desinteressada, porém atenta, são oportunidades para o encontro com o
barro que nos modela e iguala como matéria-prima para o amor de Deus que nos inflama de
vida. Para o acompanhador, esta é a oportunidade de uma escolha decisiva em seu
ministério. Colocar-se como privilegiado e em degrau acima por conta do cargo que
considera ter recebido ou fazer-se um irmão de caminhada, que assume ter sido encontrado
pela misericórdia divina em algum momento de sua vida.
Ter diante dos olhos o critério da dignidade humana é reconhecer as maravilhas que
Deus opera ao longo da história, deixando-se encontrar no mistério da criação e no rosto de
cada ser humano. Neste sentido, a competência de sentir-se parte do tecido humano, parte
do encontro que fazemos com o rosto do irmão de caminhada. Para o Papa Francisco, em
cada novo encontro, é preciso [...] reagir a partir da e da caridade e reconhecer nele um
ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai,
uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isso é ser cristão! (GE 98).
E, diante dessas considerações, soam forte as recomendações finais do Papa Francisco
aos jovens: Mas para acompanhar os outros nesse caminho, primeiro precisas ter o hábito
de percorrê-lo tu próprio (CV 298). Para ilustrar estas palavras todo acompanhador é,
antes de tudo, uma pessoa necessitada de acompanhamento, formação constante e disponível
aos caminhos novos que a comunidade de fé tem como meta para a vivência do Evangelho.
CONCLUSÃO
Propomos o caminho da continuidade e da criatividade que o Espírito é capaz de
despertar. O ministério do acompanhamento é antigo, se pensarmos nas primeiras
comunidades que tinham o costume de ouvir o ensinamento dos apóstolos, partir o pão e
socorrer as necessidades dos empobrecidos (At 2,42-47; 4,32-35; 5,11-16).
A vida de fé é uma novidade para as realidades que caracterizam a sociedade atual, que
busca a independência, a autonomia e a liberdade de expressão. Mas como recurso, isola as
pessoas em perfis de redes sociais, sempre mutantes e novas, tendo como referência a área
plana dos aparelhos eletnicos. Diferentemente, a experiência de é multidimensional, move
nossas vontades para um encontro com a realização última, que é uma pessoa, Jesus Cristo.
A redescoberta da importância dos acompanhadores, desde as comunidades da
primeira hora, é uma ousadia, que é motivo de conversão para os estilos pastorais e
estruturais da Igreja hoje. O paradigma da iniciação à vida cristã exige recalcular a rota das
MACHADO, Arl Philippi; PERETTI, Clelia; DEBASTIANO, Nmia tima Lopes da Silva
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decisões feitas pelas lideranças e respectivas comunidades, em vista do ideal de acolhida e
cuidado da vida dos pequenos, do órfão e da viúva, do estrangeiro e do patrício que vive em
nossas periferias.
Uma certeza que alenta é a presença do Espírito de Deus, que recorda tudo que é
necessário (Jo 14,26), mas respeita a liberdade de escolha dos homens e mulheres. Neste
sentido, que todas as pessoas constituídas de autoridade, que atuam nas instâncias de
decisão de nossas comunidades, sejam dóceis às moções do Espírito Santo, que soprando
novamente, fortalece e coragem para sair e dar testemunho por todos os lugares com
sinais próprios (Mc 16,20) de discípulos missionários de Jesus Cristo, crucificado-
ressuscitado.
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vocacional. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) Curso de Teologia, Faculdade São
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Revista Teopráxis,
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
CUIDADO, PARTILHA, RESILIÊNCIA
princípio da igualdade e a
violência de gênero
CARE, SHARING, RESILIENCE
principle of equality and
gender violence
Mari Teresinha Maule*
Resumo: O princípio constitucional da igualdade, sedimentado no
enunciado do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, é um marco no
ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que ao ser inserido no
capítulo dos Direitos Fundamentais,foi alçado avalor supremo e fundante
da legislação constitucional, carregando consigo alto grau de imperatividade,
cuja violação acarreta em ilegalidade e/ou inconstitucionalidade. Este
princípio traz em seu bojo a interpretação que, pessoas colocadas em
situações de vulnerabilidade diferentes, sejam tratadas de forma desigual.
Constata-se, que a igualdade formal, está bem distante da realidade que se
vive, quando equilatada nas relações entre homens e mulheres, o que fica
demonstradopelos altos índices de práticas violentas que as mulheres sofrem
cotidianamente. Tais atos acabam por aniquilar um dos valores fundantes
éticos da nossa humanidade, que é a vida, cujo ato de criação objetivou quea
tornássemos digna e saudável, em todas as suas dimensões do Ser e do
Conviver no cuidado de Si e dos Outros, como forma essencial para a
transformação das estruturas excludentes e desiguais da sociedade. Partindo
deste princípio constitucional, e utilizando-se do método da revisão
bibliográgica, objetiva o presente texto, discorrer como se apresentam as
relações interpessoais de gênero na sociedade, expondo o projeto chamado
circu(LAR), como experiência inovadora na superação de realidades de
violência. Neste sentido, os grupos e movimentos da sociedade civil e das
comunidades, são elementos essenciais, e agregadores de espaços/tempo que
possibilitam olhar os sentimentos, angústias e a partilha de experiências,
emoções e afetos na busca da superação e transformação desta realidade,
constituindo-se na concretização da sonhada Esperança e amorosidade social
defendidas pelo Papa Francisco (Fratelli Tutti).
Palavras-chave: Igualdade. Violência. Cuidado. Partilha. Resiliência.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 103-113, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: https://dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.51
* Bacharel em Direito pela Universidade de
Santa Cruz do Sul (1993), Mestra em
Desenvolvimento Regional Político
Institucional pela Universidade de Santa Cruz
do Sul (1999). Especialista pela Universidade
de Passo Fundo em Direito Civil e Direito
Processual Civil (2015). De 1999 até 2018,
docente na Universidade de Caxias do Sul e
Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica e
do Serviço de Assistência Jurídica gratuita na
mesma instituição. Foi coordenadora do
Curso de Direito do ano de 2013 a 2016, no
Campus da UCS de Guaporé. Advogada
atuante nas áreas de responsabilidade civil,
administração pública, direito constitucional,
processo civil, direito de família, direito do
consumidor. Membro e sócia fundadora da
ONG ECOPAZ de Guaporé-RS. Membro e
sócia fundadora da Fraternidade da
Anunciação da Cidade de Goiás-GO. Membro
da equipe de coordenação do projeto
circu(LAR): O mosaico dos cuidados.
Email: mari_maule@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-4151-6383
Recebido em 14/04/21
Aprovado em 26/06/21
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
Abstract: The constitutional principle of equality, included in article 5º,
caput of the Federal Constitution of 1988, is a legal framework in the
Brazilian legal system, when it was inserted in the Fundamental Rights
chapter, it was raised as a supreme and founding value of constitutional
legislation, carrying a high degree of imperativity, whose violation results in
illegality and / or unconstitutionality. This principle brings, with its
interpretation, that people placed in different situations are treated
unevenly. It appears that formal equality is far away from the reality we are
inserted, when comparing the relationships between men and women,
which is demonstrated by the high rates of violent practices that women
experience daily. Such acts, end up annihilating one of the fundamental
ethical values of our humanity, which is life. In the intended act of creating
life, aimed at making it dignified and healthy, in all its dimensions of Being
and Coexisting and in the care of the Self and the Others, they are
considered as essentials in the transformation of the exclusionary and
unequal structures of society. Starting from this constitutional principle, and
using the literature review as a method, the present text has as objective to
discourse about how the interpersonal gender relations are presented in
society, exposing the project entitled Circu(LAR), as an innovative
experience on violence superation. And, in this sense, the groups and
movements of civil society and communities, are essential elements, and
aggregators of spaces / time that make it possible to look at feelings, anguish
and share of experiences, emotions and affections in the search to overcome
and transform this reality, constituting the fulfillment of the dreamed Hope
defended by Pope Franscisco (Fratelli Tutti).
Keywords: Equality. Violence. Care. Sharing. Resilience.
Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida. Não desistir da luta. Recomeçar na
derrota. Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos. Ser otimista.
Creio numa força imanente que vai ligando a família
humana numa corrente luminosa de fraternidade
universal. Creio na solidariedade humana. Creio na
superação dos erros e angústias do presente.
Cora Coralina
INTRODUÇÃO
Objetiva este artigo, a partir da análise do conceito de igualdade
de gênero contemplado pela Constituição de 1988, em seu artigo 5º, e
inserido no Capítulo dos Direitos Fundamentais, analisar e pontuar
como em seu aspecto formal e material, o referido dispositivo legal,
incide nas relações, na sociedade brasileira. Para tanto, busca-se
retratar, por meio de números divulgados em órgãos oficiais, o índice
de violência que ainda se encontra presente na sociedade, tendo por
vítimas pessoas do gênero feminino. Tal fato coloca em
questionamento o aspecto material e proporcional da referida norma
constitucional, eis que o indice de violência que é uma realidade
atemporal, enraizada, ininterrupta, e que cada vez mais se alastra em
termos de modos pelos quais se manifesta coloca em questionamento,
a sua efetividade.
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Ocorre que, mais que no aspecto formal, a igualdade, se aperfeiçoa e se personifica,
nas relaçoes interpessoais e grupais, que tenham o olhar sensível da escuta e a prática de
ações de cuidado, e com isso, acabam por modificar significativamente esta realidade.
Saliente-se, a importância das iniciativas e investimentos dos movimentos da sociedade
civil, das pastorais das comunidades, dos diversos grupos, que buscam esta transformação e
assim contribuem para tornar realidade o projeto Fraterno e Solidário, que como diz o Papa
Francisco, vem eivado de Esperança (FT 55).
Inicialmente, será examinado o marco jurídico constitucional, com destaque à
Constituição Federal de 1988, que estabelece os direitos fundamentais de igualdade de
gênero, em especial os artigos e 226, em que se encontra expresso esse princípio,
discorrendo brevemente sobre os mesmos.
Em um segundo momento, é objeto de análise o aspecto da violência que sempre
esteve e está presente nas relações pessoais e interpessoais de nossa sociedade, aportando
levantamentos elaborados pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul e outros órgãos que
apresentam números de pessoas do gênero feminino, que sofrem algum tipo de violência
física, moral e outras.
Em um terceiro momento, defende-se que é a partir da experiência coletiva,
fomentada nos diversos movimentos sociais, governamentais, pastorais, como sendo um
dos caminhos possíveis e concretos de se conseguir superar as limitações, condicionamentos
e materializar o que Papa Francisco nos conclama, a uma amizade social solidária, justa,
fraterna e igualitária. Nesta direção, referencia-se à experiência com grupos de mulheres
vítimas de violência, desenvolvido pela ONG Ecopaz, junto ao poder Judiciário da Comarca
de Guaporé, como exemplo de ação de acolhimento e apoio de forma prática frente às
situações sofridas por este grupo.
Tal experiência demonstra que somente cultivando a dimensão do autocuidado, o
cuidado do outro, criando espaços de resiliência, torna-se possível superar desigualdades,
exclusões, violências, opressões e injustiças históricas. Principalmente, esperançando que
todos nós, mas em especial as pessoas que se encontram em maior vulnerabilidade social,
econômica, moral e psicológica, possam efetivamente viver, o projeto da igualdade e a
cultura de paz e bem viver.
1 CONCEITO DE IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O conceito jurídico de igualdade, insculpido no enunciado do artigo
da Constituição Federal assegura mais que uma igualdade formal perante a lei,
umaigualdadematerial. O objetivo do legislador foi apontaruma igualdade proporcional no
sentido de que não se pode tratar igualmente, situações provenientes de fatos desiguais.
Este princípio constitucional está sendo construído e conquistado no decorrer da
evolução da sociedade brasileira, principalmente frente às exigências de grupos e
movimentos sociais, que, através de discussões, estudos e pressões, contribuíram para que o
legislador incluísse a relevante questão de gênero no rol das Cláusulas Pétreas e no Capítulo
dos Direitos Fundamentais, entre outros preceitos, os direitos iguais para homens e
mulheres. Melhor dizendo, direitos e garantias que são fundamentais à vida humana digna,
em concordância com os ideais dos Direitos Humanos, essenciais à persecução da dignidade
humana. Como observa Leila Linhares Barsted:
106
O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo de
mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo políticas
públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei.
Desde meados da década de 70, o movimento feminista brasileiro tem lutado em
defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos
Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto
nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de
mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a
conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais
como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a
igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc
1
.
Considerado como um dos principais direitos humanos e fundamentais encontra
sua previsão no artigo 5º, inciso I da CF/88, e prevê expressamente a igualdade entre
homens e mulheres:
Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição
2
no artigo 226 da Constituição, encontra-se prevista a proteção do Estado,
direcionada de forma a equilibrar, reconhecer e proteger a mulher frente à entidade
familiar, assegurando-lhe igualdade, o que diferentemente das demais legislações
constitucionais e infraconstitucionais anteriores à Carta de 1988, não fora contemplado. O
atual artigo constitucional que versa sobre a matéria, assim firmou:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§1ºO casamento é civil e gratuita a celebração
§2ºO casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei
§Para efeito da protão do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e
a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento
§Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes
§5ºOs direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher
§6ºO casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio
§Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,
vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas
§8ºO Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos
que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito
de suas relações (grifo nosso).
Quanto ao referido artigo, assinale-se a previsão do §5º, que assegura que homem e
mulher igualmente, têm direitos e deveres frente à sociedade conjugal, ou seja, ambos
decidem sobre a economia familiar, educação e guarda dos filhos, diferentemente das
previsões normativas anteriores, bem como a garantia assegurada no §8º, de criação de
mecanismos para prevenir e coibir qualquer tipo de violência nas relações familiares.
1 Leila Linhares BARSTED, A Legislação civil sobre família no Brasil. In: As Mulheres e os Direitos Civis. Coletânea
Traduzindo a legislação com a perspectiva de gênero. p.35.
2 BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em Dezembro 2020.
MAULE, Mari Teresinha Maule
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Nesta esteira do §8º, importante destacar na legislação brasileira, o grande avanço
normativo de âmbito infraconstitucional, representado pela promulgação da Lei 11.340
de 07 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha, que versa sobre a prevenção e o combate à
violência contra a mulher.
No entanto, apesar de termos atualmente uma previsão normativa moderna, longos
passos se fazem necessários trilhar para uma efetiva igualdade. Constatação, que se infere
pela representação dos dados da realidade cotidiana brasileira (sociais, culturais, emprego e
econômicos...), que invocam a distância entre os avanços normativos e as práticas sociais, e
refletem um padrão discriminatório em relação ao gênero feminino, pois o que se deve
atentar não é tão somente a igualdade perante a lei, mas o direito à igualdade mediante a
eliminação das desigualdades na prática.
Comprova-se tal afirmativa, por exemplo, trazendo à discussão as diversas faces das
violências sofridas pelo gênero feminino. Cumpre referir, que elegemos este aspecto, entre
os muitos, para expor frente ao conceito de igualdade, por estar mais próximo à nossa
realidade profissional, ressaltando que se impõe sejam estabelecidas diferenciações
específicas práticas, como única forma de dar efetividade ao preceito isonômico consagrado
na Constituição.
2 IGUALDADE E VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Abordar um tema ainda delicado, que é o da igualdade e a violência de nero, deve
necessariamente ter como base a análise de dados da nossa realidade e cotidiano, que
diariamente são alimentados pelos órgãos oficiais. Neste sentido, os números nos
demonstram um panorama aproximado de como se encontra esta realidade, insta observar
que muitos casos não são denunciados pelas vítimas, permanecendo no silêncio e fora das
estatísticas oficiais. E ainda, que não se trata de um tema tão novo, mas que acaba por se
atualizar de forma permanente, infelizmente.
Ao mesmo tempo, sabe-se que diversas entidades civis, religiosas, dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judicrio, promovem campanhas de conscientização, projetos, cursos, programas
com a finalidade de tomada de consciência e de modificação deste panorama.
Tomemos como exemplo, que na Campanha da Fraternidade de 2018 (CF/2018), a
Igreja Católica convocou o Poder Público e a sociedade para programarem e desenvolverem
ações que promovessem relações de fraternidade e contribuíssem para o enfrentamento e a
superação das violências que machucam, ferem e matam pessoas, e acabam por macular a
obra da criação.
Tendo passado quase três (03) anos desta provocação, por parte dos Bispos do Brasil
através da CNBB, e ainda transcorridos mais de 32 (trinta e dois) anos da promulgação da
Constituição Federal, comprova-se que, mesmo que esteja exposto como princípio na Carta
Magna e/ou ainda a temática ter sido abordada por uma entidade de grande importância tal
como a CNBB, o tema da violência de gênero é delicada e grave, agride a sociedade como
um todo, e ainda é normalizada na cultura brasileira, pois que, ainda se encontra presente nas
relações interpessoais, familiares, como restará demonstrado pelos números abaixo mencionados.
Segundo o Atlas da Violência 2020, do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, em 2018: 4.519 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa
de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino, ou seja, uma mulher foi
assassinada a cada duas horas. Sendo que 68% destas mulheres assassinadas eram negras.
Enquanto entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no último ano
foi de 2,8 por 100 mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por 100 mil, praticamente o
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dobro. A diferença fica ainda mais explícita em estados como Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba, onde as taxas de homicídios de mulheres negras foram quase quatro vezes maiores
do que aquelas de mulheres não negras. Em Alagoas, estado com a maior diferença entre
negras e não negras, os homicídios foram quase sete vezes maiores entre as mulheres negras
3
.
Desde que a pandemia do coronavírus começou, 497 mulheres perderam suas vidas.
Foi um feminicídio a cada nove horas entre março e agosto/20, com uma média de três
mortes por dia. São Paulo, com 79 casos, Minas Gerais, com 64, e Bahia, com 49, foram os
estados que registraram maior número absoluto de casos no período
4
.
A Secretaria da Segurança do Rio Grande do Sul, também publicou os indicadores de
violência contra mulher, listados entre ameaças, lesão corporal, estupro e feminicídio
tentado e consumado dentro do período de janeiro até outubro de 2020, foram registrados:
27.176 ameaças, 15.299 lesões corporais, 1.466 estupros, 67 feminicídios consumados e 288
feminicídios tentados; cabe destacar, que segundo dados oficiais inúmeras mulheres não
denunciam a situação de violência que vivem, o medo é um dentre os motivos que
camuflam esta realidade
5
.
Esta violência atinge diretamente as mulheres, e se personifica, conforme prevê a Lei
Maria da Penha, de diversas formas: patrimonial, sexual, física, moral e psicológica e
indiretamente quando atinge seus filhos e pessoas próximas. Muitas destas realidades
encontram espaços dentro dos lares, o local que deveria ser de construção da subjetividade,
dos afetos, torna-se campo do medo, da dor, das lágrimas e até da morte, como
demonstrado acima.
Por outro lado, outra nuance desta realidade é que as relações fragilizadas, a
desigualdade social, insensibilidade, a demanda massiva de trabalho e a falta de
investimentos nas políticas sociais também são fontes de violências, que nos desafiam.
Frente a esta realidade e na perspectiva do cuidado, vislumbra-se que através da
promoção de ações de escuta sensível, acolhimento, partilhas de experiências e afetos,
reflexões, resiliência, olhares, informações e fortalecimento coletivo é que efetivamente
mudam e endossam igualdade de gênero na prática.
3 PROJETO CIRCU(LAR): O MOSAICO DOS CUIDADOS
Neste sentido, fazemos referência a uma experiência bem sucedida, ocorrida na
Comarca de Guaporé, na area da abrangência da Arquidiocese de Passo Fundo.
No ano de 2018, a ONG ECOPAZ
6
, com sede em Guaporé firmou parceria com o
Poder Judiciário, na Comarca de Guaporé-RS, com a finalidade de desenvolver o projeto
chamado: Circu(LAR): O mosaico dos cuidados.
Este projeto foi concretizado através de convênio firmado com o Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul
7
, tendo sido desenvolvido e coordenado por mulheres, durante todo o
3 IPEA. ATLAS DA VIOLÊNCIA 2020. Disponível em: <https://dx.doi.org/10.38116/riatlasdaviolencia2020>
4 BRASIL DE FATO. Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia. Disponível em: <https://
www.brasildefato.com.br>
5 SSP-RS. Indicadores da Violência Contra a Mulher - Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.ssp.rs.gov.br/
indicadores-da-violencia-contra-a-mulher>
6 A ECOPAZ é uma Organização Não Governamental que foi instituida em 2007. Direciona-se desde então, ao
desenvolvimento de trabalhos voltados para o protagonismo, resolução de conflitos, formação humana, construção de
culturas de paz, fortalecimento da auto estima, empoderamento e promoção dos direitos humanos.
7 O Projeto Circu(LAR): O mosaico dos cuidados, foi contemplado através do Edital nº002/2017-VEC, realizado pela
Vara de Execuções Criminais da Comarca de Guaporé, sendo o firmado o primeiro Termo de Convênio 01/2017, e o
mesmo renovado para a continuidade do projeto no periodo de 2018, 2019 e 2020. Os relatórios, prestação de contas,
avaliações, registros fotográficos e demais apontamentos encontram-se arquivados junto ao rum de Guapo e
também junto à secretaria da ECOPAZ.
MAULE, Mari Teresinha Maule
Cuidado, partilha, resiliência: princípio da igualdade e a violência de gênero
Revista Teopráxis,
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ano de 2018 e 2019, e parte de 2020 (em decorrência da pandemia pelo Coronavirus, o
referido projeto encontra-se suspenso).
O projeto foi desenvolvido através de encontros mensais com as mulheres vítimas de
violência doméstica e de gênero, cujos registros policiais deram origem a um processo
judicial que tramitava/tramita no Fórum da Comarca de Guaporé. Nas agendas mensais,
foram priorizadas dinâmicas que possibilitaram a abertura e entrosamento, e
consequentemente a confiança e o diálogo, além da escuta ativa como forma de
manifestação de empatia para a construção de um processo coletivo. As dinâmicas
desenvolvidas propiciaram também a percepção do cuidado de si e da outra, e de que a
formação de laços e vínculos acabam por estimular a sororidade e a força de cada uma,
amplificando assim, o poder interno do grupo.
Tendo por fundamentos metodológicos o embasamento na dialogicidade, na
participação, na escuta, nas partilhas, no acolhimento e no potencial para resiliência de
mulheres em situação de violência, objetivou-se o empoderamento e fortalecimento através
do olhar para si e para as demais, em uma dimensão ético-estético-afetiva do cuidado,
ressignificando-se a partir das (com)vivências.
Ao valorizar as histórias de vida das mulheres e ao partilhá-las com as demais,
estabeleceu-se o sentido de conexão do grupo e o fortalecimento deste, pois que ao
acessarem as suas histórias pessoais, visível era o sentimento externado de ligação umas às
outras, encontrando seus lares-coração, umas nas outras, compondo um verdadeiro
mosaico de diferentes formatos que juntos se integraram para dar forma a um todo
coerente, eis que os relatos das violências sofridas encontravam eco e semelhança em cada
uma das participantes.
A título de exemplo, no ano de 2019, foram desenvolvidas as seguintes temáticas,
através de pedagogias ativas: 1- Ser mulher na sociedade contemporânea: a construção
histórica e social da mulher, a mulher da idade média X a mulher moderna; transformações,
lutas, desafios, possibilidades; 2- Mulher, resistência e luta: contextualização dos
movimentos históricos de luta das mulheres, referências de mulheres que estiveram à frente
de grandes movimentos de luta por direitos e a conquista de direitos (ex.filme As
sufragistas); 3 - Mulher e a economia social solidária: os movimentos de economia
solidária, o trabalho coletivo para geração de renda, a mulher que mantém a casa e a família;
4- Mulher: imagem, estereótipo e mídia: a imagem da mulher na mídia, os estereótipos
construídos, padrões de beleza e comportamento, as representações e o impacto para a
mulher real; 5- Mulher: liberdade, direitos e empoderamento: alternativas para a construção
e promoção de ações e garantia dos direitos das mulheres, empoderamento e liberdade de
ser mulher na sociedade e dona de si mesma; 6- A mulher e o sagrado feminino: a energia
do sagrado feminino presente em todas as forças do universo, os ciclos da vida da mulher, a
força criativa e de vida que move as mulheres, a sororidade e o cultivo do
autoconhecimento feminino, como potencial de empoderamento e cuidado de si mesma e
amor próprio; 7- Mulher: a arte de cuidar de si e ser cuidada: reflexões sobre cuidado, como
a mulher foi se constituindo ao longo da história por este viés (aprende o cuidar dos outros
desde a infância, porque ganha bonecas, panelinhas...), esta construção social de cuidado e
como pode aprender a olhar para si mesma como merecedora de cuidado, desconstruir o
papel que sempre foi atribuído de cuidadora e de se colocar sempre em último lugar; as
questões de saúde feminina e autocuidado.
Os relatos das mulheres que participaram do projeto foram comoventes e
extremamente positivos, na avaliação do projeto e dos encontros, eis que contribuíram no
caminho da modificação nas relações familiares, fortaleceram as mulheres para tomadas de
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decisões, nem sempre tão fáceis de serem efetivadas, eis que é raro, que não existam filhos
menores imbricados nesta teia de violências e/ou de dependência econômica. Comprovou-
se pelos relatos que o medo e o pavor asfixiam e paralisam, acarretando por consequência,
na permanência da mesma situação, repetindo os mesmos gestos e suportando as mesmas
violências, e que se fortalecidas conseguem dar um passo de cada vez, rumo à autonomia e à
superação das violências sofridas.
Sentir-se parte de uma unidade com todas(os) as(os) demais, com todos os seres,
tomar consciência da fraternidade e solidariedade ativa e que tudo o que existe é a forma de
aperfeiçoar e verdadeiramente praticar os princípios de igualdade e da fraternidade como
valor, são os objetivos de projetos desta natureza, que nas palavras de Torralba assim ressoa:
Assim, pois, a fraternidade é um valor que consiste em sentir-se ligado ao outro,
porém não como um escravo ou um servente estão unidos ao seu amo, mas
como um irmão se sente ligado ao outro. A Fraternidade é um valor essencial em
uma sociedade que padece um forte atomismo, um excesso de individualismo. É
necessário integrar o problema do outro e dar-se conta de que o problema do
outro também é meu problema
8
.
4 IGUALDADE DE GÊNERO, FRATERNIDADE E RESILIÊNCIAS
Inúmeras mulheres, de ontem e de hoje, em épocas distintas, foram/são
surpreendidas pela violência multifacetada, que conforme exposto acima, concretiza-se
através do assédio, exploração sexual, estupro, indiferenças, agressões verbais e físicas, por
parceiros ou familiares. O descaso, a indiferença e a violência, acabam por exterminar vidas,
sonhos, projetos e o sentido do viver, o que desafia sobremaneira o agir e fazer das
entidades, pastorais e movimentos sociais, entre outros.
Boff nos aponta que é o cultivo de uma dimensão de escuta, de cuidado, de
sensibilidade, que transformará a realidade e o ser humano:
Essa dimensão espiritual que cada um de nós tem se revela pela capacidade de
diálogo consigo mesmo e com o próprio coração, se traduz pelo amor, pela
sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo
cuidado como atitude fundamental. É alimentar um sentido de valores pelos quai
vale sacrificar tempo, energias e, no limite, a própria vida
9
[...].
O exemplo de muitas mulheres que junto com outras, nos diversos grupos e
movimentos que despontam na sociedade e nas comunidades de vida, nos mostra ser possível
conseguir superar as limitações, condicionamentos e concretizar o que Papa Francisco chama
de uma amizade social e que a norma jurídica conceitua como de igualdade de gêneros.
Defendemos que, em todos os ambientes laicos, jurídicos, mas em especial nas
comunidades cristãs, igrejas, sejam criados espaços/tempos para realizar a pedagogia dos
encontros que possibilitem olhar para os sentimentos, angústias e utopias, para a partilha de
experiências, emoções e afetos e para o cultivo de cuidados consigo e com os outros.
O Cardeal José Tolentino de Mendonça na meditação apresentada à CNBB em 25 de
novembro de 2020, nos traz uma belíssima parábola, para explicitar a importância deste
gesto simbólico do cuidado, que pode ser personificado pelo abraço. Neste caso Tolentino,
refere-se à criação da sala dos abraços, em uma casa de repouso para idosos, na Itália, para
que parentes e amigos, nestes tempos de pandemia, possam com todos os cuidados e
obedecendo regulamentos de saúde, abraçar os seus parentes idosos. Isso através de uma
cortina especial de plástico. A respeito diz ele que:
8 Francesc TORRALBA, Inteligência espiritual, p.136.
9 Leonardo BOFF, Espiritualidade um caminho de transformação, p.51.
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Cuidado, partilha, resiliência: princípio da igualdade e a violência de gênero
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[] Um abraço é uma escola de humanidade. O abraço é uma longa conversa
que acontece sem palavras. Tem uma incrível força expressiva. Comunica a
disponibilidade para entrar em relação com os outros, superando o dualismo,
fazendo cair armaduras e desculpas. Os abraços são a arquitetura íntima da vida,
o seu desenho invisível; são plenitude consentida ao afeto que reconcilia e
revitaliza. Num abraço, tudo o que tem que ser dito soletra-se no silêncio, e
ocorre isto que é tão precioso e afinal tão raro: sem defesas coloca-se á escuta de
outro coração
10
.
E, nestes tipos de espaços, através de uma metodologia do cuidado e voltada ao
coletivo, que é possível fazer despertar o potencial humanizador e transformador do gênero
feminino; construir espaços de resiliência, sororidade; cultivar a coragem e concretizar a tão
sonhada Esperança de Francisco defendida na Encíclica Fratelli Tutti. Materializando assim, o
conceito de igualdade, cultura de paz e do bem viver com pequenas ações em pequenos
grupos, nos tornando pequenas luzes de transformação das realidades e de superação dos
diversos tipos de violências que machucam individual e coletivamente.
Para BOFF, trata-se na verdade da procura e do encontro. Assim:
[] presença ativa e revolucionária de Deus dentro do universo presença
cósmica, comunitária e social, pessoal, presença íntima a cada pessoa humana.
Porque é dentro de cada pessoa que está o reino de Deus, é a partir do interior de
cada ser humano que Deus mesmo produz transformaçõe. O Reino de Deus é a
presença transformadora de um Deus que se acercou de nós e veio buscar o que é
seu: seus filhos e filhas, para resgatá-los, purificá-los e assim transfigurá-los, a
eles e a tudo que os cerca, a natureza e o universo
11
.
Seremos herdeiros (as) de um projeto de fraternidade e solidariedade, se tentarmos
refazer esta experiência de amor incondicional pelo outro, mulheres e homens
igualitariamente colocados no mesmo patamar, tal como quando da criação descrita no
Gênesis, E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou (Gn 1,27) objetivando o bem maior que é um novo céu e uma nova
terra (Ap 21,1) se:
[] tentarmos continuamente refazer a experiência de Jesus, nos sentirmos
filhos e filhas de Deus e, ao mesmo tempo, olharmos os outros como filhos e
filhas, tratando-os com sumo respeito, como quem contempla, reverente, Deus
nascendo dentro de cada um e fazendo de cada mulher, de cada homem, seus
filhos e filhas, nossos irmãos e irmãs
12
.
Trata-se de resgatar a imagem da Ternura Divina, que encarnada e possuidora de um
profundo amor pela humanidade vem, para nos lembrar que o mais importante é o AMOR
que temos pelo Outro, que o existem diferenças em direitos e que na presença do qual
referenciamos como Espírito de Mãe, Amor Divino, Amor Eterno, Fonte de todo o Amor
13
,
somos todos iguais, pois o desafio é concretizar um projeto de fraternidade coletivo
[] onde não deve haver privilegiados que desprezam os indesejáveis, santos
que condenam aos pecadores, puros que separam os impuros, varões que
submetem as mulheres, ricos que abusam dos pobres Deus não abençoa a
exclusão nem a discriminação, mas a igualdade e a comunhão fraternal
14
.
10 José Tolentino de MENDONÇA, Que parábolas para este tempo? Disponível em: < https://www.pom.org.br/que-
parabolas-para-este-tempo/ >
11 Leonardo BOFF, Espiritualidade um caminho de transformação, p.23.
12 Leonardo BOFF, Espiritualidade um caminho de transformação, p.26.
13 Marcelo BARROS, Diálogos com o Amor: com os salmos, orar o hoje do mundo, p.20-21.
14 José Antônio PAGOLA, É bom crer em Jesus, p.210.
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Acreditar e defender, que as ações dos movimentos da sociedade civil, religiosas, dos
poderes instituídos, entre outros, devam buscar através de movimentos concretos, tais
como, na experiência acima referida desenvolvida pela ECOPAZ, se o aperfeiçoamento
diário do princípio da igualdade, e tal como definido no nesis e na Constituição Federal
Brasileira. Para que, em cada uma das pessoas de gênero feminino possa florescer e crescer,
o sentimento de completude e de unidade, de seres de irradiação junto com o Outro. O Eu e
Tu, personificados, nas palavras de Buber: O Eu e Tu desaparecem, a humanidade que,
pouco estava na presença da divindade, se submerge nela; aparecem a glorificação, a
divinização e a unidade
15
. É assim que cresceremos em mais humanidade e igualdade.
Incluídos neste projeto, seremos conjuntamente sujeitos de mudança das estruturas
violentas da sociedade, perseguindo o objetivo de afastamento da estrutura social da
realidade da exclusão tanto quanto for possível, e que ninguém fique excluída(o), homens e
mulheres, do nosso mundo, da nossa comunidade, da nossa sociedade e do Divino Amor.
Concluo com a poesia de Joan Maragall, que assim traduz este grande mistério e projeto:
Viver é desejar mais, sempre mais: desejar não por apetites, mas por esperança.
A esperança é a marca da vida; amar até o ponto de poder dar-se pelo amado.
Poder esquecer-se de si mesmo, isto é ser o que se é; poder morrer por alguma
coisa, e isto é viver. Aquele que só pensa em si naõ é nada, está vazio; o que não é
capaz de sentir o gosto de morrer, é porque está morto. Somente quem for
capaz de senti-lo, quem puder esquecer de si mesmo, quem souber dar-se, quem
ama, em uma palavra, está vivo. E, então não tem sentido pôr-se a andar.
Ama, e faz o que queres
16
.
CONCLUSÃO
Podemos afirmar que a Constituição Federal de 1988, foi um marco na normatização
do princípio da igualdade na sociedade brasileira, trazendo consideráveis avanços, em todo
ordenamento jurídico, inclusive na legislação infraconstitucional.
Necessário se faz pontuar que em que pese, o aspecto formal da lei ser considerado
avançado e condizente com as legislações mais modernas vigentes em outros países, quando
analisada sob o aspecto do direito comparado, o aspecto material deixa a desejar.
A realidade dos fatos, exposta em pesquisas realizadas por órgãos competentes e
sensíveis à questão de gênero, demonstra que o número de casos de violência contra as
mulheres é absurdamente alto, e que, por conseguinte, muitos passos se fazem necessários
trilhar e muitos obstáculos devem ser transpostos para que a eficácia da norma legal se
alinhe com a realidade de proteção e pacificação frente à violência impingida às mulheres,
implementando assim a igualdade material na questão do gênero.
Experiências e práticas promovidas pelos diversos segmentos de nossa sociedade, a
exemplo do projeto circu(LAR): o mosaico dos cuidados, acima referido, demonstram que é
possível a partir do acolhimento, da escuta, da atenção, do cuidado, do auxílio, do apoio e
carinho fazer superar estas violências, rumo à autonomia, dentro de um projeto maior
pautado pelos valores da igualdade, esperança e fraternidade.
15 Martin BUBER, Eu e Tu, p.100.
16 MARAGALL apud Francesc TORRALBA, Inteligência espiritual, p.92.
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BARROS, Marcelo. Diálogos com o Amor: com os salmos, orar o hoje do mundo. 3.ed. Belo
Horizonte: Ed. Senso, 2019.
BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1981.
BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em Dezembro 2020.
BRASIL. LEI Nº11.340 DE 07 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm> Acesso em
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BRASIL DE FATO. Uma mulher é morta a cada nove horas durante a pandemia. Disponível em:
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MENDONÇA, José Tolentino de. Que parábolas para este tempo? Pontifícias Obras Missionárias.
2020. Disponível em: < https://www.pom.org.br/que-parabolas-para-este-tempo/ > Acesso em
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PAGOLA, José Antônio. É bom crer em Jesus. Petrópolis: Vozes, 2016.
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TJRS. Coordenadoria Estadual da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de
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TORRALBA, Francesc. Inteligência espiritual. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
MAULE, Mari Teresinha Maule
Cuidado, partilha, resiliência: princípio da igualdade e a violência de gênero
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.103-113, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
LEITURA BÍBLICA SOB A
ÓTICA DA MULHER
espiritualidade e
empoderamento das mulheres
BIBLE READING FROM THE
PERSPECTIVE OF WOMEN
spirituality and
women's empowerment
Simone Furquim Guimarães*
Luísa de Lucas**
Resumo: Este texto é resultado da experiência de reflexão bíblica sobre as
mulheres do Primeiro Testamento, organizado pela Itepa Faculdades, através
da plataforma Google meet. O curso, que teve a duração de quinze encontros,
foi conduzido seguindo a metodologia da leitura popular da Bíblia na ótica de
gênero. O presente texto possui como objetivo partilhar impressões, e
constatar através das manifestações, depoimentos e escritos das mulheres
envolvidas no curso, o progressivo processo de empoderamento pessoal e do
grupo. Reafirmamos nossa fidelidade a Deus que através da Palavra se fez
carne segundo as Escrituras para salvar/libertar todas as pessoas que estão
nas periferias, no ocultamente, sem palavra, excluídas da sociedade e que na
sua grande maioria, são mulheres sem voz e sem vez.
Palavras-chave: Mulheres. Experiências. Desconstruções. Descobertas.
Leitura bíblica. Teologia feminista.
Abstract: This text is the result of an experience of biblical reflection on
women of the First Testament, organized by Itepa College, through the
Google meet platform. The course, which lasted fifteen meetings, was
conducted following the methodology of popular reading of the Bible from a
gender perspective. The present text has as objective to share impressions, and
to verify through the manifestations, testimonies and writings of the women
involved in the course, the progressive process of personal and group
empowerment. We reaffirm our fidelity to God who through the Word was
made flesh "according to the Scriptures" to save/liberate all the people who are
on the outskirts, in the hidden, 'without a word', excluded from society and the
vast majority of whom are women without voice and no time.
Keywords: Women. Feminist Theology. Gender. Liberation Theology.
History. Interreligious dialogue.
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 114-123, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.63
* Simone Furquim Guimarães, leiga, teóloga,
especialista em assessoria bíblica pelo CEBI/
EST; mestre em teologia pela EST; assessora e
coordenadora do Cebi Planalto Central.
E-mail:
simone_furquim_guimaraes@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4743-2399
** Luísa de Lucas é religiosa das Irmãs de
Notre Dame; pedagoga; mestra em Teologia
pela PUCRS.
E-mail: marialuisa@notredame.org.br
https://orcid.org/0000-0003-1629-6814
Recebido em 28/04/21
Aprovado em 12/08/21
115
INTRODUÇÃO
Qual a mulher que, tendo dez dracmas e perder uma, não acende a lâmpada, varre a casa e
procura cuidadosamente até encont-la? E encontrando-a, convoca as amigas e vizinhas, e
diz: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma que havia perdido! (Lc 15,8-9).
Inicia-se o ano de 2021. Um ano que vem assinalado desde março de 2020 pela
Covid-19 e todas as suas consequências, trazendo infinitas dores e sofrimentos. Dentre esses
sofrimentos e dores, as mulheres são as mais afetadas, especialmente pelo aumento da
violência, tanto no âmbito doméstico como no social com o aumento da fome, miséria, falta
de políticas públicas que atendam às necessidades básicas do ser humano. De diferentes
formas também em vários setores da sociedade, acende-se a chama da resistência e da luta
por justiça e solidariedade. Esta chama se traduz nos inúmeros despertares de movimentos,
de círculos de homens e mulheres que se reúnem, mesmo que virtualmente, para construir
redes de apoio e solidariedade.
Diferentes experiências, nos espaços e âmbitos das igrejas, entidades, e organismos da
sociedade organizada, surgiram neste contexto de pandemia objetivando manter unidos os
seus integrantes e buscando ajudar as pessoas a manter-se fiéis e resistentes nos valores do
Reino de Deus. As experiências que buscamos tematizar em relação ao curso Mulheres na
Bíblia no Primeiro Testamento, promovido pela Itepa Faculdade
1
, se inscreve como uma
destas experiências dentro desse universo. Nesta direção, insta observar que a Igreja, através
de seus vários organismos, possui uma bonita caminhada da leitura popular da Bíblia. Neste
caso em particular o apoio e as contribuições fecundas advindos dos materiais
produzidos pelo Cebi
2
.
Tendo por objetivo construir uma ponte hermenêutica entre o tempo do escrito
bíblico e o momento da leitura hoje da Palavra de Deus, e como finalidade recuperar sua
força recriadora de vida na prática pastoral e na vivência humano-cristã cotidiana,
constatou-se, no decorrer do curso, por meio deste método de contextualização histórico e
sociológico, a desconstrução do que foi instituído à séculos. Esta desconstrução acontece por
meio da desconfiança que, posteriormente gera a reconstrução e em especial nas trocas
interpessoais. O empoderamento do grupo e das mulheres de hoje, de alguma forma, se
concretizou. Este processo foi possível através deste método, como dito, de interpretação
bíblica próprio que visa uma leitura sob a ótica da mulher: trata-se de um método utilizado
no Cebi e chamado de Leitura Popular da Bíblia.
Para o que segue, o texto encontra-se assim estruturado. Em um primeiro momento
retomamos a importância do método da leitura popular da Bíblia da maneira como foi
proposto pelo Cebi e vivenciado no curso. No segundo momento, serão expostas e
contextualizadas algumas abordagens bíblicas que foram objeto de análise e estudo durante
o desenvolvimento do curso e, posteriormente refletidos em forma de trabalhos escritos por
algumas cursistas. No terceiro e último, realçamos como a leitura interpretativa na ótica de
gênero contribui para a valorização e reconstrução da dignidade e o empoderamento das
mulheres.
1 MÉTODO DA LEITURA POPULAR DA BÍBLIA
É importante assinalar que, no ano em que se celebra o centenário de Paulo Freire, a
Leitura Popular da Bíblia tem seu berço e fonte na educação popular, inspirada nas teorias e
1 http://itepa.com.br/wp-content/uploads/2021/02/Projeto-mulheres-na-biblia.pdf
2 Cebi Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos.
GUIMAES, Simone Furquim; DE LUCAS, Luísa
Leitura blica sob a ótica da mulher: espiritualidade e empoderamento das mulheres
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práticas ensinadas por esse memorável educador. O método da leitura popular da Bíblia
3
possui uma trajetória de longo tempo e foi utilizado em muitos grupos das comunidades
eclesiais de base, estando assegurada sua credibilidade no universo bíblico. Entre alguns
autores encontramos Frei Carlos Mesters, Ildo Bonh Gass e Elaine G. Neuenfeldt, entre outros.
Frei Carlos Mesters, frade carmelita e um dos fundadores do Cebi, explica que: Deus
fala hoje na Bíblia quando lemos na comunidade, em nossa realidade. Por isso, é importante
escutar a Deus não somente na Bíblia, mas em comunidade e na realidade. É uma dinâmica
que não termina nunca
4
.
E essa dinâmica contínua de Vida e Bíblia, Bíblia e Vida, possibilita ampliar nosso
olhar para as diversidades dimensões da vida. Nasce então a Leitura Bíblica na ótica da
negritude, na ótica das juventudes, na questão dos grupos LGBTQIA+, na questão sócio-
ambiental e na ótica da mulher; também conhecida como Leitura Feminista da Bíblia.
Conforme visto, o primeiro passo deste método é colocar a vida em primeiro lugar,
qual seja a partir do cotidiano da vida das pessoas daquele tempo e fazer memória da nossa
vida e da vida das mulheres de nossa realidade. Partir da experiência significa problematizar
a realidade que muitas mulheres viveram e vivem. Não podemos somente aceitar o motivo
da realidade dada, devemos questionar. O segundo passo é fazer a leitura bíblica
questionando e suspeitando de textos, especialmente os que são violentos com as mulheres.
Textos que foram claramente interpretados de forma a silenciar e culpabilizar as mulheres.
No passo da suspeita, é possível fazer perguntas pela presença ou ausência de mulheres e
como sua memória foi silenciada ou valorizada tanto por parte da hierarquia de poder
(eclesiástica ou não), quanto por grupos marginalizados por essa hierarquia.
No terceiro passo: passo da desconstrução, na parábola da mulher que procura a
moeda, nos ajudou a compreender o método da leitura bíblica na ótica da mulher (Lc 15,8-9).
Aprendemos a acender nossas candeias, varrer e tirar toda a poeira histórica e do sistema
patriarcal
5
que impediu de enxergarmos o protagonismo das mulheres e a manifestação de
Deus através das mulheres na Bíblia e de nossa realidade e na história da humanidade. A
nossa vassoura são os instrumentais de análise da exegese bíblica, dentre eles, o estudo do
contexto sócio histórico e dos gêneros literários. Esta ciência bíblica é respaldada pela Igreja
e nos ajuda a amadurecer a nossa fé, conforme o documento do Conlio Vaticano II (DV 12).
Quando, finalmente, a mulher encontra a moeda, ela celebra com as amigas e
vizinhas. Este é o quarto passo: passo da reconstrução do texto. São as descobertas, o tomar
conhecimento, o empoderamento das mulheres, o reconhecimento de seu potencial
humano e da importância de construir redes de proteção e de sororidade
6
que nos faz
celebrar e festejar.
3 Artigo publicado no site do Cebi Nacional: https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/sobre-leitura-popular-da-biblia-
parte-i/ Acesso em 01/09/2021.
4 Artigo publicado no site do Cebi Nacional: https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/sobre-leitura-popular-da-biblia-
parte-i/ Acesso em 01/09/2021.
5 Artigo publicado no site Catarinas: Quando falamos de patriarcalismo, do que estamos falando? Estamos falando de
um modo de entender o mundo, as pessoas, Deus, e as relações entre as pessoas e a relação das pessoas com Deus, a
partir do masculino. Não um masculino amoroso, cuidadoso, solidário, igualitário. Um masculino que é patriarca,
pater famílias, pai-chefe, pai-dono, dominante, que exerce o mando sobre a esposa, os filhos, as filhas, a casa, a
sociedade, o mundo. Um masculino a partir do qual todas as coisas e todas as relações no entorno se organizam. Neste
tipo de compreensão, o feminino, a mulher, não está no mesmo nível que o masculino, que o homem; está num nível
inferior. Sua importância, seu valor são secundários; portanto ela lhe é subalterna e lhe deve obediência. Esta é a
estrutura do pensamento patriarcal. Ele cria diferenças entre as pessoas baseadas no sexo para inferiorizar o feminino e
afirmar o masculino como superior (cf. Lusmarina Campos Garcia, pastora luterana). Vide in: https://catarinas.info/
seja-feita-a-tua-vontade-mulher/?
fbclid=IwAR1raFudEKot6p6jQhFU0kri6tYUAIVvKV524AD39BZVYVxelXYhLjU84Lk. Acesso em 01/09/21.
6 Sororidade está etimologicamente ligada à palavra ror, que em espanhol significa irmã, mas não a irmã de sangue somente,
mas uma aliança com todas as mulheres que se encontram em uma determinada condão. É relão soliria entre humanos,
formando rede de los sociais que se transformam em foa e resistência, diante das situações adversas, opressoras, violentas
(cf. Verbete do Dicionário de Cultura de paz, volumes 1 e 2. (Orgs.) Paulosar Nodari e Luis Síveres).
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Leitura blica sob a ótica da mulher: espiritualidade e empoderamento das mulheres
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Passo Fundo, v.38, n.131, p.114-123, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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E foi assim que seguimos a cada encontro para estudo dos textos bíblicos. Em síntese,
seguimos cada encontro partilhando a vida, suspeitando das violências que muitas vezes são
aceitas nos textos bíblicos, desconstruindo essas interpretações com a ajuda das ciências
bíblicas e reconstruindo os textos. Processo que ajuda a encontrar caminhos de superação
das violências, bem como momento de alimentar nossa espiritualidade cristã. Fortalecer e
empoderar mulheres a partir dessas descobertas e conscientizações de seu protagonismo na
história humana.
O curso bíblico oportunizou uma visão mais aprofundada e crítica na releitura dos
textos bíblicos. Para as cursistas, Ir. Neusa L. Luiz e Noeli Lacerda
7
:
Reconstruir a história do povo de Israel a partir da ótica da mulher, nos ajuda a
compreender o importante papel da mulher na história da salvação. Cada uma,
em seu tempo, ocupou seu espaço com criatividade e coragem, na certeza que
Deus libertador caminha com seu povo. A ação dessas mulheres foi tão forte, não
sendo possível silenciar e invisibilizar por completo seu protagonismo, pois
negar a participação e ação dessas mulheres seria negar a própria história de vida
e libertação do povo.
As cursistas Geni Maria Onzi Isoppo, Maria Izelda Frizzo e Marisa Virgínea Formolo
Dalavechia disseram que:
Ao longo do curso percebemos que numa sociedade patriarcal, onde o poder é
centrado no homem, a mulher fica excluída de qualquer participação e se
dependente do homem (do pai, do irmão, do marido e do próprio filho). Nesta
perspectiva, cabe-nos buscar entre tantas personagens, aquelas mulheres que
fizeram diferença na história do povo hebreu, tentando desvelar a discreta
Palavra de Deus que nos mostra a libertação.
E acrescentaram que o desafio é conhecer melhor a história de tantas mulheres
nomeadas ou anônimas, marginalizadas e discriminadas, que lutaram, resistiram tendo em
comum uma convicção profunda alimentada por sua . No próximo item iremos, então,
expor algumas falas do grupo de cursistas que nos enviaram suas reflexões sobre o curso e
sobre o protagonismo de algumas mulheres do Primeiro Testamento.
2 PROTAGONISMO DAS MULHERES NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO
A teologia feminista é uma área de pesquisa acadêmica que tem crescido com rapidez
e pretende refutar a interpretação fundamentalista da Bíblia, ressignificar os textos
bíblicos à luz dos avanços sociais e dos avanços conquistados pelas mulheres, prega uma
interpretação sociológica das escrituras em detrimento de uma leitura literal e
fundamentalista e uma leitura humanitária da Bíblia
8
. A Teologia Feminista representa
um desafio radical ao modo como se organizou a religião cristã na Igreja Católica, uma vez
que a doutrina e a Bíblia foram desenvolvidas num ambiente patriarcal. feministas que
acreditam ser possível resgatar a Bíblia do patriarcado e que vale a penas resgatá-la. Mas,
esse resgate passa pela mudança doutrinária.
Em seus escritos Ivone Gebara sugere que é preciso desafiar as leituras
fundamentalistas e patriarcais da Bíblia e adotar uma hermenêutica da suspeita
9
. Essa
7 Aqui faremos uma ntese de poucos trabalhos enviados, pois o espaço o conseguiria abarcar todas as
riquezas partilhadas.
8 T. MATOS, O que é a 'teologia feminista' e como ela está mudando a vida das cristãs. Huf Post Brasil. 01 jul. 2017.
Disponível em: < https://bit.ly/2zBXAmG>. Acesso em 12 set. 2021.
9 I. GEBARA, Ivone Gebara: teóloga, católica e freira feminista. 11 maio 2017. Disponível em <https://bit.ly/2FI0WnY>.
Acesso em: 12 set. 2021.
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hermenêutica da suspeita feminista é feita usando a teoria do patriarcado como moldura e a
experiência feminina como lente, em relação a todo sistema conhecido de pensamento;
criticar todas as suposições, ordenar valores e definições.
A partir da experiência realizada com o curso Mulheres na Bíblia, para Geni et al, a
Bíblia interpretada pelo povo revela a presença libertadora de Deus na vida, nos fatos, na
luta e na caminhada de homens e mulheres. É a Boa Nova que nutre a esperança. A Sagrada
Escritura, a partir das experiências do povo, de tantas comunidades, de mulheres vai
explicitando o protagonismo das pessoas e a capacidade renovadora e transformadora da
Palavra de Deus.
Em seu livro, Conceição Evangelista
10
informa que recuperar a memória histórica
dessas mulheres nomeadas ou anônimas que nos precederam na fé, no serviço e no
compromisso com seu povo é contribuir para escrever uma nova história da salvação
construída sobre novas relações sociais igualitárias.
No Livro Pilares da Igreja, Geraldo Lopes
11
afirma que:
Desde o início da criação o projeto de Deus foi salvar a humanidade com igual
contribuição do homem e da mulher, portanto, ambos têm dignidade e uma
missão diante da criação e hisria da salvação. Em nenhum momento se encontra
que a mulher é inferior ao homem. A mulher é criada igualmente ao sexo
masculino, com uma participação divina de ser geradora e cuidadora da vida.
As cursistas lembram que dentre as mulheres que marcaram essa história da salvação,
no Primeiro Testamento, temos as matriarcas Sara e Agar, mesmo que silenciadas,
construíram uma linda história na promoção e defesa da vida. Destaque aqui para Agar, que
apesar das opressões sofridas por ser mulher, estrangeira e escrava, foi forte e corajosa e
encontra em Deus as respostas para suas angústias e percebe que a Aliança de Deus com seu
povo é mais importante e, com força e coragem, assume seu papel na história.
Geni et al trazem a reflexão para nossa realidade, lembrando quantas mulheres hoje,
nas condições de Agar, encontram dentro de si a força e a coragem de romper com a
dominação de seus maridos, seus chefes e conseguem se libertar, tornando-se donas de suas
vontades, independentes financeiramente e passam a cuidar sozinhas de seus filhos!
Elas lembram também que no livro do Êxodo, conhecemos as parteiras Fua e Séfora,
fiéis a Javé e ao povo. Defendem a vida contra a ordem do Faraó. Conhecemos também
Mirian, que traça o futuro da história salvando o irmão Moisés que acaba sendo poupado da
morte e criado pela filha do Faraó. O verdadeiro dono da vida não é o Faraó, mas sim
aquelas mulheres que estão em sintonia com Deus, porque resgatam e preservam a vida. No
capítulo 15, percebemos no canto de Mirian, a presença feminina na organização e fuga do
povo hebreu escravizado no Egito. O canto expressa a alegria de celebrar a vitória e o
caminho da libertação.
Conforme a autora Maria Cecilia Domezi
12
:
Temos que buscar na Bíblia também o que Deus fala a partir das mulheres. o
mulheres de inabalável em Deus libertador, corajosas em ajudar o seu povo.
Suas histórias foram passando de boca em boca se tornaram parte da Bíblia; em
importantes pedaços ou nas entrelinhas dos textos contadas só por homens.
10 Conceição EVANGELISTA, O papel da mulher no Cristianismo primitivo a partir da Samaritana, p.7.
11 Cf. Geraldo LOPES, Pilares da Igreja: o papel da mulher na história da Salvação, p.32.
12 Maria Cecília DOMEZI, Mulheres que tocam o coração de Deus, p.13.
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Geni et al dizem que em todas as épocas, surgem mulheres valorosas que se lançam
nas lutas cotidianas em busca de libertação. Algumas são lembradas por seus feitos e
recebem homenagens, outras (a maioria), nem são percebidas. Em todos os tempos, vemos
mulheres que lutam, que trabalham, que sofrem, mas que também sabem celebrar cada
momento de glória, cada degrau que conseguem subir, cada conquista.
Elas lembram que no livro de Juízes 4 e 5, Débora nos aparece como uma liderança no
meio de seu povo. Tinha a seu favor o senso de justiça e sabedoria nos seus conselhos.
Débora tem sua força reconhecida quando Barac pede sua ajuda. Ela e Jael (também
protagonista) lideram os homens armados de Israel e derrotam o inimigo.
Débora é a mulher que, acima de tudo, confia em Javé. Acreditando em si mesma
e na força do povo unido, ela acorda as tribos, convoca-as, ajuda-as a se
organizarem e chama as pessoas para a responsabilidade a partir de sua fé. Ela
também canta a vitória de Deus na vitória dos camponeses de Israel
13
.
As cursistas compreenderam que, assim como Débora, muitas mulheres hoje se
destacam na política, nos sindicatos, nas pastorais, nas escolas, nos hospitais, nos serviços
comunitários, nas ONGs, no voluntariado. Todas movidas pelo desejo de construir um
mundo melhor, livre da exploração, do preconceito, e da violência.
Outra protagonista importante considerada pelas cursistas foi Judite. Disseram que o
livro de Judite nos revela a lucidez e a coragem de uma mulher que exorta os anciãos a
serem fiéis aos mandamentos e a confiarem no plano de seu Deus. Judite utilizou de sua
inteligência para chamar a atenção deles e mostrar-lhes que não estavam sendo corretos
com Deus. Ressaltamos uma fala de Judite diante do povo, sacerdotes e anciãos. No capítulo
8,32, ela diz: Escutai-me bem. Farei algo cuja lembrança se transmitirá aos filhos de nossa
raça, de geração em geração.
Geni et al comenta que Judite espelha a mulher que se levanta, resiste e luta para
salvar o seu povo. Quantas mulheres hoje se dedicam ao bem comum da justiça, à
coletividade e à dignidade humana, aos movimentos sociais por habitação, educação e
saúde. Essas mulheres o fogem da luta. Fazemos memória a Margarida Alves, Marielle
Franco, Irmã Dorothy Stang e outras mais.
Momento forte no estudo bíblico foi entender que o poder, a corrupção e a violência,
presentes no patriarcado estão constantes nos relatos da Bíblia, vitimiza as mulheres, os
pobres e os fracos e são ainda hoje uma ferida aberta nas sociedades. Percebemos as relações
de poder violento contra Tamar, em Gênesis 38, que, para alcançar o seu direito de esposa
precisou lembrar a Judá que existe uma lei de Deus que preserva os direitos da mulher. É a
lei do Levirato
14
. Também desafiador foi o protagonismo de Noemi e Rute. O livro de Rute é
uma ctica contra as elites que estavam tomando terra dos pequenos camponeses e esquecendo-
se da Lei do Resgate
15
. Assim, por trás das histórias de Tamar, Noemi e Rute, percebemos
que mulheres israelitas têm um forte protagonismo de resistência e luta por seus direitos.
Na profecia, temos o papel de Samuel, em seu livro, que também foi de denunciar as
violências contra as mulheres; sobretudo, a violência doméstica, o estupro que ocorreu na
própria casa do rei Davi. Dentre as várias mulheres (concubinas, mulheres do harém)
vítimas de estupros, destacamos Betsaida e depois Tamar, a própria filha do rei:
13 Maria Cecília DOMEZI, Mulheres que tocam o coração de Deus, p.14.
14 Lei do Levirato (ou do cunhado): que impõe o dever de casar com a viúva do irmão falecido. E o filho que nascer deve
ser considerado filho não dele, mas do irmão falecido para garantir a posteridade e o nome da família (Dt 25,5-10).
15 Lei do Resgate: o parente mais próximo tem a obrigação de resgatar a terra, não para si, mas para o parente pobre que
corria o perigo de perde-la (Lv 25,23-25). O parente que resgata passa a se chamar Go´el.
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Leitura blica sob a ótica da mulher: espiritualidade e empoderamento das mulheres
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Davi enviou emissários que a trouxessem [Betsaída, esposa de Urias]
16
. Ela
veio a ter com ele, e ele deitou-se com ela, que tinha acabado de se purificar de
suas regras. Depois ela voltou para sua casa. A mulher concebeu e mandou dizer
a Davi: Eu estou grávida’” (cf. 2Sm 11,4). Ela lhe deu um filho. Mas a ação que
Davi praticara desagradou a Iahweh (cf. 2Sm 11,27b).
Ele [Amnom, filho de Davi], porém, não quis ouvi-la [Tamar, filha de Davi];
dominou-a e com violência deitou-se com ela. (2Sm 13,14).
Elaine Neuenfeldt faz uma crítica importante no texto de 2Sm 13:
A violência sexual acontece no âmbito da casa, entre pessoas com ligações
familiares. O perpetrador de um ato violento não é alguém desconhecido, que se
esconde em lugares escuros e isolados, e atacam as mulheres que saem sozinhas.
Mas, conforme dados em todo o mundo e em diferentes culturas, na maioria das
vezes, o estuprador é alguém que conhece a tima, que sabe de seus passos, que
a observa e a deseja, ou a inveja
17
.
Importante considerar também que as interpretações e comentários bíblicos
costumam somente mostrar o texto como briga entre irmãos (Absalão e Amnon) e sempre
ocultou o que está gritante no texto: a violência contra Tamar. Alice L. Laffey
18
diz que:
Na medida em que esse texto é interpretado, quer do ponto de vista histórico,
quer do ponto de vista literário, o horror da vitimação das mulheres é
banalizado. Os exegetas se apressam em mostrar como o estupro é vingado
Absalão mais tarde mata Amnon. Essa justificação, porém, não faze com que
Tamar seja menos vítima.
Como bem apontam Geni et al, é importante aqui lembrar que as leituras bíblicas que
mostram ações violentas contra as mulheres, como vistas acima, por exemplo, não são
temas comuns nas igrejas. De forma velada, essas leituras muitas vezes passam
despercebidas pelos fiéis cristãos e cristãs. Em contrapartida é comum assistir
comportamentos violentos dos homens contra as mulheres, tanto no ambiente doméstico
como no público. E estes comportamentos são muitas vezes inspirados no modelo viril e
brutal dos reis e homens da corte dos reis da Bíblia, e o pior, são muitas vezes legitimados
como Palavra de Deus.
Uma das saídas apontadas pelas cursistas é dar sentido e significado à Palavra de Deus,
que é de amor e de libertação. Mas como fazê-lo? Comecemos empoderando as mulheres. E
esse empoderamento parte da consciência de que devemos ir rompendo, mesmo que aos
poucos, o patriarcado que naturalizou interpretações como as mencionadas acima e que
legitimou as violências contra as mulheres e a sua invisibilização no protagonismo da
história humana.
A partir da conscientização de ser sujeito (grupo) histórico oprimido, e também
participante de uma comunidade de fé, a mulher adquire voz própria para nomear e
transmitir sua experiência de fé. Como nos diz Ana Maria Tepedino
19
: É a própria
tomada de consciência desta injustiça, que as leva a romper as barreiras que lhe são
impostas, a enfrentar com coragem as dificuldades para ter voz e vez. E, segundo o
educador Paulo Freire (1990),
16 Grifo nosso para esclarecer quem são os personagens.
17 Elaine G. NEUENFELDT, As mulheres e a violência sexista. RIBLA 41. São Paulo: Vozes, 2002.
18 Alice L. LAFFEY, Introdução ao Antigo Testamento: perspectiva feminista. São Paulo: Paulus, 1994.
19 Ana Maria TEPEDINO & Margarida L. R. BRANDÃO, A força mutante das mulheres: paixão e compaixão. In:
BRANDÃO, M. L. R. (org.) Teologia na ótica da mulher, p.9.
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O processo de conscientização significa em aprender a nomear, romper silêncios
e a mudar a si mesmo e sua situação. Este nomear implica passar por um
processo de reviravolta de caminhos, saindo da injustiça para justiça. É um
processo no qual a pessoa se torna autocrítica a respeito de sua própria história e
do contexto a sua volta. É capaz de nomear a própria existência, ou seja, é capaz
de ler o mundo
20
.
3 EMPODERAMENTO DAS MULHERES
Nesse processo de ler o mundo, aprendemos o significado e sentido sobre empoderar/
empoderamento. Empoderamento
21
é conquistar mais liberdade, é ter autonomia, é ser capaz
de decidir o que vo quer e como quer. As mulheres se tornam empoderadas quando investem
em conhecimento e educação; quando ocupam espaço de poder e decisão, por exemplo.
Neste aspecto, podemos citar bons exemplos de empoderamento que se desenvolveu a
partir das reflexões das cursistas. Neusa e Noeli disseram que a leitura bíblica na ótica da
mulher e na perspectiva dos pobres, das excluídas e dos excluídos, de ontem e de hoje,
ampliou o olhar para a situação do sofrimento e violência contra as mulheres. A leitura e
oração, confrontadas com as ações, desafiam-nos a continuar lutando para superar os limbos
ainda presentes dentro de nossos próprios lares e alargando em nosso entorno. Somos
desafiadas a conquistar mais mulheres para que saiam de sua rotina de conformismo e
vitimismo, ir ao encontro das mulheres silenciadas pela dor, pelo medo, pelos preconceitos de
dependências de seus companheiros, para que venham para a reflexão e para novas ações.
Juntas, precisamos conquistar mais espos nos ambientes de trabalho, na Igreja, na política e
nos cargos de lideraas. Somos desafiadas a encontrar a moeda perdida de nossos valores e
potencial. Vamos seguir conquistando espaços e provando nossa capacidade, até o dia que não
mais precisar provar que somos capazes, mas simplesmente respeitadas por sermos mulheres.
Segundo Geni, Maria Izelda e Marisa, a Igreja seria lugar para empoderar as mulheres
se nela estivesse presente o movimento de Jesus, pois aprendemos nos Evangelhos uma
relação de circularidade, de igualdade entre homens e mulheres. Quem nos exclui é o poder
machista e patriarcal. Superar as incoerências entre o que se prega e o que se faz é uma das
exigências transformadora da humanidade.
A Igreja precisa se humanizar e incluir as mulheres nas lideranças de poder. É o que
defende o Papa Francisco. No vídeo divulgado pelo site Vatican News, em outubro de
2020
22
, ele disse: Devemos promover a integração das mulheres em lugares onde são
tomadas decisões importantes. No documento: Querida Amazônia, produzido a partir do
Sínodo, o Pontífice escreve que:
Muitas mulheres, impelidas pelo Esrito Santo, mantêm a Igreja de pé, em muitas
partes do mundo, com admirável dedicação e fervorosa fé. É fundamental que
participem cada vez mais em suas instâncias de decisão. Isso exige uma mudança
profunda de mentalidade, exige a nossa conversão, que implica oração (QA).
CONCLUSÃO
Este texto mais narrativo do que argumentativo é fruto coletivo de mulheres e
homens que expressam à vontade e fidelidade de seguir melhor o caminho de Jesus. Foi Ele
que testemunho um discipulado de iguais entre homens e mulheres, superando judeus ou
20 Paulo FREIRE e Donaldo MACEDO, Alfabetização: leitura do mundo leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e terra,1990.
21 Conceito extraído do vídeo intitulado Empoderamento das mulheres, produzido pela ONU Mulheres (cf. https://
youtu.be/6RSc_XYezi), acessado em 26/05/21.
22 https://youtu.be/FjHFjtV9P4Q
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gregos, classes e gênero (Gl 3,28). Jesus, por meio da parábola da mulher que procura a
moeda perdida nos inspira sempre a ler a Bíblia seguindo o método desta mulher: ela varre a
casa para encontrar, por baixo da crosta de poeira, uma coisa de muito valor. O curso
também alcançou este propósito. Por baixo da crosta de poeira das leituras e interpretações
dos textos bíblicos, revelou-se uma coisa de muito valor para nós mulheres: encontramos o
protagonismo das mulheres na Bíblia e também na nossa vida. A partir daí, nos
encantamos, nomeamos, demos vozes às mulheres do passado e de hoje.
Outras mulheres e homens feministas nos ajudaram nessa empreitada. São teólogas/
os e biblistas que estão a frente dessa leitura bíblica na ótica da mulher a muito mais tempo.
Desse modo, o método da leitura bíblica na ótica da mulher foi de justamente tentar superar
este silêncio e ousar abrir a boca, falar, denunciar violências, anunciar a vida de corpos que
buscam, de corpos que anseiam vida, e vida digna. Nas ações de buscar e encontrar,
descobrimos a necessidade de nós mulheres nos empoderar. Aprendemos que empoderar é
tomar consciência de nossa história, nosso contexto, é ter conhecimento.
Nesse processo de empoderar, Geni et al demonstraram essa tomada de consciência da
necessidade de um estudo científico da Bíblia, que está respaldado pela nossa igreja. Elas
dizem que uma das saídas é incentivar cada vez mais círculos bíblicos na ótica da mulher.
Conhecer o percurso de elaboração da Bíblia e os papéis femininos presentes nela nos ajuda
a compreendê-la um pouco mais.
Em sua conclusão de trabalho, Marlise Ritter nos exorta a refletir e se espelhar na
protagonista bíblica, Rute:
Rute protagoniza que a libertação é possível, que é necessário se colocar a
caminho, não desistir nunca dos sonhos, reconstruir a identidade, descobrir
maneiras de encurtar distâncias e dialogar com o diferente, buscar os direitos e
viver intensamente. Nos ensina a importância de não estar sozinha, se colocar no
caminho com outras mulheres, pois uma é espelho da outra, uma se encontra na
outra, no diálogo, na sabedoria, na partilha. Juntas encontram o melhor lugar, o
melhor momento de se fazerem presentes na hisria e de fazerem a diferea. Elas
o esperaram e nem lamentaram, foram à luta, se tornaram visíveis e protagonistas.
Geni et al nos provocam a pensar:
O que, afinal, a Bíblia expressa para gente? A Bíblia é a história do povo de Deus.
Nela, Deus se manifesta. Está claro que o texto bíblico está num contexto de uma
sociedade altamente patriarcal. Ela expressa a vida no seu contexto. O
patriarcado não vem da revelação. É necessário interpretar a mensagem de Deus
e o que é roupagem contextual histórica. Nessa roupagem histórica estamos
ainda sofrendo as desigualdades geradas pelo patriarcado, expresso nos textos
bíblicos e assumido pela Igreja.
As mulheres na Bíblia têm muito a nos ensinar. É preciso partir, anular fronteiras,
derrubar as cercas, rasgar os horizontes fechados do racismo e abrir caminhos novos de
esperança com os pobres do mundo inteiro. Foi essa a práxis que as matriarcas e tantas
heroínas bíblicas vivenciaram, dinâmica de toda existência feminina.
Encerramos o curso e o presente artigo com um envio de esperançar de uma mulher
que já percorreu muito esse caminho (método) e pode nos animar a prosseguir:
Cada vez que olho para a vassoura, ela me cochicha: Paciência! Teimosia!
Muitas coisas não foram perdidas para sempre! Saíram apenas da nossa vista,
foram esquecidas ou estão bem escondidas que um trabalho danado para
encontrá-las de novo. Mas esse trabalho vale a pena! Lembra-te daquelas três
parábolas sobre algo que foi perdido na do meio, a mulher que varre a casa,
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pacientemente, para encontrar a moeda perdida, é um símbolo da própria
divindade! Não desistas de exercer a qualidade divina dentro de ti, procurando
conhecimentos acerca do mundo e de sua história, sobretudo da história das
mulheres e da história das ideias sobre a divindade!
23
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2003.
NODARI, Paulo César e SÍVERES Luis. Dicionário de Cultura e Paz. Curitiba: Ed. CRV, 2021.
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23 Artigo de Mônica OTTERMANN: Gênero e Bíblia: uma ciranda sem im, p.19-28.
GUIMAES, Simone Furquim; DE LUCAS, Luísa
Leitura blica sob a ótica da mulher: espiritualidade e empoderamento das mulheres
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.114-123, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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A ESPIRITUALIDADE NO
CRISTIANISMO
A essência do ser
SPIRITUALITY IN
CHRISTIANITY
The essence of being
Luciana Carmona Garcia*
Aline Eloisa Da Silva**
Resumo: A Espiritualidade é inerente ao ser humano. O termo surgiu no
período renascentista
3
no século XV, baseado em algumas ideias de Platão,
filósofo do século IV a.C., que postulava sobre o dualismo corpo-alma, em
que a alma estaria aprisionada pelo corpo. Esse pensamento evoluiu para a
ideia do ser humano trinário, formado pelo Corpo, pela Mente e pelo
Espírito, de forma inseparável, contidos numa única unidade, que é o corpo,
criado por um Ser Divino e, portanto, ligado a Ele. Nos textos bíblicos do
Novo Testamento, Paulo exorta a comunidade de Coríntios a reconhecerem
que são templos do Espírito de Deus, que habitam toda criatura, A palavra
espiritualidade cuja raiz etimológica vem da palavra espírito latim
spiritus, que significa respiração ou sopro e também coragem e vigor,
consiste em uma íntima experiência do ser, uma busca por descobrir o
sentido da vida e da existência. Este artigo visa contribuir com as pesquisas
relacionadas à temática, trazendo apontamentos sobre a importância e os
benefícios que uma vivência espiritual a partir da ótica cristã, pode
proporcionar ao ser humano. A relevância dessa pesquisa se justifica devido à
instabilidade da atual sociedade gerada pela crise de valores como respeito,
solidariedade, a ética, a humildade, o senso de justiça. Por outro lado, a
globalização, o capitalismo e o consumismo têm criado uma falsa concepção
de que o homem é sujeito passível de ser medido pelo que possui de bens e
valores tangíveis, e não pelo que é afastando-o cada vez mais da sua
identidade e dignidade de ser único criado à imagem e semelhança do
criador. Igualmente, a cultura educacional, até meados do século XX, definia
como inteligente a pessoa que tinha uma alta capacidade de resolver
problemas de ordem técnica, relegando a segundo plano a capacidade de
gerenciamento da emoção, o altruísmo, a capacidade de mediação e
resolução de desafios com resiliência, interação e engajamento nas relações
interpessoais. Foi aí que estudos do final na década de 90, apontaram que não
bastava ser apenas inteligente no aspecto cognitivo sem levar em conta os
aspectos que envolvem os sentimentos, sensações e emoções do ser humano,
o que levou esse mesmo ser a busca pelo equilíbrio. Mas ainda parecia que a
v. 38, n. 131, Passo Fundo,
p. 124-135, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:https://doi.org/10.52451/teopraxis.v38i131.59
* Professora permanente e atual
coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Linguística da Universidade de
Franca/SP. Doutora pelo Programa de Pós-
Graduação em Linguística da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar) (2014).
Realizou estágio doutoral em Toulouse
(França) na Université de Toulouse II - Le
Mirail como parte de seu projeto de
doutoramento. Tem Mestrado (2010) em
Linguística e Licenciatura em Letras, com
habilitação em Língua Espanhola, pela mesma
instituição (2001). É membro do grupo de
pesquisas LABOR-Laboratório de Discurso
Político (CNPq: 401122/2010-7) da UFSCar
desde 2007, e líder do grupo GTEDI - Grupo
de Estudos do Texto e do Discurso da
UNIFRAN desde 2016. Membro do Comitê
de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
(CEP) da Unifran e membro do Comitê de
Integridade na Pesquisa da mesma instituição.
Desenvolve pesquisa na área de Teoria e
Alise Lingstica, com ênfase em Análise do
Discurso, atuando principalmente nos seguintes
temas: análise do discurso, semiologia história,
discurso potico, televio, nero, minorias,
maternidade. Atua como docente nas áreas de
Lingstica Geral, Teoria e Análise Linguística,
Alise do Discurso, Poticas blicas e
Educão Infantil, Educão o-Formal. Atual
Embaixadora do Movimento Parent in Science -
Região Sudeste.
E-mail: luciana.manzano@unifran.edu.br
https://orcid.org/0000-0002-5280-4444
1 Renascentismo: Movimento artístico, cultural e científico que surgiu na Itália, no século
XV e se expandiu por toda a Europa, trazendo renovação nas áreas de filosofia, política,
economia, cultura, artes, ciência, dentre outras
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** Mestranda em Linguística, na área de
Análise de Discurso. Possui graduação em
Letras- Habilitação em Português e Inglês
pela FESP-UEMG - Faculdade de Ensino
Superior de Passos- Universidade Estadual de
Minas Gerais. Possui Graduação em
Pedagogia pelo CENTRO UNIVERSITÁRIO
UNIFACVEST. Possui especialização em
Estudos Linguísticos e Literários pela
Universidade de Franca, em Gestão e
Supervisão Escolar pela Faculdade Barão de
Mauá, em Psicopedagogia- Alfabetização e
Letramento pela Faculdade de Educação São
Luís, em Orientação, supervisão e Inspeção
Escolar, pela Faculdade de Educação São Luís.
Atualmente compõe o quadro de professores
efetivos da Secretaria Estadual de Educação de
Minas Gerais, ministrando aulas de Língua
Portuguesa, na Escola Estadual Clóvis
Salgado, é coordenadora pedagógica da
secretaria municipal de educação de São
Sebastião do Paraiso, em efetivo exercício na
Escola Municipal Hilda Borges Pedrosa.
E-mail: aline.eloisa@educacao.mg.gov.br
https://orcid.org/0000-0001-5165-642X
Recebido em 07/03/21
Aprovado em 01/07/21
busca por esse equilíbrio não tinha finalizado na conquista de uma
inteligência e maturidade emocional. Nesse contexto surgiram no ambiente
acadêmico, o interesse e a compreensão de uma terceira inteligência, que vai
de encontro a respostas para o sentido da existência humana, colocando
ações e experiências num contexto mais amplo de sentido e valor. Trata-se
doQS, quociente de Inteligência Espiritual. O foco do QS é aalma. Danah
Zohar, uma física e filósofa americana foi a primeira a defender essa
bandeira na Academia, não obstante, seja uma experiência e realidade de
fé, na vida de centenas de pessoas desde tempos remotos e de forma
rotineira. O QS é a inteligência que busca dar sentido à vida, traz propósito
as ações realizadas e direciona às duas outras inteligências onde investir suas
energias. Estudos de Leonardo Boff, Theilhard de Chardin foram essenciais
para uma compreensão melhor acerca do assunto. O estudo trará um breve
percurso da visão holística da espiritualidade, na integração entre si, o outro
e o universo, e da visão cristã, como sendo a mola propulsora para uma
vivência espiritual completa. A Espiritualidade é nuclear ao Cristianismo,
uma vez que, por meio da presença do Espírito Santo, isto é, o próprio
Espírito de Cristo, o homem é capacitado para o Bem e para toda Boa Obra,
como a justiça social, a solidariedade, o exercício da cidadania e o amor.
Palavras-chave: Espiritualidade. Cristianismo. Vivência. Prática.
Abstract: Spirituality is inherent to the human being. The term appeared in the
Renaissance period in the 15th century, based on some ideas of Plato, a
philosopher from the 4th century BC, who postulated about the body-soul
dualism, in which the soul would be imprisoned by the body. This thought
evolved into the idea of the triune human being, formed by the Body, Mind and
Spirit, inseparably, contained in a single unit, which is the body, created by a
Divine Being and therefore linked to Him. of the New Testament, Paul urges the
community of Corinthians to recognize that they are temples of the Spirit of
God, who dwells in every creature, The word spirituality whose etymological
root comes from the word spirit Latin spiritus, meaning breath or breath
and also courage and vigor, consists of an intimate experience of being, a
search to discover the meaning of life and existence. This article aims to
contribute to research related to the theme, bringing notes on the importance
and benefits that a spiritual experience from a Christian perspective can provide
to human beings. The relevance of this research is justified due to the instability
of the current society generated by the crisis of values such as respect, solidarity,
ethics, humility, a sense of justice. On the other hand, globalization, capitalism
and consumerism have created a false conception that man is a subject that can
be measured by what he has of tangible goods and values, and not by what is
increasingly distancing him from his identity and dignity of being unique created
in the image and likeness of the creator. Likewise, the educational culture, until
the mid-twentieth century, defined as intelligent the person who had a high
ability to solve technical problems, relegating to the background the ability to
manage emotion, altruism, the ability to mediate and solve problems. challenges
with resilience, interaction and engagement in interpersonal relationships. It
was there that studies from the end of the 90's pointed out that it was not
enough to be just intelligent in the cognitive aspect without taking into account
the aspects that involve the feelings, sensations and emotions of the human
being, which led to this same being the search for balance. But it still seemed that
the search for this balance had not ended in the conquest of an emotional
intelligence and maturity. In this context, the interest and understanding of a
third intelligence emerged in the academic environment, which meets the
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answers to the meaning of human existence, placing actions and experiences in
a broader context of meaning and value. This is the SQ, Spiritual Intelligence
quotient. The focus of QS is the soul. Danah Zohar, an American physicist and
philosopher, was the first to defend this flag in the Academy, however, it is
already an experience and reality of faith, in the lives of hundreds of people since
ancient times and in a routine way. The SQ is the intelligence that seeks
meaning in life, brings purpose to what we do and directs the two other
intelligences where to invest their energies. Studies by Leonardo Boff, Theilhard
de Chardin were essential for a better understanding of the subject. The study
will bring a brief journey of the holistic view of spirituality, in the integration
between itself, the other and the universe, and of the Christian view, as being
the driving force for a complete spiritual experience. Spirituality is core to
Christianity, since, through the presence of the Holy Spirit, that is, the Spirit of
Christ himself, man is enabled for Good and for every Good Work, such as
social justice, solidarity, the exercise of citizenship and love.
Keywords: Spirituality. Christianity. Experience. Practice.
INTRODUÇÃO
Questões relacionadas ao ser humano, quanto à existência de
um espírito, de uma alma, permeou a sociedade de todas as épocas e
em todas as camadas sociais. A esse respeito, o padre jesuíta, de
origem francesa, Teilhard de Chardin (1970) escreveu: Não somos
seres humanos vivendo uma experiência espiritual. Somos seres
espirituais vivendo uma experiência humana. A espiritualidade pode
ser entendida como a tentativa mais íntima de fazer a experiência do
Ser. Parte de uma necessidade pessoal, na busca de compreender as
experiências humanas em sua essência, de encontrar respostas para
questões existenciais, para o sentido da vida, se libertando da
autossuficiência, do egoísmo, dos medos, num despojamento e
desapego de tudo o que possa prejudicar essa busca.
As narrativas bíblicas mostram que essa necessidade surge no
ser humano, devido ao impulso e o sopro de vida que Deus inscreveu
no coração do homem. Em Gênesis (2,7), primeiro livro bíblico, que
relata a criação, a partir da perspectiva criacionista, já se encontra essa
alusão. O Senhor Deus, formou, pois, o homem do barro da terra, e
inspirou-lhe nas narinas o sopro da vida, e o homem se tornou um
ser vivente. Igualmente, no novo testamento, as cartas paulinas
endereçadas a comunidade de Gálatas e dos Romanos essa
menção: A prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos
corações o Espírito de seu filho, que clama: Aba, Pai! (Gl 3,6). Se o
Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele,
que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará vida aos vossos
corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós (Rm 8,11).
Vivência e práticas religiosas como Batismo Sacramental, a confissão
de em Deus, no seu Filho e no Espírito Santo, na oração, as
experiências litúrgicas, fundamentam a espiritualidade Cristã.
Theilhard de Chardin (1965) considera a Espiritualidade
essencialmente crística e observa que ela se edifica em três bases: a
encarnação, a e a evolução. Para o autor, a encarnação é a base do
universo, uma operação biológica que conecta o humano ao divino.
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p. 124-135, Jul./Dez./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
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GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.124-135, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
De acordo com Lucarelli (2019), a encarnação se concretiza a partir da alma espiritualizada e
em sintonia com Jesus Cristo. A é o elemento que estabiliza e diviniza o humano. A evolução é
a continuação da criação, que nasce, cresce, evolui sob a égide da onipotência Divina.
Conforme Boff (2001), a Espiritualidade é uma das fontes primordiais de inspiração
do novo, de esperança, de geração de um sentido pleno de capacidade de autotranscedência
do ser humano, o que permite que ele se vivencie como projeto infinito, numa dimensão
para além de sua natureza material que é finita. A Espiritualidade se demonstra em atitudes
que favorecem a expansão da vida em sua essência. Ela é capaz de potencializar qualidades
tão válidas como a inteligência, a confiança, o afeto e tão positivas quanto amar a vida, ser
capaz de perdão, misericórdia, de indignação diante das injustiças, e do cultivo do que é
próprio do Espírito. Uma disposição interior para a Verdade, para o Absoluto e para o Bem
Supremo. No Novo Testamento, o livro Bíblico de Gálatas, escrito pelo apóstolo Paulo, por
volta de 49 d.C. trazia essa abordagem sobre os frutos do Espírito o fruto do Espírito é a
caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura,
temperança! (Gl 5,22-23).
ESPIRITUALIDADE COMO TRANSCENDÊNCIA
A transcendência diz respeito a algo que está além do mundo material, de conceitos
concretos e do plano físico. De acordo o filósofo Mondin, citado por Figueira (2014),
enumera três possíveis concepções de transcendência - egocêntrica, filantrópica e
teocêntrica, que compreendem diferentes feições do ser humano. No mundo físico, o ser
humano tem autoridade para exercer as suas potencialidades, habilidades e capacidades,
tudo está ao seu dispor: Dentro do plano da criação, ele exerce domínio sobre os outros
seres vivos (Gn 1,27-30). Contudo, chega um momento em que experimenta uma
incompletude, percebe-se carente, frágil, imperfeito. Analisando-se assim, sente a
necessidade de se aperfeiçoar, de buscar aprimoramento, novos conhecimentos, ou ainda,
melhorar seu bem-estar pessoal, seja físico ou mental. Essa sua percepção individualista é
positiva na perspectiva de torná-lo uma pessoa melhor, porém, se considerada isoladamente,
de forma egontrica, não irá satisfa-lo plenamente, uma vez que o ser humano o foi
projetado para viver só para si, basta analisar o elo vital que nos une ao outro.
De posse dessa compreensão, deixa de lado essa posição à qual se volta para si mesmo,
e lança-se em direção ao outro. Parte em combate às desigualdades, que afligem a sociedade
em geral. Sua luta é válida, porém, assim como em outros movimentos, o sentido tende a ser
temporário e a se esgotarem em determinado período de tempo, pela sua própria condição
de ser não permanente. Mesmo voltando-se para o outro, na esperança de achar nele o
significado da existência, a situação tende a se repetir.
Dessa forma, o homem entende que nem o eu e nem a humanidade são capazes de
fornecer um sentido para sua vida, de conferir significado a sua existência. Abre-se,então,a
uma força superior, compreendendo, portanto, que uma presença imaterial no seu
interior pode explicar esse seu poder de exercer tantas e variadas atividades pela sua
capacidade de superação diante do mundo do qual faz parte.
128
[...] A singularidade do homem entre todos os produtos da natureza está em que
nele a natureza busca superar conscientemente os seus limites, não mais através
de uma atividade automática ou inconsciente, mas através de um esforço mental
e espiritual. [...] A única doutrina que pode jactar-se de possuir uma linguagem
antiquíssima intelectual é a que se baseia na ideia de que a condição ordinária do
homem não é a sua essência mais íntima, de que nele um em Si mais
profundo, quer se chame sopro vital ou espírito, alma ou mente. Em cada ser
habita uma luz que nenhuma potência pode atingir um espírito imortal, benigno
e tolerante, um testemunho silencioso nas profundezas do seu coração
2
.
RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE
A experiência da Espiritualidade nem sempre se com a adesão a uma confissão
religiosa formal ou na participação de uma instituição organizada. As religiões se mostram
como meio de acessar o Sagrado, o Divino. Existem pessoas espiritualizadas que não são
necessariamente religiosas, entretanto, a religiosidade está no escopo da realidade espiritual.
Nesse sentido, Silva (2014) ressalta que a questão fundamental do ser humano não é
compreender sua religião, e sim sua Espiritualidade, caracterizada pela intimidade do ser
humano com algo maior.
Está no santuário do ser, mesmo sem uma fórmula explícita. Ela é o gene da
criação, presente em cada criatura, quer tenha ou não uma religião. Viver a
espiritualidade é a forma apaixonada de sentir o tempo é ser capaz de ver Deus, o
mistério último, em toda parte
3
.
A Religião pode ser entendida como um conjunto de sistemas culturais e de crenças,
além de visões de mundo, relacionando o homem a sua espiritualidade e seus próprios
valores morais. De origem latina do verbo religar, a interpretação teológica é que a religião
religa o homem a Deus. Para Pereira
4
, a Religião pode ser definida como um conjunto de
crenças e práticas desenvolvidas no seio de uma comunidade, com rituais nos quais o ser
humano aproxima-se do sagrado.
As diversas expressões de religiosidade são formas de praticar a Espiritualidade,
entretanto, existem pessoas espiritualizadas que não são necessariamente religiosas, ainda
que a religiosidade esteja no escopo da realidade espiritual. Nesse sentido, observa-se que as
religiões nascem com o intuito de manter e consolidar certa forma de espiritualidade no
grupo de pessoas de e seguidores. É o senso da pertença com uma realidade maior,
superior, senso de fazer parte de algo maior do que si mesmo, mais profunda, e repleta de
significação. Para Silva (2014), a religião nos leva a aprender com as experiências de nossas
comunidades e é por meio da Espiritualidade que essas experiências são estimuladas e
saboreadas.
A religião tem uma dimensão cognitiva, e a Espiritualidade emocional. Os termos
estão ligados, contudo, não apresentam necessariamente as mesmas características. A
religião é uma forma de se praticar a Espiritualidade. Não obstante, haja uma diferença
entre as duas o fenômeno religioso, as manifestações religiosas, as práticas são capazes de
aproximar o homem da espiritualidade, contudo, são as experiências espirituais íntimas, por
meio de um mergulho interior, um encontro com o divino na essência, torna o homem um
ser espiritualizado.
2 Adriana B. dos Santos FIGUEIRA. A Espiritualidade na contemporaneidade: Uma busca do homem mergulhado em sua
subjetividade, p.76.
3 João Bernadino SILVA & Lorena Bandeira SILVA, Relação entre religião, espiritualidade e sentido da vida, p.204.
4 Valdelene N. de A. PEREIRA. Medicina e espiritualidade: a importância da fé na cura de doenças, p.34.
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
Revista Teopráxis,
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A ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
De acordo com Pereira
5
, a espiritualidade está ligada tanto à busca do sagrado, por
meio de meditação e orações compenetradas, quanto à solidariedade destinada aos irmãos.
Este último pensamento se opõe ao panorama político civilizacional contemporâneo, cujas
bases privilegiam o predomínio do individual sobre o universal. As condutas, os modos de
produção, têm mostrado que grande parte da população vive um momento caracterizado
pela lógica do consumo excessivo, da mercantilização e da individuação.
De acordo com Bauman
6
, o consumo é uma característica e uma ocupação dos seres
humanos como indivíduos, o consumismo é atributo de uma sociedade cuja capacidade
profundamente individual de querer, almejar e desejar é tal como a capacidade de trabalho
dos produtores, responsáveis por manter a máquina em funcionamento, ou seja, a sociedade
do consumo em movimento a mantém em curso, como uma forma de convívio humano, ao
mesmo tempo em que estabelece as leis, regras e normas, criando estratégias eficazes que
manipulam as probabilidades de escolha e condutas individuais.
O consumismo está atrelado a uma tentativa de saciedade de desejos humanos,
por meio de bens não-duráveis e que excedem sobremaneira àqueles necessários
a sobrevivência. Nesse sistema, o consumismo, materializado nas relações do
mercado, é uma aguda oposição à vivência da Espiritualidade, pois associa a
felicidade e a satisfação à realização de um volume e uma intensidade de desejos
sempre crescentes, implicando no uso imediato e a rápida substituição dos
objetos destinados a satisfazê-los
7
.
A sociedade atual está fortemente marcada pelo materialismo, pelo consumismo e
pelo excesso da exposição nas redes sociais, provocando uma limitação e alienação em
grande escala. Uma sociedade individualista cujas bases estão alicerçadas no mercado e no
consumo. Percebe-se aí, uma abordagem que vai ao encontro da idolatria do mercado: o ter
em detrimento do ser e que se afasta de uma concepção de vivência da espiritualidade no
seu sentido pleno, uma vez que a felicidade é um estado durável de plenitude, satisfação e
equilíbrio físico e psíquico, não podendo ser mensurada ou quantificada, por meio de bens
não duráveis que uma pessoa possui. Nas palavras de Bauman:
Numa sociedade de consumidores, de maneira correspondente, a busca da
felicidade- o propósito mais invocado e usado nas campanhas de marketing
destinados a reforçar a posição dos consumidores para se separarem do seu
dinheiro tende a ser redirecionada do fazer coisas ou de sua apropriação para sua
remoção, tão logo seja necessário. Sim, é verdade que na vida agorista dos
cidadãos da era consumista, o motivo da pressa é, em parte, o impulso de
adquirir e juntar. Mas o motivo mais premente que torna a pressa de fato
imperativa é a necessidade de descartar e substituir
8
.
Esse individualismo crescente, o consumismo, aliados ao excesso de informação, têm
provocado uma alienação de grande parcela da sociedade, levando a um automatismo, um
círculo vicioso, uma busca desenfreada pela satisfação a todo custo. Para Bauman (2009), a
realidade, na contemporaneidade, revela uma situação que denuncia a necessidade de uma
nova ordem, pois se está diante de um círculo vicioso em que a indústria do consumo se
apresenta disposta a satisfazer as necessidades humanas, como também a criar outras. Esse
processo, associado à urbanização, ao imediatismo e à individualização, leva o homem a
viver na superficialidade.
5 Valdelene N. de A. PEREIRA. Medicina e espiritualidade: a importância da fé na cura de doenças, p.40.
6 Zygmunt BAUMAN, Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria, p.22-24.
7 Zygmunt BAUMAN, Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria, p.22-24.
8 Zygmunt BAUMAN, Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria, p.50-52.
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
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Nesse cenário, que a sociedade aponta para rias direções, mas o se detém
particularmente em nenhuma, com valores deslizantes e instáveis o homem
contemporâneo, buscando compreender-se e compreender melhor o mundo em que vive
também se aproxima de questões relacionadas à sua própria espiritualidade, o que tem
gerado um renovado interesse pelas religiões e por experiências concernentes à
espiritualidade. Aproximações espirituais e religiosas diversificadas, voltada para a
metafísica de influência oriental, de crenças espiritualistas, animistas e paracientíficas,
geralmente, propondo um novo modelo de consciência moral, psicológica e social, para a
relação do meio da natureza, do cosmo, da física quântica etc. Na visão de Figueira
(2014) essas diferentes formas de expressão m colocado à disposão das pessoas uma
infinidade de opções de escolha e a possibilidade de migrar de uma para outra, caso não se
sintam satisfeitas.
A física moderna caracterizada como orgânica, holística e ecológica, traz uma visão
voltada para a totalidade resultante da interdependência orgânica entre tudo tem, onde o
universo deixa de ser visto como uma máquina, composta de uma infinidade de objetos,
para ser descrito como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão essencialmente
inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico.
Essa é uma concepção holística que, de acordo com Júnior (2006) tem como base o
esforço de surpreender o todo nas partes e as partes no todo. Tal maneira leva sempre a
descobrir uma síntese que organiza, ordena, regula e finaliza as partes num todo e cada
todo em outro todo maior.
A ecologia holística funda teoria e prática que relacionam e abrangem todos os
seres uns com os outros e com o meio ambiente, no ponto de vista imensamente
pequeno das partículas elementares, imensamente grande do espaço smico,
imensamente e infinitamente complexo dos sistemas vivos, do profundo
universo do coração humano e do mistério infinito do oceano de energia
originária que é gerador do provir de tudo
9
.
De acordo com Faria
10
a Espiritualidade holística se define como sendo um modo de
viver a e a relação com oSagrado, para além dos modos convencionais das religiões
institucionalizadas, isto é, de forma corpórea, integrada e afetiva. Nesse sentido, o Sagrado
passa a ser revisitado sob novo olhar, novas perspectivas. Umaespiritualidade holísticaé
aquela que considera a integração entre a razão, o corpo e os sentimentos, o modo de ver a
si mesmo, os outros e o mundo como um todo interligado, em relação e não separado.
A VIVÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE AUXILIANDO A SAÚDE
A saúde é antes de tudo, harmonia do indivíduo, em corpo e espírito, com o ambiente
físico, social e cultural e que a doença é o oposto, ou seja, a desarmonia, o desequilíbrio, a
comunicação perturbada entre indivíduo e meio ambiente. De acordo com Pereira
11
, a
saúde pode ter seu conceito ligado à consciência de bem-estar, advindo do processo de
harmonização entre os comportamentos psíquicos, orgânicos, socioculturais, ambientais e
espirituais; A doença por sua vez aconteceria como resultado da fragmentação do ser em:
mente e corpo, visão de mundo e organização social.
Estudos empíricos ligados à área da saúde demonstraram que a vivência da
espiritualidade traz benefícios para a saúde física e mental, consistindo numa poderosa
9 Silvio Luiz JUNIOR & Wolitz de Almeida. Holismo e Espiritualidade Cristã, p.26.
10 Silvio Luiz JUNIOR & Wolitz de ALMEIDA. Holismo e Espiritualidade Cristã, 2021.
11 Valdelene N. de A. PEREIRA, Medicina e espiritualidade: a importância da fé na cura de doenças, p.42-43.
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.124-135, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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aliada no tratamento de doenças cardiovasculares e de outros órgãos. De acordo com a
cardiologista Lucélia Magalhães e outros profissionais da medicina, Ciência e
Espiritualidade se somam quando o assunto é saúde, visto que esta proporciona sentimentos
como perdão, gratidão, empatia e otimismo, responsáveis por produzir e a liberação de
substâncias antiestresse, como serotonina e endorfina, que são benéficos à saúde - vascular.
Um estudo desenvolvido no ano de 2000, pelos estudiosos Pargament, Koening e
Perez foi responsável por criar o conceito de Coping, que é a busca por definir como a
utilização da religião, espiritualidade e da para o manejo do estresse, representa um
importante aspecto na área da saúde com possíveis implicações no tratamento de doenças.
De acordo com Pereira (2015), o Coping é um vocábulo de origem inglesa, sem
correspondente literal na língua portuguesa, mas que diz respeito ao enfrentamento,
manejo e adaptação. Para Panzini e Bandeira
12
entendem que o Coping Religioso Espiritual
positivo é o estabelecimento de estratégias que proporcionam efeito benéfico ao praticante,
como por exemplo, procurar amor/proteção em Deus, buscar ajuda na literatura religiosa,
buscar perdoar e ser perdoado, orar pelos outros, resolver problemas com o auxílio de Deus
e ver no sofrimento uma oportunidade de crescimento espiritual e religioso.
Por meio de estudos empíricos, Andrew Newberg neurocientista americano, e
professor de Medicina Integrativa em uma abordagem neurológica pesquisou sobre os
rastros da espiritualidade no cérebro. Na pesquisa, utilizou-se a imagem cerebral, que
evidencia a influência da meditação e oração no processo cerebral. Usando imageamento
cerebral, observou o que acontece quando alguém medita ou reza. Medindo o fluxo da
corrente sanguínea dos voluntários, avaliou que áreas eram responsáveis pela sensação de
transcendência. Ele chegou à conclusão de que quanto mais as pessoas se aprofundam
nessas práticas de meditação e oração mais ativos ficam o lobo frontal e o sistema límbico.
O primeiro é onde se localiza nossa capacidade de concentração e atenção; o segundo é
onde sentimentos poderosos, como a resiliência, superação, aceitação o processados. Ao
mesmo tempo em que o lobo central e o sistema mbico ficam mais ativos. O
neurocientista postula que Deus o é resultado de um processo de raciocínio, Ele foi
descoberto misticamente, pelo próprio maquinário cerebral. O homem não inventou
Deus, o experimentou.
Do mesmo modo outros estudiosos, cientistas de diversas partes do mundo,
chegaram à conclusão que uma parte em nós que responde pelo cultivo dessa totalidade.
Eles observaram que a base biológica da espiritualidade se situa no lobo frontal do cérebro,
eles a denominaram de ponto Deus, que é acionado, provocando uma aceleração das
vibrações dos neurônios localizados, sempre que uma experiência significativa de
totalidade, ou quando há uma abordagem de realidades últimas, ou realidades carregadas de
sentido e que produzem atitudes de adoração, veneração, devoção e respeito, em
experiências de meditação, contemplação e oração, ou ainda àquelas relacionadas ao
exercício e manifestação da criatividade.
De acordo com Boff
13
salienta que o ponto Deus se revela por meio de valores
intangíveis: mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade,
não é apenas pensar Deus, mas senti-lo mediante esse órgão interior. O autor ainda coloca
que delimitar um lugar não significa dizer que Deus esteja apenas nesse ponto dos
neurônios, pois Deus abarca o todo.
De acordo com Kearns (2021, p.25), a finalidade de toda espiritualidade é facilitar
uma experiência de Deus e de seu amor em nossa vida. Para ele a espiritualidade é um
12 Valdelene N. de A. PEREIRA, Medicina e espiritualidade: a importância da fé na cura de doenças, p.32.
13 Leonardo BOFF, Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.131, p.124-135, Jul./Dez./2021. ISSN on-line: 2763-5201.
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processo em que descobrimos um Deus pessoal nos amando, que espera uma resposta de
amor e que desemboque no amor próximo.
ponto Deus é um órgão interno pelo qual percebemos a presença de Deus em
todas as coisas e em nós. Assim como a evolução caminhou de tal forma a
produzir em nós os vários órgãos os olhos para ver, o olfato para captar os
odores, os ouvidos para ouvir, o tato para sentir, a boca para comer e falar , e
com todos eles internalizarmos o universo para dentro de nós, ela também criou
essa capacidade interna que nos abre o acesso a Deus
14
.
Foi com base nesses estudos que a física e filósofa Danah Zohar desenvolveu uma
pesquisa sobre a existência de uma inteligência capaz de ampliar os horizontes das pessoas: a
Inteligência Espiritual. A respeito do ponto Deus, a autora afirma se tratar de uma espécie
de órgão interior pelo qual se capta a presença do Inefável dentro da realidade (2004).
Ainda de acordo com Zohar, o que caracteriza uma pessoa com uma Inteligência
Espiritual altamente desenvolvida é a capacidade de ser flexível, um elevado grau de
autopercepção, a capacidade de ser resiliente, de utilizar a dor e o sofrimento como
oportunidade de crescimento, e a qualidade de ser inspirado por valores positivos como
solidariedade, empatia, senso de justiça, ética. Um indivíduo com inteligência espiritual,
possivelmente também será um líder inspirado pelo desejo de servir, responsável por trazer
e agregar esses valores ao próximo e lhe mostrar como usá-los.
A ESPIRITUALIDADE NUCLEAR AO CRISTIANISMO
Até a Idade Média
15
, a sociedade era essencialmente teocêntrica (Deus no centro de
tudo), orientada e voltada para Deus em todas as suas ações, experiências e procedimentos.
Todas as perguntas para as quais o homem não tinha respostas se relacionavam ao
misticismo
16
, a sua crença e fé em Deus.
Esse pensamento foi abalado de forma profunda pelo Renascimento, pelo
Humanismo e pela Revolução Científica, ocorrida no século XV E XVI. A mudança do
estilo de vida, e as transformações ocorridas nesse período desenvolveram o
14 Leonardo BOFF, O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ética e na espiritualidade, p.1.
15 Idade Média: período medieval na Europa, entre os séculos V e XV. Inicia-se com a queda do Império Romano do
Ocidente e termina durante a transição para a Idade Moderna.
16 Misticismo: Contato com o espiritual.
Figura 1: O cérebro humano e a localização do ponto Deus
https://institutodelongevidademag.org/longevidade-e-comportamento/ponto-de-deu
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
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antropocentrismo. Essa concepção de mundo atribuiu ao ser humano uma posição de
centralidade a todo o universo, sugerindo que o homem deveria ser o centro das ações, das
expressões culturais, históricas e filosóficas, afastando o homem da ligação forte que
mantinha com o Sagrado, buscando assim, dar uma resposta racional para todas as coisas.
Atualmente, percebe-se uma quebra de valores e paradigmas, gerando mudanças em
diversos âmbitos da sociedade, levando o homem pós-moderno a sensação do vazio
existencial, e a procura de práticas espirituais diversas que o ajude a encontrar um sentido
para a existência.
Do ponto de vista cristão, homens espirituais são aqueles que estão cheios do Espírito
de Cristo, esse sopro de vida que preenche todo o ser da pessoa. A vida de Jesus é a boa
notícia, o verbo encarnado do qual procede dentro da fé cristã, à raiz de toda espiritualidade.
No Cristianismo, Jesus é o centro da Espiritualidade, porque a manifestação máxima da
expressão do Espírito, sua característica, seu parâmetro e fonte estão na pessoa de Jesus, em
sua vida e ensinamentos: Mas desce sobre vós o Espírito Santo e vos dará força; e sereis minhas
testemunhas em Jerusam, em toda a Judeia e Samaria e a os confins do mundo (At 1,8)
A Espiritualidade Cristã é atribuída a todo homem que crê em Jesus Cristo. (Jo 3,34;
14,12). Uma dimensão da Espiritualidade Cristã que merece destaque é a Dimensão
trinitária: A vida do cristão procede e tende à comunhão com um Deus trino: Pai (criador
de todas as coisas), Filho (redentor do universo) e Espírito Santo (a união entre o Pai e o
Filho). Essa dimensão passa a ser vivida no recebimento do batismo sacramental,
sacramento que foi instituído por Cristo (Mt 3,11; 28,19).
O Encontro pessoal com Jesus reflete numa conversão de atitudes e valores. Acolher
Jesus no coração e direcionar a vida para Ele implica em buscar constantemente o Bem, o
perdão, a justiça, a solidariedade, a caridade, a paz, a brandura, a temperança e o amor.
Caminhar com Jesus, implica contribuir na construção de uma sociedade mais justa,
igualitária, que proporcione uma vida digna a todas as pessoas, essa vivência no
Cristianismo é possível por meio da presença do Espírito de Jesus Cristo em nós. Nas
Suas palavras: Sem Mim nada podeis fazer (Jo 15,1-5)
De acordo com Kerns
17
, a espiritualidade autêntica sempre termina na prática da
caridade. A espiritualidade cristã não é intimista, não é fechada apenas nas necessidades de
quem as pratica. Ao desenvolver a Espiritualidade, o ser humano também desenvolve a sua
fé. De acordo com Kerns
18
, sem a experiência do amor de Deus o fé, e sem não
espiritualidade nem a possibilidade de uma experiência de intimidade mútua.
A vista disso, James William Fowler, pesquisador e estudioso americano do
desenvolvimento humano e religioso elaborou, por volta de 1992, uma teoria que contemplasse
os estágios da . De acordo com Silva
19
, Fowler parte da conceão de uma humana, como
fundamental para o desenvolvimento de uma fé religiosa. A fé é interativa, parte integrante da
personalidade e emerge das primeiras experncias da vida humana. As sementes da fé
favorecem a busca do sentido da vida e do crescimento da espiritualidade no ser humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da humanidade é marcada pela construção de valores, cosmovisões e
paradigmas na tentativa de responder questionamentos sobre a condição existencial: de
onde viemos, para onde vamos, porque estamos aqui, qual o sentido da nossa vida. Por
17 Maria E.A. SILVA, O processo de desenvolvimento da é e a formação docente, a partir de James. W. Fowler, p.26.
18 Maria E.A. SILVA, O processo de desenvolvimento da é e a formação docente, a partir de James. W. Fowler, p.26.
19 Maria E.A. SILVA, O processo de desenvolvimento da é e a formação docente, a partir de James. W. Fowler, p.32.
GARCIA, Luciana Carmona; DA SILVA, Aline Eloisa
A espiritualidade no cristianismo: A esncia do ser
Revista Teopráxis,
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meio das narrativas bíblicas, sobretudo, no livro de Gênesis, compreende-se que Deus é o
criador de todas as coisas, O Espírito de Deus pairava sobre as águas (Gn 1,1). E ao criar o
ser humano, inspirou-lhe nas narinas o sopro da vida (Gn 2,7). As histórias bíblicas
relacionadas ao plano da criação da redenção, do chamado de Abraão, Moisés e outros
profetas bíblicos nos mostram a vivência dessa espiritualidade da Criatura com o Criador. É
Deus quem vai ao encontro do ser humano, que o chama a fazer uma aliança, a viver na
amizade e na liberdade para com Ele.
O ensinamento, por mais imaginativo e popular que seja, é denso e profundo:
Deus é o criador do mundo e é distinto do universo. O mundo é bom. A
finalidade da Criação é a paz de Deus, figurado no repouso do sétimo dia. O
homem foi criado da terra, mas animado de um sopro de vida. Destina-se ele a
viver na amizade com Deus, que lhe concedeu a liberdade
20
.
Jesus Cristo, centro de toda espiritualidade cristã, filho de Deus, perfeito por excelência, se
fez Homem, a fim de ensinar os homens, a se encontrarem com Ele, por meio de uma vincia
espiritual autêntica e geradora de vida plena. Jesus ensinou seus discípulos e seguidores e
continua passando pelos caminhos, chamando a todos que o escutam a viver essa proposta,
arraigada no amor, na compaixão ao próximo, numa vida de doão e intimidade com Deus.
Um chamado que vai ao encontro da vivência de uma espiritualidade plena, que
combata o egoísmo, a superficialidade, e o individualismo. Que valorize e se comprometa
com a vida; que saia do vitimismo e encontre no sofrimento uma oportunidade de
ressignificação da vida. Uma espiritualidade enraizada no Cristo, é aquela que promove o
Bem, a justiça social, a solidariedade, a ética , que está firmada no Reino Celeste, podendo
ser vivida concretamente no plano terreno, mas que extrapola a realidade terrena, uma vez
que seu seguimento implique em cada vez mais se tornar um com Ele.
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