BÍBLIA
CRISES E O
CUIDADO DA VIDA
v. 38, n. 130, Jan./Jun./2021
ISSN on-line: 2763-5201
EQUIPE EDITORIAL
DiretoriadoItepa
Dr. Pe. Rorio Luiz Zanini - Diretor Executivo
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Dr. Pe. Clair Favreto - Administrador Tesoureiro
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Editorchefe
Dr. Pe. Clair Favreto - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Comissãoeditorial
Ms. Pe. Ari Antônio dos Reis - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Ms. Selina Maria Dal Moro - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Dr. Pe. Rorio Luiz Zanini - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Ms. Regiano Bregalda - Universidade de Passo Fundo - UPF
ConselhoEditorial
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Dr. Edivaldo Jos é Bortoleto - Universidade Federal do Espí ri to Santo - UFES
Dr. Frei Luis Carlos Susin - Ponticia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
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Editorão
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Catalogação na fonte: Bibliote cári a Valderes de Rezende - CRB 10/258 8
T314
Revista Teopráxi s, vol.1, n.1(1 9 84 -) / Institu to de Teologia e Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v. vol.38
- n°130, Jan.-Jun./2021. S e me s tral .
ISSN:1677-860X versão impressa (descontinuada)
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Peri ódi co s I. Institu t o de Teologia e Pastoral-ITEPA
SUMÁRIO
Editorial............................................................................... ..... ..... .... ..... .... ..... .... ..... ..... .... ..... .... ..... .... ..... . 4
Rogério L. Zanini
Rumoàanimaçãobíblicadavidaedap a sto raldaIgrejanoBrasil............................. 7
Towards th e biblical animation of life and the pastoral of the Church in Brazil
Dom Jacinto Bergmann
FraternidadeeDiálogo:compromissodeamor
Cristoéanossapaz.Doqueestavadividi dofezumaunidade.(Ef2,14)...................19
FraternityandDialogue:commitmentofloveChristisourpeace,whohasmade thetwogroupsone. (Ef2,14)
Romi Marcia Bencke
OscereaisnaBíblia:algunsaspectosecoteológicos.................................... ..... .... ..... ..... .... ... 26
The cer ea ls in the Bible: some ecotheological aspects
Matthias Grenze e Cassiano Alberto Pertile
EnviateuEspíritoehaveráCriação......................................... .... ..... .... ..... ..... .... ..... .... ..... .... ..... . 39
Send you r Spirit and shall be Creation
Alessandro Galla zz i
Viu-oemoveu-sedecompaixão:
estudohermenêu t ico -te ol óg ico daparáboladobomsamaritano.................................51
Hesaw him,he tookpityon him: hermeneutic-theologicalstudyof theparableofthegood Samaritan
Marcos Alcânta ra e Anderson Costa Pereira
Rute:Paraondefores,ireitambém!(1,16)........................................... .... ..... ..... .... ..... .... ..... .... 62
Ruth: Where you go I will go (1,16)
Jair Carlesso
MêsdaBíblia:PoistodosvóssoisUMemCristoJesus(Gl3,28b).......................... 78
Month of Bible: "For you are all one in Christ Jesus" (Gal 3,28b)
Ademir Rubini
Aprofeciadavidaedainsurreiçãonovaledamorte:
UmaleituradapandemiaapartirdeEzequiel37................................................................. 86
The prophecy of life and insurrection in the valley of death: A pandemic Reading from Ezekiel 37
Marcelo Barros
Ciência,prá ti cadeJesuseformaçãohumana........................................................... .... ..... .... 95
Science, Jesus practice and hum an formation
Rodinei Balbinot
Oministériodamulher/leiganaIgreja:Saldaterraeluzdomundo(Mt5,13-14).........105
The mini s tri e s of laywomen in Church: Salt of the earth and light of t he world (Mt 5,13-14)
Ourora Rosalina Bolzan
Mulheresqu elutam:Comunidadesperiféricascomoespaço
detransformaçã opessoalecoletivaàluzdofeminismobíb lico .. ..... .... ..... .... ..... .... ..... 113
Women who struggle: Peripheral communities as a space for personal and collective
transformation in th e light of biblical feminism
Elis Alberta Ribeiro dos Santos e Lucila Tresinha Mai
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
EDITORIAL
Rogério L. Zanini*
Organizador
É com satisfação e alegria que apresentamos a edição da revista
Teopráxis na modalidade online. A Revista Teopráxis repre se nt a um
caminho processual, tendo por origem, fundamento e enraizamento
a histórica revista Caminhando com o Itepa de quase 40 anos de
existência. Trata-se da continuidade de um audaz e desafiante
movimento e representa o prosseguimento de um caminho trilhad o
coletivamente, planejado e orga niz ado por muitas mãos no decurs o
deste tempo, e que não mediram esforços para desc orti nar novas
veredas. Nesta perspectiva, a configuração da revista Teo pr áx i s, t e m
por propósito e objet i vo refletir teologicamente a pastoral em vi st a
do seguimento de Jesus: caminho, verdade e vida (Jo 14,6). No
seguimento de Jesu s se encontra um modo de fazer teologia a partir
do sofrimento dos pobres e da causa da libertação, inspirada e
inserida nos propósitos dos movimento s proféticos impulsionados
pelo Concílio Vaticano II, pelas conferências Episcopais Latino-
Americanas e, mais recentemente, com o pontificado do Papa
Francisco. Trata-se de um fazer teológico a partir dos caíd os nas
margens sociais e existenciais, que são os c ru ci f i cad os da história. Em
síntese, uma teologia que assume os infernos (sofrimentos, injustiças e
desigualdades) deste mundo e percebe no gri to e no silêncio dos
pobres, o grito e o silêncio do próprio Deus revelado por Jesus
Cristo.
É neste espírito que apresentamos à comunidade a Revista
Teopráxis, tendo como escopo a perspectiv a bíblica: Bíblia, crises e o
cuidado da vida. Quando nos referimos à Palavra de Deus, s abe m os de
sua importância na vida do Povo de Deus, sobretudo dentro do
contexto pós-concílio Vaticano II (1965). Este, deixará claro que,
juntamente com a liturgia eucarística, a liturgia da Palav ra se
constitui o centro da celebração. O documento conciliar Dei Ver bu m
recorda que a Ig re j a sempre venerou a Sagrada Escritura da mesma
forma como venera o próprio Corpo de Cristo (DV 21).
Na missa não lemos o Evangelho para s abe r o que
aconteceu, mas ouvimos o Evan g e lho para tomar
consciência d o que f e z e di ss e Jesus outrora; e aquela
Palavra é viva, a Palav ra de Jesus que está no
Evangelho é viva e chega ao meu coração. Por isso,
ouvir o Evangelho é muito importante, com o
coração aberto, porque é Palavra viva
1
.
De fato, a Palavra de Deus é viva e efic az para saciar a sede de
espiritualidade e fortalecer a missão da Igreja em saída proposta
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 4-6, Jan./Jun./20 2 1,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: 10.52 4 51 /t e opraxi s. v3 8i 1 30 . 52
* Doutor em Teologia (Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS, Porto Alegre, RS, 20 20 ) . Mestre em
Teologia (Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, PUCRS, 2012).
Especialização em Metodologia Pastoral
(Universidade Reg i onal Integrada do Alto
Uruguai e das Missões, URI, 2009).
Graduado em Teologia (Instituto de Teologia
e Pastoral, ITEPA, Passo Fundo, RS, 2004).
Graduado em História (Universidade do
Oeste de Santa Catarina, UNOESC, Chapecó,
SC, 2000). Professor da Faculdade de
Teologia (Itepa Faculdades de Passo
fundo/RS).
E-mail: zani ni pas tora l@h ot mai l.c om
http://orcid.org/0000-0001-8771-3799
1 PAPA FRANCISCO. Audiência Geral (AG). Vaticano, 20 1 8. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2018.index. h tml >. Acesso em: 9
dez. 2020.
5
pelo Papa Francisco (EG 24). Nenhu ma ação pas t oral deve estar desvinculada do amor à
Palavra de Deus, porque é ela que fundamenta e configura a ação evangelizadora.
Nesta perspectiva, os doze artigos que se enc ont ram na revista Teopráxis buscam
descortinar um horizonte que revele o profundo s e nt id o de refletir sobre a importância da
Palavra de Deus, sempre em conexão com a realidade das pessoas de carne e osso. Contudo,
é preci s o ressaltar que se o fim não consist ir em relacionar a Palavra com a Vida de nada
terá adiantado o esforço e o tempo dedicado ao estudo da Palavra de Deus. Este caminho se
constitui, inclusiv e , em um dos princ i pais intuitos das intuições bíblica-proféticas e tidas
como inovadoras na América-Latina, qual seja, Pastoral e Bíblia, e Vida, dom e tarefa
estão intrins ec ame nt e conectadas.
Com primeiro art ig o proposto por Dom Jac i nto Bergmann, Rumo à animação bíblica
da vida e da pastoral da Igreja no Brasil, somos desafiados a com pre e nde r o sentido do
projeto da animação bíblica da pastoral. Dom Jacinto fazendo justiça ao movimento
bíblico, fruto do embalo provocado pelo Concílio Vaticano II e sua caminhada na vida da
Igreja no Brasil, reconhece no movimento bíblico um novo pentecoste na evangelização.
Conclui, afirmando que a Igreja funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce e vive dela (cf.
VD 3).
Em seguida, a pastora luterana Romi Márcia Be nc ke , no escrito Fraternidade e
Diálogo: compromisso de amor: Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unida de (Ef
2,14), propõe, à luz do tema da Campanha da Fraternidade 2021, a importância do diálogo
como principal testemunho do movimento ecumênico. Finaliza, manifestando a con vi ão
que em diferentes momentos da história, o diálogo nece s si t ou ser assumido como a
principal estratégia para a superação de conflitos e polarizações e torna-se um caminho
urgente na atualidade.
Matthias Grenze e Cassiano Alberto Pertile prosseguem com o texto intitulado Os
cereais na Bíblia: alguns aspectos ecoteológicos. A ecoteologia é ent e ndi da como teologia que
abarca todos os sentidos da existência humana e a conduz para a responsabilidade como
cocriadora da obra divina. Os autores concluem, dando visibili dade aos povos israelenses
antigos e a forma de produzir o seu alimento e como se relacionavam com a terra.
Apontam-na assim como uma das alternativas e caminho para a atualidade.
Seguindo nosso percurso, Sandro Gallazzi em seu artigo Bíblia e ecologia: envia teu
Espírito e haverá criação, oferece uma chave bíblica/testemunhal para compreender a
perspectiva do Deus dos hebreus s e mpre do lado dos marginalizados. Para Gallazzi, entrar
na Bíblia a partir das culturas ancestrais latino-americanas, fez apare c e r mais evidente
quais são as coisas que o Pai quis revelar aos pequenininhos e fez questão de esconder aos
sábios e entendidos e, quem sabe, também, aos teólogos (Mt 11,25-26).
Com o texto Viu-o e moveu-se de compaixão: estudo hermenêutico-teológico da parábola
do bom samaritano, os autores Anderson Costa Pereira e Marcos Alcântara propõem um
estudo hermeutico-teogico da parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37). Indicando uma
visão geral do Evangelho segundo Lucas, cont e xtu ali zam a referida perícope com objetivo
final de chegar a algumas conclusões que ajudem a refletir sobre a atualidade desta parábola.
Com maestria, o biblista Jair Carl es s o se debruça sobre o livro de RUTE Para onde
fores, irei também! (1,16), com o objetivo de mostrar que a soluç ão para a situação do povo
era frut o de um processo que implicava consciência histórica, resgate dos direitos sociais e
a posse da terra, efetivada com o casamento de Rute com Booz. Segundo Carlesso, o autor,
anônimo, que r ajudar os pobres de sua época a encontrarem uma saída diante do context o
de exploração persa, o que sig ni f ic a concluir: Rute é uma proposta. Rute é um paradigma
e sempre atual.
ZANINI, Rogério L.
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 4-6, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Ademir Rubini, com o texto Pois todos vós sois UM em Cristo Jesus (Gl 3,28b), ref le te
sobre a temática do mês da Bíblia deste ano de 2021. Percorre a Carta aos Gálatas
aprofundando alguns elementos e finaliza relacionando o tema d o Mês da Bíblia à Encíclica
do Papa Francisco Fratelli Tutti.
Com Marcelo Barros, recolhemos o texto Da profecia da vida e da insurreição no vale
da morte: (uma leitura de Ezequiel 37 a partir da pandemia da Covid 19 ). Este au tor relaciona, a
partir do profeta Ezequie l, profecia e pandemia e nos chama a atenção da responsabilidade
de viver esta palavra e ser capaz de comuni -la pelo testemunho na vi da aos irmãos e
irmãs.
O texto do Rodinei Balbinot se i nt it u la Ciência, prática de Jesus e formação humana e
tem por meta tratar da formação humana relacionando o que a ciência diz a respeito da
inteligência com a prática formativa desenvolvida por Jesus. E, a partir daí, resulta a
importância de considerarmos nos processos formativos, todas as dimensões humanas,
caso desejarmos falar em formação ou educação integral.
De Ourora Bolzan recolhemos o texto O mistério da le ig a na I g re ja: sal da terra e luz do
mundo (Mt 5,13-14), proposto com o objetivo de ref le t ir sobre o comprome ti me nt o da
mulher nos ministérios da vida da Igreja, como protagon is t as nas comunidades e atuando
nas pastorais e serviços. E conclui: em Cristo, somos todos/as sacerdotes e sacerdotisas,
profetas e profetisas, re i s e rainhas.
Finaliza a edição o tex to Mulheres que lutam: comunida de s periféricas co mo espaço de
transformação pessoal e coletiva à luz do feminismo bíblico. Com este título, Elis Alberta Ri be i ro
dos Santos e Lucila T. Mai propõem alternativas que proporcionem visibilidad e à lu ta de
mulheres inseridas em espaços sociais de comunidades periféricas da Região Metropolitana
de Porto Aleg re /R S, tendo como base a sustentação dos grupos e a leitura fe mi ni st a da
Bíblia. Trata-se de uma reflexão fruto de um projeto desenvolvido pelas Irmãs da Divina
Providência, que tem por objetivo o empoderamento e a superação da heranç a patriarcal e
autoritária, qu e recaiu e recai hist ori cam e nte sobre as mulheres.
Almejamos que todos e todas que tenham acesso a estes textos encontrem substancial
aprofundamentos, em especial pa ra que juntos possamos crescer no fazer teológico pastoral
encarnado na vida. Na força da Palavra de Deus sejamos alimento como sal da terra e luz
do mundo. Nas palavras do Papa Francisco: porque a Boa Notícia, a Palavra de Deus, entra
pelos ouvidos, vai ao coração e chega às mãos para fazer boas obras
2
.
2 PAPA FRANCISC O , AG, 7 de fevereiro de 2018.
ZANINI, Rogério L.
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 4-6, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
RUMO À ANIMAÇÃO BÍBLICA
DA VIDA E DA PASTO RA L DA
IGREJA NO BRASIL
TOWARDS THE BIBLICAL ANIMATION
OF LIFE AND THE PA S TO RA L OF
THE CHURCH IN BRAZIL
Dom Jacinto Bergmann*
Resumo: O texto analisa a reviravolta Bíblica promovida pelo Concílio
Vaticano II, destacando alguns encaminhamentos. 1º) Antes do dess e
Conclave o trabalho evangelizador com a Sagrada Escri t ur a era entendido
como um movimento bíblico, tendo como finalida de dis tri bu i r e dar a
conhecer o livro da Bíblia. 2º) Com o Concílio, o trabalho com a Sagrada
Escritura passou a ser ente ndi do como serviço past oral da Igreja. O texto
destaca a atuação particular d a CNBB, no Brasil e indica que c he g ou a
formular os seguintes objetivos pastorais: Valorizar a Palavra de De u s n a
Bíblia como fonte de vivência comunitária e da missão da Igreja e chamar
toda a Igre ja a fazer-se permanente ouvinte da Palavra de Deus,
assimilando-a e confrontando-a com a vida (Documento da CNBB 90). As
Diretrizes Gerais da Ação Pastoral 1991-1994, elaboradas e nt ão,
oportunamente afirmaram: O destaque dado à dimensão bíblica vem em
boa hora responder ao dinamismo das c omu ni dad e s eclesiais, dos grupos
apostólicos e moviment os que se aproximam da Sagrada Escritura, com
novos métodos e nova sensibilidade (Documento da CNBB 89) A
Constituição Dogmática Dei Verbum do Vaticano II, impulsionou grandes
avanços no âmbito da exegese e no uso pastoral, cate q u é ti co, litúrgico e
transformador da Sagrada Escritura na Igreja no Brasil. O texto é concldo com
a indicão dos passos dados para difusão do texto blico na Igreja do Brasil
Palavras-chave:Animação bíblica. Pastoral. Missão. Vaticano II.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 7-18, Jan./Jun./2 0 21 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.48
* Formado em filosofia pela Faculd ade de
Filosofia Nossa Senhora da Conceição e em
teologia pelo Inst it u t o de Teologia e C i ê nci as
Religiosas da Pontifícia Universidade
Católica PUCRS. É mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontif ic o Instituto Bíblico de
Roma, I táli a e pela Escola Superior de
Teologia Sankt G e org e n de Frankfurt,
Alemanha. Possui atualização em Ciências
Bíblicas, Faculdade de Teologia de Trier,
Alemanha. Atuou como professor de Exegese
do Antigo Testamento no Instituto de
Teologia e Ciências Religiosas - PUCRS; no
Centro de Estu d os Teológicos João Vianney
de Viamão - RS; no Instituto de Teologia
Paulo VI de Pelotas - RS ; no Instituto
Missioneiro de Santo Ângelo - RS; na Escola
Superior de Teologi a e Espiritualidade
Franciscana de Porto Alegre - RS; no
Instituto de Teologia de Cascavel PR e no
Centro Educacional La Salle de Canoas - RS
(1986 a 1996). Atualmen te é arcebispo da
arquidiocese de Pelotas RS e desde 2009 é
referencial da Comissão Episcopa l para a
Animação Bíb li co-C at e qu é t ic a do Regional
Sul 3 de CNBB.
E-mail: domj a@ arqu i di oc es e de pe lot as .org . br
https://orcid.org/0000-0001-8142-3002
Recebido em 11/1 2 /20
Aprovado em 06/02/21
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
Abstract: The text analyzes the Biblical turnaround promoted by the Second
Vatican C ou nc il, highlighting some guidelines. 1º) Before this Concl ave , the
evangelizing work with Sacred Scripture was und er st ood as a biblical movement,
with the purpose of distribut i ng and making known the book of the Bible. 2º)
With the Council, the work with S acre d Scripture came to be understood as a
pastoral service of the Church. The text highlights the particular work of the
CNBB in Brazil and indicates that it came to formulate the f ollow in g pastoral
objectives: Valuing the Word of God in the Bible as a source of community
experience and of the Church's mission and calling the whole C h ur ch to be a
permanent listener of the Word of God, assimilating it and confronting it with life
(Document of CNBB 90). The General Guidelines for Pastoral Action - 1991-1994,
elaborated then, opportunely stated: The emphasis given to the biblical dimension
comes at a good time to respond to the dynamism of ecclesial commu ni ti e s,
apostolic groups and movements that approach Sacred Scripture, with new
methods and new sensitivity (Document of the CNBB 89) The Dogmatic
Constitution Dei Verbum of Vatican II, promoted great advances in the scope of
exegesis and in the pastoral, c ate c he t i cal, liturgical and transformational use of
Sacred Scripture in the Church in Brazil. The text concludes with an indication of
the steps taken to disseminate the biblical text in the Church of Brazil.
Keywords: Biblical animation. Pastoral. Mission. Vatican II.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 7-18, Jul./Dez. /20 2 1,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.48
9
1 PONTO DE PARTIDA:A REVIRAVOLTA BÍBLICA DO CONCÍLIO VATICANO II
Antes do Concílio Vaticano II, realizado e m 1962-1965, o trabalho evangelizador
com a S ag rada Escritura era e nt e ndi d o mais como um movimento bíblico cu ja principal
finalidade era distribuir e dar a conhecer o livro da Bíblia aos fiéis católicos pelo escasso
conhecimento que tinham dele.
Com o Concílio Vaticano II, o trabalho com a Sagrada Escritura começa a ser
entendido como aquele serviço da Igreja, realizado ao estilo das outras pastorais
comunitárias, paroquiais, diocesanas: u ma pastoral bíbl ic a. Em relação ao movimento
bíblico, essa pastora l se encarregava, sobretudo, da formação bíblica mediant e cursos e
retiros e da leitura e vivência bíblicas nos círculos e grupos bíblicos.
Com alegria dev em os constatar que na Igreja no Brasil a pastoral bíblica fez uma
caminhada intensa e muito i mport ant e . De maneira explícita, a 29a Assembleia Geral dos
Bispos do Brasil, em 1991, chegou a formular os seguintes objetivos pastorais: Valorizar a
Palavra de Deus na Bíblia como fonte de vivência comunitária e da missão da Igreja e
chamar toda a Igreja a fazer-se permanente ouvinte da Palavra de Deus, assimilando-a e
confrontando-a com a vida (Documento da CNBB 90). As Diretrizes Gerais da Ação
Pastoral 1991-1994, elaboradas então, afirmaram opor tu nam e nt e: O destaque dado à
dimensão bíblica vem em boa hora responder ao dinamismo das comunidades e c le si ai s,
dos grupos apostólicos e movimentos que se aproximam da Sagrada Escritura, com novos
métodos e nova sensibilida de (Documento d a CNBB 89).
A Palavra de Deus, presente nas Sagrada Escrituras, ficou mais conhe ci da, rezada,
vivida e anunciada nas dioceses, paróquias e comunidades. A sua leitura en carn ada
começou a transformar pessoas e comunidades, tornando-se inspiração de vivência crist ã,
de engajamento comunitário e de compromisso transformador. A Igreja no Brasil ficou
mais atenta em ouvir o Se n hor, profética em anunciar sua Palavra e misericordiosa em
servir a todos.
O movimento bíblico e a pastoral bíblica foram passos necessários, importantes e
promissores na vida e mi ss ão evangelizadora da Igreja. No entanto, ainda não era este o
espírito pleno da Dei Verbum (Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II), quando pedia
que toda a pregação da Igreja, como a própria religião cristã, seja alimentada e regida pela
Sagrada Escritura (DV 21). A Bíblia, enquanto contém a Palavra de Deus que é viva e
eficaz, está chamada a nutrir a vocação, a formação e a missão de todo o discípulo
missionário e, por isso mesmo, de toda a sua ação evangelizadora através de suas pastorais.
Graças a esta renovada percepção do espírito do Concílio Vaticano II, intuída sempre
mais em todos os continentes onde está presente a Igreja, foi possível conceber e propor uma
nova compreensão do trabalho evangelizador com a blia. Atualmente se compreende que a
Palavra de Deus é a alma (coração, segundo Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-
Sinodal, Verbum Domini) de toda a pastoral, isto é, de toda a ação evangelizadora da Igreja.
Afirma-se aqui a dimensão bíblica de toda a pastoral, que recebeu vários nomes, mais
chamada de animação bíblica da pastoral. Para essa compreensão, muito colaborou a FEBIC
Federação Bíblica Católica, presente nos cinco continentes.
No marco de uma eclesiologia-pastoral de comunhão, a Sagrada Escritu ra
enquanto apresenta a Palavra de Deus viva e eficaz não pode ser concebida como objeto
específico de uma única pastoral. Se a Palavra de De u s é vida nova e plena com que a
Cabeça nutre seu Corpo para que viva em comunhão com Ele e proclame o Reino, o acesso
à Palavra de Deus não é privi gi o dos que participam da e na pastoral bíblica, mas de
todo o povo de Deus, pastores e fiéis.
BERGMANN,Jacinto.
Rumo à animão blica da vida e da pastoral da Igreja no Brasil
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 7-18, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
10
Daí a necessidade de que no contexto da eclesiologia-pastoral de comunhão toda
a ação evangelizadora da Igreja brote e s e sustente na Palavra de Deus, respondendo à
consciência cresce n te do Povo de Deus com relação à função normativa da Sagrada
Escritura como canal de revelaçã o. Ela é fundamento de significação da vida, de comunhão
com Jesus e de ardor missionário: Desconhecer a Sagrada Escritura é desconhecer a
Cristo (São Jerônimo). Aqui vale lembrar a pa lavra forte do Papa Bento XVI na sua
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domin i, 124: Recordo a todos os cristãos que o
nosso relacionamento pessoal e comunitário com Deus depende do incremento da nossa
familiaridade c om a Palavra divina.
Assim a Sagrada Escritura se torna font e e cume de conhecimento e interpretação,
de oração e comunhão e de evangelização e proclamação da Palavra enq u ant o mediação
insubstituível de enc ont ro com o Verbo que se fe z carne - Je su s Cristo vivo, para
continuar sua obra do Reino de Deus. A Palavra de Deus que a Sagrada Escritura oferece
deve ser inspiradora de todas as fas e s da ação evangelizadora nas comunid ade s , nas
paróquias e nas dioceses: a reflexão e o discernimento, a t omad a de decisões e o
planejamento, a execução e a avaliação (DAp 371).
Dito com uma metáfora: a Palavra de Deus não pode ser um ramo a mai s do
conjunto da árvore que é a Igreja, mas a seiva que corre por seu tronco e nutre todos os
ramos. Os Bispos da América Latina e Caribe, reunidos em Aparecida, em 2007, por sua
vez, aludem à metáfora do farol para falar da Sa gr ada Escritura que ilumina e guia o
caminho e a atuação da Igreja de Cri s to (DAp 180). Onde evangelização deve estar a
seiva e a luz da P alavr a de Deus que, com sua multiforme presença, anima o anúncio e a
realização do Reino de Deus.
A Palavra de Deus contida na Sagrada Escritura deve suscitar, formar e acomp anha r
a vocação e a missão do discípulo missi onári o de Jesus Cristo e dar conteúdo às ações
organizadas da Igrej a em sua missão de ir e fazer dis pul os a todos os povos (Mt 28,19).
Desta forma, além de ser a alma da teologia (DV 24), a Palavra de Deus está chamada a
converter-se em alma da ação evangelizad ora da Igreja (DP 372; DAp 248; DV 1).
2 CENÁRIO ORIGINÁRIO DO MOVIMENTO BÍBLICO, DA PASTORAL BÍBLICA E DA
ANIMAÇÃO BÍBLICA DA VIDA E DA PASTORAL
Na Igreja alguns passos foram decisivos para d ar origem a u m a pastoral bíblica na
sua vida e no seu trabalho evangelizador. Basta lembrar, de forma si nt é ti ca , alguns passos e
que também caracterizam o cenário originário da pastoral bíblica na Igreja no Brasil: 1º)
A partir do s é c . XIX, a Igreja vinha utilizando novos instrumentos para o conhecimento
e aprofundamento dos textos das Sagradas Escrituras. 2º) No início do séc. XX foram
importantes as atenções dos Papas para as novas abordagens e perspectivas sobre a Bíblia:
Papa Leão XII, a criação da Pontifícia Comissã o Bíblica 19 02 ; Pio X, a criação do
Pontifício Instituto Bíblico - 1909; Pio XII, a publicação da Encíclica Divino Afflante Spiritu
1943; 3º) Na década de 1950-1960 (1950, a criação da CNBB Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), a Igreja no Brasil é marcada por uma transformação e renovação na sua
maneira de conceber a evangelização em contextos de mudanças e buscas de respostas
urgentes: bu sc a-s e na Bíblia uma luz; 4º) Com a elaboração e i mpl ant ação do Plano d e
Emergência (PE) 1960-1964 e o Plano de Pastoral de Conjunto (PPC) 1966-1970, por
parte da CNBB, houve uma resposta pastoral emergente e de conju nt o para os novos
desafios, mediante um grande florescer bíblico, vislumbrado: a) Pela descoberta da
centralidade da Palavra de Deus na vida cristã, tornando-se o grande eixo da renovação da
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Igreja; b) Pela contribuição das duas vertentes bíblicas distintas mas complementares: 1ª)
Vertente erudita: com o movimento bíb lic o no Brasil, influenciando enormemente a
renovação litúrgico-catequética; com a fundação e atuação da Liga de Estudos Bíblicos
(LEB) 1944, cong re ga ndo os biblistas formados dentro da renovação bíblica europeia; 2ª)
Vertente popul ar: com o Movimento da Ação Católica, usando o método Ver-Iluminar-
Agir; com a prática da Leitura da Bíblia, partindo da vida do povo; 3º) C om o Concílio
Vaticano II 1962-1965, especialmente com a Constituição Dogmática Dei Verbum so bre
a Revelação Divina, um decisivo e definitivo i mpu ls o para a pastoral bíblica.
3 A DEI VERBUM E O FRUTO DA PASTORAL BÍBLICA RUMO À ANIMAÇÃO BÍBLICA DA
VIDA E DA PASTORALNA IGREJA NO BRASIL
A Constituição Dogmática Dei Verbum do Vaticano II, impulsion ou grandes avanços
no âmbito da exegese e no uso pastoral, catequ é t i co, litúrgico e transformador da Sagrada
Escritura na Igreja no Brasil. Isso é bem visível: a) Na aceitação do método histórico-crítico e
o estudo dos gêneros literários (cf. DV 12); b) No reconhecimento de uma profunda unidade
entre o Antigo e o Novo Testamento (cf. DV 16); c) Na valorização da Palavra de Deu s na
Celebração Eucarística - as duas mesas (cf. DV 21); d) Na promoção da unidade entre os
cristãos sep arados mediante a Sagrada Escrit u ra (cf. DV 22); e) Na descoberta das Sagradas
Escrituras pelo povo (cf. DV 22); f) Na primazia dos Livros Sagrados presentes em t od as as
atividades pastorai s da Igreja (cf. DV 24 ); g) Na importância da Sag rada Escritura para a
Teologia, a Catequese e a Pregação (cf. DV 24-25); h) Na Leitura Orante da Sagrada Escritura,
redescobrindo e usando espe c i alme nt e o método da Lectio Divina (cf. DV 25).
4 PASSOS DADOS E CONQUISTAS ALCANÇADAS NA IGREJA NO BRASIL RUMO À
ANIMAÇÃO BÍBLICA DA VIDA E PASTORAL
Tendo passado um tempo razoável, desde o Concílio Vaticano II, podemos
vislumbrar uma boa caminhada bli ca na Igre j a no Brasil. Consegue-se caracterizar
alguns passos importantes que foram feitos e, consequentemente, algumas conquistas
alcançadas. Vamos tentar aqu i , de forma um pouco didática, apresentar esses passos e
conquistas.
4.1ADifusãodotextobíblico
4.1.1 A LEB seu esforço da tradução literal da Bíblia
Logo depois da Segunda Guerra Mundi al, um grupo de exegetas e professores de
Sagrada Escritura, desejoso de se encontrar para abord ar problemas relacionados com a
Bíblia, confrontar expe ri ê nci as sobre os métodos de pesquisa e do ensino da Sagrada
Escritura nos seminári os e, principalmente, preocupado com o emprego da Sagrada
Escritura na instrução dos fiéis e nas várias modalidades da pas t oral, concretizou es se
desejo com a realização da Primeira Semana Bíblica Nacional. Essa realização era uma
resposta dos exegetas brasileiros ao desafio que o Papa Pio XII acabava de lançar com a sua
Encíclica Magistral Divino Afflante Spiritu, promulgada no di a da festa de São Jerônimo, em
1943. A Primeira Semana Bíblica Nacional, destinada a especialistas em Ciências Bíblicas,
redigiu uma circular intitulada: Resoluções da Primeira Semana Bíblica Nacional, que
continha entre as diversas conclusões, a tradução literal da Bíblia para a língua portuguesa.
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Uma gran de largada para as traduções em língua portuguesa destinadas à Igreja Católica no
Brasil.
4.1.2 O empenho da CNBB
Especialmente na década de 1960-1970, somando com o esforço da LEB Liga de
Estudos Bíblicos, o Secretariad o da CNBB empenhou-se diretamente para a concre t iz ação
de traduções a partir do texto original.
4.1.3 O surgimento de diversas traduções
Surgem então v ári as traduções. Entre as de maior destaque, temos: a) A Bíblia da Ave
Maria, traduzida do francês - Bíblia dos Monge s de Maredsous, Bélgica - por frei João José
Pedreira de Castro e publicada pela Editora Ave Maria; b) A Bíblia Vulgata, trad u zi da do
latim pelo Pe. Matos Soares e editada pelas Edições Paulinas; c) A Bíblia de Jerusalém,
editada pela Paulus com tradução baseada na Edição de La Sainte Bible, edição de 1973,
sob a responsabilidade da Ecole Biblique de Jérusalem; d) A Bíblia da Editora Vozes,
traduzida diretamente dos textos originais hebraicos e gregos; e) A Bíblia Pastoral, editada
pela Paulus com tradução diretamente dos originais, numa linguag e m simples e acessível,
com introdu çõe s e notas que ajudam na int e rpre ta ção do texto a partir da opção
preferencial pelos pobres, ace nt ua da nas Conferências de Medellín e Pueb la; f) A Tradução
Ecumênica da B í b lia, traduzida e publicada pelas Edições Loyola, baseada na Traduction
ecuménique de la Bible; g) A Bíblia Sagrada Edição da CNBB, tradução com o objetivo de
auxiliar os agentes de pastoral na liturg ia e na catequese; h) A Bíblia do Peregrino, tradução
da Editora Paulus com cunho missionário.
4.1.4 As semanas bíblicas nacionais
Por ini c iat i va dos exegetas e professores de Sagrada Escritura, f u ndan do a LEB - Liga
de Estudos Bíblicos, iniciaram-se as Semanas Bíblicas Nacionais. A Primeira Semana
Bíblica Nacional reali zou -s e de 3 a 8 de fevereiro de 1947, no Mosteiro de São Bento, em
São Paulo. Cerca de quarenta participantes, vindos de muitos Estados do Brasil,
compuseram a Semana. No seu encerramento foi redigida u ma circular intitulada:
Resoluções da Primeira Semana Bíblica Nacional, que conti nh a as seguintes conclusões:
a) Fundação da Liga de Estudos Bíblicos LEB; b) Instituição do Domingo da Bíblia; c)
Incentivo de publi caç ão de literatura bíblica naci onal ; d) Tradução literal da Bíblia para a
língua portugu e s a.
Assim, a partir de 1947 desencadeou-se um processo de Semanas Bíblicas Nacionais.
Aconteceram pelo Brasil afora, tendo muitas Dioceses como anfitriãs. Foram realizadas
nada mais e nada menos, mais 20 edições. Essas Semanas Bíblicas Nacionais, que sempre
mais foram responsáveis de fazer chegar a Bíblia ao povo católico, provocaram também o
desejo e a realização de Semanas Bíblicas Populares. A Primeira Semana Bíblica Popular
aconteceu na Diocese de Natal, Rio Grande do Norte. Depois tiveram lugar Semanas
Bíblicas Populares por inúmeras Dioceses do Brasil, revelando como a bli a com e çav a a
ocupar um lugar e um papel importante na vida e na ação das pessoas e das comunidades
católicas.
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4.1.5 Os Círculos Bíblicos Grupos Bíblicos
Junto com o movimento das traduções bíblicas na língua portuguesa, fazendo com
que o cristão católico começasse a ter a Bíblia nas mãos, e o movimento das Semanas
Bíblicas Nacionais e Semanas Bíblicas Populares Nacionais, também começou um trabalho
de ler, meditar, rezar e concretizar a Bíblia em forma de pequenos grupos bíblicos. Ficaram
muito conhecidos os grupos chamados Círculos bíblicos. Esses tiveram a marca da figura
Carismática do Frei Carlos Mesters, exegeta e pastoralista bíblico belga. Ele exerceu certo
pioneirismo em relão a esses grupos e muitos subsídios saíram das os dele e de sua equipe.
Nos Círculos Bíblicos fazia-se (faz-se) a leitura da Bíblia a partir da vida concreta das
pessoas, das comunidades, da convivência social - da realidade, ligando essa vida com a
Palavra de Deus, descobrindo e concretizando a vontade de Deus, trazendo-O presente no
dia-a-dia, celebrando-Oatuante e transformandoa vida e arealidade pessoal, comunitária esocial.
Na atualidade existem, espalhados pelo Brasil, praticame nt e em todas as dioceses,
inúmeros grupos bíblicos, espelhados nos Círculos Bíblicos, sob as mais diversas
denominações. Neles se faz a Leitura Orante da Palavra de Deus, especialmente usando-se
o método da Lectio Divina. Por meio dos grupos bíblicos a Bíblia foi ocupando espaço em
todas as comunidades eclesiais. Assim a vi da do povo de Deus, a Palavra de Deus e as
comunidades e cle s i ais caminham ju nt os.
4.1.6 O domingo da Bíblia e o mês da Bíblia
Como resolução da Primeira Sem ana Bíblica Nacional, que aconteceu em 1947,
começou a ser celebrado an ual me nt e o Domingo da Bíblia, sempre no último domingo
de setembro, devido à proximidade da Festa Litúrgica de São Je rôni mo, t radu t or da
Vulgata. Tinha como finalidade criar uma ocasião para instruir os fiéis católicos s obre a
Palavra de Deus, difundi r mais amplamente a Bíblia e dar ensejo a que a homilia na Missa
abordasse o assunto Bíblia. Esse Domingo da Bíblia começou a ser celebrado em todo o
Brasil e logo foi inserido, em cater oficial, no Diretório Lirgico da Igreja Católica do Brasil.
A ideia de celebrar um Mês da Bíblia, no mês de setembro, em âmbito nacional, foi
lançada na Décima Semana Bíblica Nacional, realizada em 1974, em Belo Horizonte. Foi
que os participant e s tiveram a iniciativa de propor a transformação do Domingo da
Bíblia num verdadeiro Mês da Bíbli a. A Arquidiocese de Belo Horizonte assumiu , no
mesmo ano, com entusiasmo, essa instituição. Em 1976, todo o Regional Leste II da CNBB
também aderiu ao Mês da Bíblia, e, em 1976, ele foi oficializado em todas as dioceses do
Brasil por decisão da CNBB Nacional.
Sempre no Mês da Bíblia são propostos u m estudo e uma reflexão bíblica.
Primeiramente giraram em torno de te mas bíblicos e depois, e até hoje, em torno de livros
bíblicos. São também elaborados e ofertados subsídios, primeiramente pelo SAB Serviço
de Animação Bíblica das Irmãs Pau lin as juntame nt e com a Arquidiocese de Belo
Horizonte, e depois, e até ho je , por várias Entidades bíblicas e Dioceses, coordenados pela
Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-catequét i ca da CNBB Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil.
Em termos de pastoral bli c a rumo à animação bíblica da vida e da pastoral, na
Igreja Católica no Brasil, primeiramente, o Domingo da Bíblia e, depois, o Mês da
Bíblia foram revolucionários . Eles ajudaram e ajudam decididamente para fazer a Palavra
de Deus ser conhecida e interpretada, ser orada e prom otora de comunhão, ser meio de
evangelização e transformação de vidas pe ss oai s, comunitárias e sociais.
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4.1.7 A Bíblia e as Campanhas da Fraternidade
Em plena reali zaç ão do Concílio Vaticano II, a partir de 1964, a Igreja no Brasil
iniciou a prática das Campanhas da Fraternidade no Tempo Litúrgico da Quaresma e m
preparação à Páscoa. Elas sempre abordam temas eclesiais e sociais a partir de um texto
bíblico inspirador e de uma fundame nt açã o baseada na Palavra de Deus, familiarizando a
conversão quare smal com a vontade de Deus expressa na Sagrada Escritura.
4.1.8 A dimensão Bíblica no Planejamento Pastoral da CNBB
No Plano de E me rg ê nci a (PE) em 1962 e no Plano de Conju nt o (PPC) em 1965 da
CNBB, estava contemplada a Linha de Ação 3: Dimensão Catequé ti c a. Em 1983, na 21ª
Assembleia Geral dos Bispos do Brasil passou-se para a Dimensão Catequética e Bíblica.
Em 1991, na 29ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, constit u i-s e a Comissão da
Dimensão Catequética e Bíblica. Nessa progressão percebe-se a consciência da presença da
Bíblia no planejamento da ação pastoral da Igreja no Brasil. Fica também isso claro com
alguns passos desenvolvidos ao longo dess e planejamento:
a) A criação do Grupo de Reflexão Bíblica Nacional GREBIN;
b) A realização de Seminários Nacionais de Pastoral Bíblica e/ou Anim ação Bíblica:
Seminário em 1992 com o tema: O uso da Bíblia na Pastoral ; Seminário em 1993
com o tema: Leitura Fundamen tal is ta da Bíblia; Seminário em 2002 com o tema:
Olhar! Dialogar! Levantar-se e Andar! (At 3,1-10); Seminário em 2 00 6 com o tema:
Educação Bíblic a na Tradição Judaica e Cristã;
c) No 4 º Seminário, com a orientação da FEBIC Federação Bíblica Católica e da
FEBIC-LAC Federação Bíblica Católica Latino-americana e Caribenha, deu-se o primeiro
passo da passagem de uma Pastoral Bíblica para a Animação bíblica da pastoral;
d) Por ocasião d a celebração dos 40 anos da Constituição Dogmática Dei Verbum, em
2005, realizou-se o Encontro Bíblico Cate q u ét i co Nacional com o tema: Ouvir e
proclamar a Palavra e o lema: Seguir Jesus no Caminho (Mc 10,52);
e) Produção d e Materiais Bíblicos: Coleção Verde de Estudos da CNBB: Crescer na
Leitura da Bíblia, 26 e Ouvir e Proclamar a Palavra: seguir Jesus no Caminho, no 91; Versão
Popular do Document o da Pontifícia Comissão Bíblica da Santa Sé: Como nossa Igreja a
Bíblia; Versão Popular da Dei Verbum: Ler a Bíblia com a Igreja; Versão popular do
Documento O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã: Conhecer nossas
raízes. Jesus Judeu; Coleção: Catequese à luz do Diretório Nacional de Catequese: A Palavra
de Deus na História; Uma mensagem dos bispos para toda Igreja; Palavra de Deus, fonte da catequese.
Na 39ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil em 2001, quando foi feita a mudança
dos Estatutos da CNBB, a Comissão da Dimensão Cate qu é t ic a e Bíblica passou a ser a
Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-catequética. Uma mudança muito
significativa na compreensão da presença da Bíblia na ação evangelizadora da Igreja
Católica: ela deve ser a alma d e tudo o que somos e fazemos. Sem a Palavra de Deus não
formação, espiritualidade e vivência da cristã. Essa grande inspiração compreensiv a, que
a FEBIC Federação Bíblica Católica em todos os continentes foi fazendo emergir,
começava com toda a força ser concreta na Ig re ja no Brasil. Graças a essa nova fas e , em
2011 aconteceu a fusão do Grupo de Reflexão Bíblica Nacional - GREBIN com o Grupo de
Reflexão de Catequese GRECAT num único Grupo de Re f le xão Bíblico-catequétic o
GREBICAT. Isso sinalizou que a Bíblia, definitivamente ocupou uma posição de prioridade
para a formação, a espiritualidade e a ação evangelizadora em todos os níveis eclesiais.
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4.1.9 Articulação da Comissão Episcopal Pastoral para a animação Bíblico-
Catequética com as Instituições Bíblicas presentes no Brasil
Uma das principais tarefas que a Comissão Epi sc opal Pastoral para a Anim ação
Bíblico-catequética da CNBB assum e nesta sua fase é leva r avante a concepção de tornar a
Bíblia a alma de tudo o que somos e fazemos uma verdadeira animação bíblica da vida e
da pastoral. É a articulação necessária com as principais Instituições Bíblicas Católicas que
foram sempre mais surgindo em todas as partes do Brasil. a tulo de lembrança, algumas
das Entidades Bíblicas deve m ser citadas pela sua importância: a) O Serviço de Animação
Bíblica (SAB) - Paulinas; b) O Movimento da Boa Nova (MOBON) - Diocese de Caratinga/MG;
c) O Centro De Estudos Bíblicos (CEBI) - Grupo Ecumênico; d)O Movimento b lico Nova
Jerusalém (MBNJ) - Instituto Religioso Nova Jerusa m - Fortaleza/CE; e) O Centro Bíblico
Verbo (CBV) - Verbitas; f) O Projeto Tua Palavra é Vida - Conferência dos Reli g i osos do
Brasil (CRB); g) A Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) - Gru po de Biblistas .
4.1.10 Bíblia no Diálogo Ecumênico
A Igreja Católica no Brasil, de maneira efetiva, foi se abrindo e se aproximando das
Igrejas Irmãs Cristãs. Com satisfação muitos frutos foram colhidos com essa abertura e
aproximação, tanto na linha do estudo bíblico como na linha da pastoral bíblica. Hoje
temos Publicações conjuntas (Revistas Bíblicas, Comentários Bíblicos...), realizamos três
Campanhas da Fraternidade Ecumên ic as, celebramos Semanas de Oração pela Unidade dos
Cristãos, para citar algumas ações comuns, onde a Bíblia é a grande inspiração de unidade.
4.1.11 Valorização da Leitura Orante da Bíblia
Cada vez mais a Igreja no Brasil foi entendendo que a Palavra de Deus devia ocupar
um lugar central na vida pessoal de c ris t ãos e na vida de Igreja. Atualmente, a Igreja, em
todos os continentes, está falando que a Palavra de Deus deve ser a alma de tudo o que
somos e d e tudo o que fazemos. A Palavra de Deus nos apresenta a vontade de Deus a
nosso respeito. Deus nos quer falar o que devemos ser e fazer para se rm os felizes . Mas
como descobrir a vontade de Deus na sua Palavra? Temos que ter familiaridade com as
Sagradas Escrituras - a Bíblia (o Papa Bento XVI fala dessa familiaridade na sua Carta
Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini). Essa familiaridade acontece quando fazemos a
Leitura Orant e das Sagradas Escrituras, que contém a Palavra de Deus.
O que é Leitura Orante? Leitura Orante é tomarmos e lermos em forma de oração as
Sagradas Escrituras - a Bíblia - para e nc ont rar nelas a Palavra de Deus, possibilitando um
diálogo de Deus conosco e de nós com Ele. Oração é diálogo. Deus nos quer mostrar sua
vontade para sermos felizes. Nós precisamos conhecer sua vontade para sermos felizes.
Quem faz a Leitura Orante das Sagradas Escrituras , descobre a vontade de Deus e é feliz!
Para fazermos a Leitura Orante das Sagradas Escrituras - a bli a -, temos vários
métodos à disposição. Um método muito bom é o da Lectio Divi na. Quem começou com
esse método da Lectio Divina foi um monge chamado Guigo, que viveu em torno do ano de
1150 d.C. Ele, refletindo s obre o sonho que o patriarca Jacó teve (cf. Gn 28), chegou à
conclusão que os d e g rau s que levavam ao céu poderiam também ser degraus para
encontrar a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras. Descobri u q ua tro de g rau s ,
que ele chamou de quatro passos. São eles: Passo: a Leitura; Passo: a Meditação;
Passo: a Oração; Passo: a Contemplação/ação.
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Em palavras simples, hoje, podemos assim entender o método da L ec ti o Divina lendo
as Sagradas Escrituras para encontrar nelas a Palavra de Deus: Passo: a Leitura- o que o
texto bíblico diz em si?; Passo: a Meditaç ão- o que o texto bíblico diz para mim/para
nós?; Passo: a Oração- o que o texto bíblico me faz/nos faz dizer a Deus?; Passo: a
Contemplação/ação- o qu e o texto bíblico me faz/nos f az contemplar como vontade de
Deus e agir conforme e s sa vontade de Deus? Assim a Leitura: faz-nos entrar na Palavra de
Deus; a Meditação faz a Palavra de Deu s entrar em nós; a Oração faz-nos falar a Deus a
partir de sua Palavra; a Contemplação/ação: faz-nos olhar a realidade e agir nela a partir da
Palavra de Deus.
A Leitura Orant e , especialmente usand o o método da Lectio Divina, começou
fortemente com os círculos Bíblicos, está prese nt e atualmente nos grupos bíblicos
espalhados em todas a dioceses e sendo, aos poucos, ponto inicial de pauta das reuniões
em todas as instâncias pastorais.
4.1.12 Uso da Bíblia na Catequese e na Liturgia
Nos dias d e hoje é praticament e impensável na Igreja Católica no Bras i l o agir
catequético e litúrgico, como t amb ém , a elaboração de subsídios cate qu é ti c os e litúrgicos
que não sejam bíblicos.
4.1.13 Projetos Nacionais de Evangelização da CNBB
Um destaque especial deve ser dado ao Projeto Rumo ao Novo Milênio para o
triênio de preparação e para a celebração do Jubileu do Ano 2000, proposto pelo Papa João
Paulo II. Na Igreja Católica no Brasil, além de ser assumido o Projeto Rumo ao Novo
Milênio, também seguiram mais dois Projetos : 1º) O Projeto Ser Igreja no Novo Milênio
2001-2003 e 2º) O Projeto Qu e re mos Ver Jesus Caminho, Verdade e Vida 2004-
2007. Os três Projetos, com todos os subsídios de reflexão, as propostas de celebração e
apontamentos de ações, tinha m como fonte e desenvolvim e nt o a Bíblia.
4.1.14 Acolhida da Inspiração Bíblica das Conferências Latino-American as
Na Igreja no Brasil foram acolhidas, sempre com muita abertura, o que as
Conferências Episcopais Latino-Americanas propunham em relação à Bíblia. Assim: A
Conferência do Rio de Janeiro acentuou a Bíblia na forma çã o; a Conferência de Medellín
indicou a Bíblia como força renovadora; a Conferência de Puebla apresentou a Bíblia na ótica
dos pobres; e a Conferência de Aparecida consagrou a Bíblia no processo fo rma t iv o do discípulo
missionário.
4.1.15 Acolhida da Inspiração da Animação bíblic a da pastoral da FEBIC E FEBIC-
LAC
A FEBIC Federação Bíblic a Católica e a FEBIC-LAC Federação Bíblica Católica
Latino-Americana e Caribenha foram responsáveis, em nível mundial e, especialment e em
nível latino-americano e carib e nho pela grande inspiração e concretizaç ão da animação
bíblica da pastoral. Provoca-se a passagem da pastoral bíblica para a animação bíblica da
pastoral. A Palavra de Deus é e deve tornar-se a alma de tudo o que somos e fazemos.
Um passo decisivo em relação ao lugar e ao papel das Sagradas Es cri t ur as em toda a vida e
ação eclesial. Essa concepção, inclusive, ajudou ao Papa Bento XVI a conclamar e realizar a
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13ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sob re a Palavra de Deus na Vida e
na Missão d a Igreja, em 2008, com a consequente Exortação Apostólica pós-sinodal
Verbum Domini, em 2010.
A Igreja Católica no Brasil acolheu este passo decisivo. Mais, assumiu plenamente a
proposta da animação bíb lic a da vida e d a pastoral. Isso pode ser vislumbrado
especificamente nos Documentos Oficiais da CNBB. 1) As DGAE Diretrizes Gerais da
Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011-2 0 15 , 2015-2018 e 2019- 20 2 3, assumiram
como Urgência na ão Evangelizadora a Igreja: lug ar de animação bíblica da vida e
pastoral (Documentos da CN BB 89, 102 e 109); 2) A realização do I Congresso Brasileiro
de Animação bíblica da pastoral, dias 08 a 11 de outubro de 2011, com o Documento da
Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-catequé ti c a da CNBB: Animação
bíblica da pastoral; 3) A realização de vários Congressos Regionais de Animação Bíblica da
Vida e da Pastoral, assumindo a animação bíblica da vida e da pastoral como priori dad e
evangelizadora; 4) As Assembleias Gerais da CNBB - 48ª de 2010 e 50 ª de 2012 (a 58ª de
2020 que não foi realizada por c au sa da pandemia da COVID-19), assumindo como Tema
Central a Animação Bíblica da Vida e da Pastoral e oferecendo às Igrejas Particulares de
todo o t e rri rio brasileiro o Docu me nt o da CNBB 97: Discípulos e Se rv id ore s da Palavra
de Deus na Missão da Igreja.
4.1.16 Acolhida do Sínodo dos Bispos sobre a palavra de Deus na vida e na missão
da Igreja e da exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini
O Papa Bento XVI conclamou e realizou a 13ª Assembleia Geral Ordinária do
Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de De u s na Vida e na Missão da Igreja, em 2008, com a
publicação consequente de sua Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbu m Domin i , em 2 0 10 .
A Igreja no Brasil acolheu e fez eco, na sua realidade, o Sínodo e a Exortação. A CNBB
assumiu como Tema Central da 48ª - 2010 e da 50ª - 2012 (e da 58ª - 2020 que não foi
realizada devido a COVID-19) Assembleias Gerais da CNBB: Animação Bíblica da Vida e
da Pastoral como pronta resposta acolhedora do Sínodo e a Exortação e ofereceu à toda a
Igreja no Brasil sua palavra of i ci al através do Documento da CNBB 97: Discípulos e
Servidores da Palavra de Deus na Missão da Igreja.
5PALAVRA FINAL
Valho-me aqui de algumas ideias redigidas por mim e emprestadas para a elaboração
do Documento da CNBB 97: Discípulos e Servidores da Pal avra de Deus na Missão da
Igreja: Constatamos, com gratidão e alegria, que a caminhada bíblica na Igreja no Brasil
constituiu um novo Pentecostes. A Bíblia influiu eficazmente na sua vida e missão,
particularmente na catequese, na liturgia e no testemunho da caridade, contribuindo,
assim, para a vivênc ia profunda da fé, da esperança e do amor, pois sabemos qu e a Igreja
funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce e vive dela (cf. VD 3).
Somos, na verdade, como cristãos, cons ag rados e enviados para anunciar a tod os a
Palavra que é Cristo. Tendo-a escutado, respondamos com a obediência da (cf. Rm
1,5;16,26) e o ouvido do coração (cf. Regra de São Bento, Prólogo 1) a fim de que as
nossas palavras, opç õe s e atitudes sejam cada ve z mais uma transparência, um anúnci o e
um testemu nh o do Evangelho (cf. DV 26), e vivamos por Ele (cf. 1Jo 4,9).
Temos, sem dúvida, uma Boa Nova para anunciar ao mundo de hoje: a Palavra de
Deus, Jesus Cristo, que está presente entre nós. Ele é mensagem de salvação e de vida. Com
BERGMANN,Jacinto.
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São Paulo, não queremos saber nem pregar outra coisa, a não ser Jesus Cristo, para nós
sabedoria e poder de Deus (cf. 1Cor 2,2).
Que a escuta da Palavra continue e ela faça sempre mais crescer nossa fé; pela f é ,
esperemos, e esperando, amemos (cf. S. Agostinho, Decatechizandisrudibus IV, 8 Pl, 40, 316).
BERGMANN,Jacinto.
Rumo à animãoblica da vidae dapastoralda Igrejano Brasil
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 7-18, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
FRATERNIDADE E DIÁLOGO:
COMPROMISSO DE AMOR
Cristo é a nossa pa z . Do que estava
dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
1
FRATERNITY AND DIALOGUE:
COMMITMENT OF LOVE
Christ is o u r peace, who has made the
two groups one. (Ef 2,14)
Romi Marcia Bencke*
Resumo: O principal tes te m un ho do movimento ecumênico é o diálogo.
Em diferentes momentos da história o diálogo é assumido como a
principal estratégia para a superação de conflitos e polarizações. Sem
diálogo não é possível a convivência ente igrejas e nem entre religiões. No
entanto, o diálogo não pode ser compreendido como isento de
contradições. A partir de Martin Buber, o texto problematiza aponta os
limites do diálogo e pergunta pelas di s posi çõ es dos difere nt e s sujeitos
envolvidos na Campanha da Fraternidade Ecu m ên ic a/2 02 1 para a
promoção de espaços seguros de diálogo.
Palavras-chave:Diálogo. Jesus. Política. Ecumênico.
Abstract: The main testimony of the ecumenical movement is dialogue. At
different times in history, dialogue is assumed as the main strategy for
overcoming conflicts and polarizations. Without dialogue, coexistence between
churches and between religions is not possible. How e v er , the dialogue cannot be
understood as f re e from contradictions. Based on Martin Buber, the
problematized text points out t h e limits of dialogue and ask s about the
dispositions of the different subjects involved in th e Ecumenical Fraternity
Campaign/2021 for the promotion of safe spaces for dialogue.
Keywords: Dialogue. Jesus. Politics. Ecumenical.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 19-25 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.45
* Possui g rad u ação em Teologia pela
Faculdade EST (1998) e mestrado em Ciência
da Religião pela Universidade Federal de Juiz
de Fora (2014). Atualmente é secretária geral
do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do
Brasil.
E-mail: romi be nc ke @ g mai l.c om
https://orcid.org/0000-0002-8389-6230
Recebido em 11/1 1 /20
Aprovado em 09/02/21
1 Ele é parte do artigo com o mesmo título publicado no Livro do Curso
de Verão 2021 CESEEP.
20
1DIÁLOGO PARA DERRUBAR MUROS DE INTOLE R ÂN CI AS
Não são poucos os textos, as palestras , conversas e m lives que apontam o diálogo
como caminho para a superação das intolerâncias. O diálogo é lembrado sempre que os
conflitos se aprofundam a ponto de inviabilizar o convívio ent re diferentes culturas e o
respeito à diversidade de pensamentos.
Assim como tu d o o que envolve a existência humana, o diálogo tamb ém tem suas
dissonâncias, descompassos e desafinaçõe s. Neste sentido, o diálogo sozinho não é capaz de
resolver des e nt e ndi me nt os , disputas por poder e exclusivismos culturais e religiosos. É
necessário tomar cuidado para que não se veja no diálogo algo ingênuo em que desejos de
perpetuação de poder estejam ausentes. Ter em mente as disputas, as polaridades e as
dualidades inerentes à prática do diálogo é importante para não sucu mb ir à lógica
romântica de que o exe rc íc io do diálogo é isento do desejo de dominar o outro e de
convencê-lo da minha verdade. O diálogo pode se rv ir de armadilha para alcançar uma
paz de cemitério, que é a paz que uniformiza e elimina todos os contrastes ou diferenças
geradoras de conflito.
O filósof o Martin Buber
2
, conheci do por desenvolver uma fi los of ia da Relação, do
Encontro e do Dialógico, chama a atenção para três tipos de diálogo. O primeiro é o
diálogo autêntico, que pode ser falado ou silencioso. Neste diálogo, cada uma das pessoas
envolvidas tem em mente a outra pessoa, tanto na sua presença quanto no seu jeito de s e r.
Os interlocutores se voltam um ao outro com a intenção de estabelecer entre eles uma
reciprocidade viva. Buber diz que este tipo de diálogo é raro e pressupõe a abertura para
sair-de-si-em-direção-ao-outro. O s e g u ndo tipo de diálogo é o que o filósofo chama de
diálogo técnico, que se estabelece u ni cam e nt e pela necessidade de um entendimento
objetivo. O diálogo téc ni co faz parte dos bens essenciais e inalienáveis da existência
moderna. Por fim, o terceiro tipo é o monólogo disfarçado de diálogo. Ele acontece
quando duas o u mais pessoas, reunidas em u m local, falam cada uma consigo mesma por
caminhos tortuosos estranhame n te entrelaçados. Neste tipo d e diálogo não o
desprendimento de si. A presença da outra pessoa é admitida como uma parte do meu eu.
É o que Buber caracteriza como um dobrar-se-em-si-mesmo. Neste caso, o diálogo
torna-se uma ilusão e um jogo, que rejeita o real, confronta e desi nt e g ra a essência da
realidade
3
.
Tendo em c ont a as ambiguidades presentes no diálogo e os tipos de diálogos
possíveis cabem algumas perguntas essenciais, uma delas, é pelo horizonte do diálogo, ou
seja, o que desejamos alcançar com ele? Outra pergunta é até onde estamos dispostos a ir
para alcançar o objetivo? Estamos abertos a rever os pressupostos para a supe raç ão das
crises geradoras de intolerâncias? Reconhecemos o outro como u m interlocutor legítimo e
autêntico? Estamos dispostos a sair-em-direção-ao-outro ou estamos mais dobrados-
em-nós-mesmos? Estamos dispos tos a reconhecer a aut onom ia do outro e a pluralidade
como um valor?
Estas perguntas precisam ser refletidas quando optamos pela realização do diálogo. A
tentativa de respondê-las nos oportunizará saber se estamos mais para um d iál og o
autêntico, t é cni c o ou para um monólogo.
Neste texto sugerimos o diálogo como um instrumento válido em contextos de
intolerâncias. O cont e xto do qual falamos é o brasileiro, cuja característic a é de pluralidade
religiosa e cultural e de profundas desigualdades. Como país, o Brasil n un ca lidou bem com
2 Martin BUBER, Do diálogo e do dialógico, p.53.
3 Martin BUBER, Do diálogo e do dialógico, p.58.
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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a pluralidade, compreendida, desde sempre, como algo a ser suprimido. As estrat é g ias para
a e l imi na ção da pluralidade foram a violênc ia e a imposição do cristiani s mo como a
religião civilizadora de selvagens, como os colonialistas se referiam aos povos indíg e nas e
das não pessoas, como eram identif i c adas as pessoas africanas escravizadas. Apenas com o
batismo, indígenas e africanos seriam reconheci dos como seres humanos. O Brasil,
portanto, não construiu sua história a partir de experiências de diálogo e inclusão. Nossa
história é mais caracterizada por autoritarismos, violências e submissão. Isso resultou no
extermínio e apagamento de diferentes culturas.
No entanto, ao mesmo tempo, que temos este passado v i ole nt o e intolerante,
historicamente, ocorreu um movimento de negação da violência e da intolerância.
Lilia Moritz Schwarcz chama a at e nçã o de que se passou uma espécie de verniz
sobre a história brasileira que justifica a dominação e até a elogia, ao mesmo tempo que, a
encobre e minimiza.
Talvez por isso, durante tanto tempo existiu quem definisse a escravidão no Brasil
como a melhor, quando não é possível conceber um sistema como esse de
maneira positiva ou mais positiva; o racismo por aqui vigente como menos
perverso, mesmo diante de índices que revelam o oposto; a convivência de
gêneros como idílica, a despeito da violência que a acompanha; a relação com os
indígenas enquanto amistosa, apesar de nossa história mostrar o contrário...
4
.
Para a autora, esta tendência à negação da característica violenta de nossa hi st óri a é
uma forma de intolerância, porque não permite que a crítica e o atrito sejam pe rc e bi dos . A
ausência da crítica e do atrito forja uma falsa sensação de paz a paz de cemitério se
não existem contradições e problemas não razão para debate e confrontos. As
ambivalências e as dissonâncias são silenciadas sob o argumento de que o Brasil é o país da
democracia racial, da cordialidade e da coexistênc ia entre diferentes culturas e religiões .
Sob esta paz de cemité ri o invisi bi li zam- se os conflitos que estão diariamente latentes e
presentes. O mito das horizontalida de s oculta nossa cultura autoritária e verticalizada. É
negando as hierarqui as que elas são afirmadas e sutilme n te impostas nas relaç õe s sociais,
perpetuando a cultura da escravização nas relações domésticas desiguais. Exemplo disso
identifica-se na forma como são estabelecidas as relações com as trabalhadoras domésticas.
uma elite que se nega reconhecê-las como trabalhadoras e profissionais com direitos
trabalhistas, com direito ao desc ans o e ao lazer. Durante a pandemia da COVID-19, esta
relação hierarquizada e com traços fortes da cultura escravocrata ficou bastante visível
quando muitos não concederam às trabalhadoras domést i cas o direito ao isolamento social,
garantindo o pagament o. Estes distanciament os sociais hierárquicos são disfarçados com
comportamentos de uma afetuosidade falsa, que jamais permite que se ultrapasse a
fronteira ent re casa grande e senzala.
Não é possí ve l conversar sobre as intolerâncias no Brasil s e m olhar para a história
brasileira, com abertura para retirar as muitas camadas de tradições inventadas e história
distorcida com o objetivo de n e g ar os conflitos, os autoritarismos, o racismo e a vi olê nci a
sistêmica e estrutural que caracterizam nossa trajetória como país.
Se hoje vivemos em context os polarizados, se a cultura do ódio se sobressai, é
importante assumir que isso é a ebulição de questões que o Brasil não res olve u , entre estas
questões estão o racis mo, a mi s og in ia, a i mpos i ção de uma única religião e a negação de
outras, o patrimonialismo casado com o patriarcalismo. Todas estas questões, gerad oras de
desigualdades e violências, historicamente foram abafadas com a criação de mitos como o
da democracia racial, da festividade e do espírito acolhedor do brasileiro.
4 Lilia Morit z SCHWARCZ, Sobre o aut or it a ri smo brasileiro, po si ção e-book 2859 .
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Importante enfatizar que as intolerâncias não são identificadas apenas nos conflitos
ou na negação da humanidade d a outra pes soa . A int ole rânc ia pode se r praticada de forma
muito mais sut il, que é impedindo que se converse sobre nossas contradições e que se
silencie a voz das pessoas q u e historicamente tiveram sua dignidade negada, a fi m de
manter uma imagem distorcida de um país que abraça todos os seus filhos e filhas. Esta
imagem às avessas precisa de fissuras para que os conflitos sile nci ad os possam emergir e o
diálogo necess ári o se realize de forma autêntica.
2 CRISTO É A NOSSA PAZ: DO QUE ERA DIVIDIDO, FEZ UMA UNIDADE - DESAFIOS PARA O
DIÁLOGO
Não é novidade que parte destas culturas do ódio e da violênc ia são legitimadas ou
justificadas com o argumento da em Jesus Cristo. Ainda são vistas com bons olhos as
pessoas que opt am por não ter religião, ou, optam po r uma tradição religiosa não
monoteísta. Perseguem-se pe s s oas LGBTQI+ sob o argumento de que vivem em pecado e,
por isso, precisam ser curadas, em nome de Je s u s. Orientam-se mulheres a aguentar a
situação de violência física ou simbólica a partir de textos-bíblicos como de Cl 3,18-4,1 e Ef
5,22-6,9 e nega-se, em algumas situações, a liderança, a palavra e o protagonismo das
mulheres nas igrejas , utilizando-se de t e xtos como 1Tm 2,8-15, 1Tm 1,1-2.15, 1Tm 3,1-
4.16 e 1Tm 5,1-6.21.
A pergunta a ser feita é, se a partir de Jesus Cristo, a cultura do ódio, das
discriminações, das desigualdades é possível. As narrativas dos Evangelhos contam a
história de um Jesus que sofreu as consequências das alianças entre os poderes religiosos,
econômicos e políticos do seu tempo. Neste sentido, nada mais incoerente com Jesus
Cristo do que instrumentalizar o seu nome para propagar o ódio, para legitimar e justific ar
estruturas s oc iai s e projetos excludentes e violentos.
Precisamos ir à raiz para compreender como, historicamente, foram elaboradas
teologias que possibilitaram tanto a instrumentalização do nome de Jesus para argumentar
em f av or de projetos autori tár ios e de exclus ão, quanto para criar a imagem de que o
movimento de Jesus não confrontava as estruturas vi ole n tas de seu tempo.
Richard A. Horsley, em seu livro Jesus e o Império, chama a atenção que , ao se
categorizar Jesus como figura religiosa, foram deixadas de lado as implicações políticas e
econômicas de seu discurso e de sua prática. Quando se projeta na sociedade antiga um
pressuposto ocide nt al moderno, Je su s é vist o como uma figura indi vi du al que int e rag e
com o meio social em que estava inserido. A tendência é ver Jesus interatuando com
pessoas e não com grupos sociais e instituições políticas.
Historicamente Jesus foi despolitizado. A tendência é a de ignorar o fato de que no
tempo em que Jesus viveu, a região que hoje conhe c e mos como Oriente Médio, incluindo
a Galileia e a Judéi a, era controlada de forma violenta pelo Império Romano, que saqueava
o povo pela cobrança de tribu t os . O povo que vi vi a nesta região provavelmente não e ra
passivo frente a esta dominação. Imagina-se que existissem muitas reações e protestos
contra este domínio imperial. De forma que, é arri sc ado afirmar que Jesus tenha sido
indiferente diante da submissão imposta pelo Império Romano
5
.
Horsley apresenta alguns fatores que estão inter-relacionados e que são importantes
para compreender a construção despolitizada de Jesus.
5 Richard A. HORSLEY, Jesus e o império, p.9.
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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O primeiro fator é o pressuposto ocidental moderno, que nas reconstituições do
contexto em que Jesus viveu, separou a religião da política e da economia. Nas sociedades
ocidentais esta separação foi institucionalizada não apenas na separação entre religião e
estado, mas também da economia capi t ali st a. No entanto, sabemos que esta separação não
é real nem no contexto em que Jesus viveu e nem no tempo em qu e nós vivemos.
Pensemos no papel do Templo na Palestina antiga. O Templo não tinha apenas fu nção
religiosa. Seu papel era político, econômico e religioso. Não é por nada que o Evangelho de
João 2,13-22 nos apresenta um Jesus que critica e reage à função ec onômi ca desempenhada
pelo Templo. Não podemos ler este texto como um fat o episódi co. Ao expressar sua
contrariedade é de se suspeitar que Jesus não estava criticando exclusivamen te a venda de
animais que seriam u t ili za dos para os rituais sacrificiais. Sua crítica se dirige à cooperação
do Templo com o império romano.
O segundo fator é o individualismo, q u e é um desenvolvimento social relativamente
recente e característico das sociedades ocidentais modernas. No entanto, mesmo assim, o
individualismo tem servido de pres su pos to para interpretar o Jesus histórico. A
consequência disso é que imaginamos um Jesus alhe i o às disputa s e aos conflitos de seu
tempo.
Ao descontextualizarmos e despolitizarmos Jesus podemos transformar a sua figura
em justificativa para qu alq u er situação, inclusive para a injustiça, para nacionalismos, para
exclusivismos culturais, para a xenofobia, para o neoliberalis mo. Quando afirmamos
Cristo é paz precisamos ver Jesus mais do que um instrutor individual despolitizado que
pronunciou aforismos isolados que podem ser aplicados a um estilo de vida contracultural
e individual e polít i ca e economicamente des co nte xt u ali zad os. Diferente disso, a paz da
qual Jesus falava tem impli c açõe s políticas. Isso porque não é possível separar a dimensão
religiosa da vida político-ec onômi c a nas sociedade s tradicionais.
Desde a perspectiva da em Jesus Cristo, nem a paz e nem o di álog o podem ser
descontextualizados e despolitizados. A Campanha da Frat e rni dad e Ecumênica/2021, ao
abordar o diálogo como compromisso de amor, e ao afirmar que Cristo é a paz que derruba
os muros das divisões e faz unidade, pre t e nde problematizar e incidir nas est ru tu ras
geradoras da violênci a e da cultura do ódio. Esta incidência não pode ser única e
exclusivamente na sociedade, mas também nas igrejas, considerando que a cumplicidade
entre igrej as e o poder mantenedor das estruturas opressoras conti nu a sendo realidad e .
O autor da carta aos Efésios, que inspira o lema bíblico da CFE/2021, incide em uma
comunidade polarizada. Nesta com u nid ade , judeus, que reconheciam Jesus como o Filho
de Deus, entendiam que os g e nt i os (pessoas de outras tradições e culturas) que também
reconheciam Jesus como o Filho de Deus, não poderiam participar da comunidade por não
serem circuncidadas. Havia, port ant o, uma compreensão de que exi s ti a um grupo mais
legítimo do que outro. Diante do conflito, o autor da carta aos Efésios, afirma
categoricamente q ue em Cristo não divisões. Todas as divisões provocadas por
diferenças foram superadas, portanto, não h á vivência do Evangelho, fora da
comunidade de iguais. A única possibi li dad e de ser coerente com a Boa Nova é
transformando tudo o que gera desigualdade. Isso significa que a é política na medida em
que problemati za as alianças de poder e as transforma.
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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3 DESAFIOS PARA QUE O DIÁLOGO SE REAL I ZE COMO COMPROMISSO DE AMOR
Qual diálogo desejamos promover, o autêntico que impli c ará t amb ém em autocrítica
e em reconhecer o Outro c omo interlocutor legítimo? O diálogo técnico que é estabelecido
unicamente pela necessidade de um ent e nd im en to objetivo sobre determinado assunto e
não promove mu d ança s. Ou o monólog o disfarçado de diálogo, em que as pessoas
participantes dobram-se-em-si-mesmas.
A maturidade para o diálogo que desejamos realizar tem implicações na identificação
dos muros que precisam ser derrubados para que a unidade e a paz se tornem realidades
políticas, econômicas e religiosas. Esta maturidade tem relação sobre como entendemos e
vivemos o cristianismo como religião. Nossa experiên ci a re li g i osa com o cristianismo
resulta em possessão e acritici dad e? Se for esta a experiência, é importante saber que ela
mascara a face de Deus, pois projeta Deus em convicçõeshumanas engessad as. Toda a
convicção que não se abre para a dúvida termina por, mais cedo ou mais tarde, impedir que
se veja o rosto de Deus que es na Outra pessoa, seja ela quem for. Se nossa expe ri ê nci a
com o cristianismo está orientada única e exclusivamente na obediência e cumprimento de
dogmas elaborados, em algumas situações para a subjugação de algumas pessoas, então
estamos imunes à rev e lação de Cristo. A revelação, conforme Martin Buber
6
, não vive a
perfeição de um passado.
Os dogmas pode m expressar a tendência humana em querer segu ranç a. Esta
tendência faz com que tornemos a revelação em algo rígido, não encarnado na realidade e
isento de liberdade para se manifestar e nos provoca r. Neste sentido, temos o des af i o de
não t e r medo em questionar tudo o que aprende m os e afirmamos com veemência sobre
Deus. Esta abertura viabilizará que se vi va , de forma autêntica, experiências de revelação
que ocorrem quando deixamos nos transformar pelo encontro com aquela pe ss oa que é
diferente de nós. Est a abertura poderi a ser um antídoto contra os fundamentalism os.
Cristo é a nossa paz? Qual paz? A paz de cemitério que uniformiza tudo, não abre
espaço para a divers i dade e para o diálogo au t ê nt ic o ou a paz vital
7
que exige o
reconhecimento das contradições humanas, a abertura para o di álog o autêntico e a
acolhida da diversidade que nos constitui como seres vivos. Esta paz vital exige qu e a vida
se manifes te como um equilíbrio dinâmico entre nações, culturas e expressões de fé,
reconhecendo o valor e a legitimidade de cada uma delas.
Para tanto, precisa mos recuperar o universalismo dos profetas, que não tinham
como horizonte a dissolução das sociedades e de suas formas diferentes de organização, mas a
transformação e a cura como base para a unidade. Os profetas e as profetizas nos
apresentam uma paz fruto da justa, que supera o individualismo e compreende que a vida em
sociedade é posvel se nos reconhecermos como s. Isso incide na forma como vivemos
nossa espiritualidade, que precisa estar intimamente entrelaçada com o mundo, com a vida,
com a ação. A espiritualidade se nutre da unidade da vida e da comunhão com a Criação.
Os desafi os apresentados pela CFE/2021 são grandes q ua ndo consideramos nosso
contexto polarizado e fu ndame n tal is ta , em que o poder econômico e seus interesses são
colocados no lugar do Deus da vida e da diversidade. Esta Campanha desafia a olhar em
profundidade e com abertura para a nossa e xpe ri ê nci a de fé. Ela provoca que nos
reconheçamos uns nos outros e umas nas outras de forma empática e solidaria. Talvez
assim consigam os transformar a intolerância em respeito e amor ao próximo e à Criação.
6 Martin BUBER, Do diálogo e do dialógico, p.51.
7 Martin BUBER, Do diálogo e do dialógico, p.22.
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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REFERÊNCIAS BIBL IO G RÁFI CAS
BÍBLIA D E ESTUDO DA REFORMA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do
Brasil, 20 17 .
BUBER, Mart in . Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2014.
HORSLEY, Richard A. Jesu s e o império (Bíblia e Sociologia). São Paulo: Paulus, 2014.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritari s mo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
CONIC. Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma u ni dad e. Texto-Base V Campanha da
Fraternidade Ecumênica Fr ate rn id ade e Diálogo: compromisso de amor. Brasília: Ed. CNBB,
2020.
BENCKE, Romi Marcia
Fraternidade e Diálogo: compromissode amorCristo é a nossa paz. Doque estava dividido fez uma unidade. (Ef 2,14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 19-25, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
OS CEREAIS NA BÍBL IA
alguns aspectos ecoteológicos
THE CEREALS IN THE BIBL E
some ecotheolo gi cal aspects
Matthias Grenze*
Cassiano Albe rt o Pertile**
Resumo: A ecoteologia envolve todos os se nt i dos , especialmente a
audição. Aprender a es cu t ar o ec o da cri açã o, a voz que ora sussurra
como o vento refrescante (1Rs 19,12). Ora canta como a água que brota
dos montes (Is 41,18). Ora geme como a mulher parturiente (Rm 8,22) e
ora se revolta e mostra a sua face agressiva como uma terrível tempestade
(Jo 6,16-21). Para fazer ecoteologia é preciso q u e o ser humano assuma o
seu papel de cocriador da obra divina. Como disse o Papa Francisco na
Laudato : [] a interpretação correta de ser humano como senhor do
universo é entendê-lo no sentido de ad mi ni st rador responsável (LS, 116).
Atualmente, a humanidade vem sofrendo com os efeitos de uma crise qu e
escorre por várias dimensões: social, econômica, ambiental, política, ética,
sanitária, etc. Não pensemos, pois, que esta profunda c ris e
multidimensional foi provocada unicamente pela pandemia de Corona-
vírus. Na verdade, a catástrofe sanitária apenas tirou a casca da ferida e
expôs a podridão de um sistema econômico que é matricida, pois e xplora e
mata a mãe terra. O mundo pós-pandemia, como muito se fala, não pode
voltar às práticas doentias que desembocaram no patamar atual que a
humanidade se encontra. Neste sentido, a Teologia tem um papel
fundamental na contemplação e no apontame n to de novos caminhos
sustentáveis para a humanidade. Cada área epistêmica do universo
teológico tem o seu lugar próprio de fala. A Teologia Bíblica, por exemplo,
pode olhar para a Sagrada Escritura e a partir dela construi r uma reflexão
ecoteológica significativa. Procurando responder às demandas atuais, o
presente texto quer investigar e abrir caminho para futuras sistematizações
bíblico-ecoteológicas sobre como os povos israelenses antigos produziam
o seu alimento e como se relacionavam com a terra.
Palavras-chave: Ecoteologia. Cereais. Terra. Cultivo. Agricultura.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 26-38 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.39
* Possui Bacharelado em Teologia
(Philosophisch-Theologische Hochschule St.
Georgen Frankfurt am Main: 1989), Mestrado
em História (Pontifícia Universidade Católica
de o Paulo: 2013), Doutorado em Teologia
(Philosophisch-Theologische Hochschule St.
Georgen Frankfurt am Main: 1995) e Pós-
Doutorado em Teologia (PUC-Rio: 2016). É
professor da Faculdade de Teologia da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Leciona na área de Literatura
Bíblica, atuando nas disciplinas Exegese do
Antigo Testamento (Pentateuco, Profetas e
Livros Sapienciais), História de Israel,
Hebraico e Grego. Desde 2011, lidera o Grupo
de Pesquisa TIAT (Tradução e Interpretação
do Antigo Testamento). Membro da Society
of Biblical Literature (SBL).
E-mail: mg re nze r@ pu c sp. br
https://orcid.org/0000-0003-3490-3112
** Possui licenciatura plena em Let ras,
habilitação e m Língua Portuguesa, Inglesa e
respectivas literaturas, pela Universidade de
Passo Fundo (UPF). Bacharel em Teologia,
pela Itepa Faculdades. Especialização em
Espiritualidade pela Itepa Faculdades.
Mestrando em Teologia Bíblica pela PUC-SP.
E-mail: cas si ano per ti le @ hot mai l. com
https://orcid.org/0000-0002-6092-8455
Recebido em 14/1 1 /2 0
Aprovado em 25/02/21
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
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International License.
Abstract: Ecotheology involves all the senses, especially hearing. Learning to
listen to the echo of creation, the voice that now whispers like the cooling wind
(1Ki 19,12). Now it sings like t he water that flows from the mountains (Is 41,18).
It sometimes moans like the parturient woman (Rm 8,22) and now it revolts and
shows its aggres s iv e face like a terri ble storm (Jn 6,16-21). To do ecotheology,
human beings must assume their role as co-creators of divine work. As Pope
Francis said in Laudat o Sì: [] the correct interpretation of a human being as
lord of the universe is to understand him in the sense of responsible
administrator (LS, 116). Currently, humanity has been suffering from the effects
of a crisis that runs through several dimensions: social, economic,
environmental, political, ethical, health, etc. Let us not think, therefore, that this
profound multid im en si onal crisis was caused by the Corona-virus pandemic. In
fact, the health catastrophe only took the skin off the wound and exposed the
decay of an economic syst e m that is matricidal, as it exploits and kills mot he r
earth. The post-pandemic world, as much is said, cannot return to t h e unhealthy
practices that led to the current level that humanity is at. In this sense, Theology
has a fundamental role in contemplating and pointing out new sustainable path s
for humanity. Each epistemic area of the theologi ca l universe has its own place of
speech. Biblical theol ogy , for example, can look at Sacred Scripture and build on
it a meaningful ecotheological reflectio n. Seeking to respond to curre nt demands,
the present text wants to investigate and pave the way for future bibli cal-
ecotheological systematizations about how the ancient Israeli people produced
their food and how they related to the land.
Keywords: Ecotheology. Cereals. Earth. Cultivation. Agriculture.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 26-38 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.39
28
INTRODUÇÃO
Nas primeiras páginas da Bíb lia , o legislador deuteronomista enfatiza o cuidado com
as árvores frutíferas em caso de sítio a uma cidade (Dt 20,19-20), recomendando que elas
não devem ser abatidas a golpes de machado. Um pouco antes desta passagem, o texto
bíblico determina que o soldado que plantou uma vinha e ainda não colheu seus primeiros
frutos deve se re t i rar do campo de batalh a e voltar imediatamente para casa, a fim de
vindimá-la, para qu e não ocorra que ele morra na batalha e outro colha seus frutos (Dt
20,6). Pois quem plantou tem o direito de usufruir do resultado do seu trabalho.
A legislação deuteronomista coloca o direito à vida e à sobrevivência acima da
questão da propriedade privada: Quando entrares na vinha do teu próximo poderás comer
à vontade, até ficar saciado, mas nada carregues em teu cesto. Quando entrares na
plantação do teu próximo poderás colher as espigas com a mão, mas sem meter a foice na
plantação do teu próximo (Dt 23,25-26).
Tanto a ordem de não derrubar ou ferir as árvores frutíferas em caso de sítio a uma
cidade, como a regra que autoriza a pessoa faminta a se alimentar na vinha ou no campo de
outrem, estabelece um princípio éti co que normatiza as relações e, de certa forma, põe em
de igualdade o respeito dos seres humanos entre si e com a natureza. Tal recomendação
de preservação e cuidado fazia sentido na antiguidade, pois a sobrevivência da aldeia
dependia da vida da fauna e da flora do entorno de determinado grupo social.
Neste sentido, propomo-nos escutar o eco da criação e, a partir d is s o, construir
uma reflexão b íbli c o-e cot e ológ i ca sobre a presença dos cereais na Bíblia (trigo, cevada,
espelta e painço). Aqui serão apresentadas algumas ev id ê nci as sobre o proce s so de
domesticação destas espécies, cultivo, colheita e ut i li zaçã o. O pon to de partida é a relação
estreita en tre o homem bíblico e a terra.
1OCULTIVO DO SOLO E A CONSOLIDAÇÃO DOS GRUPOS SEDENTÁRIOS
Olhando para a Palestina da época de Jesus, observa-se uma grande dependência dos
cereais, legumes, óleo e frutas para a sobrev iv ê nc ia humana
1
. J. Jeremias ressalta que :
Entre as regiões produtoras de trigo, Eupolemo cita, ao lad o da Transjordânia, a Samaria e
a Galileia []. O trigo da Galileia passava em Jerusalém por ser de primeira qualidade
2
.
Contudo, a região da Judeia sempre sofreu com a falta de chuva e pela composição calcárea
e pedregosa do solo. Além disso, dois grandes cercos contribuíram para o
desflorestamento das cercanias da cidade: Pompeu em 63 a.C. ; Herodes em 37 a.C.; é
provável que somente em parte’”
3
.
Na Antiguidade, de toda a região ci rc u nvi zi nh a do Oriente Médio, a Palestina
possuía um considerável conj u nt o de técnicas agrícolas bem desenvolvidas para o seu
tempo. Isto pode ser comprovado a partir da escavação de sítios arqueológicos, que
revelaram indícios do uso de objetos como a enxada para rev ira r o s olo em
aproximadamente 7.000 a.C., em Jericó. Nesta mesma é poc a e local foram encontrados
artefatos de cerâmica e/ou de pedra para a debulha (
מץֹ
) de cereais
4
.
Com o desenvolvimento das primeiras técnicas ag ríc olas , a condição sedentária
passou a ser fav ore ci da. Foram encontrados registros de cultivo agrícola na Palestina e na
1 O nome da cidade Betfagé, na Judeia, significa casa dos figos verdes (Cf. Joachim JEREMIAS, Jerusal ém no t em po de
Jesus: pesqui s as de históri a econômico-social no período neot e st ame n tári o, p.65).
2 Joachim JEREMIAS, Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de hisriaecomico-social no período neotestamentário, p.60.
3 Joachim JEREMIAS, Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de hisriaecomico-social no período neotestamentário, p.62.
4 Cf. DEMIR E L, Domestication of Wheat in Anatolia from the Neolithic Period to the Iron Age, p.10.
GRENZE, Matthias; PERTILE, CassianoAlberto.
Oscereais na blia: alguns aspectos ecoteogicos
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 26-38, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Ásia Menor que datam de aproximadame n te 7.000 a.C., sendo estes os prime iros lugares
do mundo a cultivar a terra:
Foram descobertos indícios de agricultu ra primitiva em Qalat Jarmo (c. - 6000),
Muallafat (c. - 6 0 00 a - 5000), Chatal Huyuk (c. - 7000), Hacilar (c. - 7000),
Tepe Sarab (c. - 7000), Uadi Tahu ne t (c.- 7000) e Jericó (c. - 7000 ou mais),
estações arqueológicas situadas no Curdistão, nos planaltos da Anatólia, do Irã e
da Palestina onde se encontraram os mais remotos testemunhos do cultivo das
terras, em níveis acerâmicos (anteriores ao aparecimento da olaria); muito mais
antigas do que as do Egito, Creta, Chipre , Síria e Turcomênia que não vão além
de 5000 a.C., não havia mais contradição para as aquis i çõe s de ordem
fitogeográfica e ecológica que correspondiam afinal à própria evidência dos
fatos
5
.
O início do período Neolítico
6
foi marcado pela consolidação do processo de
sedentarismo das tribos, viabilizado pelos avanços das técni c as agrícolas: O t ri g o foi uma
das primeiras c u lti v are s domesticadas, junt o com a cevada, a lentilh a, o linho e algumas
variedades de ervilhas. Estas espécies foram as principais cu lti v adas nas aldeias do período
Neolítico, no Oriente
7
.
2DESENVOLVIME N TO E APRIMORAMENTO DE TÉCNICAS AGRÍCOLAS NO ORIENTE MÉDIO
Os relatos bíblicos do AT mostram que os israelitas cultivavam vários cereais
(
בַּר
) como: a cevada, o trigo, o painço e a espelta. Além de vegetais como a fava e o
feijão. Embora a região d e Israel sofresse com as condições adversas d e clima e de
relevo, o que impedia o cultivo de vegetais em vários pontos do Estado, conforme
veremos a seguir, os estudos arqueológicos indicam que as técnicas agrícolas
praticadas eram relativamente desenvolvidas se comparadas a outros povos
contemporâneos.
Os mais antigos restos de cereais descobertos foram na região do Irã e
remontam acerca de 7.000 a.C. Ao que tudo indica, são espécies de trigo,
lentilha e ervilha, usados para preparar uma espécie de papa
8
.
O aprimorame n to das técnicas de cultivo das lavouras possibilitou a expansão das
espécies domesticadas e a maior disponibilidade de alimento. Inicialmente, o plantio
acontecia com o us o de uma estaca pontiaguda que perfurava o solo, abrindo pequenas
covas onde as sementes (
זֶרַע
) eram lançadas e, posteriormente, cobertas com uma
pequena camada de terra.
Mais tarde, a descoberta da enxada e da foice veio associada a uma expansão da
qualidade de vida daqueles agrupamentos humanos. Com a enxada, os agricultores podiam
revirar a te rra com mais facilidade , o que garantia a maciez do solo para o
desenvolvimento das plantas. A foice servia para cortar a capoeira que cres c ia no entrono
das lavouras e ameaçava sufocar as plantações.
5 José H. LOBO, As origens da agricultura. In: Revista de História, v.38, p.2.
6 A Pré-História divide-se em I dad e da Pedra (Paleolítico que vai desde o surgimento da humanidade até 8.000 a.C. e
Neolítico de 8.000 a 5 .0 00 a.C.) e Idade dos Metais (Idade do Cobre 5.000 a.C. a 3.000 a.C., Idade do Bronze 3.000 a
1.200 a.C. e Idade do Ferro, incluindo a Antiguidade Clássi ca e Tardia 1.200 a.C. a 476 d.C.)
7 DEMIREL, Dome s ti ca t ion of Wheat i n Anatolia from the Neolithic Pe rio d to the Iron Age, p.11.
8 José H. LOBO, As origens da agricultura. In: Revista de História, v.38 , p.9.
GRENZE, Matthias; PERTILE, CassianoAlberto.
Oscereais na blia: alguns aspectos ecoteogicos
Revista Teopráxis,
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Encontraram-se nas estações arqueológicas de Jericó, na sua fase mais antiga
corresponde a um aspecto tardio do natufense (chamado tahunense ±7.500
a.C.), almofarizes e pilões de pedra para a moenda, e foices com cabo de osso ou
de esgalho de veado e pequenos dentes de sílex engastados
9
.
Estudos apontam que o trabalho com a enxada, na região de Jericó, era destinado às
mulheres, sugerindo uma possível organização matriarcal, enquanto os hom e ns ficavam
responsáveis pelo trabalho de caça de animais silvestres: As mulheres trabalham a terra, e
se for com a enxada podem revolvê-la []
10
.
Outras duas invenções de utensílios agrícolas datados de aproximadamente 7.000
a.C. foram encontradas em Hassuna, na Síria e na Mesopotâmia:
Da Síria vieram enxadas de pedra e u n s tabuleiros ou celhas de barro, em forma
de barco, que se crê terem servido para a debulha do cereal. Na Mesopotâmia
apareceu pela primeira vez a foice metálica. Assim iniciou-se o cort e baixo e
rente a terra das espigas, aproveitando a palha
11
.
3DISTINÇÕES IMPORTANTES
Os agrupamentos sociais que compuseram o ce nári o redacional bíblico tinham em
seu cardápio ce re ai s (1Rs 5,25; Lv 27,16; Jo 6,9), leguminosas e legumes (2Sm 17,28) e
especiarias (Mt 23,23), pepinos, me lõe s , verduras e alho (Nm 11 ,1 5) . Destes ve g e t ai s,
certamente os mais citados na literatu ra bíblica são os cereais e os legumes.
3.1Cereais
Segundo a Empresa Brasileir a de Pesquis a Agropecuária (Embrapa):
Cereal é qualquer fruto ou semente da família das g ram íne as que pode ser
utilizado como alimento. As gramíneas são plantas herbáceas q u e apresentam
flores muito pequenas e frutos secos chamados grãos ou cariopses,
compreendendo cerca de 8000 espécies. Estas cariopses podem ser nuas,
apresentando somente o gérmen, o endosperma e a membrana da semente , ex.:
trigo, milho e centeio ou apresentar a cariopse revestida, com a mesma
estrutura revestida de uma casca, ex.: arroz, aveia, cevada e sorgo
12
.
Desde a Antigu i dade , os cereais eram destinados à alimentação human a e animal.
Inicialmente, eram consumidos torrados in natura ou moídos, o que possibilitou o maior
aproveitamento de sua composição essencial, como o glúten e a fibra vegetal. Com a
descoberta da foice metálica pelos babilônios, a palha (
קַשׁ
) dos ce re ais passou a ser
oferecida como alimento para os animais.
3.2Leguminosaselegumes
A distinção entre legumi nos as , legumes e alguns produtos oriundos da olericultura
não é precisa nem mesmo no universo da Botânica e da Engenharia de Alimentos. Mas em
linhas gerais , as leguminos as :
9 José H. LOBO, As origens da agricultura. In: Revista de História, v.38 , p.12.
10 DEMIREL, Domestication of Wheat in Anatolia from the Neolithic Period to the I ron Age, p.8.
11 José H. LOBO, As origens da agricultura. In: Revista de História, v.38, p.13.
12 EMBRAPA, 2019.
GRENZE, Matthias; PERTILE, CassianoAlberto.
Oscereais na blia: alguns aspectos ecoteogicos
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[] constituem uma família da cla ss e das dicotiledôneas, muito rica e m espécies
úteis ao homem. A br ig am plantas de pequeno porte, arbustos e árv ore s com
folhas compostas. Entre as plantas de pequeno porte estão alfafa (M edicago sativa
L.), cornichão (Latu s carnicuatus L.), ervilha (Pisum sativum L.), ervilhaca (Vicia
sativa L.), soja (Gyc in e max (L.) Merril) e trevos (Trifalium spp.), além de outras
espécies
13
.
Leguminosas são plan tas arbustivas, sendo que suas sementes crescem em bagas ou
vagens. Além das citadas acima, incluímos ainda os feijões, ervilhas, lentilhas, favas, grão-
de-bico e amendoim. o legume pode se referir tanto ao fruto das leguminosas como aos
produtos da olericultura. Por exemplo: para a Botânica, a cenoura é uma raiz, para a
Agronomia é uma hortaliça e para a Culinária é um legume:
Cientificamente na Botânica, os legumes são os frutos resultantes da família
Leguminosae, também chamada de Fabaceae. É uma das maiores famíli as
botânicas, possui cerca d e 650 gêneros e 18.000 espécies []. Seus frut os são os
legumes, que tem a característica de serem secos na maturidade, duros e terem
suas sementes protegidas por uma vagem que se abre em duas metades ao longo
da sutura e da nervura
14
.
O si s te m a radicular dos legumes e leguminosas é extremamente complexo, contanto
com retículos que absorvem o nitrogênio do solo, resultando em maior massa produtiva
dos seus frutos. Ai nda por conta da eficiência das suas raízes, essas plantas costumam ser
um pouco mais resistentes que os cereais em terrenos pedregosos, onde a umidade
rapidamente é drenada após alguns dias de sol.
Legumes e leguminosas, portanto, são mais resistentes em re g iõe s com grande stress
hídrico como a Pale s ti na, sendo cultivadas em canteiros (Ct 6,2). A horta era o jardim do
pobre. Valendo-se de adubação e irrigação e isso podia consistir em molhar as plantas
com uma jarra dágua ( Is 58,11)
15
. Não obstante, as c ri se s de falta de alimento eram
frequentes em I s rae l, podendo ser agravadas por um ano de condições climáticas adversas
(Gn 12,10; 2Sm 21,1; 1Mc 9,24).
O pesquisador J. Jeremias mencionou a exist ê nci a de um grande mercado de frutas e
legumes em Jerusalém, com produtos diversificados, em sua grande maioria comprados de
fora e revendidos na cidade. O esforço em abastecer este mercado era enorme , sobretudo
na época da Páscoa, quando a populaç ão quase dobrava. Nos períodos de estiagem, a região
sofria pela escassez de alimentos.
A alface, por exemplo, e ra obrigatória; permitiam, porém, a chicória, o agrião, o
bredo, ervas amargas. Na Páscoa, o mercado de Jerusalém devia expor
condimentos, vinho e vinagre; misturados às frutas esmagadas, formavam a
massa ritual haroset
16
.
3.3Abóboraseespeciais
As abóboras formam uma diversificada família de plantas, sendo que, muitas v e ze s ,
eram cultivadas no mesmo canteiro das especiarias. Da família das abóboras as mais
conhecidas são o melão, a melancia, o pepino, a abóbora cabotiá. O melão é da família das
13 EMBRAPA, 2019.
14 EMBRAPA, 2019.
15 DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DA BÍBLIA.
16 Joachim JEREM I AS , Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário,
p.67-68.
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Cucurbiteae, sendo que no continente africano foram catalogadas cerca de 30 espécies.
Indícios arqueológicos apontaram a sua ocorrência também no atual Oriente Médio, desde
5.000 a.C.
17
.
Um fato interessante é que enquanto o melão era cultivado no Oriente Médio desde
a Pré-História, no continente americano a espécie passou a ser plantada somente em 1509
d.C., trazida pelos colonizadores espanhóis. Poré m, as abóboras (Cucurbita sp.) eram
cultivadas neste continente desde 8.000 a.C. pelos povos do Norte do M é xic o, Chile e lado
Oriental da América do Norte (cf. CPRA, 2020). Os israelitas conheciam muit as plantas
descendentes das Cucurbiteae (Is 1,8; Jr 10,5). O seu cultivo acontecia em pequenas hortas
ou jardins (2Rs 21,18.26 ; Is 61,11) .
O termo especiaria deriva do latim (species) e se refere a vários produtos de origem
vegetal, sejam eles flores, f ru t os , sementes, cascas, raízes e caules. A principal utilidade das
especiarias é culinária e te rapê u t i ca, no caso dos chás obtidos por meio da infusão de
alguns caul e s, sementes e cascas. O uso medicinal das especia rias está associado ao
tratamento de doenças digestivas, gripes e resfriados, infe õe s em geral As especiarias se
distinguem das ervas aromát i cas , cujas folhas são o principal ingredient e .
O Oriente Médio conhecia várias plantas deste gênero, como a hortelã, (Mentha
spp.), o endro (e rva -doc e ou funcho) (Anethum graveolens) e o cominho, (Cuminum
cyminum), Mt 23,23
18
:
Hortelã (Mentha spp.) plant a perene de folhas opostas dentadas e pequenas
flores que variam do branco ao violeta e que se desenvolvem em espigas
terminais. Endro (erva-doce) e cominho: pertencem à família das Apiaceae. É
uma família de plantas [] aro máti c as e de caule oco. Possui cerca de 300
gêneros, com mais de 3.000 espécies. As flores são pequenas e possuem simetria
radial com cinco sépalas, cinco pétalas e cinco estames. Estão dispostas numa
inflorescência em forma de umbela []. Várias espécies possuem
inflorescências apresentando dimorfismo nas flores, com pétalas externas mais
vistosas destinadas à atração dos insetos, enquanto as mais internas são mais
discretas, destinando-se à reprodução
19
.
Outras especiarias diversificadas também faziam da culin ária i sra el it a, c omo o
cominho negro, a pimenta e a nigela (Is 28,25-27; Ex 16,31).
3.4Trigo
20
Com o avanço do período Pré-histórico Neolítico a humanidade sofreu um lento
processo de consolidação do sedentarismo, passando da forma de vida caçadora-coletora
para o modelo agrário e suas variantes. A domesticação do trigo e demais cereais teve um
contributo ini mag i náve l para a nutrição ani mal e humana. Tempos depois, ist o
possibilitou a organização dos primeiros sis t e mas econômicos e comerciais
21
.
Estudos arqueológicos e botânicos encontraram evidências de uma espé c ie de trigo
cultivada no Norte da Síria, chamada eikorn, por volta de 7.500 a.C. Conforme a literatura
17 Centro Paranaense de Referência em Agroecologia (CPRA). Autarq u ia do governo do estado do Paraná:
www.idrparana.pr.gov.br. Acesso em 17/09/2020.
18 Também são originarias do Orient e Médio as segu i nte s especiarias: o ai po (Apium graveolens), o coent ro (Coriandrum
sativum) e a salsa (Petroselinum crispum). O sabor dessas plantas é acentuado tanto nas folhas quanto nas sementes.
19 Rita de Cassia Alves PEREIRA e Odécia Gomes dos SANTOS, Plantas condimentares: cultivo e utilização, p.10.
20 Triticum aestivum; Triticum durum; Triticale sp. é uma gramínea originária do Crescente Fértil, uma zona geográfica
que compreende desde a porção africana (Nor te do rio Nilo) até a porção asiática (atuais Iraque e Kwait), no Médio
Oriente. Este cereal é o terceiro mais produzido no mundo, depois do arroz e do milho, segundo dados da FAO (2008).
21 DEMIREL, Domestication of Wheat in Anatolia from the Neolithic Period to the Iron Age, p.11.
GRENZE, Matthias; PERTILE, CassianoAlberto.
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botânica, esta gramínea também era usada como forragem para os animais
22
, coincidindo
com o advento da foice, na Mes opotâm ia, na mesma época. Outra espécie de trigo rústico,
emmer wheat, era cultivada na Ásia Menor por volta de 5.000 a.C. a primeira utilização
do trigo para pães que se tem registro no Oriente Médio foi por volta de 2.000 a.C.
23
.
Na língua hebraica, a palavra trigo (
חִטָּה
) tem a mes ma raiz de hanat, que significa
embalsamamento ou conservação. À palavra trigo, associa-se um campo semânt ic o grande
na Bíblia, que pode ser analisado le v ando em consideração t odas as suas espec i f ic id ade s
como: farinha, semeadura, lavou ra, cultivo, f orrag e m, entre out ras .
O ciclo de cultivo dos cereais, especialmente da ce v ada e do trigo estava associado à
vida relig ios a e cu ltu al de I srae l. O c ale nd ário agrícola mais antigo daquela localidade que
se tem notícias é o Calendário de Gezer, localizado no início do século XX, na Palestina.
Sua escrita remonta ao período pré-hebraico ou hebraico pal eo lít ic o, com forte influência
da cultura Persa. Este calendário foi elaborado pelos sacerdotes e incluía como parte do
processo de cultivo do trigo e demais cereais as festas cultuais.
O ritmo de vida do povo sedentário era determinado pe los trabalhos na lavoura,
sendo que depois das colheitas, vinham as festas (Is 9,2; Sl 126,5), que proporcionavam um
pequeno período de descans o, sem atividad e s no campo.
O s e nt id o das festas judaicas não era somente cultual-prescritivo, mas estava
relacionado ao universo semita, que c ompre e nd e o ser humano e a criação como
elementos indivisos. Portanto, constitui-se um binômi o ant ropológ i c o ins e paráv e l e ntr e
cultivo da terra e festejos, sendo que o ato de festejar era parte intrínseca do ciclo
produtivo, ass im como arar (
חרשׁ
) o solo antes do plantio, semear (
זרע
), capinar o inço,
ceifar (
קצר
), enfeixar (
עמר
) e debulhar (
מץֹ
).
Nesta mesma linha, os primeiros frutos ou primícias (Lv 23,9ss) tinham um valor
sagrado e, portanto, pertenciam a Deus, devendo ser entregues em forma de oferendas nas
festas respectivamente prescritas. Of e re c e r as primícias da lavoura ou do rebanho era o
mesmo que reconhecer que a terra e tudo o que ela encerra é proprie d ade de Javé. Mais
tarde, o apóstolo Paulo traduziu o ato escatológico e salvador de Cristo como imagem das
primícias da ressurreição (1 C or 15,20).
3.5Cevada
24
Na literatura bíblica, juntamente com a trigo, a cevada (
שְׂעֹרָה
) figura entre os
cereais mais populares. A gramínea é menci onad a 34 vezes nos textos sagrados. Na língua
hebraica, c e vad a é um substantivo feminino do qual se originam as palavras bode e
cabeludo. Estes dois termos ligam-se por asso ci ação, pois o bode possui uma barbicha
embaixo do queixo, parecendo uma pequena cabeleira. A cevada, por sua vez, possui umas
farpas de palha de 8 a 10cm de comprimento, que saem juntamente com o grão e se
expandem para além do cacho, recordando uma cabeleira.
Na antiguidade, a cotação da cevada era menor que o valor do trigo (2Rs 7,11; Ap
6,6) e considerada alimento dos pobres. De acordo com Léon-Dufor: Os pães de cevada
são, sem dúv id a, o alimento dos pobres
25
. No livro de Rute, a personagem luta pelos seus
22 Cf. DEMIREL, Domestication of Wheat in Anatolia from the Neolithic Period to the Iron Age, p.12.
23 Cf. CONAB, A cultura do tr ig o.
24 Hordeum sp. pertence à família das gramíneas e sua utilizaç ão remonta desde o Egito Antigo ou Orie nt e Médio (6000
5000 a.C.), mas foram os gregos e romanos que a utilizaram na produ ç ão de pão. Este cereal é o quinto mais
produzido no mundo e é utilizado tanto na alimentação humana como na ração de animais (EMBRAPA, 2019).
25 Xavier Léon DUFOR, Leitura do evangelho segundo João II, p.81.
GRENZE, Matthias; PERTILE, CassianoAlberto.
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direitos, espe c ia lme nt e pelo direito de catar os restolhos de cevada nas lavouras de Booz
(Rt 1,22; 2,17; 2,23; 3,15; 3,17 ).
O texto bíblico de 2Rs 4,42 narra o prodígio do profeta Eliseu, que alimentou cem
homens adultos com vinte pães de ce vada levados por um homem de Baal-Salisa.
Surpreendentemente, após todos comerem à vontade, ainda sobrou pão.
Ao que tudo indica, o relato da multiplic ação dos pães de Jo 6,1-15 se g ui u a tradiçã o
veterotestamentária do segundo livro de Reis, pois o texto joani no traz a exclusiva
informação de que os cinco pães eram de farinha de cevada (κρθινος). No NT, a locuç ão
adjetiva pães de cevada aparece duas vezes em Jo 6,9.13.
O texto do evangelho de João surpreende pe la precariedade da qualidade dos pães e
pela disposição do alimento em geral, pois era um menino, considerado insignificante para
a sociedade judaica, quem tinha os cinco pães e os dois pei xi nhos . Além disso, os famintos
formavam uma multidão de cinco mil homens. Mas foi desta condição pobre e precária
que veio a solução para saciar a fome daquelas pessoas.
O processo de cultivo das lavouras era pesado e exigia grande esforço, o que
contribuía para a diminuição da expectati va de vida das pessoas. Nesta empreitada, era de
grande valia o uso da força animal para virar a terra antes do plantio e transportar o
produto das colheitas. Em alguns casos, os animais serviam também para fazer a debulha
de cereais como a cevada e de leguminosas como a lentilha ou ervilha, pois os cachos ou
vagens secas, quando pisados pelos cascos, se abriam e soltavam os grãos. Contudo, ainda
restava o trabalho pes ado de capina (Mt 13,29; Mc 13,16), que tinha duas finalidades
básicas: extirpar as ervas-daninhas e afofar a terra, permitind o qu e os retículos presentes
nas raízes dos cereais se aprofu ndas se m no solo e extraíssem mais nutrientes para a planta,
aumentando a produtividade.
Quando os campos estavam maduros e ra hora de meter a foice (Dt 16,9; Mc 4,29),
depois se deixava o cereal cortado secar ao sol uns dois ou três dias. Durante este tempo, os
cachos não podiam encostar no solo, pois umedeciam e as sementes apodreciam; eles
deviam ficar s us pe ns os do chão na própria palha do cereal. Passado este tempo, o produto
era recolhido e amarrado em feixes (Sl 126,6 ; Mt 13 ,3 0 ) e lev ado para a eira, onde era
debulhado pelo pisoteio de um animal ou por um bastão de madeira.
Em termos d e composição do grão, a cevada é mais pobre que o trigo, porque
contém menos glú t e n, elemento responsável pela liga da massa e pela coloração
esbranquiçada da farinha. Is to explica o valor comercial da cevada ser inferior ao do trig o.
Além do pão, os grãos da cevada eram consumidos in natura torrados e serviam de
alimento para os animais, assim como a palha (
קַשׁ
).
Contudo, é importante que se diga que os grãos da cevada e do trigo podem ser
ingeridos por animais ruminantes, isto é, por bois, cabras, búfalos, camelos, ovelhas,
veados, etc. Os animais não-ruminantes ou monogástricos como cavalos, coelhos, jumentos,
zebras, etc. não podem ingerir cereais in natura, pois eles con m grande quantidade de
fibra, que não é processada pelo organismo, podendo intoxicar e levar à morte em poucas
horas. A cevada também era usada para a produção de cerveja (Jz 13,7; Is 29,9).
Estima-se que a produção média da cevada nos solos israelenses chegava a 1:5
26
.
Traduzindo este valor para os pesos agrícolas atuais, significa que a cada s ac a de 60kg de
semente plantada colhiam-se 5 sacas d e grãos de 60kg. Para se ter uma ideia, atualmente,
segundo o relatório de acompanhamento da safra 2019/2020, produzido pela Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab) , o estado do Paraná é o maior produtor bras ile i ro do
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Oscereais na blia: alguns aspectos ecoteogicos
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cereal, atingindo a marca de 1:66,66. Ou seja, cada saca de semente de 60kg plan tad a rende
em média 67 sacas de 60kg por hectare (ha)
27
.
Evidente q ue os números de produt iv i dade mencionados acima precisam ser lidos
dentro do contexto de cada época. Contudo, desde a Antiguidade, era empregada no
campo a tec nolog i a que estava ao alcance de cada grupo social. Citam-se as descobe r tas da
enxada e da foice metálica e a construção da eira para debulhar os grãos, como avanços
agrícolas signi f i cat iv os .
Depois de debulhados, os grãos eram peneirados para separar a palha e as impurezas
(Am 9,9; Lc 22,31). Os cereais secos c omo o trigo e a cevada podiam ser armazen ados de
três formas básicas. Em silos subterrâneos, onde os grãos eram envolvidos e cobertos com
palha e terra, impedindo a entrada de ar e o consequente aparecimento de carunchos. Nas
casas de armazenamento de grãos (1Rs 9,19; Lc 12,18) ou em vasos de cerâmica tampados.
Em todos os casos, podia-se misturar um pouco de cinza para conservar os grãos.
Os artefatos de cerâmica eram variados e t i nha m grande utilidade no universo
agrícola, servindo como reci pie nt e s para armazenagem de grãos, como pratos para as
refeições e para preparar os alimentos. O pão era assado na forma de um prato de
cerâmica e outros alim e nto s eram s e rvi d os nele. De modo que não era nece ss ári a uma
mesa; se um hóspede chagasse, uma esteira se rv i a ao propósito
28
.
3.6Espelta
29
ePainço
30
A variedade de cereais que os povos do Oriente Médio tinham ao seu alcance a partir
do período Neolítico Tardio propiciou-lhes uma dieta rica em carboidratos e proteínas. Os
cereais em geral, particularmente a variedade de trigo eikorn e a espelta poderiam suprir
por um tempo relativa me nt e curto a carência de inge st ão de proteína animal, cuja única
fonte era a caça de animais silvestres. Pesquisas apontam que o consumo de cereais
colaborou para o aumento da expectativa de vida da humanidade. Mu it o embora, hoje, não
seja possível traçar com exatidão o mapa genético das variedades dos grãos cultivados, pois
as mudanças genétic as que estas gramíneas sof re ram ao longo dos milhares de anos
alteraram os valores de sua constituição nutricional.
Evidências c ie n f ic as apontam que:
A esp el ta produzia bem, comparada ao trigo, em regiões cuja precipitação
pluviométrica ficava entre 2 50 -3 0 0mm de chuva por ano. Mas, em
consequência disso, os valores nutricionais da planta eram pobres. [] estima-
se que na Idade do Ferro a produção da espelta era de 140kg por hectare
31
.
27 Um hectare (ha) equivale a 10.000m². O hectare é a medida oficial para comerciali za ção de terras agríco las no Brasil e
o preço varia de acordo com a característica do solo, com o tipo de planta que é cultivada na região e outros fatores
como o clima. Atualmente, órgãos competentes como a Embrapa, orientam que a densidade de plantio de cereais
como o trigo, a cevada e o milho seja de 1 :1 , ou seja, 1 saca de 60kg deve ser semeada em 1ha (Cf. CONAB, A cultura
do trigo).
28 NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO, p.1227.
29 Triticum spelta é uma culti var da família das gramí ne as, próxima ao trigo, in clu s iv e , é considerada por mu i tos como
uma subcultura do trigo. Popularmente é chamada de trig o vermelho. É cultivada desde a Idade do Bronze em
regiões como a Europa, Ásia Menor e Oriente Médio (Idem, op. Cit.)
30 Panicum miliaceum L. é uma gramínea de ciclo anual, cultivada para produção de grãos e para utilização na
alimentação animal (EMBRAPA).
31 Este valor (140kg/ha) significa que a cada saca de 60kg de semente plantada em 1 hectare eram produzidos e m média
2,33 sacos de 60kq de cereal. Como foi dito anteriormente, este resultado é baixíssimo, pois a média de colheita da
cevada no Brasil na safra 2019/2020 foi de quase 67 sacas por hectare (Tim DENHAM e Peter WHITE, The
emergence of agriculture: a global view , p.219; 222 , tradução nossa) .
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Segundo a Embrapa (2019 ) a espelta é um subprodut o do trigo, resultado de
mutações genéticas ocasionadas por uma combinação de fatores como: deficiência hídrica,
mudanças climáticas, varie d ade de solos de uma região para outra onde o cereal era
produzido e o refinamento da semente. Conforme Den ham e White :
Em 1988, pesqui sa s encontraram evidências de que o habitat primeiro da
espelta foi a Síria e o Norte da Turquia. Nesta mesma região foi detectada a
existência de uma espécie de trigo mais antiga que o eikorn e não muito
cultivada nas lavouras. Esta espécie primitiva de trigo pod e ter mutado e
originado a espelta (ver Ex 9,32)
32
.
O profeta Isaías a entender que a espelta era cultivada como um cereal de refúgio:
[] não semeia ele a nigela? Não es palha ele o cominho? Não lança na terra o trigo, o
painço e a cevada e a espeltanumafaixamarginal? (Is 28,25, grifo nosso).
A técnica de plantio de refúgio ou barreiras naturais é usada ai nd a hoje na
agricultura. Consiste em plant ar entorno da cultura principal u ma planta de menor valor
ou com um potencial genético inferior. Desta forma, a plantação de refúgio funciona como
barreira natural para os insetos, pois eles atacarão primeiro as plantas de refúgio, que têm
normalmente ciclo breve, enquanto a cultura principal se desenvolve e f og e do ataque
dos pre dadore s . Hoje, para cultivar o milho transgênico é preciso que se faça uma barreira
natural não muito extensa, com se me nt e s convencionais, a fim de que predadores como a
broca do milho, que dev oram a espiga verde atinjam primeiro a plant ão de refúgio, que
naturalmente é menos produt i va.
O painço que foi mencionado neste texto é o que mais se assemelha aquele cultivado
no Oriente Médio Antigo (Is 28,25), cuja característica da planta lembra muito o arroz
(existem outras variedades de painço muito parecidas com o sorgo, que produzem espigas
ao invés de ca ch os) . A gramínea cresce aproximadamente 80 cm a 1m e diferente dos
outros c e re ais , é plantada exclusivamente na primavera, desenvolve-se no verão e é colhida
na entrada do out ono. Na ponta da planta, s u rge um cacho com pequenas flores que se
desenvolvem em dezenas de grãos (pouco me nore s que um grão-de-bico - Ez 4,9;).
Quando o painço está pronto para a colheita, os cach os amarelados se dobram e as f ol has
do secam e caem, produzindo um espetacular campo dourado.
O cereal se adapta muito bem às regiões semiáridas, assim como a espelta. Ai nd a
hoje, tanto o painço de cacho como o painço de espiga são usados na alimentação humana,
seus grãos podem ser torrados e consumidos in natu ra, como sopa, papa ou moído e
misturado com outros alimentos. Para a alimentação animal, o grão pode ser dado para os
bovinos moído e seco ou triturado junto com toda a planta. No entant o, no Brasil, o
painço não tem expressão comercial significativa e é encontrado para compra em casas de
cereais e produtos naturai s.
ÀGUISA DE CONCLUSÃO
Em geral, a relação da sociedade israelense antiga c om a terra não se pautava
unicamente pelo vínculo extrativista. A criação era compreendida num estado de sinergia
ou interdependência. Atualme nt e , impulsionado pelos estudos da ecoteologia e pelos
escritos do Papa Francisco, aprofunda-se o sentido de e c olog i a integral e se busca no
descobrimento das práticas agrícolas do universo semita pistas para um agir sustentável e
para o avanço da reflexão bíblica ecoteológica.
32 Tim DENHAM e Peter WHITE, The emergence of agriculture: a global view, p.220 (tradução nossa).
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Tanto
assim que causa surpresa para alguns leitores a menção a muitos veget ai s
como leguminosas, legumes, abóboras e especiarias nos textos bíblicos. Muitas vezes se
pensa que a agricultura israelense antiga se restringia ao cultivo do trigo. No entanto, de
todo o Oriente Médio, a região da Palestina foi pioneira no desenvolvimento de técnicas
agrícolas que possibilitaram o aume nto na oferta de alimentos e a expansão da expectativa
de vida.
Outro fator importante que a ecoteologia bíblica vem considerando nas últ i mas
pesquisas relaciona-se às fe stas. Os fe ste jos e os e spaços ce lebrat ivos não e ram um apêndice
na vida israelense, mas faziam parte do calendário anual e eram tão importantes como o
processo de plantio, cultivo e colh e ita.
Deste modo, o cultivo do solo era trabalho sagrado, assim como o oferecimento das
primícias das plantações e dos animais a Javé (Dt 26,1ss; Ex 34,26). Aliás, a espera pelos
primeiros frutos das lavouras gerava uma expectativa enorme nos aldeões. Afinal de
contas, aguardava-se dez ou onze meses para comer o primeiro cacho de uva do ano, por
exemplo. Hoje em dia, falar em primícias dos frutos não faz muito sentido, pois os
produtos estão dispostos nas gôndolas dos supermercados o ano inteiro, produzidos de
forma artificial.
A maior parte do tempo de vida das pessoas no Israel Antigo era ocupada com a
produção de alimentos. A relação com a terra e com os animais era de respeito e de
cuidado. Toda a criação, ou seja, se res humanos (escravos ou livres ), animais domesticados
para o trabalho, a terra e as plantações tinham o direito de descansar e refazerem as su as
forças (Ex 23,12; Lv 25,8-17). É mandamento divino evitar os maus tratos aos animais e
socorrê-los em caso de perigo de vida, sobrecarga ou se estiverem perdidos, mesmo que
seja o boi ou o jumento do inimigo (Ex 23,4-5). Ao homem moderno, cabe o imperi os o
dever de se perceber como responsável pela guarda da criação e dependente de toda a
forma de vida.
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Oscereais na blia: alguns aspectos ecoteogicos
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Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
ENVIA TEU ESPÍRITO E
HAVERÁ CRIAÇÃO
1
SEND YOUR SPIRIT AND
SHALL BE CREATION
Alessandro Galla zz i*
Resumo: Este estudo quer contribuir para alimentar uma espi ri t ua lid ade
ecocentrada, a partir de uma releitura crít ic a dos textos bíblicos que nos
propõem uma visão holística da vida e da natureza, na qual a verdadeira
imagem de Deus é Jes u s fonte da única vida que circula em tudo que existe.
Será nec e ss ári o superar um perigoso antropocentrismo e colocar no centro
todas as vidas da nossa casa comum. Uma pastoral ecocentrada é a
concretização desta espiritualidade, uma vez que a ecolog i a, isto é, o projeto
de casa que queremos construir, deve ser a base de tod a economia, ou seja,
as regras para que nossa casa funcione em função da vida plena.
Palavraschaves: Ecocentrismo. Ecologia. Holística. Casa comum.
Abstract: This study wants to contribute to nurture an ec oce nt ri c spirituality,
based on a critical re-reading of the biblical texts that offer us a holistic view of lif e
and nature, in which the true image of God is Jesus, the source of the only life that
circulates i n everything that exists. It will be necessary to overcome a dangerous
anthropocentrism and put all the lives of our common home at the center. An
ecocentric pastoral is the realization of this spirituality, since ecology, that is, the
house project that we want to build, must b e the basis of all economies, that is, the
rules for our house to function in function of full life.
Keywords: Ecocentrism. Ecology. Holistic. Common home.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 39-50 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.47
* Possui gradu ação em Teologia pelo
Pontifício Instituto das Missões (1972) e
doutorado em Ciências da R e li g ião pela
Universidade Metodista de São Paulo (1996).
Atualmente é agente educacional da
Comissão Pas t oral da Terra.
E-mail: g allazz i4 6 @g m ail. c om
https://orcid.org/0000-0001-9050-3098
Recebido em 20/1 1 /20
Aprovado em 13/01/21
1 Este ensaio é fruto da sistematização de vários outros escritos meus, ao long o destes
últimos anos. Foi publicado no Theological Journal Voices, n. XXXV II , abril-setembro
2014; «Deep Ecology, Spirituality and Liberation». 434 pp. Sito internet:
eatwot.net/VOICES/VOICES-2014-2&3.pdf.
40
Quero colaborar com esta revista a partir de meus estudos teológicos e bíblicos, mas,
sobretudo, a partir da minha convivência com as populações tradicionais da foz do rio
Amazonas: quilombolas, ribeirinhos, índios, com os quais celebro a Palavra. Entrar n a
Bíblia a partir das culturas ancestrais latino-americ anas fez aparecer mais evidente quais
são as coisas qu e o Pai quis revelar aos pequenininhos e fez ques o de esconder aos
sábios e entendidos e, quem sabe, também, aos teólogos (Mt 11,25-26).
1UMA ESPIRITUALIDADE ECOCENTRADA
Espiritualidade é a obra, o sopro, a vida do Espírito de Deus em nós e em tudo que o
existe, desde que tudo começou, quando o sopro de Elohi m
2
estava tranquilo diante das águas
(Gn 1,2). Para experimentar e viver esta força do Espírito precisamos desconstruir leituras,
reinterpretar palavras, tirar véus e paredes que os entendidos levantaram para esconder as
coisas do Pai. Conheceremos e experimentaremos, assim, como o Espírito de Deus
fecunda e gera a nossa espirituali dad e .
Vamos começar pelas prime i ras páginas da Bíblia, as páginas que todos conhecem e
que se tornaram os pilares de uma civilização que, muitas vezes, foi de morte.
1.1Re-lendoaprimeiraparáboladacri ão
A chamada cultura ocident al, de matriz grega, caiu na armadilha de pensar que a
tarefa que Deus ao ser humano de submeter a terra e dominar sobre os peixes do mar e sobre
as aves dos céus e sobre todo a n ima l que se move sobre a terra (Gn 1,28) significa que o
homem
3
, imagem de Deus, é, como Deus, o dono de tudo, o elemento mais importante da
natureza, o centro da criação. Movidos por esta teo-ideologia, acabamos por teorizar que
tudo que existe tem sentido qu an do orientado para nós e que nós podemos fazer com a
natureza tudo o que quisermos.
Em nome deste domínio, o homem submeteu a terra, devastou o ambiente, poluiu as
águas, matou os animais, sem alguma razão e causou a morte.
Submeter a terra legitimou a propriedade privada, a concentração das riquezas e a
violência explorado ra e assassina de todas as vidas.
Em todos os mitos ancestrais dos povos originários da Amazônia, pelo contrário, a
ação cri adora do/s deus/es é sempre uma ação que quebra e vence situações de morte e de
sofrimento. É a presença da vida que supera e derrota a presença da morte.
É, exatamente , o mesmo que nos diz a primeira página da Bíblia.
Nada tem a ver com a visão filosófica europei a, na qual os cristãos foram quase
sempre catequizados e que define criação como fazer do nada todas as coi sa s, afirm ando,
assim, a total separação entre Deus e todas as coisas e o seu domínio sobre tudo que existe.
Uma tradução incomum, mas litera lme nt e possível, do primeiro versículo da Bíblia,
pode abrir horizontes e significados: No princípio criou Elohim com os céus e com a terra (Gn
1,1): Céus e terra participam como co-criadores dest a ação de vida.
A palavra de Elohim é geradora de vida. Do outro lado está a morte, estão o deserto,
as trevas e as águas do abismo: as forças caóticas simbólicas da morte (Gn 1,2).
2 No lugar de usar a costumeira tradução Deus, prefiro manter a palav ra hebraica Elohim com seu sentido singular e
plural ao mesmo tempo. Seria algo como Toda a divi nd ade e que se aplica a todas as maneiras com que nos é dado
experimentar e conhecer a divindade mant e ne d ora da vida.
3 Uso de propósito a palavra homem, no masculino, porque esta ideologia greco-ocidental não considera a mulher
como sujeito filosófico.
GALLAZZI, Alessandro.
Envia teu Esritoe haverá Crião.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 39-50, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Viva a lu z e viveu luz... Viva uma expansão entre as águas e viveu ... E assim vi ve u ...
(Gn 1,3.6.7.9).
Viver: hyh / hayah
4
como ser, acontecer. Um verbo que se repete 27 vezes em Gn 1.
O verbo que é o radical do nome de Yahweh: o vivente que faz viver.
A mesma alma vivente q u e faz viver Adam (Gn 2,7) faz viver os filhos das águas (Gn
1,20s), os filhos da terra (Gn 1,24) e t odos , igualmente, recebem a bênção de Elohim de
gerar vida: Frutificai e multiplicai-vos (Gn 1,22.28).
A parábola da criação de Gn1, então, longe de se r uma fábula nostálgica de um
passado definitivamente perdido, é memória da luta criadora e re-criadora permane n te em
defesa do bom, que é tudo o que vive, contra todas as forças caóticas de morte que
teimam em transformar a vida em trevas e deserto.
Desde o princípio - assim proclama esta página - Elohim se manifesta com seu poder
vencedor. Nos três primeiros dias canta-se a vitória de Elohim contra todos os males,
simbolizados pelas trevas, pe las águas do abismo e pelo deserto.
A ação criadora de Elohim, que separa as trevas da luz, as águas de cima das águas
debaixo, a terra dos mares, transformando o deserto em prados e florestas, revela aos
pobres e aos oprimidos que vale a pena confiar neste Elohim capaz de derrotar todas as
forças caóticas que produze m o medo e a morte.
A vitória de Elohim completa-se nos outros três dias, quando, após fazer viver a luz,
o firmamento e a terra fértil, ele garante su a continuidade, criando os exércitos da luz, das
águas, dos ares e da terra. Apesar da conotação negat i va e violenta que esta palavra tem
para nós, latino-americanos, usamos a palavra bíblica exércitos (Gn 2,1) porq u e indica que
as criaturas que povoam a n atu re z a terão a incumbência de cuidar, de zelar e de defendê-la,
combatendo, até o fim dos tempos, contra todas as formas de morte.
Caberá ao sol, à lua e às est re las cuidar e zelar pela vida da luz; aos seres marinhos
caberá zelar pela vida das águas; da vida dos ares cuidarão os pássaros do céu e os animais
deverão tomar conta da vida do solo fértil.
A criação do ser humano homem e mulher feit o à imagem e se me lh anç a de
Elohim, tornará toda a obra de Elohim boa, muito boa, pronta para continuar sendo, para
todo o sempre, boa, muito boa. Os exércitos de Elohim, as si m completos, farão com qu e a
vitória de Elohim sobre as trevas, os abismos e os desertos possam continuar ao longo da
história. Os exérc it os de Elohim, guiados pelo ser humano, cuidarão para que trevas,
abismos e desertos nunca mais voltem a vencer.
Submeter a terra nos obriga, então, a cuidar e zelar por esta nossa cas a comum e por
tudo que nela habita com a mesma paixão criadora e amorosa de Elohim, em vista da
felicidade de todas as pessoas e de todos os seres vivos.
Como Elohim, com a presença de seu espírito, nós, homens e mulheres, devemos
continuar sua obra criadora, l ut and o contra todos os males que ameaçam a vida de todos e
do planeta, contra a violência presente em todas as páginas da história humana. É um
permanente processo de c ri ação e re-criação que terminará quando poderemos viver
sem mais dor e luto nos novos céus e na nova terra, na terra sem males que todos queremos.
4 A leitura hieroglífica destas letras nos diz que h é o símbolo da vida, do ser, do que anima e y é o símbolo da
potencialidade, da durão,do se manifestar. O verbo hyhentão simboliza a vida que se manifesta e se potencializa na vida.
GALLAZZI, Alessandro.
Envia teu Esritoe haverá Crião.
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Passo Fundo, v.38, n.130,p. 39-50, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
42
1.2Re-lendoasegundaparáboladacr ia ção
A seg u nda parábola da criação (Gn 2,4b-25) nos fala da relação de Adam com
Yahweh Elohim e com o jardim das delícias / Éden.
Novamente encon tra mos uma situaç ão inicial de não vida, de deserto.
Na primeira parábola o elemento vital era o sopro de Deus sobre as águas. Agora é o
vapor, que, hieroglificamente, indica uma força em movimento que encharca a adamah
5
,
a terra enquanto geradora de vida (Gn 2,6).
Da adamah Yahweh Elohim forma Adam que vive como alma vivente pelo alento de
vida (Gn 2,7); da adamah Yahweh Elohim f az brotar toda árvore (Gn 2,9); da adamah Yahweh
Elohim forma tudo o que vive no campo e nos céus (Gn 2,19).
Tudo que vive tem um único pai e uma única mãe: uma única vida em todas as suas
diferentes formas.
Dois verbos definem esta relação com o jardim: Adam é colocado no jardim para
`abad = se rvi r, prestar culto e para shamar = observar, obedecer, guardar (Gn 2,15)
6
. Estes
mesmos verbos qu e , em muitos outros textos, definem a nossa relação com Deu s, aqui,
definem, também a nossa relação com o jardim, com a adamah, com a terra. Adam não é o
dono do jardim: é o servo obediente.
Quando tudo começou, ainda não havia vida porque nem Yahweh Elohim tinha feito
chover, nem havia Adam para servir a terra (Gn 2,5). É dest a relação de serviço e de
obediência qu e pode nascer e se sustentar a vida.
Na primeira parábola é Elohim quem o nome a todas as realidades de vida quando
são criadas: dia e noite, firmamento, terra e mar (Gn 1,5.8.10). Nesta segunda parábola é
Adam quem o nome a todas as almas viventes (Gn 2,19-20). É o compromisso de quem
conhece, cu id a e se responsabiliza, como um pai que o nome ao filho recém-nascido.
E, contra toda arrogância antropo-cêntrica de nossa filosofia greco-ocidental, esta
página nos propõe uma relação eco-cêntrica, ao proclamar que o Adam sozinho não é bom.
A imagem de Deus precisa se relacionar com o jardim, com as árvores e com todos os seres
vivos. E reconhec e na mulher a sua mesma identidade, seu mesmo nome: ele a rec onh e ce
exatamente igual a si, diante de si: substância de minha subsncia, carne de minha carne (Gn 2,23).
A proximidade desta cosmovisão bíblica com a cosmovisão dos mitos dos indígenas
e dos afro-descendentes é evidente. Ler a Bíblia com os povos da Amazônia é a
possibilidade que o biblista tem de se aproxi mar com maior facilidade do sentido
originário das palavras do Gênesis.
Como é difícil alcançar esta proximidade quando a Bíblia é lida nas academias e até
nas nossas liturgias!
1.3Re-lendoaparáboladaárvoredasvidasedoconhecimentodobemedomal
A interpretação que noss as comunidades costumam fazer desta pág i na nos leva a
aplicar o paradigma do crime-castigo. Um crime tão grande que marcou um castigo para
todas as gerações: o pecado original. Um pecado do qual foi isenta a virgem Maria e,
evidentemente, seu filho Jesus, cujo sangue derramado aplacou a ira do Pai e nos lavou de
nossas culpas, mas não de nosso corpo de morte. A morte é o castigo de f in it i vo, a
inevitável c ons e qu ê nc ia do pecado de Adam e de sua mulher.
5 A palavra adamah contém a palavra dam = sangue. Sangue da terra, terra fértil, geradora de vida.
6 Nossas Bíblias, quase sempre , preferem u sa r a tradução da Bíblia Grega (LXX): cultivar e guardar.
GALLAZZI, Alessandro.
Envia teu Esritoe haverá Crião.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 39-50, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Uma leitura a partir dos povos da Amazônia, porém, nos conduz por um caminho
mais amplo e menos moralista e condenat óri o. A terra onde estão sepult ad os os ancestrais
é terra sagrada, é terra santa, fonte de vida: essencial para recuperar as forças vitais.
A parábola nos fala do homem e da mulher que quebram as relações de servi ço e de
obediência porque querem se afastar da terra para ser como Yahweh Elohim
7
. A tentação é
ser como Deus : justamente o que sugeria a leitura equivocada do submeter a terra da
primeira parábola. Querer ser como Deus é querer ser o dono de t u do. Esta é a causa de
todos os males.
O castigo é voltar a servir à vida, é voltar a servir a terra. Será com dor e será com
fadiga, mas o encontro com a terra será sempre vivificador.
Até que voltes à terra, porque dela foste tomado; porque tu és e em voltas (Gn 3,19).
Voltar, retornar: shub
8
. Converter-se: é o mes mo verbo. Converter-se a Deus e
converter-se à terra. Voltar a servir e a obede c e r; voltar à vida no sentido mais pleno. Não
existe a palavra morte nas palavras de Yahweh Elohim.
O versículo seguinte é decisivo: é a chav e de leitu ra do castigo:
E chamou Adam o nome de sua mulher havah / vida/ Eva; porque vive a mãe de todos
os viventes (Gn 3,20).
agora, neste momento que pod ia parecer de morte, Adam consegue dar um nome
à sua mulher: Vida! Adam vai levar consigo a vida para fora do jardim. No conhecimento
da mulher e no servir terra, a vida poderá continu ar até que tenhamos novos céus e nova
terra e nunca mais haverá lágrimas e dor.
E Yahweh Elohim o enviou fora do jardim do Éden para servir a terra da qua l foi
tirado (Gn 3,23).
E conheceu Adam a Vida, sua mulher e ela concebeu (Gn 4,1).
1.4BendizeiaoSenhor,todasasob rasdoSenhor
Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas mãos (Sl 19,1).
Todos nós que celebramos com hinos e salmos ao nosso Deus, fazemos
quotidianamente a experiência de convocar a criação toda para aclamar e procla mar as
maravilhas do nosso Deus, celebrar sua glória, manife st ar seu poder e seu reinado. Tudo
que existe proclama: Teu reino é reino de to dos os séculos, teu domínio se estende a todas as
gerações (Sl 145,13). De Yahweh é a terra com o que ela contém, o universo e os que nele
habitam (S l 24,1-2).
A criação toda é viva: os montes pulam, os rios bate m palmas, as tempestades
revelam o nosso Deus.
Impressiona o cântico dos três rapazes jogados pelo imperador na fornalha ardente
(Dn 3,57-90 LXX). Escrito em grego, este text o confronta o modelo grego de ecologi a e
economia que pre t e ndi a se impor a toda a o ik ou me ne mediterrânea: uma natureza
inanimada, pura matéria, cu jos recursos inesgotáveis deviam ser explorados para gerar
riquezas em prol dos mais fortes.
7 Este movimento de se afastar da ter ra para chegar a Deus está presente também nas parábolas do dilúvio e da torre de
Babel. Também nestas parábolas a volta para a terra é elemento vivificador.
8 A simbologia hieroglífica destas letras é conhecimento para dentro que faz a unidade = reconstrução da tua identidade.
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A criação, pelo contrário, é viva, é animada e participa da grande louvação: Bendizei o
Senhor, celebrai-o e exaltai-o para sempre!
É o que acontece no turé, uma dança típica dos nossos índios: tudo o que existe e vive é
chamado a entrar na roda, a participar da única festa do povo, a se fazer uma coisa
conosco, penetrando na vida dos que dançam e festejam. É assim nos terreiros do candomb
e da umbanda: tudo é vida, tudo é interação: céus e terra se encontram, se fecundam,
produzem e se reproduzem num processo permanente de criação. Assim é na Bíblia.
Terra san ta, tempos santos, comunidade santa: uma trindade indivisível que
experimenta a circulação de uma única vida, a do Espírito!
Os tempos da natureza são tempos santos: novilúnios , semeaduras, colheitas,
vindimas, cios das ovelhas, primícias, vinho novo, azeite perfu mad o, tudo vira festa,
marcando os tempos, os ritmos deste út e ro fecundo e gerador, os gestos sagrados de um
povo que celebra seu Elohim/deus(es), singular e plural ao me sm o tempo.
Precisamos nos libertar da visão economicista que seja ela capitalista ou socialista
considera a natureza matéria prima que a dqu i re valor quando transformada em
mercadoria, em riqueza.
Se Deus colocou tudo aos nossos pés é para que seja manifesto quão grande é o nome
de Deus em toda a terra e quanto Ele nos ama (Sl 8,3-9).
Esta é a raiz de uma espiritualidade profunda. Esta espiritualidade significa entrar em
sintonia, em comunhão holística, com a ação do Espírito de Deus que, desde que tudo
começou, continua criando e renovando a face da terra: Envia teu espírito e haverá criação e
renovas a face da terra (Sl 104,30).
2ESPIRITUALIDADE ECO-CENTRADA É ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Na arrogância de nossa cultura ocidental, a nossa lógica racionalista nos levou a usar
palavras de conotação negativa, para falar desta cosmovisão comum às populações
tradicionais: sincretismo, politeísmo, panteísmo, animismo, pois elas acreditam que todas
as coisas e todos os seres têm alma/vida, a mesma vida de Deus.
Na melhor das hipóteses, chegamos a dizer que estas páginas bíblicas são narrativas
míticas, próprias do ant i go testamento e que devem ser superadas pela perspectiva
racional, revelada no novo testamento.
Precisamos aprofundar: esta espiritualidade é compatível com a espiritualidade
cristã? Qual seria o lugar de Jesus na espiritualidade ecoce nt rad a?
Vamos voltar à afirmação de Gn 1,27: E criou Deus o homem à sua imagem: à imagem
de Deus o criou ; homem e mulher os criou. Ou, como recorda Gn 5,1-2 questionando nosso
machismo congêni to: Quando De u s criou o ser humano, ele o criou à s eme lha n ça de Deus.
Criou-os homem e mulher, e os abençoou. E no dia em que os criou, Deus os chamou Adão.
A plena compreensão destas palavras e, por isso, da nossa missão de imagens de
Deus, é possível a partir de Jesus, a mais autêntica e completa imagem de Deus. Como
nos disse a carta aos Colossenses:
Ele é imagem do Deus invisível, o primogênit o de toda a criação; pois é nele qu e foram
criadas todas as coisas nos céus e na terra. Tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe
antes de todas as coisas e nele todas as coisas têm consistência (Cl 1,15-17).
A única vida que perpassa tudo que existe é a vida de Cristo. É o que repete,
também, o evangelho de João que se abre com a afirmação do novo gênesis, nu m claro
paralelismo com a primeira página da Bíblia:
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Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1,3).
Dominar a terra, então, significa fazer com que toda a criação part i ci pe do plano
amoroso que Deus tinha quando criou tudo que existe:
Colocar Cristo como cabeça de tudo o que existe no céu e n a terra (Ef 1,10).
Submeter a terra significa, assim, conduzir tudo e todos a Jesus, ao seu Reino de vida
e de luz, no qual todas e todos tenhamos a vida, a paz, a abundância, s em distinção de raça,
de credos, de classes sociais e nem das nomenclaturas cient íf i cas .
É o que a criação toda espera de nós que, com Cristo, em Cristo e por Cristo, somos
a imagem de Deus na terra.
A criação espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus (Rm 8,19).
Assim saberemos que o g e mi do de dor da criação é, na realidade, um gemido de
parto (Rm 8,22), sinal supremo de vida e de invencível esperança (Jo 16,2-22).
Na contramão do pensamento greco-romano que afirmava ser a natureza algo
totalmente inanimado e, por isso, subordinada aos interes se s dos humanos racionais, a
carta aos Romanos afirma que a criação está indissoluvelmente ligada aos seres humanos:
conosco ela geme, conosco ela espera, conosco ela anseia, co nosc o ela sofre. No horizonte
da humanidade e da criação está a mesma esperança de serem libertados da escravidão da
corrupção
9
, em vista da liberdade que é a glória dos filhos de Deus (Rm 8,21).
O Espírito que, desde o princípio, está na origem da vida, une seus gemidos aos
nossos gemidos e aos gemidos da criação e v e m em socorro da nossa fraqu e za, diante de
um desafio tão grande (Rm 8,26-27).
As comunidades eclesiais, alimentadas pela certeza que tudo concorre para o bem dos
que amam a Deus (Rm 8,28), deverão sempre ser as testemunhas do ressuscitado, vive r
segundo a nova criatura, buscando sempre, em primeiro lugar o reino de Deus e a sua
justiça, cont ra os falsos reinos geradores de injust i ça e de morte.
É o que o Espírito nos impele a fazer. Lutar, c omo Jesus, em favor da vida, contra
todas as forças caóticas da morte e da exclusão, buscando fazer com que a criação toda
possa alcançar a plenitude da vida que nela é contida.
Neste texto (Rm 8,19-26), a criação, os filhos de Deus e o Espírito, também, formam
uma espécie de trindade, na qual os três elementos formam uma única realidade, na
construção da liberdade dos filhos de Deus que significa a liberdade de toda a criação. Hoje
a ciência, também, vem confirmando esta visão h olí st ic a que Paulo e João, fiéis à
cosmovisão semi ta, proclamavam, na contramão do pensamento lógico grego.
3DEUS CRIADOR,DEUS DE TODOS OS POBRES
A outra questão q ue provoca esta reflexão é decisiva, sobretudo, na Amé ri ca Latina:
O que têm a se dizer mutuamente a ecologia profunda e a espiritualidade da libertação?
Na memória dos povos da Amazônia a divindade é sempre o Pai da bênção e da
promessa, da vida. Herdeiros de uma longa história de bru tal exploração, eles recorrem à
divindade, a santos, orixás, benzedores, paj és , mães de santo, pois, guardam a certeza,
celebrada, também, em inúmeros salmos, que Deus cuida deles, faz justiça, não abandona
os que nele confiam.
9 O termo grego ftorá significa, s obre t u do, destruição, ruína, aniquilamento, devastação.
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A memória do Elohim criador da natureza, de tudo que existe, não deve ser, e m
hipótese algu m a, separada da memória do Yahweh salvador dos pobres e dos oprimidos.
Bem-aventurado aquele cuja esperança está em Yahweh, seu Elohim,
que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles
e mantém para sempre a sua fidelidade.
Que faz justiça aos oprimidos e pão aos que têm fome.
Yahweh liberta os encarcerados. Yahweh abre os olhos aos cegos,
Yahweh levanta os abatidos, Yahweh ama os justos.
Yahweh guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva,
porém transtorna o caminho dos ímpios.
Yahweh reina para sempre; o teu Elohim, ó Sião, reina de geração em geração. Aleluia!
(Sl 145,5-10 e inúmeros outros Salmos; ver, também, Jt 9,11-12).
Usar a narrativa d a criação para justificar a dominação sobre a natureza e sobre os
outros seres humanos será, sempre, um a blasfêmia.
Não podemos esquec e r que a primei ra página do Gêne s is encontra, possivelmente,
sua origem literária nos capítulos 40-55 do livro de Isaías, conhecido como Segundo
Isaías
10
. Estas páginas nasceram nos momentos difíceis em que escravos e escravas viviam
oprimidos no cativeiro em Babilônia.
Foi deste grupo de excluídos e excluídas que surgiu a boa notícia. Lá, do fu ndo do
poço, surgiu uma teologia com dimensões completamente novas, inauditas, mas que vinha
acontecendo de sd e o princípio, desde sempre (Is 41,2 6; 43,19).
É o anúncio do Deus Criador, da grande mãe, a única mãe geradora da vida de todos
e de tudo: Eu te formei,... e u te fiz,... eu te criei,... eu te modelei,... eu te tomo pela mão,... eu t e
ajudo,... eu estou contigo,... eu te dou forças,....
Nestas páginas, De u s deixa de ser some n te o Deus de Israe l. Deus é Deus de todos,
até dos filhos sem família, dos sem gen e alog ia, dos sem povo, das culturas oprimidas,
excluídas, marginalizadas (Is 45,9-12). Todos são filhos dele, também os não judeus, filhos
da violência, da guerra e da deportação (Is 45,23-24).
Nunca uma mensagem foi tão universal, tão abrangente , tão inclusi va!
Esta gente sofrida nos fala de um Deus, mas com uma in crí ve l quantidade de
facetas. Tudo que é fonte de vida para o pobre cansado e desanimado é parte deste Deus
que é úni c o, mas que para cada um dos pobres assume um rosto di fe re n te , capaz de gerar
vida. Deus é único, não porque exclui, mas porque reúne em si mesmo todos os elementos
de vida das religiões populares. Encontramos nele o Deus cananeu da chuva e d o orvalho
fecundante (Is 45,8; 55,10-11); o oleiro modelador da mitologia mesopotâmica (Is 45,9); o
dominador dos mares agitados (Is 51,15) e, de maneira especial, a deusa-mãe, comum a todas
as culturas semitas (Is 46,3-4; 49 ,1 5 ; 66,9-13). P e la primeira vez Deus é chamado de Pai:
Repara desde os céus e olha desde a tua santa e gloriosa morada: Onde estão o teu ciúme
e as tuas forças? O frêmito das tuas entranhas e das tuas misericórdias
11
para comigo
acabou? Porque tu és nosso Pai, quando Ab raão não nos conhece, e Israel não nos
reconhece; tu, Yahweh, és nosso Pai; nosso Redentor desde a antiguidade é o t e u nome
(Is 63,15-16).
10 A vitória de Deus contra trevas, águas, abismos e desertos, as forças caóticas da morte, estão presentes de maneira
significativa, no Segundo Isaías (Is 42,7; 43,2; 43,16; 44, 3; 44,4; 45,7; 48,21; 49,9; 50,2; 51,3; 51,10) Diga-se o mesmo
da palavra to hu / caos. O mítico adver sári o das origens, também, está muito presente nos textos do Segundo Isaí as (Is
34,11; 40,17. 23; 41, 29 ; 44,9; 45,18; 49,4). Porque assim diz o Senhor, que criou os céus, o Deus que formou a terra,
que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um caos/tohu, mas para ser habitada: Eu sou o Senhor, e não
outro (Is 45,18). Ver, também, GALLAZZI, Sandro. Por meio dele o desígnio de Deus de triunfar. In: Ribla, v.21.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.1 1 -31 .
11 Literalmente úteros. É um Deus Mãe e, agora, Pai.
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É um Deus único, mas completo: tudo que for elemento de vida, de segurança, de
esperança para os pobres, ele reúne, ele soma, ele engloba numa divindade, boa,
materna, protetora, consolad ora para toda esta gente sofrida: um Elohim únic o e completo.
Os out ros deuses não existem: se forem dos pobres, es tão contidos nele; se forem dos
opressores, são ídolos, imagen s, não são nada/tohu!
Única imagem de Deus é Adam, a humanidade, no mesmo tempo imagem de Deus e
produto da terra fértil/'adamah. Adam: homem e mulher (Gn 5,2), criado/os para serem os
herdeiros do domínio de Deus sobre a terra. Representantes de Deus não serão os reis, os
sacerdotes, os grandes, mas o homem e a mulher. Ídolos nunca mais!
Os valores presentes nestas páginas bíblicas têm muito a ver com os valores presentes
na vida quotidiana dos povos da Amazônia. Trata-se de estabelecer um diálogo atento e
humilde, na atitude evangelizadora de Paulo que poderíamos assim parafrasear: Fazer-nos
índios com os índios, caboclos com os caboclos, negros com os negros, ribeirinhos com os
ribeirinhos, seringueiros com os seringueiros, fazer-nos tudo a todos e a todas.
Este imaginário de vida e de salvação inspirou os profetas que proc lamara m as
promessas de Deus ao seu povo sofrido:
Vou criar novos céu s e nova terra... não haverá ali criancinhas que vivam apenas
alguns dias, nem velhos que não completem a sua idade... Construirão casas para nelas
habitarem, plantarão videiras e comerão de seus frutos... Os meus eleit os comerão eles
mesmos o fruto do trabalho de suas mãos... (Is 65,17-25).
É assim que o jardim vai entrar em nossas casas e no nosso quotidiano e o sinal da
paz e da vida será descan sar, esposos, filhos e filhas, debaixo das vinh as e das figueiras (Mq
4,4; Zc 3,10; 1Mc 14,12).
É a terra sem males do mundo indígena.
4ECUMENISMO,ECONOMIA,ECOLOGIA
A interação entre espiritualidade ecocentrada e espiri tu ali dad e da libertação nos leva
a ampliar nossa reflexão sobre o que devemos entender por ecologia.
As palavras economia, ecologia e ecumenismo vêm todas da língua grega e se
originam do verbo oikeo: habitar. O particípio presente passivo feminino deste verbo é
oikoumenen: a realidade que está sendo habitada. O substantivo derivado é oikoumene.
Esta palavra foi, logo, entendida como todo o universo habitado, toda a sociedade
humana, toda a terra. A esta palavra costuma-se dar uma dimensão universal.
Quase todas as vezes que a palavra oikoumene aparece nos textos bíblicos
12
tem a
conotação que lhe é dada no texto clássico:
De Yahweh é a terra e a sua plenitude, o mundo (oikoumene) e aqueles que nele
habitam (Sl 24,1).
É, porém, interessante notar que a palavra oikoumene nunca aparece nos textos
paulinos
13
e é muito pouco usada no Seg un do Testamen to. Apesar do seu esforço em
dialogar com o mundo grego, Paulo não usa esta palavra, preferindo usar, como em geral
no Segundo Testamento, a palavra kosmos
14
.
12 A palavra oikoumene aparece na LXX e no NT: 2Sm 22,16; 1Esd 2,2; Est 3,13; 2Mc 2,22; Sl 9,9; 17,16; 18,5; 23,1; 32,8 ;
48,2; 49,12; 71,8; 76,19; 88,12; 89,2; 92,1; 95,10, 13; 96,4; 97,7, 9; Odes 7,45; Pr 8 , 31 ; Sb 1.7; Is 10,14, 23; 13,5, 9, 11;
14,17, 26; 23,17; 24m1, 4; 27,6; 3 4, 1; 37,16, 18; 62,4; Jr 10,12; 28,15; Lm 4,12; Ep. Jr 1,61; Dn 2,38; 3,2 , 45; Dat 3,45;
Mt 24,14; Lc 2,1; 4,5; 21,26; At 11,28; 17,6, 31; 19,27; 24, 5; Rm 10,18; Hb 1,6; 2:5; Ap 3,10; 12,9; 16,14.
13 Rm 10,18 é uma citação dos LXX.
14 A palavra oikoumene aparece 15 vezes no Segundo Testamento, enquanto a palavra kosmos aparece 150 vezes.
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Para os gregos a palavra oikoumene indicava, qu as e sempre, a s populações q ue eram
conectadas com o projeto político e comercial grego. Os bárbaros e os escravos não faziam
parte da oikoumene.
Diga-se o mesmo para o império romano: oikoumene eram as nações que formavam
o império, os povos t rib u tad os e comercialmente explorados pelo império
15
. Oikoumene,
que parecia ser uma palavra inclus iv a, era, na verdade, um forte elemento de exclusão. Uns
eram oikoumene e muitos outros não.
Esta ambiguidade justifica a ausência desta palavra nos textos paulinos. Suas
afirmações são claras:
Eu sou devedor tanto a gregos como a rbaros, tanto a bios como a ignorantes (Rm 1,14).
Não grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou
livre; mas Cristo é tudo em todos (Cl 3,11).
O R e in o de Deus é uma coisa, a oikoumene é bem ou t ra (ver também, Mt 24,14; Lc
4,5; 21,26): a ela deve ser anunciado o evangelho do Reino
16
.
Por que fiz estas considerações? Porque do verbo oikeo derivam, também, as palavras
oikia, oikos : habitação, casa, residência, lugar habitado, família.
A oikoumene é o conjunto das casas, de todos os espaços que são habitados. Não
como separar o universal do local.
Aqui, porém, precisamos levar em consideração que casa, t amb ém , nu n ca f oi
sinônimo de igualdade entre os que habitam nela. Tem o homem e tem a mulher, tem o
pai e tem o filho, tem o amo e tem o escravo.
As relações internas da casa são determinantes, pode m ser iguali t árias :
Não judeu nem grego; não servo nem livre; não macho nem fêmea; porque
todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3,28).
Ou as relações dentro da casa podem ser de domínio, de governo:
Todos os escravos que estão debaixo do jug o estimem os seus senhores dignos de toda a
honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados (1Tm 6,1).
As mulheres idosas (...) ensinem as mulheres novas a serem prudentes, a amarem seus
maridos, a amarem seus filhos, a serem moderadas, castas, boas obreiras de casa,
submetidas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não seja blasfemada (Tt
2,3-5).
Quanta diferença e n tre o homem: dono/patrão da casa (oikodespotes) e a mulher
trabalhadora da casa (oikourgous )!
É por isso que precisamos definir qual é a nossa ecologia
17
. Qual é o nosso discurso
sobre a casa? De que casa nós estamos falando quando usamos a palavra ecologia?
Ecologia é dizer o que pensamos da nossa casa, como um todo. Quase sempre e,
nisso, empresários e ambientalistas costumam ser iguai s se entende ecologia como a
15 Com este sentido a palavra oikoumene aparece, por exemplo, em Lucas 2,1 e em Atos 17,6 e 19,27.
16 Temos que dizer que também a palavra kosmos, sobretudo em João, não tem o significado global de mundo, de
universo, mas identifica as forças negativas que se contrapõem ao Reino. É bom lembrar que esta ambiguidade se
mantém, também, nos tempos atuais: a palavra ecumenismo que deveria significar a ati tu d e de encontro e de
respeito entre todos os que vivem no mesmo mundo habitado - é quase sempre usada para falar da unidade das
igrejas cristãs, excluindo do ecume ni s mo as demais expressões religiosas. Para estas foi precis o criar a palavra macro-
ecumenismo: u ma evidente redundância.
17 Ecologia vem do grego: oik os = casa e logos = discurso. Diga-se o mesmo da economia que vem de oikos = c asa e
nomos = lei, norma.
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nossa relação com a nat u re za, com o meio ambiente, podemos dize r com o nosso quintal.
Discute-se o ambi e nt e, discute-se como deve funcionar o quintal, mas não se discute que
tipo de casa nós queremos.
Tem muita gente que, quando pensa em casa, não pensa numa casa comum, onde
todos sentam ao redor da mesma mesa e repartem o mesmo pão, sem disti ão; continuam
pensando em casa grande e em senzala.
Muitos falam em ecologia, mas se preocupam com o quintal, com a natureza, com
o ambiente que está f ora da casa e, assim, falam em dese nv olv ime n to sustentável, em
defesa da terra e da água, mas continuam sem pôr em discussão a casa grande d os país e s
mais ricos, das classes dominantes, das corporações industriais e financeiras, das elite s
privilegiadas e corruptas que engordam às custas de uma imensa, in calc u láve l senzala que
é explorada, oprimida, excluída.
Progresso, crescimento, dese nv olvi me n to, para eles si g ni fi c a entrar a fazer parte da
casa grande, nem que s e ja como uma remediada classe média. A s e nzala ainda não saiu da
cabeça de muitos de nós.
Precisamos nos converter, pois a economia (a lei, a organização, a administração da
casa) vai depender da ecologia (de que casa estamos falando, em que t i po de casa queremos
viver).
Se continuarmos a acreditar na casa grande
18
, teremos uma economia centrada na
especulação finance i ra, nos monopólios industriais, na privatização dos serviços públicos -
realidades estas que nada teriam a ver com a ecologia . Uma economia baseada no
agronegócio, na monocultura, na mineração, nas exportações de maté ria prima, no
trabalho escravo, na concentração fundiária, nas sementes transgênicas, nos agrotóxicos.
Na melhor das hipóteses, faremos os estudos de impacto ambiental e as audiências
públicas para tentar minimizar e corrigir a inevitável destruição qu e será compensada com
poucas esmolas sociai s, com uma oferta temporária de empregos, com a promessa de
impostos que, depois, serão sempre descontados e com algumas medidas compensatórias
regularmente abatidas do i mpos to de renda devido.
A casa grande ficará com os produtos e os lucros; a senzala ficará com o trabalho e as
migalhas da assistência social e o quintal será devastad o. Os pobres perderão a terra! A
terra perderá a vida!
A verdadeira e mais importante diferença está na man e ira de olhar a terra, a água, a
natureza: socialist as e capitalistas enxergam tudo isso como matéria prima que adquire seu
valor ao virar mercadorias que deve ser comercializada e pri vat iz ada, deixando de ser
direito e bem coletivo. Nós queremos olhar a terra, a água, a natureza como a nossa casa, a
nossa mãe e fonte de vida para todas as criaturas.
Nós entendemos que a luta pela terra é, hoje de maneira especial, luta pela TERRA,
com a T maiúscu la. É a luta pela vida do pl ane ta que é violentamente ameaçada por um
falso conceito de c re sc im e nt o, desenvolviment o, progresso e por uma ainda mais fals a
ideia de que os recursos naturais são infindáve i s .
Aprender com as comunidades tradicionais o que significa uma casa f e i t a tenda
comum, aberta a todos, não significa atraso. Signifi ca vida abundant e para todos e todas.
Lutar pela terra e pela vida da Terra é um imperativo ét i co que testemunha nossa
fidelidade à memória, à tradição, à anc e st rali dad e , às nossas raízes. É a fidelidade aos
pobresdeDeus.
18 Não vamos esquecer que a palavra faraó significa, literalmente, casa grande.
GALLAZZI, Alessandro.
Envia teu Esritoe haverá Crião.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 39-50, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Lutar pela terra e pela vida da Terra é uma exigência que testemunha nossa relação
sagrada com a terra, nossa mãe, nossa amiga, nossa amante, à qual devemos servir e
obedecer, pois d el a todas as gerações terão vida em abundância. É a fidelidade à terra
queédeDeusedetodosetodasnós.
Lutar pela terra e pe la vida da Terra é uma obrigação que testemunha a no nosso
Deus. Da ecologia, depende não a economia, mas, também, a teologia. A casa que
pensamos e queremos determina qual é o Deu s ao qual nossa casa deve ser fiel. É a
fidelidadeaoDeusdospobres.
Este testemunho de fidelidade ao Deus dos pobres, aos pobres de Deus e a terra que é
de Deus e de todos, levou inúmeras companheiras e companheiros a amar até o fim, até
derramar seu sangue. São os mártires/te s te mu n has que as Igrejas nunc a devem esqu e ce r.
5ECOLOGIA E ECLESIOLOGIA
Nossas Igrejas, mui tas vezes, seguiram e seguem a lógica da casa grande e da senzala
que det u rpou nossas relações: templos, altares, sacrifícios, hierarquias, governos são coisa
da casa grande, de u m sacro-negócio blasfemo e diabólico, o mesmo que, aliado ao império
opressor, condenou à morte Jesus de Nazaré.
O evangelho do Reino de Deus nos convida a fazer a diferen ça dentro e fora da
Igreja: casa, mesa, pão repartido e serviço devem substituir templos, altares, sacrifícios e
dominações. Foi isso que Jesus celebrou na ce i a pa sc al. É isso que devemos continuar
testemunhando em memória dele e de seu martíri o.
Pão repartido quer dizer t e rra repartida, bens partilhados, luta contra tod a
concentração, contra o latifúndio exclud e nt e , devastador e violento. É a defesa da vida
contra todas as f ormas de escravidão, mesmo as que são mascaradas de crescimento e são
chamadas de mercado.
Pão repartido é crer que nossa casa é u ma oca comum ou, usando a lingu ag e m
bíblica, uma tenda. Nem palácios, nem templos, nem quartéis, nem armazéns, nem
bancos, nem especulações f i nan ce i ras .
Vamos repetir uma vez mais: a palavra faraó significa casa grande.
O nosso Deus, o Deus dos noss os pais e das nossas mães, o/s de u s /e s dos nossos
povos ancestrais nunca estará na casa grande, apesar dos templos gigantescos que eles
construíram e continuarão const ru i ndo.
Iahweh será sempre o Deus dos hebreus
19
, dos marginalizados que quere m viver
em paz, podendo desfrutar do fruto da terra e do seu trabalho, do pão e do vinho que
ofertamos ao Senhor para que seja sempre de todos e de todas.
19 Segundo muitos estudiosos, o termo hebreu vem de hapiru que, na literatura egípcia, indicav a alguém q u e estava às
margens da sociedade, muit as vezes, c om a conotação negativa de bandido, assaltante , mercenário e t c.
GALLAZZI, Alessandro.
Envia teu Esritoe haverá Crião.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 39-50, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
VIU-O E MOVEU-SE
DE COMPAIXÃO
estudo hermenêu t ico - t e o g ico da
parábola do bom samaritano
HE SAW HIM, HE TOOK
PITY ON HIM
hermeneutic-theological study of the
parable of t h e good Sam a rit a n
Marcos Alcânta ra*
Anderson Cost a Pereira**
Resumo: O artigo apresenta um breve estudo he rme u t i co-t e ológ i co da
parábola do bom samaritano, narrada somente pelo evangelista Lucas (cf.
Lc 10,25-37). Apresenta, de maneira suscinta, uma visão geral do
Evangelho segundo Lucas, segui nd o alguns passos metodológicos que
ajudam na compreensão do texto bíblico. Em seguida, contextualiza a
referida perícope dentro do Evangelho, apres e nta ndo um comentário que
ajuda na compreensão do texto. Por fim, elabora-se alg u mas conclusões que
ajudam o leitor a refletir sobre a atualidade da parábola.
Palavras-chave:Jesus. Bom samaritano. Próximo. Evangelho segundo Lucas.
Abstract:The article pre s e nt s a bri e f hermeneutic-theological study of the parable
of the good Samaritan, narrated only by the evangelist Lu ke (cf. Lk 10,25-37). It
presents, in a succinct way, an overview of the Gospel according to Luke,
following some methodological steps that help in the understanding of the biblical
text. Then, contextualizes that pericope w it h in the Gospel, presenting a comment
that helps in understanding the text. Finally, some conclusions are draw n up that
help the reader to reflect on the actuality of the parable.
Keywords: Jesus. Good Samaritan. Neighbor. Gospel according to Luke.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 51-61 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.49
* Doutor em Teologia Bíblica pela Ponti f íci a
Universidade Gregoriana Roma.
Missionário presbí t er o da Diocese de
Ilhéus/BA.
E-mail: mac alcan tara@ h ot mai l.c om
https://orcid.org/0000-0002-5998-9277
** Especialista em Sagrad as Escrituras pela
Faculdade Claretiana e em Ciências da
Religião pela Faculdade UnyLeya. Presbítero
da Dioces e de Pinheiro/ MA.
E-mail: pe re ira -ande rs on1 @ hot mai l. com
https://orcid.org/0000-0001-9557-6026
Recebido em 27/1 1 /20
Aprovado em 16/02/21
52
INTRODUÇÃO
Este artigo nos coloca em cont at o com uma das parábolas mais belas e conhecidas de
todo o Novo Testamento, a sabe r, a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37).
Trata-se de uma das parábolas exclusivas de Lucas
1
, inserida na dinâmica do longo
caminho empreendido por Jesus rumo a Jerusalém. Sem dúvidas, é um daqueles episódios
em que Jesus esbanja misericórdi a, o que é muito rec orre nt e no Evangelho lucano, o
chamado Evange lh o da misericórdi a
2
.
Sem dúvidas, esta parábola está entre as mais populares histórias c onta das por
Jesus
3
. Entretanto, o fato de ser mu it o popular pode nos passar a impressão de que a
entendemos bem, ou pior, não nos impactar à força de sua mensagem. Não nos deixem os
enganar, achando que conhecemo s o suficiente o texto, mas permitamos ser int e rpe lados
pela sua mensagem, que nunca perdeu sua atualidade e, tampouco, a sua força comunicativa.
Assim sendo, este artigo deseja au xi li ar-n os, de tal modo, que compreendendo a
estratégia literária lucana, possamos aprofundar um pouco mais sobre esta parábola.
Primeiramente, procura-se elu c id ar alguns tópicos fundament ais para a compreensão do
Evangelho segundo Lucas. Em seguida, situa-se a parábola em questão dentro de seu
contexto mais amplo a partir da estratégia narrativa do autor. Por fim, elabora-se a
conclusão, a partir da atualidade do tema, iluminado pelo texto bíblico parabólico.
1 OEVANGELHO DE LUCAS
Ler o Evangelho segundo Lucas é tornar-se testemunha e d e ix ar-se invadir pelo
poder de Jesus ressusc it ado que, através da sua Igreja, ao longo dos séculos, proclama a Boa
Nova do Reino de Deus (cf. Lc 9, 2. 2 7) . A vida e a mensagem de Jesus se descobrem através
do testemunho das comunidades concretas e diversas. Lucas não usa muito o termo
Evangelho (só duas vezes em Atos) mas utiliza 25 vezes o verbo evangelizar
4
. O
Evangelho, neste sentido, é mais do que uma ação, um conteúdo, é uma pessoa: Jesus
Cristo vivo e atuante através das suas testem un has , na força do Espírito Santo (cf. At 1,8).
1.1Autoredestinatário
Desde o século II a obra foi considerada de Lucas. Muitos estudiosos atribuem -no a
profissão de médico (cf. Cl 4,14) e o identificam com o discípulo e colaborador de Paulo
(cf. Fm 23ss, 2Tm 4,11). Porém, essa relação entre Paulo e Lucas vem sendo questionada,
visto que muitas diferenças e nt re a teologia paulina e lucana
5
. Dados extra bíblicos
informam que Lucas era um sírio de Antioquia que morreu na Boécia (Grécia)
6
.
1 Os Evangelhos sinóticos apresentam um total de quarenta parábolas, das quais vinte e nove estão no Evangelho de
Lucas e dezesseis aparecem nesse evangelho, a saber: Lc 7,41-43; 10,25-37; 11,5-8; 12,13-21; 13,6-9; 13,22-30;
14,7-11; 14,25-33; 15,8-10; 15,11-32; 16,1-8; 16,19-31; 17,7-10; 18,1-8; 18, 9- 14 . cf. Michel GOURGUE S. As
parábolas de Lucas: do contexto às ressonâncias. São Paulo: Loyola, 2005; Luise SCHOTTROFF. As pará bo la s de Jesus: uma
nova hermenêutic a . São Leopoldo: Sinodal, 2007.
2 Um estu d o detalhado sobre o Evangelho da misericórdia podemos encontrar em Johan KONINGS; MAZ Z A R O LO
Isidoro. Lucas: o evangelho da graça e da misericórdia (comentário-paráfrase). São Paulo: Loyola, 2016; Augu st in
GEORGE. Leitura do evangelho segundo Lucas. São Paulo: Paulinas, 1982; Carroll STUHLMUELL ER . Evangelho de
Lucas. São Paulo: Paulinas, 1975.
3 O sentido literal da palavra parábolas é lançar ao lado. É uma história que conta outra história. As parábolas são
metáforas que nascem da realidade cotidiana, de situações corriqueiras, mas sempre trazem um elemento que foge
dos padrões normais. A mensagem é indireta e tem como objetivo caus ar impacto e quem a ouve é convi da do a
tomar uma posição. É um texto aberto e dinâmico.
4 Cf. Gerhar d KITTEL e Gerhard FRIEDRI CH , Compendio del diccionario teológico del nuevo testamento, p.212.
5 Cf. Eduard LOHSE, Introdu cc n al Nuevo Testamento, p.166 .
6 Raymond E. BROWN, Introduçã o ao Novo Testamento, p.378.
ALCÂNTARA, Marcos; PEREIRA,Anderson Costa.
Viu-o e moveu-sede compaixão:estudo hermenêutico-teológico da pabola do bom samaritano
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 51-61, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Apesar da falta de consenso dos estu di os os em determinar quem é o autor do
terceiro Evangelho, estes estão divididos quase meio a meio quanto à aceitação da
historicidade dessa atribuição a Lucas, no caso de ele ser o autor de Lucas-Atos
7
.
Apesar das obras lucanas (Lucas-Atos) serem dedicadas à certo Teófilo, é evidente
que destinam -se a leitores cris os de cultura greg a, possivelmente de Antioquia da Síria
ou da Ásia Menor
8
, como se percebe pela língua, pelo cuidado em explicar a geografia e
usos da Palestina, pela omissão de discussões judai ca s, pela consideração que tem pelos
gentios. Lucas a impressão que conhec e a comunidade de Jerusalém, pois ele cit a o
nome de várias mulheres (cf. Lc 8,1-3). Portanto, a e st rat é g ia narrativa de Lucas capacita o
seu leitor, sobretudo de cultura g re g a, à compreensão das suas obras, pois muitos não
estavam familiari zad os com os escritos judaicos aos quais os pregadores se referiam com
frequência ao explicar a história de Jesus
9
.
1.2AREDAÇÃO DO EVANGELHO SEGUNDO L U CAS
1.2.1 Composição e data
De acordo com Brown, na composição do seu Evangelho, Lucas utilizou como
fontes principais o Evangelho de Marcos, a Fonte Q e as próprias fontes admitidas pelo
evangelista: as testemunhas oculares e os ministros da palavra que transmitiram a
narração do que aconteceu, e muitos haviam empreendido compilar relatos
10
(cf. Lc 1,1-
2). Estas demais tradições estão marcadas pelo trabalho do autor, que se reflete, quer na sua
ordenação, quer no vocabulário, quer no estilo.
A arte e a sensibilidade de Lucas ao escrever manifestam-se na sobriedade das suas
observações, na delicadeza de atitudes, no dramatismo de ce rtas narrações, na atmosfera de
misericórdia das cenas com pecadores, mulheres e estrangeiros, como se nota claramente
na parábola do bom samaritano. Ademais, o autor é influenciado pelo estilo dos
historiadores (cf. Lc 2,1 -2 ) e dos poetas gregos; utiliza a tradução grega dos LXX e conhece
bem o Império Romano.
O terceiro Evang el ho é datado por vários autores, entre eles Kummel, por volta dos
anos 70 a 90
11
, porque Lucas deve ter conhecido o cerco e a destruição da cidade de
Jerusalém por Tito, no ano 70. Brown também defende esta teoria e indica uma data não
posterior ao ano 100
12
.
1.2.2 O tempo de Jesus e o tempo da Igreja
Uma das ide ia s-m e st ras de Lucas é distinguir o tempo de Jesus (Lc) e o tempo da
Igreja (At)
13
. Sem esquecer a singularidade do acontecimento salvífico de Jesus Cristo, põe
em re le v o as etapas da obra de Deus a partir de uma teologia da História. Mais do que
Mateus e Marcos, ao falar de Jesus e dos discípu los , Lucas pensa na Igreja, cujos
membros se sentem interpelados a acolher a mensagem salvífica n a alegria e na conversão
do coração. É isso que faz deste livro o Evangelho da misericórdia, da alegria, da
7 Raymond E. BROWN, Introdu çã o ao Novo Testamento, p.378.
8 Cf. Jerome KODELL, Lucas. In: Diane BERGANT; Robert J. KARRIS, Comentário bíblico. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2001.
9 Cf. Jerome KODELL, Lu cas . In: Diane BERGANT; Robert J. KARRI S , Comentário bíb lico, p.73.
10 Cf. Raymond E. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p.371.
11 Cf. Werne r Georg KUMM EL , Introdução a o Novo Testament o , p.188.
12 Cf. Raymond E. BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p.371.
13 Cf. Rafael Aguirre MONASTÉRIO; Antônio Rodrìguez CARMONA, Evange lho s e Atos dos Apóstolos, p.284-285.
ALCÂNTARA, Marcos; PEREIRA,Anderson Costa.
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solidariedade e da oração. No respeito pelo ser humano, a salvação evangélica transforma a
vida das pessoas, com reflexos no s e u interior, nos seus comportamentos sociais e no uso
que fazem dos bens terrenos.
1.2.3 Estrutura do Evangelho
Existem várias possibilidades de estruturar o terceiro Evange lho. A estrutu ra que
aqui se apresenta pode ser dividida de fo rma esquemática em três grandes partes,
precedidas por u ma parte introdutória, conform e estrutura oferecida por Mon ast e ri o e
Carmona
14
:
PARTE INTRODUT Ó RI A :
Prólogo Literário (1,1-4)
Relatos sobre nascimento de João Batista e sobre o nascimento e infância de Jesus
(1,5-2,52)
Díptico introdutório aprese nt and o a atividade de João Batista e a unção e provação
de Jesus (3,1-4,13)
PRIMEIRA PA RT E: Atividade de Jesus na Galileia (4,14-9,50)
SEGUNDA PARTE: Caminho de Jesus para Jerusalém (9 ,5 1-1 9 ,2 8)
TERCEIRA PA RT E: Atividade de Jesus em Jerusalém (19,29-24,53)
outros modelos possíveis de estruturação do Evange lh o, de acordo com outros
comentadores, porém situaremos o texto do bom samaritano neste esquema que se
encontra dentro da segunda parte do Evangelho. Essa parte apresenta a subida de Jesus
para Jeru salé m, sendo a parte mais longa de toda a obra. Nela temos o eixo central da
mensagem de Luc as : a comunidade cristã é uma comunidade que está a caminho. Durante
essa subida para Jerusalém , o evangelista apresenta Jesus ensinando, curando, discutindo
com seus discípulos e adversári os , tudo isso como uma forma ped ag óg ic a de ajudar sua
comunidade a entender o que signi f ic a seguir Je su s e as exigências do discipulado
15
.
1.2.4 Um itinerário a seguir
Lucas é um dos evangelistas que apresentam de forma mais contundente o caminho
de salvação numa perspectiva universal. O tema do caminho ( δς = h ē hodos:
caminho, estrada), na obra lucana, qualifica a vida e a identidade da comunidade cris . O
uso do verbo caminhar, que aparece 51 vezes no Evangelho e 37 vezes em Atos, confirma
essa tese
16
. Esse verbo aparece tanto nos relatos d a infância, para indicar que os pais de
Jesus estão a caminho de Jerusalém (cf. 1,39; 2,3.41), como no final do episódio da
sinagoga de Naz aré (cf. 4,30), quando ungido pe lo Espírito Santo, inaugura seu mini st é ri o
na Galiléia (cf. 4,14-9,5 0) .
Ao longo de todo o Evangelho Jesus percorre um longo e árduo caminho. Nos
caminhos da Galileia, Jesus pregava e anunciava a Boa-Nova do Reino de Deus (cf. 8,1).
Em Lc 9,51, Jesus toma decididamente o caminho de Jerusalém (cf. 9,51-1 9, 27 ) , se g ui do
por seus discípulos e grande multidão. Seu destino é Jerusalém, centro do poder religioso e
o coração de todas as expectativas e esperanças de Israe l, onde será rejeitado e executado
numa cru z em total obediência ao Pai e , ressuscitad o, cumprirá todas as profecias a seu
respeito (cf . 24,27).
14 Cf. Rafael Aguirre MONASTÉRIO; Antônio Rodrìguez CARMONA, E va n ge lho s e Atos dos Apóstolos, p.284-285.
15 Rinaldo FABRIS, O Evangelho segundo Lucas. In: Rinaldo FABRIS e Bruno MAGGIONI, Os Evangelhos II, p.12-13.
16 Cf. Gerhard KITTEL e Gerhard FRIEDRICH, Compendio del diccion a ri o teológico del nuevo testament o , p.514-518.
ALCÂNTARA, Marcos; PEREIRA,Anderson Costa.
Viu-o e moveu-sede compaixão:estudo hermenêutico-teológico da pabola do bom samaritano
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Deste modo, o caminho de Jesus não termina com a c h eg ad a em Jerusalém, nem com
sua paixão e morte. Ess e caminho continua nas cenas seguintes após sua morte e
ressurreição, com os discípulos de Emaús (cf. 24,28). Neste sentido, o caminho será
revestido de uma nova perspectiva em Jerusalém, quando, reunido com os se us apóstolos e
discípulos, Jesus sobe aos céus (cf. At 1,10-11) e, derramando o seu Espírito sobre todos
(cf. At 2,3 3) , faz da sua Igreja, mi s si onári a peregrina do mesmo caminho, enquanto
projeto de vida.
1.3OtemadaM iseri rdiadoPainoterceiroEvangelho
17
Com razão, Dante Alighieri definiu Lucas como scriba mansuetudinis Christi
(escritor da docilidade de Cristo), ju st ame nt e pela ênfase que ele à misericórdia do Pai
revelada por Jesus em relação aos pecadores e excluídos
18
. De fato, para muitos estudiosos,
o terceiro Evangelho é o Evangelho da misericórdia, pois Lu c as é o evangelista que mais
vezes emprega o termo. Além disso, em Luc as temos uma Cristologia bem caracterizada
que apresenta um Jesus misericordioso e compassivo diante das pessoas mais necessitadas e
excluídas. Ele é o embaixador da misericórdia e da justiça
19
.
Desde o início do Ev ang e lho , a misericórdia de Deus é cantada ao recordar o que
Deus realizou pelo seu povo. Maria no Magnifi ca t profetiza: a sua misericórdia perdura
de geração em geração (1,50); Ele socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua
misericórdia (1,54). Também Zacarias no Benedictus recorda a libertação do povo realizada
por Deus para f az e r misericórdia com nossos pais (1,72) e a vinda do Messias como
uma ação mis e ric ordi os a: Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo qual nos
visita o Astro das alturas (1,78).
O term o compaixão também é usado no Evangelho para referir-se à misericórdia de
Deus. A compaixão vem do verbo grego σπλαγχίζομαι (splangxizomai) e se refere aos
órgãos vitais (coração, rins, pulmões e fígado)
20
. Portanto, agir com compaixão é sentir
com as entranhas. No Novo Testamento é pouco usado. Lucas usa apenas três vezes esse
verbo para três passagens qu e estão em seu Evangelho: a reanimação do filho da viúva
de Naim (7,11-17); a parábola do bom samaritano (10,29-37); a parábola do fi lho pródigo
(15,11-32)
21
.
2 APARÁBOLA DO BOM SAMARITANO (LC 10,25-37)
Na primeira parte desse artigo, apresentou-se, de forma sintética e dinâmica, o
processo literário narrativo no qual Lucas desejava conduzir o seu leitor a uma profunda
compreensão da mensagem sempre atual prese n te na parábola do bom samaritano. Sendo
assim, inicia-se esta segunda e última parte situando a parábola num contexto mais amplo
do Evangelho de Lucas. Depois analisa-se o contexto específico e imediato da parábola e,
finalmente, apresenta-se hermeneuticamente a eficácia da mensagem contida no texto com
toda a sua força comunicativa e sempre atual.
17 Sobre algumas passagens acerca da misericórdia (6,36-38; 7,13-14; 7,44-48; 10,29-37 ; 15,4-7; 15 ,8 -1 0; 15 ,1 1 -31 ) .
18 Cf. Jerome KODELL, Lucas. In: Diane BERGANT e Robert J. KARRIS, Comentário bíblico, p.73.
19 Isidoro MAZZAROLO, Lucas: a antropologia da salvação, p.14.
20 Cf. Gerhard KITTEL e Gerhard FRIEDRICH, Compendio del diccion a ri o teológico del nuevo testament o , p.831.
21 Para esta análise rec orre mos basicamente ao texto clássico de Helmut KÖSTER, splagcnon. In: Gerhard KITTEL,
Grande lessico del Nuovo Testamento, p.903-934.
ALCÂNTARA, Marcos; PEREIRA,Anderson Costa.
Viu-o e moveu-sede compaixão:estudo hermenêutico-teológico da pabola do bom samaritano
Revista Teopráxis,
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2.1Ocontextodaparábola(Lc10,25-28)
O texto da parábola do bom samaritano situa-se na segunda parte do Evange lh o,
conforme a divisão apresentada anteriormente. Atento ao c ont e xt o desta segunda parte do
Evangelho, conforme o modelo estrut u ral apresentado, o narrador informa ao leitor que
Jesus está subindo para Jerusalém de forma resoluta, ou seja, Jesus toma a firme decisão de
partir para Jerusalém (Lc 9,51). Este versículo introduz a grande viagem de J e su s em
direção a Jerus alé m, a qual ocupa uma extensão de dez capítulos (cf. 9,51-19,28) de um
total de vinte e quatro.
Como aponta Gourgues
22
,
A narrativa do bom samaritano figura na seção central do ev ang e lho de Lucas
(9,51-19,27), que tem por quadro a subida de Jesus a Jerusalém (...) vemos que
em Lucas a maioria delas (25 das 29) está situada nesse quadro muito amplo,
que constitui uma das características de seu evangelho. Para este autor, o
episódio parece estar deslocado que a narrativa em Lucas está ligada à
discussão de Jesus com um legis t a sobre o maior mandamento da Lei. Ora em
Mc 12,28-31 e Mt 22,24-34 essa discussão não tem lugar por ocasião da subida a
Jerusalém, mas na própria Jerusalém, na s é ri e de controvérsias que marcam a
última etapa da missão de Jesus.
Portanto, é uma parte muito relevante para o conjunto da obra do terceiro
Evangelho. Este percurso, mais do que geográfico, é um caminho teológico revelador do
modo como o Pai atua na história a partir do jeito de ser de Jesus e de constru ção da
identidade do disci pul ado maduro e convicto que descobre e assume o processo formativo
que se no seguimento incondici onal à Jesus
23
.
É fundamental perceber que a parábola do bom samaritano foi elaborada em u m
contexto coloquial, em resposta à pergunta de u m mestre da lei feita diretamente a Jesus,
que assumi u a centralid ade de todo o diálogo, constituindo, deste modo, uma das páginas
mais belas e conhecidas do te rc ei ro Evangelho. Também é importante considerar que
nenhuma parábola de Jesus, sobretudo em Lucas, surgiu do nada, mas das situações
concretas, a partir das interpelações dos seus interlocutores. Nesse caso específico, a parábola
ilustra a resposta de Jesus a um me st re da lei que, embora fosse um grande conhecedor das
Escrituras, lh e faltava a vivência do essencial, ou seja, a prática do amor fraterno.
Antes de compreender a parábola em si, é necessário conhecer o con te xt o que deu
origem a parábola. O v. 25 introduz o texto dizendo que E eis que um legista se
levantou e disse para experimentá-lo (Lc 10,25a). Lucas apresenta aqui o mesmo
verbo usado no episódio das tentações (cf . Lc 4,1-13): εκπειραζω (ekpeirazô), cujo
significado é ten tar, pôr alguém à prova. Esse indicativo é importante porque conf e re
um caráter satânico às intenções do mestre da lei, pois, tentar Jes u s, pondo-o à prova é a
atitude de satanás, conf orme a linguage m bíblica.
Conhecida as motivações maliciosas do legista, concentrem o-nos agora no conteúdo
da pergunta: Mestre, que farei para herdar a vida eterna?(v.25b). Se trata de uma
pergunta profundamente espiritual e inteligente, digna de um verdad ei ro mestre da lei.
Como era próprio da cultura rabínica responder a uma pergunta com outra pergunta, Jesus
assim o faz, e responde perguntando exatamente o que a lei do Senhor diz a este respeito:
QueestáescritonaLei?Comolês? (v.26).
22 Cf. Michel GOURGUES, As parábolas de Lucas: do contexto às ressonâncias, p.15-16.
23 Cf. Rinaldo FABRIS, O Evangelho segundo Lucas. In: Rinaldo FABRIS e Bruno MAGGIONI, Os Evangelhos II, p.12-13.
ALCÂNTARA, Marcos; PEREIRA,Anderson Costa.
Viu-o e moveu-sede compaixão:estudo hermenêutico-teológico da pabola do bom samaritano
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 51-61, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Como bom conhecedor, o mestre da lei responde prontamente combinando du as
citações da Sagrada Escritura, a saber, Deuteronômio:Amarás o Senhor teu Deus, de
todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu
entendimento(cf. Dt 6,5); e Levítico: eateupróximocomoatimesmo(cf. Lv 19,18).
Resposta própria de quem examinava a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício.
A dupla referência veterotestamentária (Dt 6,5; Lv 19,18) se usada, de
maneira diferente, nos outros sinóticos (Mc 12,28-33; Mt 22,34-40). Em
Mateus e Marcos, as duas citações estão separadas, Lucas uniu-as. Enquanto
Mateus enquadra o mandamento do amor numa intenção polêmica doutrinal,
Marcos refere-o no domínio apologético
24
.
Nas palavras de Schottroff
25
,
Entre Jesus e o intérprete da Torah ocorre um diálogo rico em conteúdo (...) O
intérprete da Torah faz de Jesus Mestre (...) O intérprete da Torah havia
recebido certa formação. Jesus é descendente de pessoas simples da Galileia (Lv
2,1-20). Ele é descrito como uma criança superdotada (Lc 2,40-52). Ele pode ler
a Torah na Sinagoga (Lc 4,1 6 -2 1) . Ele não tem uma formação como a do
intérprete da Torah. Em toda cena, o intérprete permanece aquele que pergunta
e aquele que aprende.
Teoricamente a respos t a do mestre da lei foi perfeita, tanto que o próprio Jesus
reconheceu: Respondeste corretamente; faze isso e viverás (v. 28 ) . Jesus assim
ensinava aquele mestre da lei a como agir para receber a h e ranç a da vida eterna, colocando
como prioridade o amor a Deus ao próximo e a nós mesmos. Mas, sua tentat iv a de
justificar-se demonstrava o quanto sua vida religiosa e s ta va di s tan te desses mandamentos.
Diante da insistência do mestre da Lei em querer justificar-se, Jesus conta a parábola do
bom samaritano para esc lare c e r quem é o nosso próximo e coloca a situação do próximo
ao inverso do que sempre pensamos.
Como su s te nt a Gourgues
26
, se m dúvida o verbo justificar-se (dikaioo) não deve ser
entendido aqui no sentido t e ológ i co que, aliás, Lucas conhec e mas simplesmente no
sentido de que o legista quer justificar-se de ter posto uma questão, quando acaba de
mostrar que conhecia a resposta.
2.2Jesusnarraaparábola
Pelo contexto percebe-se que Jesus narra a parábola do samaritano como resposta ao
legista após sua tentativa de just if i ca r-se . Então, Jesus aproveita a oportunidade para
apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos sobre a misericórdia, te m a esse tão
caro ao Evangelho de Lucas.
A parábola inicia-se do segu in te modo: Um homem descia de Jerusalém a
Jericó, e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado,
foram-se, deixando-o semimorto(v.30). Portant o, um homem, não identificado por
Jesus, percorria o caminho que ia de Jerusalém para J e ric ó. Apesar da distância entre as
duas cidades não ser tão grande (apenas 27 km), o texto sugere que aquele caminho era
perigoso e cheio de g rand e s obstáculos a começar pelo desnível entre as duas cidades.
Enquanto Jerusalém estava 750 metros acima do nível do mar, Jericó estav a a
aproximadamente 300 metros sob o nível do mar. De fato, um a grande descida. Além
24 Ramiro Délio B. de MENESES, O Desvalido no Caminho (Lc 10,25-37): da audição à recitação pela decisão, p. 25.
25 Luise SCHOTTROFF, As parábolas de Jesus: uma nova hermenêutica, p.159.
26 Michel GOURGUES, As parábolas de Lucas: do contexto às ressonâncias, p.18.
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disso, tinha de atravessar o deserto de Judá. Era uma estrada tão perigosa, que somente se
andava em grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto o perigo dos
assaltantes.
Impressiona-nos a atitud e do sacerdote e do levita diante do homem q ue havia sido
assaltado. Diz o texto que ca su alme nte, descia por esse caminho um
sacerdote(v.31a), ou seja, estav a voltando de Je ru s alé m, sem dúvidas do Templo após
realizar seu serviço litúrgico, portan to completamente puro, conforme as leis de pureza
da época. Porém, viu-oepassouadiante(v.30b). A mesma cena de desprezo e indiferença
do sacerdote é repetida por um levita, auxiliar dos sacerdotes no serviço litúrgico do
Templo: Igual ment eumlevita,atravessandoesselugar,viu-oeprosseguiu (v .3 2) .
Tanto o sacerdote como o levita passaram adi ant e , por quê? Por causa da Lei, pois
não podiam se sujar com sangu e , ficariam impuros e não poderiam servir a o Templo
enquanto não passa ss e a quarentena. E, certamente, aq u e le homem estava ensanguentado
devido ao espancament o. O sacerdote e o levita estavam s eg u i nd o as rubricas das leis
mosaicas. A lei estava acima da vida para a religião judaica do tempo de Jesus e, na pior das
consequências, impedia o povo até mesmo na prática do amor fraterno em tais situações.
Lucas está quebrando es ta visão legali st a, pois o que vale e agrada a Deus é a misericórdia.
Após a indif e re a do sacerdote e levita, Jesus introduz um terceiro personagem na
história, desta vez um samaritano: certosamaritanoemviagem,porém,chegoujunto
dele, viu-o e mo veu - se de compaixão (v.33).Vale destacar que os samaritanos eram
considerados pelos judeus como uma raça sincrética, impura, sem valor alg um e,
consequentemente, inimigos dos judeus. Os samaritanos não eram consi de rados apenas
estrangeiros, eles também se caracterizam como não crentes e idólatr as porque, de acordo
com 2Rs 17,6-41, resultam de uma mistura entre judeus e assírios, daí por que cultuavam
deuses pagãos .
Em 722 a.C. o Império Assírio conquistou Samaria, então capital do Reino do Norte,
e deportou a população local e trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade (cf. 2Rs
17,6-41). Os novos habitantes leva ram seus costumes e crenças religiosas para a Samaria.
Desde então, ela ficou conhecida pelo seu sincretis mo, decorrente, sobretudo, das
celebrações de matrimônios mistos entre todos os povos que habitavam aquela
cidade/capital. Outro fato histórico é que quando os judeus retornaram do Exílio da
Babilônia e começaram a reconstruir o Templo e a cidade de Jerusalém, mesmo em meio
às dificuldades , rejeitaram a ajuda oferecida pelos samaritanos, por causa da lei d a pureza,
como atesta o livro histórico de Esdras (cf. Esd 4,3-16).
Também vale ressaltar qu e no início de sua longa viagem para Jerusalém, os
discípulos de Jesus tinham sido rejeitados pelos samaritanos (cf. Lc 9, 53 ) e, logo em
seguida, Jesus apresenta um samari t ano com atitudes e comportamentos fraternos e cheio
de empatia revelados nos verbos fortes: ver, acolher , sentir compaixã o, ajudar.
Na parábola temos duas atitudes comple t ame nt e opostas.De um lado, o sacerdot e e
o levita que, ao verem a situação em que aquele homem se encontrava, preferiram ir por
outro caminho. De outro lado, somente o samaritano que viu , sentiu compaixão e
aproximou-se.A parábola remete a uma série de ações realizadas pelo samarit ano que
confirmam o seu amor pelo próximo: Aproximou-se, cuidou de suas chagas,
derramando óleo e vinho, depo is colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à
hospedaria e dispensou-lhe cuidados (v.34). Nota-se que vários verbos são usados e
todos eles são verbos de ação.
O agir do samaritano não se resume somente naquele momento: No dia seguinte,
tirou dois denário s e deu-os ao ho sp edeir o, dizendo: Cuida dele, e o que gastares a
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mais,em meuregresso tepagarei (v.35). Joachim Jeremias observa que o fato de Je s u s
surpreendentemente remet ê- lo ao agir como sendo a via para a vida, deve-se e nt e nd er a
partir igualmente desta situação concreta: todo conhecimento teológico de nada serve, se o
amor para com Deus e para com o próximo não d e te rm in ar a direção da vida
27
.
2.3Aconclusãodaparábola
Interessante o fato que a parábola foi cont ada por Jesus como resposta à perguntaE
quem é o meu próximo? (v.29), agora, ao final do di álog o, Jesus devolve novamente
uma pergunta ao mestre: Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem
quecaiunasmãosdosassaltantes?(v.36) formando uma estrutura quiástica do texto:
A. Pergunta do mestre da Lei: Quem é o meu próximo? (v.29)
B. Pergunta de Jesus: Quem se mostrou próximo? (v.36)
B. Resposta do mestre da Lei: Quem agiu com misericórdia (v.37a)
A. Resposta de Jesus: vai e faze t u o mesmo (v.37b)
Na mentalidade judaica, o próximo era o parente, o companheiro de religião e, no
máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Jesus vai inverter esta concepção mostrando
não quem é o meu próximo, mas de quem eu me faço próximo.
À pergu nt a de Jesus o legis ta responde: Aquele que usou de misericórdia para
com ele (v.37a). Para ele, este é o verdadeiro próximo. Apesar da resposta ser
indiretamente preconceituosa, pois o mestre da lei evita mencionar a pessoa do
samaritano, dizendo apenas aquele, está correta, pois revela algo jamais visto até então
da parte de um mestre da lei: atribuir a uma pessoa humana o uso da misericórdia que é
atribuído s ome nt e a Deus em todo o Antigo Testamento. Esta é a única vez em que se
atribui a um homem o uso da misericórdia tão cara a Deus
28
.
Na parábola do bom samaritano, Jesus revela o rosto do Pai. Através de um pecador,
pagão, herege, Jesus revela a face do Pai das misericórdias. Quem escuta atentamente esta
Parábola faz uma profunda experiência da misericórdia do Pai, revelado plenamente em
Jesus. Esta parábola quer, de fa to, conduzir o leitor, segundo a estratégia narrati v a de
Lucas, às três parábolas da misericórdia do capítulo 15 com a mesma força comunicativa.
A parábola lança luzes a toda experiência humana com o conselho de Jesus ao mestre
da lei: Vai,etambémtu,fazeomesmo(v.37b), ou seja, o samaritano torna-se um modelo a
ser i mi tad o pelo leitor de todos os tempos. Portanto, a força do imperativo ético serviu de
proposta ao mes tr e da lei na tentativa de abandonar todos os preceitos impostos pela
religião que impedem de se fazer o bem sem olhar a quem, isto porque é preciso ver no outro
um ser humano como condição real de possibilidade de fazer experimentar do amor de Deus.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, propomos um redimensionament o da pergunta feita por Jesu s
ao mestre da lei. A pergunta qu e se deve fazer não é quem é o meu próximo? Mas, eu
sou capaz de me tornar o próximo de qualquer pessoa?. A parábola nos provoca e
estimula a sermos presença amorosa na vida de tantas pessoas que sofrem abandonadas à
27 Joachim JEREMIAS, Parábolas de Jesus, p.202.
28 Joachim JEREMIAS, Parábolas de Jesus, p.202.
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beira do caminho. Ve r, compadecer-se e cuidar são compromissos indispensáveis à vida
cristã e devem ser reassumidos com entusiasmo por todos os cristãos, de ontem e de hoje.
É precis o perguntar-se quem é este bom samaritano da parábola. Numa primeira
leitura podemos identificar cada leitor, pois Jesus deseja realçar a importância da
proximidade amorosa que devemos manifestar uns pelos outros , ainda que não seja o
fácil assim sentir empati a pelos que se declaram nossos inimigo s.
Porém, mais do que um ensinamento moral, Jesus revela-nos a capacidade intrínseca
que cada ser humano tem dentro de si para realizar-se, participando, de forma consciente e
ousada, da história da salvação. Em uma leitura cristã da parábola, o judeu que caminha de
Jerusalém para Jericó é figura da humanidad e que desce da Cidade Santa para o lugar da
perdição. Neste itinerário, o homem (a humanidade) é atacado por assaltantes (o pecado
de Ad ão e Eva), que quase lhe rouba a vida. O sacerdote e o levita - ou seja, os profetas do
Antigo Testamento - nada podem fazer de verdadeiramente eficaz para salvá-lo. Então, é
do samaritano - imagem de Jesus - que vem o auxílio redentor. Depois de socorrê-lo, esse
samaritano o encaminha para uma hospedagem - a Igreja -, onde poderá receber o devido
tratamento (os Sacramentos).
A leitura atenta e profunda que realizamos nos levou a perceber e a desco bri r que é o
próprio Jesus que se faz o próximo (bom samaritano) da humanidade. Ele veio libertar
toda a humanidade sofredora, vítima do próprio sistema totalment e descontrolado que está
assaltando e espancando com crueldad e e sem misericórdia. Por ter entranhas de
compaixão, Ele se aproxima, cuida, carrega, ou seja, Jesus repet e tais at i tu de s com toda
humanidade e revela que o Pai deseja dar o Reino ao seu pequenino rebanho (cf. Lc 12,32).
Portanto, Lucas revela através da sua es trat é g ia narrativa parabólica, que Jesus
revoluciona o pensamento religioso, polít ic o e social do seu tempo e de todos os tempos,
quando relativiza a lei mosaica da pureza, da teologia d a re t ri bu ão, quando questiona o
sistema que exclui e marginaliza, quando revela a hipocrisia relig io sa e pessoal.
Permitamos que a força comunicativa da parábola do Bom Samaritano cure nossos
corações de todo preconceito e indiferença; abra nossa mente à compreensão de que
ninguém se salva sozinho e nos faça realmente sentir a alegria potencializada em todos os
gestos de solidariedade e serviço incondicional a quem mais precisa, a exemplo do homem
anônimo da parábola que encontrou no bom samaritano a presença amiga e solidária do
próprio Cristo Jesus.
REFERÊNCIAS BIBL I OG RÁFI CAS
BÍBLIA d e Jerusalé m. Revist a e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
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MAZZAROLO, Isidoro. Lucas: a an t rop olo g ia da salvação. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2004.
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Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
R
UTE
Para onde fores, irei também! (1,16 )
R
UTH
Where you go I will go (1,16 )
Jair Carlesso*
Resumo: O pre se nt e artigo aborda o livro de Rute, provavelmente
memória feminina, conte xt u ali zando-o literariamente, historicamente e na
liturgia judaica. Trata-se de um livro proveniente da vertente sapiencial,
embora não situado entre os Sapienciais. O significado dos nomes dos
personagens bem como a relação entre eles no percurso narrativo
constitui-se numa leitura da realidade do povo no contexto pós-exílico do
domínio persa. O autor, anônimo, quer ajudar os pobres de sua época a
encontrarem uma saída diante do contexto de exploração persa, que não se
encontrava na Lei de Esdras, mas no resgate de algumas leis clânico-tribais,
como a da respiga e do direito de resgate, trazidas para dentro de um novo
momento histórico. O livro faz ver que a solução para a situação do povo
era fruto de um processo, que implicava consciência histórica, resgate dos
direitos s oci ai s e a posse da terra, efetivada com o casamento de Rute com
Booz.
Palavras-chave: Fome. Mi g raç ão. Respiga. Direito de resgate. Casamento.
Abstract: This article discourses about the book of Ruth, probably a female
memory, contextualizing it literarily, historically and in the Jewish liturgy. It is a
book from the sapiential aspect, although not located among the Sapi e nt ials . The
meaning of the names of the characters as well as the relationship between them in
the narrative path constitutes a reading of the reality of the people in the post-
exilic context of the Persian domain. The author, anonymous, wants to help the
poor of his time to find a way out in the context of Persian exploitation, w hi ch was
not found in the Law of Ezra, but in the recover of some clan-tri bal laws, such as
that of gleaning and the right to redeem, brought into a new historical moment.
The book shows that the solution to the si tu at i on of the people was the result of a
process, whic h implied hi s tori c al awareness, redemption of social rights and the
possession of land, effected with the marriage of Ruth and Booz.
Keywords: Hunger. Migration. Gleaning. Redemption right. Marriage.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 62-77, Jan./Jun./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.36
* Possui Graduação em Teologia pelo
Instituto de Teologia e Pastoral (1987).
Graduação em Filosofia - Faculdade de
Ciências Humanas Arnaldo Busato (1988).
Pós-Graduação em Teologia Bíblica,
habilitação em Metodologia do Ensino
Bíblico pela Universidade Católica de Pelotas
e Instituto de Teologia e Pastoral de Passo
Fundo - ITEPA (1992). Mestrado em
Teologia Dogmática com Concentração em
Estudos Bíblicos pela Pontifícia Faculdade de
Teologia Nossa Senhora da Assunção (2000).
Pós-Graduação em Metodologia Pastoral pela
Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões - URI (2009).
E-mail: pjcarles so@ yahoo. c om.br
https://orcid.org/0000-0002-1378-9288
Recebido em 07/10 /2 0
Aprovado em 06/01/21
63
INTRODUÇÃO
Ostextosbíblicos foram escritospara serem lidos e,por conseguinte, interpretados. Por isso,
cada leitura faz brotar um manancial inesgotável de sentidos. Sem leitores e leitoras intérpretes
- pessoas e comunidades -, os textos blicos permaneceriam letra morta. Lidos e interpretados,
m a força de se tornarem Palavra de Deus
1
. Assim é que deve ser entendido o pequeno livro
de Rute, portador da Palavra Viva de Deus, tanto no ontem quanto no hoje da hisria.
O livro de Rute relata, de forma sintética, uma história f ami li ar. Trata-se da
trajetória de uma família que precisou migrar para fora da Terra Prometida a fim de
sobreviver
2
. O cenário onde a história acontece é o campo. A maior parte desta história se
no tempo das colheitas. Pela importante atuação das mulheres no percurso narrativo,
provavelmente o livro seja memória femin in a. É uma história muito fina, inteligente,
cheia de surpresas, do começo ao fim, contada por uma pessoa que sabia dar o seu recado
3
.
Três personagens dominam as cenas do livro. Noemi e Rute formam um primeiro
par, central nos capítulos 1 e 2. Ru t e e Booz formam um segundo par, que tem destaque
nos capítulos 3 e 4. Entre todos os personagens h á uma relação de amizade,
comprometimento, cooperação, partilha e busca de solução.
Sua estrutura, em quatro capítulos, sugere que possa ter sido primeiro um cont o,
transmitido oralmente. Os três primeiros capítulos começam e terminam com referências ao
tempo das colheitas. O quarto relata um casamento, ao qual se acrescenta uma genealogia.
Proveniente da vertente sapiencial, o li vro de Rute resgata alguns princípios
fundamentais da v id a clânico-tribal da época d os juízes (1200 a 1030 a.C.) para fortalecer a
luta e a resistência do povo pob re na época persa (538 a 333 a.C.). Ao mesm o tempo,
conforme Patríci a Z. R. Martins,
estamos diante de uma história atual, que nos coloca em contato com o drama
da migração de tantas pes s oas que fogem de seu s países não devido as guerras
que matam e d e st roe m, mas também por causa da pobreza e da impossibilidade
de prover e assegurar o futuro das suas famílias. Hoje, assim como no tempo de
Rute e Noemi, tantas pessoas famintas, marginalizadas e excluídas por
sistemas políticos, econômicos e religiosos que massacram os mais pobres em
vista dos interesses dominantes. A história dessas mulheres permanece atual,
seu heroísmo convida o leitor de h oje a não se conformar com as injustiças
sociais que lhe são impostas por qualquer sistema que se mostre opressor
4
.
Se fome na terra sempre foi um problema sério, fome em cas a de viúvas é uma
situação gravíssima. Elas [Noemi, Orfa e Ru t e ] enfrentaram crises como as nossas que
ameaçam diariamente a sobrevivência [...]. Um esgotamento de forças, de emoções, mas
não de esperanças. Essas viúvas nos mostram que enquanto vida esperança
5
.
1 OCONTEXTO DO LIVRO DE RUTE
Para a c ompre e ns ão do livro, de se levar em conta o contexto literário, sua
localização na Bíblia, seu contexto h i st óri co e também trazemos alguns aspect os de sua
leitura na tradição judaica.
1 Jaldemir VITÓRI O , A narratividad e do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, n.98, p.85.
2 Patrícia Z. R. MARTINS, Deus visitou o seu povo dando-lhe pão: a luta pela sobrevivência no livro de Rute, In:
Estudos bíblicos, v.35 , n.137, p.58 .
3 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.4 .
4 Patrícia Z. R. MARTINS, Deus visitou o seu povo dando-lhe pão: a luta pela sobrevivência no livro de Rute, In:
Estudos bíblicos, v.35, n.137, p.58-59 .
5 lia Dias MARIANNO, Sogra e nora: parceiras? Viúvas e estrategistas sobrevendo à fome (Rut), In: Ribla, v.66, p.117.
CARLESSO, Jair.
Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 62-77, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
64
1.1OcontextoliteráriodeRute
Na Bíblia Hebraica, o livro de Rute está si tu ad o entre os Escritos, em hebraico, os
Ketubim. Encontra-se entre o livro dos Provérbios e o livro de Cântico dos Cânticos. Sua
colocação dentro do cânon hebraico, depois do livro dos Provérbios e ante s do Cântico dos
Cânticos, parece te r sido proposital. uma relação de contin u id ade entre a mulher
forte (eshet hail) de Pr 31,1 0 e a de Rt 3,11. Nos dois relatos, uma mulher decidida e
forte, capaz de administrar e defender a casa dela e garantir o futuro do seu povo. Além
disto, a mulher que aparece na primeira coleção do livro dos Provérbios (Pr 1-9), a
mulher sábia que aconselha seu filho (Pr 31,1-9) e a mulher f ort e q u e administra a sua casa
com competência (Pr 31,10-3 1) estão concretizadas, embora com formas literárias
diferentes, na história contada pelo li vro de Rute
6
.
também elementos que ligam Rute com Cântico dos Cânticos, como a casa da
mãe (Rt 1,8 e Ct 3,4; 8,2). Há, portant o, entre estes livros uma linguagem comum. Nos
dois livros ( Ru t e e Cântico dos Cânticos) a mulher tem a palavra, age com autonomia e
busca cond uz ir sua vida de maneira sábia, além de, nos dois livros, haver cânticos de
mulheres (Rt 4,14-15)
7
.
Na Bíblia Grega - a Septuaginta, na Bíblia Latina - a Vulgata, e nas traduções
modernas da Sagrada Escritura, o livro de Rute encont ra-s e entre os livros Históricos de
Juízes e 1Samuel. O objetivo da Septuaginta é dar uma ordem cronológica aos conteúdos.
Isso s e deve ao fato de Rute, em 1,1, iniciar mencionando o tempo em que os juízes
governavam e, em 4,17, re lat ar que o filho de Rute, Obed, foi pai de Jessé, pai de Davi, e
o v. 22 encerra o livro dizendo: E Obed gerou Jessé e Jessé gerou Davi. Por isso a Bíblia
Grega o situa entre Juízes e 1Samuel.
1.2OcontextohistóricodeRute
Pela narrativa inicial do text o (1,1) e por suas palavras finais (4,17.22), o livro de
Rute, por muito tempo, foi considerado um livro que tratava do período pré-monárquico,
época dos juízes.
Por sua vez, a data em qu e o livro foi e sc ri to não é uma que s tão totalmente
resolvida, mas muitos argumentos em favor da época pós-exílica, quando Ju estava
sob domínio pers a. Ao mesmo tempo, além de ter sido escrito na época persa, o livro
estaria tratando de problemas típicos da comunidade judaíta na época persa. Por isso,
vários especialistas situam o li vro por volta de 450 a.C
8
. Para Mesters, ele foi escrito em
torno do ano 450 antes de Cristo, isto é, mais ou menos 100 anos depois do fim do
cativeiro
9
. Neste contexto ocorreu a profecia de Malaquias (460 a.C.), a reforma de Esdras
(458 a.C.) e de Neemias (445 a.C.).
Esdras, Neemias e M alaquias centrara m suas preocupações na observânci a da Le i
e nela, o cul to e a p roibição dos casamentos mis tos: Ren dei graça s a Ja, o Deus dos
vossos pais, e executai a sua vontade sep arando-vos dos povos da terra e das mulheres
e strangeiras (Esd 10,11). Parece não se preocuparem com o contexto de escravização
do povo pela política persa. Am de defenderem uma pos tura de fechamento de Israel
aos povos estrangeiros, tidos como impuros, com os quais não deveria haver nenhum
tipo de rel ação. A estes comport amentos contrários aos estrangeiros, o livro de Rute
6 Mercedes LO PE S, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.89.
7 Mercedes L O PE S, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.90.
8 Airton José da SILVA, Leitura socioan tr opológ ic a do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.111.
9 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.18.
CARLESSO, Jair.
Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
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rompe com o conto de uma moabita que se torna uma exemplar fiel a Iahweh e
antepassada de Davi
10
.
O relato de Ne 5,1-5 descrev e a sit uação do povo nesta época. O tex to aprese nta-
se como o grito dos pobres, pois eles precisavam penhorar os filhos/ as, os campos, as
vinhas, as casas e tomar dinheiro emp restado p ara p oder comprar trigo, comer,
sobreviver e pag ar os tributos ao rei. Era um povo reduzido à escravidão - te mos que
e ntregar à escravio nosso s fil hos/as (v.5); tornad o impotente - não podemos fazer
nada (v.5) e jogado na pobreza - nos sos campos e nossas vinhas pertencem a out ros
(v.5). O context o histórico-social percebido em Rute faz ver um tempo de fome,
migrão, pobreza e falta de esperança [...]. Os problemas básicos eram: terra, pão e
f amília
11
.
Diante deste complexo contexto, havia diversas propostas de rec ons t ru ção do pov o,
com a finalidade de garantir a identidade israelita, desfe i t a com o exílio babilônico e o
desencadeamento da diáspora judaica. Segundo A i rton José da Silva e Carlos Mes te rs
12
,
destacavam-se três:
- a de Zorobabel e Josué, com o apoio de Ageu e de Zacarias: ligada à reconstrução
do Altar e do Templo de Jerusalém, como centro da vi da religiosa e também social (Ag 1,1-
15a; Zc 4,1-6.10-14; E sd 3,1-13); t rat a-se da reconstr ão do povo em torno do culto;
- a de Esdras: lig ada à organização da comunidade judaica em torno da observância
Lei mosaica (Esd 9-10; Ne 8,1-18), q u e , dentre outras prescrições, rompia qualquer relação
com o estrangeiro, por isso a dissolução dos casamentos mistos;
- a de Neemias: ligada à reconstrução da cidade de Jerusalém e de suas m u ralhas ,
além de pedir aos ricos devolverem terras alienadas e perdoar dívidas de agricultores
empobrecidos (Ne 5,1-19); tratava-se da recons tr ão do povo a partir da observância da
lei do ano jubilar.
Estas propostas não foram aceitas pelos autores do livro de Rute, pois não
propunham mudanças estruturais, antes, est av am em sintonia c om a política impe rial
persa. A teologia da retribuição, defendida por Esdras e Neemias, era a ideolog i a que
favorecia a política persa, pois isentava o império das re ai s responsabilidades pela situação
de empobrecimento e escravidão do povo. Por isso, diante deste contexto, o livro de Rute
aparece como uma grave denúnc i a da grande disciplina. Ele é um convite a buscar outros
caminhos, um exemplo vivo de criatividad e
13
.
O livro de Rute não faz nenhuma referência a o templo, a Jerusalém, ao culto, aos
sacerdotes. Diante do contexto em que foi escrito, resgata as leis clânico-tribais, sufocadas
pela ideologia persa, mas que garantiam os direitos dos pobres e abriam uma perspectiva
para a inclusão das mulheres estrangeiras .
Rute era uma mulher estrangeira que, conforme a reforma de Esdras, não teria
espaço em Israel. No livro, ela é uma mulhe r forte, que colabora com a construção do
povo explorado, investindo su a vida nisto. Este liv ro é uma resposta ao contexto de
destruição do povo de Israel pelo império persa através de lideranças israelitas cooptadas
para atuarem em favor da política persa.
Com a deportação babilônica, o povo perde u tudo e teve que se organizar em outras
bases. No pós-exílio, a identidade do povo foi sendo construída em torno da memória. E
10 Mercedes LOPES, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.91.
11 Lília Dias MARIANNO, Sogra e nora: parceiras? Viúvas e estrategistas sobrevendo à fome (Rut), In: Ribla, v.66, p.118.
12 Airton José da SILVA, Leitura socioantropológica do livro de Rute, In: Estudos bíb licos, v.98, p.117-118; Carlos
MESTERS, Rute , uma história da Bíblia, p.23-25.
13 Carlos MESTERS, Casos de imaginação criativa, In: Estudos bíblicos, v.42, p.23.
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Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
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a narrativa de Rute foi uma das histórias perpetuadas na memória do pov o israelita que
foi guardada e transmitida, oralmente, por vários sécu los , até ser escrita
14
.
1.3OlivrodeRu tenaliturgiajudaica
Segundo o rabino Leonardo Alan ati , da Congregação Israelita Mineira, toda vez que
lemos a Torá em público rezamos para que Deus a entregue no pre s e nt e , e não no passado,
porque quando alguém aceita seus ensinamentos e mandamentos, Deus a transmite c omo
no Monte Si nai . Entende -s e , portanto, que a revelação divina é contínua e não um
evento acabado, que ocorreu nos primórdios da formação de Israel
15
.
Para o rabino, a importância e a popularidade dos textos bíblicos são demonstradas
na escolha das partes a serem usadas na liturgia. Lemos a Torá na íntegra durante o
período de um ano (algumas sinagogas durante três anos). L em os seleções dos Neviim
[Profetas] após a lei tu ra da Torá nos sábados e nas festas judaicas. Por sua vez , apenas
cinco livros da terceira parte da Bíblia Hebraica e diversos salmos são incluídos na liturgia.
O livro de Rute foi selecionado para s e r lido na festa de Shavuot, ou das Semanas, ou do
Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa
16
(Dt 16,9-12 ), lembrando a e nt re g a da Lei no
monte Sinai
17
.
2 ORGANIZAÇÃO L IT E RÁR I A DE RUTE
O livro, no se u todo, menos o acréscimo final (4,18-22), é uma unidade inteiramente
coerente. Com análi se s e enfoques próprios, tanto Carlos Mesters quanto Ai rt on José da
Silva trabalham com a mesma estruturação do texto. A estrut ur ação c onc ê ntr ic a de
diversas subunidades do relato ajuda a perceber os aspectos centrais das referidas partes.
Para auxiliar em nossa análise, apresentamos essa proposta:
-Quadroinicial:1,1-5>crise:faltapão,terra,filho
a) 1,1-2a: Elimelec e a família migram para Moab
b) 1,2a-3: chegada em Moab e morte de Elimelec
c) 1,4-5a: casamento e morte dos filhos: 10 anos
d) 1,5b: Noemi ficou com as noras
-passo:1,6-22>voltaraBelémembuscadepão
a) 1,6-7: introdução: começ o e motivo da volta
b) 1,8-14: lamento de Noemi com as noras
c) 1,15-18: Rute opta ficar com Noemi e voltar a Belém
b) 1,19-21: lamento de Noemi com mulheres de Belém
a) 1,22: conclusão: termin a a volta, tempo da colheita
-passo:2,1-23>recuperarodireitodarespig a
a) 2,1-2: introdução: Rute e Noemi planejam a ação
b) 2,3: Rute respiga no campo de Booz
c) 2,4-7: diálogo de Booz e empregados sobre Rute
d) 2,8-14: conversa entre Booz e Rute
14 Maria Aparecida de CASTRO, Rute, símbolo da força feminina, In: Estudos bíblicos, v.29, n.114, p.113.
15 Leonardo ALANATI, Releituras rabínicas do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.75.
16 Os demais livros são: Cântico dos Cânticos, na festa da Páscoa; Eclesiastes, na festa dos Tabernáculos; Lamenta çõe s , no
aniversário da destruição do Templo; e Ester, na festa dos Purim.
17 Leonardo ALANATI, Releituras rabínicas do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.72.
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c) 2,15-16: diálogo de Booz e empregados sobre Rute
b) 2,17: Rute respig a no campo de Booz
a) 2,18-23: conclusão: Ru te e Noemi revisam a ação
-passo:3,1-18>anoitenaeira:recuperarodireitoderesgatedaspessoas-levirato
a) 3,1-6: Noemi e Rute planejam a ação
b) 3,7-8: Booz e Rute na eira
c) 3,9-13: diálogo entre Booz e Rute sobre o resgate
b) 3,14-15: Booz e Rute na eira
a) 3,16-18: Noemi e Rute revisam a ação
- passo: 4,1-12 > o tribunal à porta da cidade: recuperar o direito de resgate
daterra-goelato
a) 4,1-2: constituição do tribunal
b) 4,3-4: Booz informa o Fulano e ele aceita resgatar a terra de Noemi
c) 4,5-8: o resgate da terra implica no resgate da pessoa, casar com Rute: e ele se recusa
b) 4,9-10: Booz informa o tribunal e aceita resgatar a terra de Noemi
a) 4,11-12: o tribunal ratifica a decisão de Booz
-Quadrofinal:4,13-22>casamento:pão,terra,filho
a) 4,13: casamento de Booz e Rute e nascimento de Obed
b) 4,14-15: aclamação das mulheres
c) 4,16: Noemi assume Obed como seu filho
d) 4,17: proclamação das mulheres
e) 4,18-22: apêndice
3 OTEXTO E A PROPOSTA DE RUTE
O que é importante levar em conta na leitura do livro de Rute? Um texto transmite sua
proposta a partir de seu conteúdo e estruturação interna, a partir de seu contexto de origem e
também a partir de sua linguagem. Rute é uma ficção, e melhor dizendo, é uma novela.
Como novela, independentemente da época em que foi ambientada, tenta retratar aspectos
da vida cotidiana. Diante disto, pode-se dizer que Rute é uma novela, ambientada na época
dos juízes, que retrata a situação de vida das mulheres no período s-exílico. Está recheada
de muitas tradições antigas das tribos de Israel e que foram sendo preservadas através dos
séculos. Certamente que muitas destas tradições estavam sendo esquecidas e é em defesa da
vida que os protagonistas resgatam estas antigas leis. Rute é a verdadeira heroína desta
história resgatando para Noemi a alegria da vida e dando a esta uma descendência
18
.
Rt1,1-5 :arealidadedopovosobospe rsas
O livro de Rute inicia apontando um contraste: em Belém, a casa do pão, havia fome,
pois faltava pão. Ao afirmar que não h avi a pão na cas a do pão, se está indicando que
algo errado. Para escapar da fome, a saída da pe q u e na família é partir para Moab, que na
época dos juízes chegou a ser um inimigo de Israel (Jz 3,12-30)
19
. Nem a reforma de
Esdras e nem o profeta M alaq u i as estavam preocupados com isto. Par a eles o problema
maior parecia ser a questão dos casamentos mistos e propunham sua ruptura como saída.
Rute inici a, portanto, mostrando haver um grave problema na sociedade.
18 José Josélio da SILVA, Rute e Noemi, o resgate das leis na defesa das relações afetivas e a união civil entre pessoas do
mesmo sexo, In: Estudos bíblicos, v.87, p.48-4 9 .
19 Mercedes LOPES, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.97.
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Os problemas vivi do s por essa família a pont am para a situação do povo de Judá na
época persa e ao longo da história. O signific ado dos nomes ajuda a identificar essa
questão
20
. Era um povo sem pão e sem terra, enfermo (Maalon) e frágil (Quelion), que
vivia errante. Elimelec e Noemi, com os filhos, migraram por causa da fome. Migraram em
busca de pão, de sobrevivência. Essa história le mbra a de Abraão e Sara, que também
migraram por causa da fome (Gn 12,10), e a de Jacó e seus filhos: Viemos habitar nesta
terra porque não mais pastagem para os rebanhos [...] e a fome, com efeito, assola a
terra de Canaã (Gn 47,4). Além disto, relata o Gên e si s: Não havia pão em toda a terra,
pois a fome tor nara-s e muito dura e a terra do Egito e a terra de Canaã desfaleciam de
fome (Gn 47 ,1 3 ). A morte de Elimelec, Maalon e Quelion, os três homens e maridos,
indica que eles repres e nt am um povo que perdeu todas as forças e seguranças.
Para o povo explorado da época persa, o livro de R u te apresentou-se como um
convite à esperança. Como no passad o, no tempo de Abraão, de Jacó, de Moisés, Deus
continua libertando h oje e, como no passado, o povo não pode se acomodar na miséria,
achando que não pode ou que não adianta fazer nada. Rute aponta para a continuidade da
história.
O relato de 1,1-5 indi ca que Noemi ficou sozinha, sem filhos e sem marido. Sem
filhos significa sem futuro e sem marido indica sem segurança. Ela é figura do povo que
havia ficado órfão. Seu presente era sofrimento e dor. Naquele contexto, assim se
expressou Jó: Por que não fechou as portas do ventre para esconder à minha vi s ta t ant a
miséria! (Jó 3,10); Por que foi dada a luz a quem o trabalho oprime e a vida a quem a
amargura aflige! (Jó 3,20). Sem o marido e sem os filhos, Noemi ficou somente com a
companhia das noras. Isto indica que os pobres, em todos os tempos, têm apenas a
companhia dos pobres, sem nenhuma garantia de futuro, sem nenhu ma segurança.
O relato retrata um povo sem pão (fome), sem terra (m ig ran te ) , s e m saúde (doença),
sem forças (fraco), sem companhi a (ficou só), sem vida (morto). Trata-se de u ma realidade
de total desamparo. Para o livro de Rute, a saída não se encontrava no proje to de Esdras,
Neemias e de Malaquias e, por outro lado, não podia ficar acomodado, achando que a
solução viesse por si! Muitos diz ia m: Não podemos fazer nada! (Ne 5,5). O que fazer,
então? Na sequência, o livro de Rute aponta quatro passos importantes.
1º)Rt1,6-22:voltarparaBelém
A viuvez das três mulheres exige uma tomada de decisão. O que fazer? A judaíta
Noemi, inf ormad a de ter passado o tempo de penúria no país natal, opta por voltar
21
. É o
que descrevem os v.6-7. Eles apontam para uma abertura de horizontes, pois uma nova
consciência: Deus visitou seu povo dando-lhe pão (v.6b). Diante desta possibilidade,
Noemi tomou a decisão de voltar para Judá, de sair dos Campos de Moab, de pôr-se a
caminho, voltar para Bem. O livro de Rute mostra, assim, a itinencia da vida. Ao mesmo
tempo, encontramos aqui a temática do êxodo. Trata-se de um novo êxodo: Deus visitou
o seu povo e o fez caminhar, impulsionando-o a fazer algo em vista de um futuro melhor.
Nos v.8-14, Noemi sentiu-se abatida, velha, sem esperança, amargurada. Ela teve um
carinho muito grande para com as noras. Chamou-as três vezes de minhas filhas
(v.11.12.13). Pela bondade com que elas trataram seus maridos, Noemi desejou-lhes o
melhor: voltai cada qual para a casa de sua mãe (v.8) e cada uma possa encontrar
descanso na casa de um marido (v.9). Noemi queria que elas volta ss e m para o seu povo e
se casassem novamente. Significa que ela não pensa em si mesma, mas se preocupa pelo
futuro das duas jovens [...]. À ternura com que Noe mi sente pelas jovens mistura-se a
20 Carlos MESTERS, Casos de imaginação criativa, In: Estudos bíblicos, v.42, p.23.
21 Jaldemir VITÓRIO, A narratividade do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.86.
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amargura por não poder ajudá-las a sair daquela situação de vi uv e z e de desamparo na qual
ela mesma se encontrava (1,13)
22
. Orfa acolheu seu recado: voltou (v.14).
Os v. 15-18 for mam o centro dessa subunidade. Ao decidir ficar com Noemi e com
el a ir/voltar a Be lém, Rute fe z a maior opção de sua vida. Essas palavras são centrais:
N ão insistas comigo para que te d eixe, pois para onde fores, irei também; onde for tua
moradia, ser á também a minha; teu povo será o meu povo; e teu Deus se o m eu Deus.
On de mo rreres, quero morr er e ser sepultada. Que Javé me mande este castigo e
acrescente mais e sse, se ou tra c oisa, a o ser a morte, me sepa rar de ti (v.16-17) . Ao
ou vir essas palavras, Noemi teve a certeza de que não estaria mai s desamparada. Rute
assumiu, não somente a sogra, mas o povo de Noemi, com sua hi sria e cultura , com
su a tradição e situação, com sua fé e seu Deus. Ela fez est a opçã o antes de ir para lá e
antes de conhecê-lo. Rute entre gou sua vida em vista da reconstrução de um p ovo
es trangeir o - para ela -, que e la ass umiu como próprio , deixando a possibilidade de ter
um esposo e viver tranq uila em seu país.
Rute assumiu um povo que se encontrava numa situação crítica, de fome, fraqueza,
morte. O povo de Noemi não tinha futuro. Rute abandonou tudo para seguir Noemi,
fazendo com ela uma aliança pela vida de seu povo, assumin do sua história, suas tradições
e seu Deus. Rute fez a opção por um povo entregue à morte.
Para Mesters, o motivo da opção de Rute por Noemi é o amor. Seg u ndo ele, não
nenhum lucro nem ganho em vista, pois optar por um povo entregue à morte não traz
vantagem alguma. Pelo contrário, esta opção leva Rute a renunciar a tudo aquilo que faz a
alegria da vida dos outros: casa e marido (1,9.13)
23
.
Os v. 1 9-2 1 mostram que Noemi e Rute saíram de Moab e chegaram a Belém.
Lembra a viagem de Abraão e Sara de Harã a Canaã (G n 12,5). Não se diz nada da viagem.
Noemi parece não perceber os sinais de esperança. Ela é como Sara, velha, sem filhos,
descrente. Por não consegu i r ver futur o, disse que sua vida era amargura.
O v.22 relata a chegada em Belém. Esta se deu no começo da colheita da cevada.
Portanto, esperança nova à vista. Chegaram a Belé m com dois grandes problemas: a vida
delas, pois para viver precisavam comer; e a descendência e o futuro delas, que depe ndi a da
constituição de uma famíli a.
2º)Rt2,1-23:recuperarodireitodarespiga
Os v.1-3 iniciam relatando que Noemi tinha um parente, por parte de seu marido,
que se chamava Booz, nome que expressa amparo, fortaleza. Neste novo contexto, Rute
tomou a iniciativa de respigar, declarando-se decidida a lutar pela subsistência. Dedicou-
se à tarefa de respigar grãos, segundo o direito em voga, no tocante aos pobres, órfãos e
viúvas (2,2)
24
. Conforme as leis clânico-tribais, a respiga era direito dos pobres, viúvas e
estrangeiros. O Deuteronômio é muito claro em relação a isso (Dt 24,19-22), estando essa
lei também prescrita em Lv 19, 9 -10 e 23,22. E por ser pobre, viúva e estrangeira, Rute foi
respigar nos campos de Booz.
Nos v.4-7, Booz, pessoa importante (v.1), dono da terra, chegou de Belém e, ao ver
Rute, perguntou aos empregados: Quem é essa jovem? (v.5). Estes deram-lhe boas
referências: é a moabita que voltou com Noemi (v.6). Além disto, ela pediu permissão
para poder respig ar, respeitando o proprietário (v.7a) e demonstrava-se trabalhadora
incansável (v.7b). Rute lembra as mulheres estrangeiras, expulsas por Esdras, e Noemi é
22 Paulo F. VALÉRIO, Teu povo será meu povo, teu Deus s e meu Deus - A amizade fraterna: caminho de superação
dos limites das religiões e das culturas no livro de Rute, In: Reb, v.74, n.294, p.369.
23 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.42.
24 Jaldemir VITÓRIO, A narratividade do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.87.
CARLESSO, Jair.
Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
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referência do povo abandonado. A sobrevivência imediata das duas dependia da respiga,
que era seu direito.
O relato de Rt 2,7 a ente nd e r que este costume havia acabado e as pessoas que
respigavam tinham que pedir para fazê-lo, como se fosse uma esmola. Para além disso,
nem sempre eram re spe i t adas (2,9.16). Portanto, a ação de Rute abre uma brecha na
organização da produção agrícola da época. Tudo isso acontece por causa de uma relação
criada en tre Rute e Booz. Ao se conhecerem no campo, algo inesperado aconteceu. Parece
que, ao ver Rute, Booz se encant a. É a partir d e st a experiência que Booz re-interpreta e
põe em prática a antiga lei que defendia o direito dos pobres
25
.
Os v.8-12 re v e lam que Booz gostou de Rute. Diante de tudo o que ela havia feito por
sua sogra, Booz ofereceu-lhe prot e ção , possibilidade de respigar e água. O motivo s e deve
porque Rute fizera a opção de não deixar Noemi só, no des amparo. Isso sensi bi liz ou
profundamente Booz, que lhe disse: Que Javé te retribua o que fizeste e que recebas uma
farta recompensa da parte de Javé, Deus de Israel, s ob cujas asas vieste buscar refúgio!
(v.12). Como Abraão e Sara, Rute deixou sua terra, sua mãe, sua casa, seu povo e a
possibilidade d e um novo casamento para dedicar-se a Noemi.
Nos v.13-14, Rute sentiu-se bem ac olhi da por Booz. Este não levou em conta os
preconceitos existentes em Israel em re laç ão à s mulheres estrangeiras e nem o que a Lei de
Moisés prescrevia (Dt 7,3-4; Esd 9,1-2.12; 10,10-11; Ne 10,31) e lhe falou benignament e .
Naquela circunstância, Booz representava os israelitas. Num contexto de rejeição das
mulheres estrangeiras, Rute fora bem acolhida por Booz, isto é, em Israel, tendo oferecido
uma farta refeição com ele: Depois de ter comido à vontade, ainda sobrou (v.14c).
Assim que acabara a refe ão, Rute, mulher de luta e tendo consciência de sua
condição e da responsabilidade que assumira c om Noemi, retornou a respigar e Booz lhe
proporcionou mais que uma simples respiga. Foi uma partilha, pois ela não colheu apenas
as sobras (v.15-17). O seu direi to foi respei t ado além do que a lei exigia
26
.
Ao retornar para casa, Noemi e Rute avaliaram o processo. Com a possibilidade da
respiga, o problema da fome estava soluci onad o, por hora, embora não fosse ainda uma
solução estrut u ral, pois continu ar respigando si g ni f ic ava continuar se nd o dependente.
No começo da históri a, não havia esperança (1,5). No fim do primeiro passo,
havia s i nai s de esperança, mas Noemi não os enxergava (1,20-21). Agora, no
fim do segundo, Noemi começa a enxergar. De dentro dos fatos surgiu a
solução: Booz tem o direito de resgate sobre nós (2,20). Com esta luz, Noemi
orienta Rute e planeja o terceiro passo
27
. Abre-se um novo horizonte.
Asleisdoleviratoedogoelato
O Código Deuteronômico apresenta a lei do levirato (Dt 25,5- 10 ) e a Lei da
Santidade trata da lei do resgate das pessoas, em caso de empobrec im e nt o (Lv 25,35-46), e
do resgate das terras, chamadas lei do goel ou goelato (Lv 25,23-34). Essas leis estão ligadas
ao ano jubilar. Os capítulos 3 e 4 de Rute est ão entrelaça dos com essas leis, por isso,
retomamos o sentido das mesmas.
a) Lei do levirato
A palavra levirato, do latim levir, é a t radu ç ão do termo hebraico yabam: cunhado. No
Antigo Testamento essa lei é ilustrada por dois exemplos: a história de Tamar (Gn 38) e a
de Rute. Assim presc re ve a Lei deuteronômica:
25 Mercedes LOPES, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.98.
26 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.54.
27 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.54.
CARLESSO, Jair.
Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
Revista Teopráxis,
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Quando dois irmãos moram jun tos e um deles morre, sem deixar filhos, a
mulher do morto não sai para casar-se com um estranho à família; seu
cunhado virá até ela e a tomará, cumprindo seu de ve r de cunh ado. O
primogênito que ela der à luz tomará o nome do irmão morto, para que o nome
deste não se apague em Israel (Dt 25,5-6).
A sequ ê n ci a do relato (Dt 25,7-10) determina o que deveria ser f e i t o àquele que,
porventura, não aceitasse cumprir o dever de cunhado: a) diante de sua recusa, a vi ú va
devia levar o cas o aos anci ãos junto à porta da cidade (v.7); b) os anciãos deviam convocar
o cunhado dela e tentar convencê-lo desta responsabilidade (v.8); c) este não aceitando, na
presença dos anci ãos, sua cunhada tirar-lhe-ia a sandália do seu pé, cuspiria em seu rosto e
deveria dizer a ele: É isto que se deve fazer a um homem que não edifica a casa do seu
irmão! (v.9); d) este levaria o apelido de casa do descalçado (v.10).
Tendo um filho com a cunhada, a propriedade do irmão falecido passaria para este
filho, não havendo co nce n traç ão de terra numa única pessoa - no caso, do irmão vivo, ao
qual passaria a terra -, e o nome do falecido não se apagaria da memória. Para De Vaux,
a razão essencial [de s ta lei] é a de perpetuar a descendência masculina, o nome,
a casa, e é por isso que a criança (provavelmente a primeira) de um
casamento levirático é consi de rada filha do falecido. Não é somente um motivo
sentimental, é a expressão da importância dada aos laços de sangue. Uma razão
concomitante é a de evitar a transfe nc i a dos bens da família. Essa
consideração aparece em Dt 25,5, que põe como condição do levirato que os
irmãos vi vam juntos, e, na história de Rute, ela explica que o direito de resgate
da terra esteja liga do com a obrigação de casar-se com a viúva. A mesma
preocupação se encontra na legislação do jubileu, Lv 25, e na lei sobre as filhas
herdeiras, Nm 36,2-9
28
.
Esta lei tinha, portanto, por finalidade garantir a continuidade do nome e, ao
mesmo tempo, a continuidade da famíli a, da pequena família’”
29
, impedindo que, por falta
de um herdeiro, ela se acabasse. Perpetuar o nome e garantir a terra à família parecem ser
as finalidades principais de s sa lei.
b) Lei do goelato
Para De Vaux, os membros da família em sentido amplo devem uns aos outros
ajuda e proteção. A prática desse dever era regulada pela instituição do goel, palavra
procedente de uma raiz qu e signifi ca resgatar, reivindicar, e, mais fundamentalmente,
proteger. O goel é um redentor, um defensor, um protetor dos interesses do indivíduo e
do grupo. Ele pode intervir em certos casos. Se um israelita necessitasse vender-se como
escravo para pagar uma dívida, ele deveria ser resgatado por um de seus parentes próximos
(Lv 25,47-49). Quando um israelita necessitasse vender seu patrimônio, o goel tem direito
preferencial na compra, pois é muito importante evitar a alienação dos bens da família
30
.
A Lei da Santidade prescreve algum as possibilidades:
1º) Naperdadaterra: o texto de Lv 2 5 ,2 3- 25 assim det e rmi na:
A terra não será vendida perpetuamente [...]. Para toda propriedade que
possuirdes, estabelecereis o direito de resgate para a terra. Se o teu irmão cair na
pobreza e tiver de vender algo do seu pat ri môni o, o seu parente mais próximo
virá a ele, a fim de exercer seus direitos de família sobre aquilo que vende o seu
irmão.
28 R. de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testa me nt o , p.61.
29 Maria Aparecida de CASTRO, Rute: símbolo da força feminina, In: Estudos bíblicos, v.29, n.114, p.113.
30 R. de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testame nt o , p.43.
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Significa que quand o alguém era obrigado a de sf az e r-s e de sua terra por causa do
empobrecimento, do endividamento, o parente mais próxi mo (goel) tinha a obrigação de
resgatá-la, isto é, deveri a comprá-la de volta, não para si mesmo, mas para o parente
empobrecido (Lv 25,23-25). Se alguém incorresse na perda da terra, não tendo ninguém
para exercer esse direito, tinha o direito de recuperá-la de volta no momento em que
obtivesse recursos (Lv 25,26-27), não tendo essa possibilidade a receberia de volta no
jubileu (Lv 25,28). Depoi s o text o trata da casa própria, fazendo ver que todos tinham o
direito de tê-la e de recuperá-la (Lv 25,29- 31 ). O relato de Lv 25,32-34 t rat a do direito
perpétuo dos levitas à casa.
2º) Navendacomoescravo: o texto de Lv 25,47-49 prescreve:
E se o estrangeiro ou o hóspede que vive contigo se enriquecer e teu irmão que
vive junto dele se empobrecer e se vender ao estrangeiro ou ao hóspede ou ao
descendente da família de algu é m que reside entre vós, gozará do direito de
resgate, mesmo depois de vendido, e um de seus irmãos poderá resgatá-lo. O
seu tio paterno poderá resgatá-lo, ou o seu primo, ou um dos membros da sua
família; ou se conseguir recursos poderá resgatar-se a si mesmo.
Para De Vaux, Lv 25,49 mostra que o direito do goel era exercido segundo certa
ordem de parentesco, assim, pois, apresentada: primeiro o tio paterno, depois o filho deste,
finalmente os outros parent e s
31
. Nisto se explica a ação de Booz, no livro de Rute (4,5ss).
3º) Rt3,1-18:recuperarodireitoderesgateda spessoas-levirato
Se no capítulo dois, Rute e nc u rvou -s e para respigar, no capítulo três ela se
apresenta de forma mais ousada. Noemi iniciou -a nos saberes e pode re s de sedução.
Avalia a conjuntura, identifica os personagens e descobre uma alternativa para a sua
amargura. Cinderela antes da outra, Rute também vai passar dos t rapos da trabalhadora
humilhada para a beleza provocadora, que re-significa o corpo. O se objetivo agora é
merecer os olhares e o desejo de um homem que pode mudar a sua vida
32
.
Da prote ç ão de Booz em geral passa-se à prot e ção concreta, também provocada pelo
procedimento de Rute movida pelos conselhos de sua sogra
33
. Ass im , no término da
colheita, os v.1-5 mostram que Noemi orientou Rute em vista da hora decisiva para que
Booz e xe rce s se ou cumprisse o direito de resgate e se casasse com ela/Rute, garantindo
definitivamente a vida de Rute e também a de Noemi. Rute é obediente à su a sogra e não
age por interesse sent im e nta l (cf. Rt 3,11) mas por lealdade à família na qual se integrou
34
.
Os v.6- 15 descrevem a noite na eira. Tudo aconteceu conforme Noemi previu e
orientou. Ru t e foi à eira de Booz e passou a noite com e le . Não lhe pediu favore s , mas
apelou para o direito que a le i lhe dava: Sou Rute, tua serva. Estende te u manto sobre tua
serva, pois tens o direito de resgate (3,9). Ao longo de toda a narrativa, Booz demonstrou -
se sempre bem inten ci onad o para com Rute, que, na ocasião, lembrou-o de suas
obrigações, conf orm e as leis do goel e do levirato.
A resposta de Booz indica que ele abraçou a causa dela: Bendita se j as por Deus,
minha filha; este teu novo ato d e piedade excede o primeiro, pois não procuraste jovens,
pobres ou ricos. E agora, minha filha, não tenhas medo: far-te-ei tudo quanto disseres, pois
toda a população desta cidade sabe que és uma mulher virtuosa (3,10-11). Depois destas
palavras de Booz, Rute teve a certeza de que conseguiu tudo o que des ej ava , se ndo
reconhecida, literalmente, como mulh er forte (3,11). A fala de Booz, nos v.12 -1 3,
31 R. de VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testame nt o , p.44.
32 Nanci C. PEREIRA, De olhos bem abertos erotismo nas novelas bíblicas, In: Ribla, v.38, p.140.
33 Enrique C. MELERO, Rute, In: S. G. OPORTO; M. S. GARCÍA, Comentário ao Antigo Testamento I, p.625.
34 Enrique C. MELERO, Rute, In: S. G. OPORTO; M. S. GARCÍA, Comentário ao Antigo Testamento I, p.625.
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apresenta a Rute a última garantia de que ela necessitava: Ora, realmente tenho o direito
de resgate, mas h á um outro parente mais próximo que e u . Passa a noite aqui e amanhã
cedo, se e le quiser exercer seu direito de resgate sobre ti, está bem, que ele te resgate; se,
pelo contrário, não quiser te resgatar, eu te resgatarei ; ju ro pe la v id a de Javé! Com isso,
Rute garanti u o seu futuro e o de Noemi.
Os v.16-18 relatam o retorno de Rute à casa de su a s og ra. Neste retorno, ela
carregou às costas seis medidas de cevada (v. 1 5. 17 ) . E la dirigiu-se para c asa com as
palavras de Booz: Não voltarás de mãos vazias para ju nt o de tua sogra (v.17). Trata-se de
sua boa disposição para com Ru te . Noemi lhe garantiu qu e a solução definitiva e s tav a
próxima. Tinha toda a certeza de que Booz cumpriria todos os deve re s legais. Casando-se
com Booz, a terra de Elimelec passaria a ser de Booz, garantindo a vida e o futuro tanto de
Rute quanto de Noemi.
4º) Rt 4,1-12: o tribunal à porta da cidade: recup era r o direito de resgate da
terra-goelato
O episódio ocorreu na porta da cidade, espaço ou fórum onde eram realizadas as
grandes decisões, por exemplo: de condenação e apedrejamento de uma pessoa (Dt 22,23-
24), de julgamento (Am 5,10.12.15), ou me s mo curas, como fez Jesus (Mc 1,32-34). Neste
espaço foi reunido o tribunal, órgão com compe t ê nc ia jurídica para decidir questões
jurídicas, como a de Booz.
A estrutura concêntrica desta subunidade ressalta muito bem a questão central do
relato, ou seja, a união da lei do resgate da terra com a lei do resgate da pessoa. Ou seja,
adquire a terra de Noemi quem casa com Rute (4,5-8)
35
.
A novidade proposta no livro de Rute é de que não é possível adquirir a terra de um
pobre sem levar em conta a situação da família desse pobre. Assim, quem quisesse adquirir
o terreno de Noemi deveria, ao mesmo tempo, assumir toda a situação da família dela. E
o jeito de f aze r isso era casar com Rute para que a família de Noemi pudesse continuar na
posse da terra, como afirma Booz, para que a herança do falecido continuasse com o nome
dele (Rt 4,5). Desta forma, Booz uniu a L e i do Resgate, que dava direito de a dqu i ri r a
terra do irmão pobre, e a Lei do Levirato, que impunha o dever de casar com a viúva
36
.
A palavra resgatador (goel) tem um sentido libertador solidário. Trata-se de uma
das palavras mais repetida no capítulo 4. Outra palavra repeti da diversas vezes é nome
(shem), indicando a ação de manter a memóri a do nome da pessoa falecida, através da lei
do levirato. Estas duas ações, resgatar a terra e manter a memória, fazem parte do
compromisso assumido naquela noite, na eira (Rt 3,1-18). Booz faz questão de ratif i car,
diante do povo, a legalidade da ação que pretende realizar. E Rute, a moabita, é acolhida e
reconhecida pelo coro do povo e dos anciãos (4,11) [...]. O pedido deixa entrever o sonho
do tribalismo e a nova esperança que está surgindo
37
.
Os v.1-8 mostram que antes de Booz havia um outro parente de Elimelec com o
direito de resgate da t e rra. Este queria apenas a terra, sem assumir o cuidad o de Rute e de
Noemi. Não queria ser solidário com os po bre s. O livro de Rute contesta esta falta de
solidariedade para com os pobres na época persa. Por isso, o direito de resgate ficou para
Booz. Carlos Mesters diz que
aqui aparece a raiz do problema do povo. No começo da história apareceu o
problema da falta de pão. Durante a busca do pão, apareceu o problema da
família, do clã. E agora, enquanto se busca uma solução para o problema da
35 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.67.
36 Maria A. de CASTRO, Rute: símbolo da força feminina, In: Estudos bíblicos, v.29, n.114, p.114.
37 Mercedes LOPES, O livro de Rute, In: Ribla, v.52, p.99.
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família, aparece o problema da terra. Noemi corre o perigo de pe rde r o terreno
da família. A sua situação é a imagem da situação dos pobres daquele tempo.
Eles estavam perdendo a sua dupla defesa: a família e a terra!
38
.
Nos v.9-12, Booz exerceu o direit o de resgate, ficando com os bens de Elimelec (v.9)
e assumi ndo Rute e Noemi. Booz cumpriu a lei d o levirato, casando-se com Rute. A
família de Noemi, ameaçada de extinção, se recuperou, passou a sobreviver, tendo futuro e
esperança. Graças ao cumprimento dessas leis, ocorreu uma transformação total. Tratam-
se d e leis que apontam para a solidariedade e o fortalecimento dos laços familiares, tendo
em vista a defesa dos pobres. Segundo José Josélio da Silva,
Booz exerce o direito de resgate, ao comprar de Noemi as terras que pertenciam
a Elimelec e a se u s filhos, sem a preocupação de comprometer seu patrimônio,
pois ele sabe que estará dando a Rute um filho, o qual se o herdeiro da
herança de Elimelec. Ao mes mo tempo, Booz adquire Rute como mulher não
propriamente para ser sua esposa, mas, com a finalidade de perpetuar o nome
do falecido Maalon a quem pertencerá a posteridade. A relação entre Rute e
Booz [...] é primeiramente uma relação heteronormativa e patriarcal para
preservar a descendência e a terra da família
39
.
Rt4,13-2 2 :realidadefinal:casamento-pão,terra,filho
Booz casou-se com Rute (v.13). A esperança que começou a aparecer, desde o
primeiro passo, agora se realizou de fato.
Nasceu-lhes um filho: Booz desposou Rute, que se torn ou sua esposa. Un iu -s e a ela
e Javé deu a Rute a graça de conceber e ela deu à luz um filho (v.1 3 ). As vizinhas deram-
lhe um nome, dizendo: Nasceu um filho a Noemi e chamaram-no de Obed (v.17).
Para quem via fome, amarg u ra, doença..., este filho é símbolo de libertação. Da
amargura, Noemi agora vive a graça: Deus foi-lhe ao seu encontro (v.14). Est e menino
será para ti um consolador e um apoio na tua velhice (v. 15 ) . Rute, a mãe do menino, que
te ama, para ti vale mais do que sete filhos (v.15). Noemi tem a alegria de tomar o menino
nos braços e serviu-lhe de ama (v.16).
O menino trouxe fu tu ro e ânimo para a família. Chama-se Obed, isto é, servo, a
serviço do povo para que este tenha terra e o. A palavra obed, servo ou serviço, serviço fraterno,
demonstra a única atitud e capaz de tornar verdadeiramente hu m ana uma sociedade. Ela
traduz o relacionamento fu ndame n tal que deve acontecer e n tre as pessoas: servir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura do livro de Rute faz ver, por um lado, que sua narrativa é quase toda
te cida de diálogos. São os diálogos que constroem saídas diante das mais variad as crises
ex istencia is. Em decorrência disto, o livro apres enta o amor, a amizade fra terna, a
solidariedade, a ternura como for mas de superação dos conflitos imposto s pela
sociedade
40
. O amor leva Rute a resgatar a iden tidade, o sentido comunirio, a ale gria
de viver, a fé, a esper aa e o f uturo do povo de Noemi (Rt 4,11-16). Sendo
marginalizada, excluída, entrega sua vida para a re constr ão de um povo estrangeiro,
qu e ela assume como próprio. Na alia nça que Rute fez com Noemi, el a assume o
38 Carlos MESTERS, Rute, uma história da Bíblia, p.70.
39 José Josélio da SILVA, Rute e Noemi, o resgate das leis na defesa das relaç õe s afetivas e a união civil entre pessoas do
mesmo sexo, In: Estudos bíblicos, v.87, p.51.
40 Paulo Ferreira VALÉRIO, Teu povo será meu povo, teu Deus será meu Deus (Rt 1,16) A amizade fraterna:
caminho de superação dos limites das religiões e das culturas no livro de Rute, In: Reb, v.74, n.294, p.363.
CARLESSO, Jair.
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de stino dela, que também passa a ser o seu. Faz isto por amizade e tamm pela
profunda solidar iedade que une os pobres
41
.
O que moveu Elimelec e sua família a mudar-se para os campos de Moab (Rt 1,1) foi
a fome. A pobreza, com tudo o que ela comporta, desconhece as barreiras das culturas e
das re li g iõe s . Antes de acompanhar Noemi, Rute estava em casa’”, contando com sua
mãe, seu povo, seu deus (Rt 1,15), e certament e não lhe faltava o pão, pois não se fala de
carestia em Moab. Isso faz ver que não é sua carência pessoal q u e a faz acompanhar
Noemi, mas é a penúria de Noemi que a move a tal escolha
42
. O que motivou Rute em sua
decisão de cami nh ar com Noemi para Jud á foi o sentimento de que o outro, a outra pessoa,
necessitada, é o próximo que precisa da sua companhia, do seu serviço e da sua força para
superar suas dificuldades. Encontra-se nesta atit u de um sentimento humanitário. Foi a
amizade fraterna e a solidariedade que a fez tomar essa decisão. P or isso, Rute tornou-se
merecedora do cumprimento da lei da respiga e do resgate, casando-se com Booz, com o
qual deu à luz a Obed, herdeiro que garantiu a posteridade para si e para a sua sogra. Isso a
fez passar para a história como uma mulher virtuosa, ou melhor, uma mulhe r forte (Rt
3,11). Neste sentido, o livro de R u te aponta a necessidade da solidariedade nas relações
interpessoais.
Ao criarem formas alternativas de sobrevivência, Noemi e Rute se dão cont a de que
não estão sozinhas. Elas descobrem que fazem parte de uma história que vem de longe (Rt
2,20-21). Estão também ligadas a muitas outras famílias que, no momento, estão l ut and o
pela sobrevivência. Amplia-se a aliança [...]. Solidarizam-se com o sonho de vida dos
pobres de Judá (Rt 4,11). Refletem sobre a possibilidade de saída no contexto em que se
encontram43. Se g u nd o Célio de Pádua Gracia, o livro de Rute
se coloca na história, t ant o de Israel como a universal, como o drama dos
pobres, desvalidos, entregues ao infortúnio, que s ão forçados a deixar suas
terras à procura de lugares melhores devido à fome, à seca e à miséria que
assolam seus países [...]. Esta história é profundamente reveladora de uma
história muito mais ampla, pois nos rev e la as relações dos seres humanos e, por
conseguinte, de Deus com seu povo e com os outros povos. Podemos afirmar
que Deus se revela como Deus da hu ma ni dade e não de um povo especí f ic o, Ele
é o Deus da criação
44
.
Por isso, o compromisso do Deus de Israel é com todos os povos e não apenas com
os israelitas.
O livro de Rute, em linguagem sapiencial, aprese nt a um profundo caráter profético.
Trabalha a ne ce s si dad e do próprio povo construir o seu futuro. A memória d o tribalismo e
de suas leis clânico-tribais e o resg at e das mesmas para dentro do contexto pós-exílico
persa era o caminho que os pobres deviam seguir para poderem sobreviver. Era isso que
o livro de Rute queria dizer para o povo de seu tempo.
A re con st ru çã o do povo de Israel, depois da avalanche babilônica de 597 e 587 a.C.
(2Rs 24-25) e da política persa, dependia da mudança de mentali dade e das práticas . Por
isso, era pre ci so mexer na estrutura da soci ed ade . Rute é um livro de resistência ativa. Foi
escrito com o objetivo de most rar, para os pobres, que havia saídas. Para isso era
necessário consciência crítica, união, mobilização e organização por se u s direitos. Ele faz
41 Mercedes LOPES, Aliança pela vida: uma leitura de Rute a partir das culturas, In: Ribla, v.26, p.113.
42 Paulo Ferreira VALÉRIO, Teu povo será meu povo, teu Deus será meu Deus (Rt 1,16) A amizade fraterna:
caminho de superação dos limites das religiões e das culturas no livro de Rute, In: Reb, v.74, n.294, p.375.
43 Mercedes LOPES, Aliança pela vida: uma leitura de Rute a partir das culturas, In: Ribla, v.26, p.114-115.
44 Célio de Pádua GRACIA, Uma leitura do livro de Rute: mulheres pobres e transgressoras do judaísmo, In: Estudos
bíblicos, v.29, n.114 , p.102.
CARLESSO, Jair.
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uma releitura do Êxo do num novo contexto de escravidão. Procurou mostrar que a vitória
do povo é possíve l. O livro, no conjunto de sua narrativa, revela que essa luta deu certo!
Para Maria Antônia Marques,
o livro de Rute nasceu de grupos que se organizaram para sobreviver. Uma das
estratégias era a releitu ra e atualização de antigas leis, como a da respiga, do
resgate [da terra] e do levirato. O objetivo era proteger as mulheres
estrangeiras, defendendo a justiça e a solidariedade como valores fundamentais
na reconstrução do povo. Era um protesto c ont ra a políti ca pós-exílica de
isolamento social e eliminação dos estrangeiros, defendida pela teocracia de
Jerusalém. Ao colocar uma mulher moabita com o modelo de solidariedade e
como ancestral de Davi, a hi s tóri a propunha o acolhimento de estrangeiros e
protestava contra a proibição de casamentos mistos
45
.
No contexto de rejeição dos estrangeiros, o livro de Rute apresenta, de modo
extraordinário, uma estrangei ra, moabita, como espelho no qual os judaítas devem mirar-
se para enxergar sua própria condição. Diante das ações de Rute, os judaítas tomam
consciência de sua própria identidade, de suas neces si dad e s, de suas limitações. Quando
isso acontece, tendo cumpri do seu papel, Rute desaparece. Na verda de , o estrangeiro/a, diz
o autor/a da estória, não destrói a identidade judaíta, como pensam [pensavam] os líderes
de Jerusalém, mas a revela. Por isso, Rute é uma proposta. Rute é um paradi g ma e,
podemos dizer mais, sempre atual
46
.
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GRACIA, Célio d e Pádua. Uma leitura do livro de Rute: mulheres pobres e transgressoras do
judaísmo. In: Est u dos Bíblicos, 114, Petrópolis: Vozes, p.97-108, 2012.
LOBOSCO, Ricardo Lengruber. A s oli dari e dad e familiar. In: Estudos Bíblicos, 85, Petrópolis: Vozes,
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LOPES, Mercedes. O li vro de Rute. In: Ribla, 52, Petrópolis: Vozes, p.88-100, 2005.
MARIANNO, Lília Dias. Sog ra e nora: parceiras? Viúvas e estrangeiras sobrevindo à fome (Rut).
In: Ribla , 66, São Paulo: Metodista, p.115-128, 2016.
MARQUES, Maria Ant ôni a. Os caminhos da sobrevivência. Uma leitura do livro de Rute. In:
Ribla, 6 3, São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, p.79-86, 2009.
45 Maria Antônia MARQUES, Os caminhos da sobrevivência: uma leitura do livro de Rute, In: Ribla, v.63, p.85.
46 Airton José da SILVA, Leitura socioantropológica do livro de Rute, In: Estudos bíblicos, v.98, p.119.
CARLESSO, Jair.
Rute: Para ondefores, ireitambém! (1,16)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 62-77, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 62-77, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
M
ÊS DA BÍBLIA
Pois todos vós sois UM em
Cristo Jesus (Gl 3,28b)
M
ONTH OF BIBLE
"For you a re all one in
Christ Jesus" (Gal 3,28b)
Ademir Rubini*
Res
umo: Neste ano de 2021, a Igreja do Brasil propôs como tema do Mês
da Bíblia a Carta de Paulo aos Gálatas, tendo como lema: Pois todos vós
sois um em Cristo Jesus (Gl 3,28b). Abordaremos o tema em três
passos: primeiramente elencando alguns elementos da Carta aos Gálatas; a
seguir, o contexto da província da Galácia, onde estava localizada a
comunidade que recebeu a carta paulina, destacando alguns elementos.
Finalmente, refletiremos sobre o tema do Mês da Bíblia, à luz da Encíclica
do Papa Francisco, Fratelli Tutti.
Palavras-chave:Fé. Unidade. Fraternidade. Diálogo. R e s pei t o.
Abstract: In this year of 2021, the Church of Brazil proposed Paul's Letter to the
Galatians as the t he me of the Month of the Bible, with the motto: "For you are all
one in Christ Jesus" (Gal 3,28b). We will approach the topic in three steps: first,
listing some elements of the L e tt e r to the Galatians ; next, the cont e xt of the
province of Galatia, where the community that received the Pauline letter was
located, highlighting some elements. Finally, we will refle ct on the theme of the
Month of the Bible, in the light of Pope Francis' Encyclical, Fratelli Tutti.
Keywords: Faith. Unity. Fraternity. Dialogue. Respect.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 78-85, Jan./Jun./202 1 ,
ISSN on-line: 2763-520 1
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.24
* Possui graduação em Ciências - Faculdades
Reunidas de Admin. Ciências Contábeis e
Econômicas de Palmas (1994), graduação em
Filosofia - B pela Uni ve rsi dade de Passo
Fundo (2008), graduação em Teologia - B
pelo Instituto de Teologia e Pastoral (1999),
mestrado em Teologia pela Escola Superior
de Teologia (2011) e doutorado em Te olog i a
pela Escola Superior de Teologia (2015). É
professor da Itepa Faculdades. Tem
experiência na área de Teologia, com ênfase
em Teologia Bíblica. Presbítero da Diocese
de Chapec ó/SC.
E-mail: ademi r_ru bini @ yahoo. com.br
https://orcid.org/0000-0002-1996-2483
Recebido em 26/09 /2 0
Aprovado em 18/01/21
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INTRODUÇÃO
A cada ano, a Igreja do Brasil tem como referência um dos livros bíblicos. Ne ss e ano
de 2021, a proposta é de aprofundarmos a Carta de Paulo aos Gálatas, tendo como lema:
Pois todos vós sois UM em Cristo Jesus (Gl 3,28b). A Lei judaica lugar à em
Cristo. Batizados em Cristo, assumindo a identidade de Cristo, tod os são chamados a viver
na unidade, na iguald ade e na liberdade. O Projeto de Deus, concretizado em Jesus Cristo,
eliminou os muros de separação entre judeus e gent i os, escravos e livres, homens e
mulheres. Essa realização constitui-se no chamado fundamental para que todos sejam um
como o Pai e o Cristo são um (Jo 17,23), vivendo no amor.
1 ACARTA AOS GÁLATAS
O Apóstolo Paulo escreveu aos Gálatas, provavelmente, de Éfeso, entre 53 a 57 d.C.,
durante sua terceira viagem missionária. Pelas referências que temos, o Apóstolo havia
visitado duas vezes a comunidade (At 16,6; 18,23)
1
. Nesta última visita, tudo indica que a
comunidade estava muito bem, demonstrando fidelidade ao Evangelho anunciado por Paulo.
Não entanto, pela influência de pessoas que se infiltraram na comunidade, provavelmente, os
judaizantes, ou seja, cristãos vindos do judaísmo, os problemas começaram a surgir
2
.
Houve a tentativa de substituir o Evangelho de Cristo por outro evangelho (Gl
1,6), deturpando o conteúdo d o primeiro anún ci o, sobretudo, querendo impor a
necessidade do cumprimento da Lei Mosaica a todos os que despertaram para a em
Cristo, mesmo sendo cristãos de origem ge nt íli ca. Eles afirmavam que os gálat as , para
serem cristãos, deviam em pri me ir o lugar circuncidar-se, ou seja, ju dai zar-s e
3
. Na
verdade, a preocupação de Paulo era que o Evangelho estava correndo o risco de ser
deformado, comprometendo a sua es nc i a de que a salvação é fruto do amor gratuito de
Deus, manifestado em Jesus Cristo4. O perigo era de que o cristianismo fosse reduzido a
uma simples seita judaica, um remendo do judaísmo, fazendo perde r a força da cristã.
Embora os judaizantes não negassem diretamente a Cristo, queriam impor condições a
partir da tradição judaica.
O conflito surgido na G aláci a estava ligado à controvérsia ocorrida em Antioquia,
pela qual alguns representantes da Igreja da Judeia, mais ligada à autoridade de Tiago,
começaram a ensinar aos cristãos sobre a necessidade da circunci s ão prescrita na Lei de
Moisés como condição para a salvação (At 15,1-2; Gl 2,11-14). Os adversários de Paulo,
para impor estas ideias aos cristãos, questionav am a autoridade de Paulo, como Apóstolo
de Jesus Cristo, por não ser um dos Doze. Além disso, as palavras de Paulo insinuam que
seus adversários o acusavam de buscar ser agradado (Gl 1,10) e de agir assim somente para
conquistar adeptos (Gl 5,11). Paulo é obrigado a reagir e esclarece a situação,
desenvolvendo dois temas fundamentais na Carta: faz apologia da legitimidade do seu
apostolado, na tentativa de rec onq ui s tar os gálatas
5
. Afirma que seu apostol ado teve
origem e m Jesus Cristo (Gl 1,1); o segundo e principal tema está ligado à defesa que Paulo
faz do Evangelho por ele anunciado, segundo o qual os cristãos são ju s t if i cad os pela em
Jesus Crist o e não pela prática da Lei Mosaica (Gl 15-16)
6
.
1 Jordi Sánchez BOSCH, Escrit o s Paulinos, p.233.
2 Giuseppe BARBA G LI O , As cartas de Paulo, II, p.20.
3 José BORTOLINI, Como ler a carta aos Gálatas, p.13.
4 Rinaldo FABRI S, A liberdade do Evangelho: carta de Paulo aos Gálatas, p.16.
5 Giuseppe BARBAG LI O , As cartas de Paulo, II, p.22.
6 Giuseppe BARBA G LI O , As cartas de Paulo, II, p.34.
RUBINI, Ademir.
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 78-85, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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A grand e preocupação de Paulo, em relação aos judaiz ant e s, ao que parece, era impor
a obri gat ori e dad e da Lei para quem se convertesse ao cristianismo. Paulo era
absolutamente con tra isso, principalmen te , quando se tratava de gentios que aderiam à
cristã. O argumento de Paulo não é em favor da nem contra as obras propriamente. É
muito particular: é contrário a qu e se exija dos gentios a observância da Lei Mosaica para
poderem ser verdadeiros f ilh os de Abraão’”
7
.
Quando o Apóstolo afirma que ninguém se justifica pelas obras da Lei, mas pela
em Je su s Cristo (Gl 2,16), não significa que ele fosse contra ou desmerece a prática das
boas obras. Pelo contrário, quando se tratava de viver na prática a vida crist ã, orientava as
comunidades a viver segundo o Espírito e não deviam usar o pretexto da liberdade para
viver segundo os instintos e g oís t as (Gl 5,13-26). O que ele rejeitava era a tentativa dos
judaizantes de atrelar a prática da Lei judaica à vida cristã, especialmente, a circuncisão,
como condição para a salvação, inclusive aos g e n ti os , para os quais a Lei de Moisés lhes era
estranha, não fazia parte de sua cultura. Viver na liberdade, portanto, é agir segundo o
Espírito, tend o como critério fundamental o amor (Gl 5,14).
2 OCONTEXTO DA PROVÍNCIA DA GALÁCIA
Quando nos referimos à Galácia, podemos entendê-la de duas maneiras: Primeira,
se referindo ao local ocupado pelos gauleses, de etnia celta. Seria h oje basicamente a cidade
de Ancara, capital da Turquia
8
; ou pode ser compreendida como a Província romana,
criada no ano 25 a.C., ampliando seu território, ocupando a parte central do que agora é
conhecido como Ásia Menor ou Anatólia
9
.
Quando nos perguntamos par a quem exatamente Paulo escreveu, se foi para os
cristãos de origem celta ou para os cristãos nas cidades que compunham a província da
Galácia, percebemos que controvérsias. A pesquisa não é unânime sobre a exata
localização dessas comunidades. A carta apresenta como destinat ári as as Igre jas da
Galácia (Gl 1,2). somente uma anotação geográfica, e sequer unívoca, pois pode se
referir tanto à região gálata, propriamente dita, quanto às comunidades do sul da
homônima província romana
10
. Caso se trate da Província da Galácia, locali zad a no
centro-sul da Ásia Menor, as comunidades teriam sido fundadas no decorrer da primeira
viagem missionária de Paulo (At 13-14) e seriam compostas, predominantemente, por
judeus-cristãos. Quando Paulo fundou estas comunidade s, normalmente, iniciava seu
anúncio nas sinagogas, onde havia predominant e me nt e pessoas de origem judaica. Por
outro lado, se for a região da Galácia, as comunidades estariam mais ao norte, no coração
da Ásia Menor, e seriam constituídas , sobretudo, por gentílicos-cristãos.
Embora não haja conse ns o entre os exegetas, a opinião que predomina na pesquisa é
o segundo caso, ou seja, foi escrita aos cristãos predominantemente vindos de uma cultura
não judaica. A abordagem da Carta expr es s a detalhes bem pecu li are s , que reforçam ess a
predominância entre os pesquisadores. O trabalho de Paulo na região foi ocasional,
provocado por uma enfermidade, para a qual o apóstolo foi buscar ajuda (4,12-15). Os
gálatas o receberam e o trataram muito bem, como a u m anjo de Deus. Através dele
receberam o Espírito e aparentemente presenciaram algum milagre relacionado a ele (3,5).
Mas agora, por influência de adversários, o apóstolo é tratado como um inimigo (4,16).
7 Ed Parish SANDERS, Paulo: a lei e o povo judeu, p.35.
8 A.A. MARTIN S, Introdução à epístola aos Gálatas. In: Revista de cultura Bíblica, n.93/94 , p.30.
9 G.V. ANSEN, Carta aos Gálatas, p.583.
10 Giuseppe BARBAGLIO, As cartas de Paulo, II, p.36.
RUBINI, Ademir.
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Asituaçãodosescravos
A Ási a Menor, embora pertencente ao Império Romano, tinha sua realidade própria.
Isso podemos constatar em diversos pontos. A realidade da escravidão era diferente da que
existia em Roma. Embora a situação dos es cr avos sempre se demons trou precária, parece
que no ocidente o trato com os escravos demonstrou-se mu i t o mais despótico. Por
exemplo, em Roma, o número de es crav os chegava a dois terços da população, enquanto
que na Ásia Menor, onde se localizava a Galácia, girava em torno de um terço
11
. Não havia
somente diferença de porcentagem, no tratamento também. Tinham um mínimo de
direitos (não perante a lei, mas por força do costume): aliment açã o, veste s , matrimôni o,
um mínimo de vida familiar, inclusive certas posse s e poupanças
12
.
Era comum a presença de escravos, sobretudo, nas famílias mais abastadas,
praticamente fazendo parte da conviv ê nci a familiar. Alguns até contribuíam na educação
dos filhos e ajudavam na administração dos be ns de seu senhor. Ainda que a realidade da
escravidão depreciava socialmente o ser humano, diminuindo o valor da pessoa humana,
certamente, a vida dos escravos na Ásia Menor era um pouco mais tranqu i la do que em
Roma, onde muitos escravos eram prisionei ros de guerra.
Algumasvant ag ens
O Impé ri o Romano, após a conquista violenta dos povos, estabelecia uma segurança
militar que garantia, normalmente, certa ausência de conflitos armados. É o que
chamavam de pax romana, a qual tinha um fundamento ideológico que fundamentava
conotação divina do imperador romano. A paz romana nos terri t órios conquistados era
possível, em grande parte, porque os venc id os passavam a reconhecer o direito divino de
Roma de governá-los
13
. O Império dava certa autonomia às províncias, desde que
garantissem o pagamento dos impostos e, principalmente, o reconhecimento do domínio
de Roma, mediante o culto ao imperador. Estabelecia-se um pacto: Roma garantia a paz e
as províncias, os impostos e a sujeição. Augusto foi o príncipe da paz nas relações
exteriores, mas travava-se de uma paz no se nt i do romano: um pacto depoi s da
conquista
14
. Se, por um lado, isso representava uma estratégia de dominação, por outro,
trouxe alguns benefícios, sobretudo, para as famílias camponesas, muitas tinham suas
plantações saque ad as durante as guerras.
Uma das funções do e rc i to, em tempos de ausência de conflitos importantes, era
de construir obras públicas
15
. No exército estavam, também, engenheiros e trabalhadores
que construíam pontes sobre rios caudalosos em poucos dias, ass i m como as estradas que
permitiam uma mobilidade excepcional
16
. Isso favoreceu a circulação de mercadorias e a
mobilidade humana. Essa prática acabou favorecendo o desenvolvimen to e con ômi co das
províncias romanas. Os dois pri me i ros séculos de nossa era foram de grande surto
econômico, especialmente no tempo dos imperadores Flávios. Uma das regiões que mais
aproveitou desse boom econômico foi a Ásia M e nor
17
. Nessa região havia grande
potencial econômico: terras férte is , produção de grãos, fru t as , madeira, g ado, lã, além de
11 Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p.68.
12 Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p.62. Daí vinha a possibilidade de o escravo, depois de
certo tempo de trabalho, pagar o valor do seu regate, passando a ser um liberto.
13 John Dominic CROSSAN & Jonathan L REED, Em busca de Paulo: como o apóstolo Paulo opôs o Reino de Deus ao Impé ri o
Romano, p.63.
14 Richard A. HORSLEY, Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana, p.27.
15 Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e Jo ão , p.90.
16 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p.87.
17 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p.107. A melhoria das estradas favoreceu as viagens missionárias de Paulo e
seus companhei ros.
RUBINI, Ademir.
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boas redes de comunicação, por mar e por terra. Os judeus foram beneficiados com o
crescimento d o comércio e da indústria.
Posiçãoso cia l
O critério econômico não podia ser considerado o único, nem o mai s importante,
para determinar a posição social d e uma pessoa no contexto da época, sobretudo, na região
da Ásia Menor. Esta sofreu grande influência da cultura grega, por estar geograficamente
próxima da província da Acaia, onde se loc aliz ava Atenas e Corinto. Embora o nível
econômico fosse import ant e , havia outros fatores preponderantes, como ser escravo ou
livre, o n ív el de educação, a origem étnica, o trabalho que exercia, se era homem ou
mulher, se possuía ou não cidadania, etc,
18
. Destes diversos elementos resultavam
pequenas pirâmides sociais, consolidando uma gama de diferenciação social. Por exemplo,
ser livre podia ser mais importante socialmente do que ter posses. Era preferível ser livre
pobre do que escravo com posses. Da mesma forma acontecia com quem tinha ci dadan ia
romana. Era preferível ter cidadania romana e ser pobre do que ser rico e não ter cidadania
romana. Assim também acontecia com o ti po de ocupação. Quem exercia trabalhos
manuais e ra inferior socialmente de quem exercia trabalhos inte le ct u ais . Essas pequenas
pirâmides estavam dentro de uma pirâmide maior, dividindo basic ame nt e a sociedade em
dois grupos. No topo estava a aristocracia e abaixo os demais trabalhadores.
Acidade
O conceito de cidade, no pe odo greco-romano, era mais amplo do que,
normalmente, se entende atualmente. Am da parte urbana, formada pela aglomeração de casas,
edifícios públicos, teatros, praças, etc., envolvia também o campo. Os romanos chamav am
de urbs a parte cercada de muralhas, e rus ou ager, a parte que envolvia o campo
19
.
A cultura helenística predominava na Ásia Menor. A cidade era o eixo para o
desenvolvimento e o bem-estar. Cada cidade procurava destacar-se das outras por meio
de obras públicas, formar suas pra ças livres, conforme o estilo greg o, edificar templos e
construir aquedutos e te rmas e criar teatros e praç as esportivas
20
. Na provínci a da Galácia,
as cidades eram mais pobres em relação àquelas que se achavam na costa ocidental, ao longo
do mar Egeu. Éfeso, sobretudo, se destacava pelo porto, possibilitando maior fluxo comercial
21
.
A situação era pior para os diaristas, pe s soas que não tinham uma profissão ou
alguma qualificação que lhe desse possibilidade de trabalhar independente. Tinham que se sujeitar
aos trabalhos ocasionais, no campo ou em construções nas cidades. Ser diarista equ i va lia,
na opin ião de muitos, situar-se no escalão mais baixo que o homem livre podia ocupar. Seu
salário, de mais a mais, não era muito elevado, pois rivalizava com o trabalho de escravos
22
.
3 ALGUMAS LUZES PARA COMPREENDER O TEMA DO MÊS DA B Í B L IA , À LUZ DA
ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI
O lema do s da Bíblia deste ano, extraído da Carta aos Gálatas, nos convida a
aprofundar este livro bíb lic o, tendo como chave fundamental a unidade na diversidade. À
luz da em Jesu s Cristo, todos os seres humanos são chamados a participar do plano
18 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p.45.
19 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p.116.
20 Eduard LOHSE, Contexto e ambiente do Novo Testamento, p.198.
21 Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p.104.
22 Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p.112.
RUBINI, Ademir.
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salvador de Deus. O batismo elimina os muros de separação, as desigualdades e tudo o que
leva à divisão e à discórdia. Como novas criaturas, configurados a Cristo, todos são
chamados a testemunhar a caridade e o respeito com o outro, o diferente.
O Evangelho anunciado por Paulo aos gálatas, tinha como fundamento principal a
em Cristo. Isso é que dá, acima de tudo, identidade à vida cristã. A extrapola as culturas.
Não é possível identificar o Evangelho com determinada cultura. Quando Paulo disse que é
a q ue nos justifica e não as obras da Lei (Gl 2,16), tinha a int e ão de mostrar que não
era justo impor a prática da tradição ju dai ca aos gentios. O que deve caracterizar a vida
cristã são os ensinamentos de Jesus Cri s to, sobretudo, o amor, a solidariedade e a
fraternidade, à luz de cada cultura. Todos os povos são chamados a fazer parte desta grande
família dos filhos e filhos de Deus, unidos num amor universal.
A Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, ao que parece, convida tod os os cristãos
e pessoas de boa vontade a aderir a este espirito de fraternidade e amizade social,
independente de religião. Convoca a todos os povos e nações a empenharem-se nesse
projeto. Sonhemos como uma única humanidade , como caminhantes da mesma carne
humana, como filhos dessa mesma terra que nos obriga a todos, cada qual com a riqueza da
sua ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos (FT 8).
Papa Francisco não discute questões doutrinárias. A Encíclica possui c arát e r
marcadamente social, trazendo à tona questões e valores universais, de interesse de toda a
humanidade. Embora cada igreja ou religião possua seus princípios e normas próprias,
dando-lhe determinada identidade, valores que são universai s e estão presentes,
praticamente, em todas as instituições. A pluralidade ou as diferenças não são empecilhos
para o diálogo. Ao contrário, o verdadeiro diálogo tem como exigência o conheciment o da
identidade própria. A verdadeira unidade em Cristo respeita as dif e re as e peculiaridades
de cada povo. Quando não o respeito pelo difere nt e , a unid ade fica comprometida,
destruindo a rique z a da singularidade de cada pessoa ou de cada cultu ra . Hoje vivemos
num mundo g lobal iz ado, mas nem sempre esta globalizaç ão significa a garantia dos
direitos humanos uni ve rs ai s. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem com u m são
instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural única (FT 12).
Nem sempre o desenvolvimento das ciências e da técnica eso voltadas para a inclusão social.
A vivência do amor ao próximo, na cultura judaica (Lv 19,18), estava li g ada,
principalmente, a do mesmo povo judeu. Aos poucos , porém, esta frontei ra vai se
ampliando. Ex 22,20 é uma das referências neste sentido: Não maltrates o migrante nem o
oprimas, porque vós fostes migrantes na terra do Egito (Dt 24,21 -2 2) . No Novo
Testamento este amor se torna universal (1Ts 3,12). A parábola do Bom Samaritano é
decisiva nesta perspectiva. Para se tornar próximo e presente, ultrapassou todas as
barreiras culturais e históricas. A conclusão de Jesus é um pedido: Vai e faze o mesmo (Lc
10,37) (FT 81). Papa Francisco expressa que ainda hoje os preconceitos e a discriminação
estão presentes, muitas vezes, em nome da fé. Todavia, ainda aqueles que parecem
sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados por sua a defender várias formas de
nacionalismo fe c had o e violento, atitudes xenófobas, despre z o e até maus tratos àqueles
que são diferentes (FT 86).
Ser um em Cristo Je s u s implica viver a solidariedade, que é muito mais do que
ter gestos esporádicos de generosidade. É pensar e agir em termos de comunidade, de
prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também
lugar contra as causas estrutu rais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a
casa, a negação dos direitos sociais e laborais (FT 116). Nada pode estar acima dos direitos
dos povos e do respeito ao meio ambiente.
RUBINI, Ademir.
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Uma realidade palpável hoje, vivida no mundo intei ro, é a migração. Embora,
segundo Papa Francisco, o i de al é evitar as migrações desnecessárias, d and o oportunidade
de vida digna nos países de origem. Quando isso não é possível, é necessário respeitar o
direito da busca de um lugar que possibilite a realização humana. Os nos sos esforços a
favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos: acolher,
proteger, promover e integrar (FT 129). A busca da unidade requer o comprometimento
com o outro, sobretudo, em situações de maior precariedade.
O contato com outras culturas e crenças, quando acontece de forma sadia, não
ameaça a identidade. Ao contrário, provoca aquilo que o Papa Francisco chama de nova
síntese que beneficia a todos. A integração cultural, econômica e política com os povos
vizinhos deve ser acompanhada por um processo educativo que promova o valor do amor
ao próximo, primeiro exercício indispensável para se conseguir uma sadia integração
universal (FT 151). O Papa Bento XVI, em uma de suas encíclicas, ressalta o sentido do
amor ágape, cuja vivência extrapola as próprias fronteiras da Igreja, tornando-se universal.
[...] a parábola do bom samaritano permanece como critério de medida, impondo a
universalidade do amor qu e se inclina para o necessit ado encontrado por acaso (cf. Lc
10,31), seja ele quem for (DCE 25). O mu ndo globalizado propicia o encontro com o
diferente. A mobilidade humana e as migrações favor e ce m a diversidade religiosa. A
solidariedade pode ser vivenciada por todos, favorecendo o mútuo conh e ci me nt o e a
valorização de tudo que nos une (DGAE 2019-2023, 173). Neste sentido, é necessário que
os Estados nacionais não se deixem dominar pelo sistema econômico-financeiro, mas
criem organizações mund iai s capazes de garantir os direitos dos povos e a b us c a do bem
comum. A caridade é que torna eficaz a em Crist o (Gl 5,6). Na sua relação com a
verdade, pos s ib ili t a o seu universalismo, a base da vida social entre todos os povos (FT
183-185).
A u ni dade que somos chamados a viver, a partir do espírito cristão, acontece
mediante um diálogo capaz de respeitar o ponto de vista do ou t ro. Sem negar a identidade,
própria de cada um, pode-se contribuir para a edificação de todos. O que conta é gerar
processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de cole ci onar as
diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Vamos ensinar-lhes o bom
combate do encontro! (DGAE 2019-2023, 113 ). A exemplo de Cristo, nunca devemos
fomentar a violência e a intolerância (Lc 9,51-56; 22,49-51).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta cristã, apresentada pelo Apóstolo Paulo à comunidade da Galácia, de que
todos são chamados à unidade em Cristo, eliminando todas as formas de divisões, se
constitui num apelo muito at u al. Cada cultura possui suas marcas positivas e também seus
limites. Apesar de, muitas vezes, o contexto social, polític o e econômico, bem como o
religioso, dificultar a vivência fraterna, sempre permanece a esperança da comunhão
universal. Como pessoas que creem, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos,
não pode haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade (DGAE 2019-2023,
139). A Igreja é chamada a reconhecer a ação de Deu s nas outras religiões, buscand o
sempre trabalhar para a construção de um mundo on de todos tenham vida, e vida em
abundância (Jo 10,10), no diálogo, na fraternidade e no respeito ao diferente .
RUBINI, Ademir.
s daBíblia: Pois todos s soisUM em Cristo Jesus (Gl 3,28b)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 78-85, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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Passo Fundo, v.38, n.130,p. 78-85, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
A PROFECIA DA VIDA E DA
INSURREIÇÃO NO VALE
DA MORTE
Uma leitura da pandemia a partir de
Ezequiel 37
THE PROPHECY OF LIFE A N D
INSURRECTION IN THE VAL L EY
OF DEATH
A pandemic Re ad in g from
Ezekiel 37
Marcelo Barros*
Resumo: O presente texto se constitui em uma perspectiva de reflexão que
contempla profecia e pandemia no contexto atual. A pertinência da reflexão
está em reinterpretar a profecia de Ezequiel 37, considerando a realidade
pandêmica e o descaso com a vida humana. A dim en são dos ossos secos
recoloca a perspe ct i va bíblica no chão da vida e confere à re ali da de de morte
densidade teológica. A profecia de Ezequiel reforça que os ossos estão mais
do que secos: bem ressequidos. Assim estava a vida do povo e a pergunta
será que esses ossos poderão reviver? O objetivo é relacionar pandemia com
a profecia, no sentido de retomar o fato de que viver a e a espiritualidade
judaico-cristã significa ouvir uma Palavra em situação de exílio como
aconteceu com Ezequiel e a responsabilidad e do profeta é viver esta palavra
e ser capaz de comunicá-la pela vida aos seus irmãos e irmãs.
Palavras-chave: Ezequiel 37. Pandemia. Profecia.
Abstract: The present text constitutes a perspective of reflection that contemplates
prophecy and pandemic in the current context. The relevance of the reflection is to
reinterpret Ezekiel 37 prophecy, considering the pandemic reality and the neglect
of human life. The dimension of dry bones puts the biblical perspective on the
ground of life and gives the reality of deat h theological density. Ezekiel' s prophecy
reinforces that the bones are more than dry: very dry. So was the life of the people
and then the question will be that these bones will be able to revive? T he objective
is to relate pandemic to prophecy, in the sense of resuming the fact that living the
Judeo-Christian faith and spirituality means he ari ng a Word in exile as happene d
with Ezekiel and the prophet's responsibility is to live this word and be able to
communicate it through life to his brothers and sisters.
Keywords: Ezekiel 37. Pandemic. Prophecy.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 86-94 , Jan./Jun./2 02 1 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.46
* É monge beneditino e presbítero, te ólog o e
biblista. Durante oito anos foi secret ári o do
arcebispo Dom Hélder Câmara para as
relações com as outras Igrejas e religiões. Foi
professor de Sagrada Escritur a (Antigo
Testamento) do Seminário Teológico da
Arquidiocese de Goiânia de 1979 a 1984 e
professor de Liturgia no Curso de
Especialização de Liturgia da Faculdade
Nossa Senh ora da Assunção em São Paulo de
1979 a 1987. É professor convidado do
CESEP (Centro Ecumênico de Serviços à
Evangelização e Pastoral) em São Paulo e de
diversos organismos pastorais e ecumênicos
em toda a América Latina. É assessor
nacional das Comunidades Eclesiais de Base e
da Comissão Past oral da Terra. Atualmente é
secretário latino-americano da Associação
Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo
(ASETT) e um dos três teól ogo s que
compõem a Comissão Teológica da ASETT e
desenvolve uma pesquisa sobre a relação
entre Teologia da Libertação e Teologia do
Pluralismo Religioso. Publicou 45 livros de
Exegese Bíblica, Teologia Ecumênica,
Liturgia e Espiritualidade, além de colaborar
com várias obras coletivas.
E-mail: irm arce lob arros @ uol .c om.b r
https://orcid.org/0000-0001-5712-0618
Recebido em 20/1 0 /20
Aprovado em 14/01/21
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INTRODUÇÃO
Em cad as anteriores, Hollywood produziu filmes Epidemia ou Fora do Controle
(1995) e ainda Contato (2011), nos quais um vírus mortal punha em risco toda a
humanidade. Por mais que estes filmes parecessem pesadelos inimagináveis no século XXI,
o que estamos vivendo em 2020 no Brasil e praticamente em t odo o mundo veio mostrar
que a realidade ultrapassou todos os exageros da fantasia cinemat og ráf ic a.
Mais ai nda do que a cifra numérica de pess oas mortas pela Covid 19 e dos milhões de
pessoas atingidas pelo vírus, é terrível ver que, e m muitos países, a elite dominante e os
governos se revelam mais preocupados em garantir o lucro das empresas e a perpetuação
do si s te m a capitalista do que a própria seguridade humana e a vida no planeta Terra. Ainda
bem que movimentos sociai s se mobilizam para que esta crise gere algo de novo.
Pela ótica da fé, o Papa Francisco alerta: a vida depois da pandemia não pode repetir
os valores de antes. E não bast a a vacina contra a Covid 19. Temos de banir para sempre o
vírus dos interesses egoístas que levam a sociedade ao consumo de s e nf re ado e destruidor
da natureza
1
.
Para quem frequenta a Bíblia, este tempo de pandemia e suas conse qu ê n ci as
lembram um dos textos bíblicos mais famosos do Primeiro Testamento: a visão do profeta
Ezequiel no vale dos ossos secos (Ez 37,1-14). Convido vocês a fazermos uma leitura deste
texto, não tanto como estudo exegético. Devemos prestar at e ão ao te xt o ori g in al e ao
seu contexto para não fazermos leitura fundamentalista. No entanto, em uma leitura a
partir da fé, queremos principalmente, através da releitura de Ezequiel, ouvir o que o
Espírito diz, hoje, às Igrejas e ao mundo (Ap 2,5). O texto que segue aborda cinco aspectos.
A profecia em situação de cativeiro (1); Os diversos cati ve i ros e as diversas formas de
profecia (2); O contexto de Ezequiel 37 (3); Uma leitura de Ezequiel 37 a partir das nossas
dores (4); E agora, na nossa realidade de Igrejas e de mundo (5).
1 APROFECIA EM SITUAÇÃO DE CATIVEIRO
Historicamente, além dos dados que o próprio texto da Escritura nos fornece, temos
pouquíssimas informações sobre a pessoa e a vida do profeta Ezequiel. Como a maioria dos
escritos bíbli c os, também o atual liv ro de Ezeq ui e l teve re d ação comunitária. O texto atual
parece ter sido redigido em etapas diversas e progressivas dos séculos VI, V e talvez
mesmo IV a. C. No entanto, podemos situar a missão profética de Ezequiel no tempo da
invasão babilôn ic a, da destruição de Jerusalém e do des te rro de parte das famílias mais
importantes para o cativeiro na capital dos caldeus
2
.
Por respeito às realida de s históricas diferentes, não d e ve mos buscar semelhanças
diretas entre a época bíblica e a atual. No entanto, ao ler o texto em seu contexto e suas
relações, podem os nos deixar provo car por ele e pensar em noss a missão neste contexto
atual que não é em nada semelhante ao antigo cativei ro ba bi lôni co, mas, como naquela
época, é tempo de crise sócio-política que traz grandes desafi os para a fé.
Ao contar miticamente um primeiro c ati v e iro dos hebreus no Egito antigo, o livro
do Êxodo dizia: Deus viu o s of ri me nt o do povo e desceu para fazê-lo subir (Ex 3,1s). De
acordo com a Bíblia, Deus queria libertação, mandou o povo sair para ser libertado, mas o
povo, aqui e ali hesitava.
1 Papa FRANCESCO, La vita dopo la pandemia. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2020 .
2 Alonso SCHOKEL e J. L. SICRE DIAZ, Profeta I. p.687-69 1 .
BARROS, Marcelo.
A profeciada vidae dainsurreição novale da morte:Uma leitura dapandemiaa partirde Ezequiel 37
Revista Teopráxis,
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Essa situação se repetia. A i nda de acordo com a tradição bíblica, em 722 a.C, o reino
do Norte caiu nas mãos dos assírios. Pouco mais de um séc u lo depois, o reino de Judá é
destruído pelos babilônios.
Na época do cativeiro da Babilônia, diante da d es t ru ão de Jerusalém e do Templo, a
do povo entrou em crise. De repente, tudo parecia re v e lar que Deus falhava e
descumpria a promessa que havia feito de sempre proteger Is rae l. Alguns profetas como
Jeremias explicavam que quem quebrou a aliança não foi Deus e sim o povo ao
desobedecer à sua lei e não cuidar da j us t a e do direito (Jr 7 e 26). O cativeiro teria sido
consequência dos pecados do povo. Ao da letra, o povo tinha caído no cativeiro como
castigo de Deus por causa dos seus pecados (Jr 25 e 29).
Na primeira parte de suas profecias, Ezequiel chama Jerusalém de prostituta e revela
que sua destruição é con se q u ên ci a do caminho que a sociedade tomou (por exemplo, Ez
5,5ss; 16; 21,33ss).
Uma leitura ao da letra diria que o povo adorava outros deuses e foi infiel à lei de
Deus. De forma mais profunda, s e pode dizer que o próprio modelo de sociedade havia se
afastado do projeto de sociedade que a aliança proposta por Deus (aliança entre as pessoas,
baseada na justiça e na solidariedade). Por isso, a estrutura política se tornava frágil.
No livro do profeta Ezequiel, mesmo esta análise sob re responsabilidade pessoal e
coletiva sobre a realidade sofre uma evolução. Apa re nte m e nte , o profeta que , no início,
repetia as pregações sobre o pe cad o do povo percebe que não deve mais us ar este ti po de
argumento. Talvez porq u e , como o Deutero Isaías, percebeu que o povo havia recebido
de Deus pena dupla ou castigo dobrado por todas as suas faltas (I s 40,2).
É claro que ao falar em mão de Deus que castiga, os profetas antigos usavam imagens
antropomórficas para lembrar que, na base da aliança em Deus e com Deus havia um
projeto de s oci e dad e baseada na justiça e no di re it o. Este projeto é violado quando a
sociedade se divide, e n f raqu e c e e se torna alvo fácil dos inimigos.
Naquele contexto, de acordo com o que lemos em seu livro, Ezequiel era um jovem,
filho e herdeiro do sacerdote Busi. As palavras de abertura do livro podem ser
interpretadas no sentido de que ele teria 30 anos, quando foi chamado para ser profeta. Foi
exilado na Babilônia, em meio às famílias judaicas que vi e ram como escravas. Ali, f i cou
sabendo que Jerusalém tinha sido totalmente destruída. O templo não existia mais e ele
nunca teria oportunidade de exercer su as funções sacerdotais.
Por mais diferentes que os tempos sejam, podemos ligar o que vivemos agora com a
época do cativeiro blico da Babilônia e com a realidade vivida pelo profeta Ezequiel. Em nossos
dias, no meio do povo, uma das perguntas mais frequentes em videoconferências e debates tem
sido: Onde está Deus nesta pandemia? Como ligar e espiritualidade em tempo de quarentena?
Ainda hoj e , ministros de Deus que tentam explicar essa pandemia como
consequência dos pecados da humanidade. E ao fazerem isso, não estão recorrendo ao
argumento de ecologistas e fieis de espiritualidades originais que dizem: A mãe Terra está
tentando se def en de r de tantas a gr es es . Esses pastores (católicos e evangélicos) não faze m
análises da soci e dade e do momento. Ape nas evocam pecados individuais e no plano
moral. Quase sempre no que diz respeito à Moral Sexual. N o Brasil, houve grupos católicos
e pentecosta is que acus aram até o Carnaval como o pecado que gerou a pandemia.
Em muitos países, c omo medida de segurança, os governos proibiram os cultos
presenciais. Muitos padres católicos e pastores evang é li cos , ao verem suas Igreja s serem
esvaziadas, sustentaram a tese de que os cultos seriam atividade s essenciais à sociedade. Por
isso, deveri am ser mantidos mesmo durante a quarente na social.
BARROS, Marcelo.
A profeciada vidae dainsurreição novale da morte:Uma leitura dapandemiaa partirde Ezequiel 37
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Ezequiel nos propõe outro tipo de explicação e outro modo de agir. Ao ver que o
Templo não existe mais e ele tem de exercer sua profecia no cativeiro e em meio ao povo
cativo, o profeta nos ensina que, antes de sermos ministros do sagrado, estamos chamados
a ser profetas e profetizas da Palavra.
2 OS DIVERSO S CATIVEIROS E AS DIVERSAS FORMAS DE PROFECI A
Atualmente, no Brasil e no mundo, os milhares e milhares de irmãos e irmãs vítimas
da Covi d 19 não foram apenas ti ma s do vírus. Morreram porque, na maioria dos nossos
países, a saúde se tornou mercadoria. Os sistemas de saúde são privatizados e inacessíveis à
maioria do povo. No Brasil, terceiro país do mundo em desi g u aldad e social, metade da
população não tem acesso a saneamento básico (sistemas de es g otos ) . Como esta multidão
de pobres pode se proteger durante este tempo de quarentena? A classe méd ia e ri ca pode
ficar em casa, mas os trabalhadores pobres e as empregadas domésticas têm de trabalhar
para sobreviver. A pandemia revelou vírus mais mortais do que a Covid 19. Além da
vacina para um vírus, temos de nos vacinar contra os inte re s se s egoístas, a indiferença
social e a visão da terra e da natureza como mercadorias. Como falar de e de Deu s nesta
realidade? Em noss os dias, até que ponto o próprio discurso religioso não é legitimador
destas injus t as estruturais?
Na experiência de Ezequiel, ao perceber a aparente au nc i a de Deus diante do
sofrimento do seu povo, o prof e t a fica mudo (Ez 3,26 e de novo 33,21). Não o que falar.
Não para explicar. Se a função de profeta é exatamente s e r porta-voz de Deus, a figura
de um profeta mudo é a própria con tra di ção. Pior ainda: Ezequiel de clara ter sido o
próprio Deus que m o tornou mudo. Di z que Deus ameaçou que abriria sua boca quando
o povo se convertesse. Antes, não haveria razão para que lhe fosse dada uma palavra de
Deus (Ez 3,27 e de novo 33,22).
Voltando a olhar para nossa realidade, neste tempo de pandemia, em muitos países,
eclesiásticos passaram a abusar de símbolos religiosos. Usam o sacramento da eucaristia e a
cruz de Jesu s como símbolos m ág ic os. Inflacionaram a sensibilidade religiosa das pessoas
como se fosse para convencer Deus a se arrepender e deixar de castigar a humanidade.
Assim, deram ao mundo péssima imagem de De u s . Reler o texto de Ezequiel nos leva a
pensar que talvez a profecia mais justa tivesse sido exatamente fazer como o profeta do
exílio: calar e respeitar o silêncio divino diante do que está acontecendo .
3 OCONTEXTO DE EZEQUIEL 37
Sobre o c ont e xto histórico e soc ial , sabemos o que o próprio texto diz. Não vale a
pena entrar no debat e técnico dos exegetas que defen de m dois períodos ou etapas de
missão do profeta, sendo uma na J u de i a e outra na Babilônia. M e smo estudiosos que
defendem essa separ ação de tempo, concordam que, ao menos, a partir do capítulo 33 o
cenário parece ser o exílio da Babilônia
3
.
Quanto ao contexto literário, o capítulo 37 se situa na terceira parte das profecias de
Ezequiel, n a qual a mudez do profeta é retirada. Então, de novo, o profeta pode falar. A
Palavra de Deus volta a ecoar. Ela se expressa na forma de visão (no estilo de apocalipse) e
também na antiga forma de profecia, ou seja, interpretação da visão aplicada à realidade e à
vida do povo de Deus.
3 Para esta discussão ver Alonso SCHOKEL e J.L. SICRE DIAZ, Profeta II , p.688-690.
BARROS, Marcelo.
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Dentro da terceira parte do livro, a maioria dos est u dos aponta uma maior unidade
redacional que vai do capítulo 34 a 37. Esta parte reúne profecias de consolação e
esperança como ocorrem com o livro do chamado Deutero-Isaías e de Jeremias 3133, ou
mais tarde Zacarias 9 em diante.
O capítulo 37 contém a visão macabra de um cemitério cheio de ossos ressequidos.
No entanto, o seu centro continua a bela promessa contida no capítulo anterior: o Senhor
conduzirá os exilados em novo Êxodo para a terra prometida, os purificará de suas
impurezas e lhes dará um coração de carne, pondo neles/as o seu sopro de vida, a sua Ruah
(Ez 36,24ss ).
A visão do profet a é narrada em linguagem apocalíptica, como um sonho ou
arrebatamento (a mão do Senhor me peg ou ) . Isso vai até o verso 11. Do verso 12 a 14, o
tom passa a ser mais concretamente de uma profecia que explica e aplica a visão à realidade
do povo cativo. E do versículo 15 em diante, o profeta anuncia ou propõe a unidade dos dois
reinos, o de Israel e o de Judá. A libertação precisa desta uni dad e. Até hoje, se os oprimid os
não se unirem, mesmo em suas diferenças, difi c ilm e nte conseguirão seus objetivos.
4 UMA LEITURA DE EZEQUIEL 37A PARTIR DAS NOSSAS DORES
Ao iniciar a leitura do te xt o, é bom valorizarmos o tom de testemunho. As profecias
de Ezequiel têm este estilo. São narradas como experiê nci as pessoais. A mão do S e nho r veio
sobre mim... O S en hor me levou para f ora... (Ez 37,1). Deus nos leva pa ra fora. No caso de
Ezequiel, Deus o leva para uma planíci e ou vale. No início do seu ministé ri o, Deus lhe
havia dito: Levanta-te e vai para o vale. É ali que eu vou te falar (3,22). Ag ora, nesta visão do
capítulo 37, é o próprio Deus que o leva para o vale. Não se trata de pergu nt ar se histórica
e geograficamente seria o mesmo vale ou planície. Pouco importa. Teológica e
espiritualmente sim o simbolismo é o mesmo. que no caso desta visão a qual o profeta
se sentiu arrebatado como em êxtase, Deus o colocou em um vale (ou planície) repleto de
ossos. Fez-me circular no meio dos ossos em todas as direções (v.2). Deus tirou o profeta,
levou-o para fora (atualme nt e , o Papa Francisco propõe uma Ig re ja em saída). Para onde o
levou? Para o meio de uma planície cheia de ossos. E fez o profeta circular no meio dos
ossos em todas as direções.
Para um profeta de família sacerdotal, arraigado na antiga cultura judaica, andar no
meio dos ossos de cadáveres, signifi cav a se tornar ritualmente impu ro (Lv 21,1-4 e 22,4).
Essa não é a te mát ic a do texto. No entanto, é mais um elemento que revela até qu e ponto a
realidade que o profeta vive é desafiadora. Talvez, atua lme nt e , mais do que nunca, nossas
Igrejas seja m chamadas a ir além dos seus sistemas e de suas culturas relativas ao sagrado.
Jesus parece ter vivido o mesmo. Para nós que lemos hoje os evange lhos nem nos
damos conta de que Jesus, ao curar o lepros o, faz questão de tocá- lo. Ao fazer isso, ele
assume o estado de impureza legal, como s e possibilitasse a inclusão do leproso no templo,
ele próprio se tornando impuro (Mc 1,41). Aos católicos, o Papa Francisco diz que prefere
uma Igreja acidentada, feri da , enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja
enferma pelo fe c ham e nt o e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero
uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa em um emaranhado de
obsessões e procedimentos (EG 49).
O texto de Ezequiel reforça que os ossos estão mais do que secos: bem ressequidos.
Na sua visão, o profeta ossos ressequidos. Se para a cultura judaica ossos fora da
sepultura representam um absurdo, revelam a ameaça de impureza ritu al. Mais ainda: para
a pessoa morta, ter seus ossos expostos fora da sepultu ra é uma maldição. Através de
BARROS, Marcelo.
A profeciada vidae dainsurreição novale da morte:Uma leitura dapandemiaa partirde Ezequiel 37
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Jeremias, Deus fez esta ameaça aos reis e aos nobres de Jerusalém: Vou tirar os seus ossos
das sepulturas e os seus esqueletos fic arão expostos ao sol, à lua e às estrelas (Jr 8,1-3). Era
o castigo reservado à elite opressora do povo.
Ao ver os ossos secos, Ezequiel não j ul ga nem culpa ninguém. A tradição judaica
interpreta com muita liberdade os textos bíblicos. No tempo antigo, em seu s comentários
midráshicos de Ezequiel, o rabino Yehoshuah Ben Korha ensinava que aqueles ossos
teriam sido dos 600 m il hebreus saídos do Egito. Outro rabino an ti g o dizia que eram os
ossos dos efraimitas que tinham querido se libertar antes dos outros e, por isso, tinham
sido massacrados pelos filist e u s
4
.
Para nós, o que o texto nos diz é que os ossos estão mais do que mortos: secos e
ressequidos. É bom ver estes atores que aparecem no texto além do profeta: de um lado os
ossos secos, do outro o Espírito.
Como nos outros textos do livro, o profeta é chamado de ser humano (filho do
homem). No texto de Ezequiel, o termo não tem ainda a conotação escatológica e a relação
com o mito babilônico da Divindade Humanizada que, por exemplo, toma nos textos
apocalípticos do livro de Daniel (D n 7). O profeta é simplesmente o h u mano. E o que Deus
lhe pergunta é se estes ossos poderão reviver. O profeta responde Tu, Senhor, sabes. E
Deus lhe manda profetizar aos ossos.
Embora os termos hebraicos sejam diversos, é claro que o texto de Ezequiel lembra o
livro do Gênesis quando diz: Do da terra, o Se nh or formou o ser hu man o, com o seu
sopro, soprou em suas narinas e lhe deu o seu sopro de vida (Gn 2,7). Agora em Ezequiel,
não é mais diretamente. E o profeta que invoca o sopro divino para que este possa reentrar
nos ossos e lhes restituir a vida. Parece irônico mandar os ossos escutarem a profeci a,
que os vivos não querem escutá-la. Não deixa de ser estranho imaginar que ossos possam
escutar uma profecia.
A conclusão a que podemos cheg ar é que existe um tipo de profecia que para ser
eficaz depende da qualidade da escuta. No entanto, a profecia que vida contém de tal
forma a energia criativa do amor que faz surgir v i da mesmo no reino da morte. Esta é a
força da Ruah Divina.
Neste texto, aparece oito vezes a palavra ossos e dez vezes o termo ruah sopro,
espírito (ar em movim e nto) , seja se referindo ao sopro divino, seja ao sopro de vida
humana. O profeta diz a palavra do Espírito para os ossos. O texto é muito fort e ao
sublinhar a importância da profecia: Enquanto profetizava..., se escutou. O texto diz: houve
um terremoto, se escu t ou trovão e os ossos se juntaram. As forças cósmicas da natureza
respondem à humanidade que a agride, se des e q ui li bran do. aconte c e m terremotos e
furacões como forças destruidoras da vida. Aqui, a natureza se torna aliada da vida e o
terremoto e trovão colab oram com a profecia, ou até fazem parte da profecia que restitui
vida aos ossos secos da humanida de . No entanto, mesmo se eles se tornaram corpos
humanos, faltava-lhes o sopro da vida. Era como se, mesmo tendo recebido o sopro de vida
que lhe permitiu formare m corpos, lhes faltasse o Sopro maior que consiste na vida
autônoma e renovada. É como se o próprio ato do E spí ri to se desse em um processo. No
livro de Jó, o pat ri arca ora assim: Lembra-te, por favor, que me fizeste como argila e,
agora, me reduzes ao pó? (Jó 10,9-11).
No versículo 8, o texto de Ezequiel se refere a diversos espíritos. Deus manda o
profeta chamar o Espírito dos quatro ventos. A fórmula parece única em toda a Bíblia:
profetiza ao Espírito (v.9). Até então, estávamos habituados que, em nome do Es píri to, a
4 FARHID, Daniel, (rabino), Haftarah do ShabbathHolHamoed de Pesah, homilia publicada em uma sinagoga de Paris,
divulgada na internet, 21 abril 2014.
BARROS, Marcelo.
A profeciada vidae dainsurreição novale da morte:Uma leitura dapandemiaa partirde Ezequiel 37
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 86-94, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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profecia é dada às pessoas. Neste capítulo de Ezequiel, a profecia é dada aos ossos secos e
depois, Deus manda dizê-la ao Espírito e o denomina Espírito dos quat ro ventos. Isaías
tinha se referido aos sete espíritos ou dons do mesmo Espírito (Is 11,2). O Apocalipse
falará nos set e Espíritos de Deus (Ap 1,4). Em um texto escrito para uma obra coletiva
publicada na Itália, o teólogo irlandês Diarmuid OMurchu afirma que, com os aborígenes
australianos e com os nativos da Nova Zelândia aprendeu que o Grande Espírito e os
Espíritos, adorados por alguns povos tradicionais, são expressões do mesmo Espírito que a
tradição bíblica chama de Ruah Divina
5
.
Neste momento de grave crise ecológ ic a e civ i liz aci onal, um d es af i o atual para as
Igrejas cristãs é não somente respeitar e dialogar com as tradições dos povos originários
(indígenas) e comunidades afrodescendentes, mas inserir-se e aprender com eles e elas
uma espiritualidade cósmica e da natureza que nos ajude a colaborar para o
reencantamento do mundo. No sul do México, Guatemala e alguns lugares da América
Central as etnias Maya iniciam cultos saudando o Espírito presente nas quatro direções do
mundo. Na cordilheira, povos andinos faze m a invocación à lassietedirecciones (al e st e , al
norte, al oeste, al su r, el arriba, el abajo, el centro)
6
. Do me s mo modo, é preciso ver nas
manifestações dos Orixás, dos Inquices ou Voduns nas diversas formas de Candomblé,
Santeria, Umbanda e tradições afrodescendentes a mesma fonte comum, a Ruah Divina
que nos chama à profecia da vida.
É estranho que até ao invocar o Espírito, Deus manda o p rof e ta dizer para o Espírito
fazer reviver estes corpos mortos (o termo hebraico usado haruguin significa literalmente
assassinados ou massacrados). Então, os ossos secos de repente se tornaram símbolos de
resisncia (osso é o que resta de mais duro em um corpo) e símbolos de um martírio coletivo.
Como não recordar aqui os mais de 30 mil irmãos e irmãs, mártires da caminhada
latino-americana, como pessoas assassinadas. Mas, o número de mártires vivos/as que
resistiram a perseguições e continuam o seu testemunho é bem maior.
Agora, o processo está concluído e os ossos formam um grande exército. No verso
11, a visão lugar à interpretação profética: estes ossos são toda a casa de Israel. E como
no Êxodo do Egito, Deus mostra que escuta o g ri t o e o lamento dos oprimidos. São como
que três queixas: A prime i ra é Nossos ossos estão secos. Os salmos contêm estas queixas:
Minha vida se acaba em aflições... meus ossos se consomem (Sl 31,11). Faze-me ouvir o júbilo e a
alegria e exultem estes ossos que trituraste (Sl 51,10). A segunda q ue i xa ou lamentação é quase
final: Veavedatikvaténu: nossa esperança aca b ou . Por isso, os ossos estavam para além de
secos. A conclusão é a terceira lamentação: esta mos p er didos. É a este tríplice grito que Deus
responde com a profecia que vai do verso 12 a 14 do capítulo 37.
A linguagem lembra a do Êxodo. Deus dizia: Eu desci para fazer o p ovo subir (Ex
3). Agora Deus diz: Eu vou de sc e r até as vossas se pul tu ras para vos fazer sair (fazer sair é o
mesmo verbo usado para o Êxodo). É estranho que durante toda a visão não se falou em
sepultura. Era vale aberto cheio de ossos. Aqui o texto parece vir de outro contexto
literário e cultural, certamente posterior. Muitos exegetas creem que os versos 12 e 13
foram acrescentados posteriormente ao texto
7
. Inclusive quem veja na redação destes
versos a influência de um poema apocalíptico colocado no t e xt o de Isaías, mas que é
posterior ao exílio. Ali estava escrito: Teus mortos rev i ve rão, seus cadáveres vão se
levantar. Acordai para cantar, vós que dormis debaixo da terra (Is 26,19).
5 Diarmuid OMurchu, Orizzonti dello Spirito nel XXI secolo, In: A cura di Claudia FANTI e José Maria VIGIL, Il Cosmo
come rivelazione: Una nuova storia sacra per lumanità, p.163-164.
6 RED DEL BUEN VIVIR, Eterno Deseo: Reflexiones para una eco-espiritualidad, p.19 -2 0.
7 MAERTENS, Th i e rry e FRISQUE, J., Guia da Assembleia Cristã III. p.209.
BARROS, Marcelo.
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É claro que esta linguagem permitiu aos grupos cristãos interpretarem sem pre e st a
profecia de Ezequiel como promessa da ressurreição. Certament e , esta perspectiva estava
presente na redação do texto do Apocalipse de Isaías, no século IV ou III a.C.
Em Ezequiel, o horizonte é a volta do exílio e a restauração do povo de Israel-Judá.
No seu contexto histórico, o conteúdo de Ezequi e l 37 é primeiramente soci al e político.
Isso não nega a perspectiva da ressurreição que tem sempre por trás da palavra o termo
insurreição e o prefixo re que nos coloca na perspect iv a de uma segunda e mais profunda
insurreição pe la vida provocada pelo Espírito, Ruah Divina
8
.
5 EAGORA,NA NOSSA REALIDADE DE IGREJAS E DE MUNDO
A leitura de Eze qu i e l 37 nesta realidade q u e estamos vivendo parece nos desafiar a
retomar a perspectiva de viver e compreende r a como profecia. Concretamente, retomar
o fat o de que viver a e a espiritualidade judaico-cristã significa ouvir uma Palavra e m
situação de exílio como acontec eu com Ezequiel e a responsabilidade do profeta é viver
esta palavra e ser capaz de comunicá-la pela vida aos seus irmãos e irmãs.
Frente a tendências de um cristianismo ritual e autocentrado, um texto como
Ezequiel 37 nos ajuda a firmar uma vocação profética através de um estilo de vida e de
espiritualidade, baseado na palavra e na ética da libertação como meio de vivermos a maior
intimidade com Deus.
Esta espiritualidade sócio-política libertadora se reve la na pluralidade de caminhos e
sensibilidades. Ensinam-nos a caminhar juntos/as na diversi dade de gêneros, nas lutas
contra o patriarcalismo, o racismo, a xenofobia e as diversas formas de homofobia. Assim,
poderemos nos unir aos gritos dos milhões d e pessoas que neste mundo são excluídas.
Assim, poderemos como Ezequiel receber de Deus o encargo de profetizar ao Espírito, para
que este mundo se t ran sf orme de um vale de ossos secos e ressequidos em uma terra nova
na qual a justiça ecossocial e a paz possam florescer.
Os evangelhos mostram que Jesus uniu em sua pessoa e na sua atuação a dimensão
carismática ou pentecostal da e a dimensão transformadora ou revolucionária.
unindo estas duas dimensões poderemos hoje realizar o encargo de profetizar ao Espírito
para que o mundo deixe de ser um v ale de ossos secos e se transforme em terra do bem-
viver. O texto de Ezequiel nos faz retomar a profecia do S almo 1 04 , antigo hino egípcio a
Aton Ra, o Sol. Ele foi assum id o pelos profetas e profetizas da Bíblia, tornou-se um hino
contemplativo da ação divina no universo e nós o resumimos dizendo: Envia, tua Ruah
Divina, o teu Espírito de Amor e toda a terra será recriada e sua face renovada (Sl 104,29 -
30).
REFERÊNCIAS BIBL IO G RÁFI CAS
FARHID, Dan ie l, (rabino). Haftarah do ShabbathHolHamoed de Pesah. homilia publicada e m uma
sinagoga de Paris, divulgad a na internet, 21 abril 2014.
FRANCESCO Papa. La vita dopo la pandemia. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2020.
FRANCISCO, Papa. E x ort a çã o apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.
HABTU, Te w oldd em e dh in . Ezequiel. In: ADEYEMO, Tokunboh, (editor geral). Comentário Bíblico
Africano. São Paulo : Mundo Cristão, 2006.
MAERTENS, Thierry e FRISQU E, J. Guia da Assembleia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1970.
8 Tewolddemedhin HABTU, Ezequie l, In: Tokunboh ADEYEMO, Comentário Bíblico Africano, p.1002-1003.
BARROS, Marcelo.
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RED DEL BUEN VIVIR, (BROWN, Laura; BURGESS, Sarah y Comité Editorial). Eterno Deseo,
Reflexiones para una eco-es pi ri t u alidad. Santiago de Chile: Ed. Com-spirando, 2011.
SCHOKEL, Alonso e SICRE DIAZ, J. L. Profeta II, (Grande Comentário Bíblico). São Paulo: Paulus,
2011, 3 .e d .
BARROS, Marcelo.
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Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
CIÊNCIA, PRÁTICA DE JESUS E
FORMAÇÃO HUMANA
SCIENCE, JESUS 
PRACTICE AND
HUMAN FORMATION
Rodinei Balbinot*
Resumo: O presente artig o pretende tratar da formação humana
considerando, de um lado, sumariamente, algumas das conquistas mais
recentes da ciência a respeito da inteligência e, de outro, alg u ns referenciais
da prática de Jesus que demonstram suas habilidades formativas no uso
integrado da inteligência. As pe s qu i s as recentes da neurociência mostram
que nosso cérebro sempre atua como um todo e recruta dinamicamente os
neurônios, em todas as partes do cérebro, para cada ação que realizamos.
Aquilo que, ao longo do século pass ado, foi se chamando de inteligências,
em termos pedagógico-formativos, precisamos tratar como dimensões de
uma mesma inteligência humana. Daí a importância de conside rarmos , nos
processos formativos, todas as dimens õe s , caso desejarmos falar em
formação ou e duc ação inte gral. Para tratar da temática, após uma breve
introdução, anunciaremos a dimensão da inteligênci a de acordo com a
pesquisa científica para, em seguida, averiguarmos como Jesus lidava com
os processos formativos na vida cotidiana para desenvolver cada dimensão,
relacionada com as outras. Nas considerações finais, apenas nos caberá
reconhecer que ainda vivemos rodeados por mistérios com os quais
flertamos para avançar ainda mais na aventura do conhecimento.
Palavras-chave:Formação. Inteligência. Educação. Jesus. Ciência.
Abstract: The prese nt article intends to deal w i th human formation considering,
on the one hand, some of the most recent achievements of science re g ardi ng
intelligence and, on the other, some references of Jesus' practices that demonstrate
His skills in the integrated u se of inte lli g e nce . Recent neuroscience research shows
that our brain always acts as a whole and dynamically recruits neurons, from all its
parts for every action we take. What, ove r the last century, has been called
intelligence, in pedagogical-formative terms, we need to consider as dimensions of
the same human intelligence. Hence it is important to consider all dimensions in
the formative processes when we think about integral education and formation.
To devolve the subject, after a brief introduction, we will review the dimension of
intelligence according to scientific research, and examine how Jesus dealt with the
formative processes in daily life to develop each di me nsi on, related to the others.
In the final remarks, we will only recognize that we s ti ll live surrounded by
mysteries with which we flirt to go even further in the adventure of knowledge.
Keywords: Formation. Intelligence. Education. Jesus. Science.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 95-104 , Jan./Jun./202 1,
ISSN on-line: 2763-520 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.37
* Possui mestrado em Educação pela
Universidade de Passo Fundo (2005), Pós-
Graduação em A dmini s traç ão de Empresas
pela Fundação Getúlio Vargas (2010),
aperfeiçoamento em educação pela
Universidade de Passo Fundo (2003),
graduação em Filosofia pela Fundação
Educacional de Brusqu e (1995) e graduação
em Teologia pelo Instituto de Teologia e
Pastoral de Passo Fundo (1999). Foi diretor e
gestor do Instituto de Teologia e Pastoral de
Passo Fundo de maio de 2005 a março de
2008, onde coordenou o processo de
Credenciamento da IES junto ao MEC, bem
como o processo de autori zaç ão do Curso de
Teologia Pas toral. Nesta instituição também
coordenou a pós-graduação em Metodolog ia
do Ensino Religioso e a pós-graduação em
Metodologia Pastoral. É colunist a da Revista
Paróquias e Casas Religiosas e do Jornal
Diocesano de Chapecó. É diretor ge ral da
Rede Santa Paulina - Educação. Fundador da
Empresa Sapiência Desenvolvimento
profissional e gerencial, que atua
exclusivamente no se g me nt o educacional.
E-mail: rodine ibalbi not @bol. c om.br
https://orcid.org/0000-0002-7246-0319
Recebido em 29/09 /2 0
Aprovado em 22/12/20
96
CONSIDERAÇÕES INICI AI S
Antes de entrarmos na temática deste artigo, gostaria de expressar minha gratidão ao
Instituto de Teologia e Pastoral de P ass o Fundo ITEPA, pela imensa contribuição em
minha trajetória formativa. Fui aluno, de 1996 a 1999; professor, de 20 0 2 a 2008; diretor,
de 2005 a 2007. Teste mu nh e i, ao longo desses anos, a excelência com que o Instituto trat a
a questão da formação humana em todas as suas dimensões. Louvem os a Deus pelas
maravilhas que realiza por meio do ITEPA.
O tema em questão é sempre atual, ao menos por dois motivos: a) porque Deus
sempre se revela, é sempre jovem e está a manifestar as pote nci ali dad e s do Espírito na
criação; b) porque o ser humano é um ser de t rans ce nd ê nci a, e a formação humana, no
contexto atual de crise socioambiental, adquire importância e urgência inadiáve l, como
bem disse a Declaração Gravissimum Educationis
1
, sobre a Educação Cristã, do Concílio
Ecumênico Vat ic ano II, em 1965.
O Papa Francisco, desde o início de seu pontificado, em 13 de março de 20 1 3, tem
pautado o tema e dado a ele visibilidade internacional. Em 2019, convocou toda a
humanidade e os cri st ãos , de modo especial, para Reconstruir o Pacto Educat iv o pela
Educação
2
, sob a ideia de que vive mos em uma aldeia global. Resgatando um sábio
provérbio africano, que diz que pa ra educar uma criança é preciso uma aldeia inteira,
Francisco propõe que a educação é t are f a de toda a humanidade. Não nos serve uma
concepção de educação/formação que se detenha nos aspectos instrumentai s da vida.
Temos de avançar para uma proposta que considere o ser humano, sua integridade,
dignidade e liberdade. Deste modo, o pacto pela educação/formação passa pela formação
integral, que abrange a integralidade humana e, assim, tome tam m a inteligência de
modo integral, não compartimentada. Desejamos uma educação/formação que le ve em
conta as principais conquist as da ciência e gere vida em abundância para todos (Jo 10,10).
A ciência, excessiva e até escandalosamente, experimental e técnica esqueceu a
humanização no subsolo. O mesmo se pode dizer da razão abstrata, que abandonou o
mundo sensível, emocional e espiritual no porão da vida e lançou-se ao sótão para granjear
somente c om a idei a. acu s açõe s a ambas no tri bu nal da form ação e do conhecimento, de
modo a termos de sempre perguntar sobre o pa pel da ciência e do conhecimento nos
processos de vida. A própria ciência tem feito o papel de revisar-se a si mesma.
Os estu dos dos últimos dois séculos desvelaram várias formas de inteligência,
relacionadas a regiões distintas do cérebro e acionadas por diferentes formas de relações,
mas que, de alguma forma, incidem umas às outras em uma única experiência formativa. O
desvendamento das inteligências abriu várias portas para dar mais emoção à formação e
devolver a ela o sabor da integralidade. Mas ainda um longo caminho a ser percorrido,
de modo especial no que diz respeito à chamada formação integral, que estaria por supor
uma i nt e lig ê n ci a integral e uma concepção do ser humano em sua integridade. Em termos
pedagógicos, não podemos tomar a inteligência de modo compartimentado, pois
formamos pessoas, que não podem ser divididas. Neste artigo, esboçaremos de modo
sumário
3
, inicialmente, o que a ciência tem i ndi c ado quanto às inteligências para, em
1 Disponível e m http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii _v ati ca n_cou n ci l/doc u me nt s/v at -i i_d e cl_1 96 5 10 2 8_
gravissimum-educationis_po.html. Acesso em 19.10.2020.
2 Disponível em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2019/documents/papa-francesco
_20190912_messaggio-patto-educativo.html. Acesso em 19.10.2020.
3 Não espaço aqui para aprofundarmos as pesquisas sobre a inteligência. Empreitada essa que está em andamento
em uma obra maior, no prelo, cujo título prov i sóri o é Reencantar-se com o conhecimento. Aqui somente anunciaremos a
descoberta da inteligência para situá-la no tempo e na pesquisa científica.
BALBINOT,Rodinei.
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seguida, buscarmos referênc ia s na prática de Jesus, na forma como conduzia os processos
formativos, como uma inspiração para as práticas formativas atuais.
1 DIMENSÃO INTELECTUAL DA INTELIGÊNCIA:SERES DE CONHECIME N TO
Em 1905, o governo francês, com o propósito de organizar um sistema gradual de
ensino, encomendou ao psicólogo e pedagogo A l fr ed Binet (1857-1911) a elaboração de
um teste que possibilitasse medir a intelig ê nc ia das crianças e classificá-las por ano ou
grupos. Em 1907 , Binet e Théodore Simon (1872-1961) publicaram, na LAnnée
Psych olo gi c
4
, um esboço de suas pesquisas s obre O desenvolviment o da i nt e ligência nas
crianças, colocando-se no meio de uma polêmica de se u tempo sobre a possibilidade de se
medir a inteligência. Enquanto alguns se dedicavam a engrossar a polêmica, Binet e Simon
se entregavam a pesquisas para tornar isso viável. Em 2011 publicam Testes para medida do
desenvolvimento da inteligência das crianças, onde referenciam descritivos para avaliar o
desenvolvimento e a inteligência de crianças a partir dos 3 anos até os 15 e, também,
critérios para adultos. Está posta a base dos famosos testes de QI - Quociente de Inteligência,
focados no conhecimento intelectual, amplamente utilizados, d u rant e praticamente todo o
século XX, para medir a inteligência, classificar alunos e até mes mo para cont rat ar
profissionais
5
. Esse foi o início de praticamente um século de pesquisas educacionais
ligadas à ciência da cognição, que marcou, entre outros, teóricos como Lev Vigotski, Jean
Piaget, Howard Gardner. Est e último, pai das chamadas inteligências múltiplas.
Desde as pesquisas de Bi ne t e Simon a Inteligência Intelectual ocupou a preocupação
das escolas e universidades, de maneira quase que exclusiva. algum tempo, porém, vem
sendo questionada e posta ao lado de outras dimensões igualmente importantes e
necessárias para o desenvolvi me n to integral do ser humano. Cresce t ambé m a ideia de que
a Inteligência Intelectual precisa ser desenvolvida em re laçã o com outras inteligências,
pois, concebida somente sobre si mesma, descamba para um cont e úd o frio, sem sabor, sem
sentido e conduz à formação pelo caminho da ins tr um e nt aliz ação ou da tecnociência.
Pessoas que têm alta Inteligência Intelectual e baixa inteligência social podem fazer certo o
que é errado, causando grandes desgraças, como as que conhecemos na história da
humanidade rec e nt e .
Quando olhamos para Jesus, percebemos sua profunda Inteligência Intelectual e a
perspicácia em utilizá-la para o exercício de sua missão, integrada a outras formas de
inteligência: fazer a vontade de Deus, qu e era a de gerar vida para todos. Ele conhe ce muito
bem as Escrituras, f u nd ame nt o principal da e da sociedade religiosa judaica de seu
tempo. É o que lhe permite dialogar, refletir e discuti r com doutores da lei, aqueles que se
dedicavam quase que exclusivamen te ao estudo e à int e rpre t ação das Escrituras. Quando
um de ss e s especialistas indaga a Jesus sobre o que deveria fazer para conseguir como
herança a vida eterna, Jesus lhe devolve o questionamento para que possa revisitar seus
conhecimentos: Que está escri to na Lei? Como lês? (Lc 10,26). Certamente, o especialista
se sentiu valorizado e tratou logo de dar a respost a citando o maior dos mandamentos:
Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força
e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo (Lc 10,27). O especialista
não é apenas assertivo na resposta, como a postula de um modo irrepreen ve l. Notemos
que o amor se com a integralidade do ser e da inteligência: corpo (força), coração
(sentimentos, emoções), alma (espíri to , sentido maior), entendimento (intelect o). O
4 Anuário da Psicologia - uma espécie de resu mo das pesquis as da área da psicologia.
5 Ver Alfred BINET. Disponível em http://www.d omi ni opu bli co. g ov. br/d own load/t e xt o/me 4 66 1 .pd f. Acesso em
01.10.2020. Texto: Testes para medida do desenvolvimento da inteligência nas crianças, entre as páginas 77 e 80.
BALBINOT,Rodinei.
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especialista sabe que não basta amar somente com o entendimento, é necessário um amor
integral. Portanto, não havia nada a reparar na respos ta. Jesus , por isso, apenas diz: faze
isso e viverás (Lc 10,28). A conclusão de Jesus é, ao mesmo tempo, um reconhecimento ao
conhecimento do doutor da lei e uma provocação para que o saber dele se transforme em
ação para gerar vida.
inúmeras outras passagens bíblicas nas quais Jesus demonstra as habilidades da
Inteligência Intelectual. Ele parte se mpre das necessidades, de uma questão limite, de uma
situação problema: a multidão faminta, os doentes, as súplicas, as perguntas e inquietações,
as aflições, os proble m as cotidianos, os sofrimentos. Reflete sobre a situação utilizando-se
das refe nc i as da Torá (Lei) e Profetas, que era a referên ci a fundamental do conhecimento
judaico e, por diversos meios, envolvendo sempre as pessoas: parábolas, discursos, práticas,
análise de situaç õe s, comparações, citações, costumes, diálogos, questionamentos,
condução de proce s sos como no caso de Emaús. Postula e indica para a solução de
problemas: cura, responde, conduz, mobiliza, liberta, prov oca discerni me nt o e mudança,
converte.
2 DIMENSÃO E MO CI ON AL DA INTELIGÊNCIA:SERES DE EMPATIA
Na históri a humana, assim como nas relaçõe s , parece que as emoções atingem o
estômago an te s que as ideias cheguem ao intelecto
6
. Os últimos 50 anos têm sido intensos e
conturbados no que diz respe it o à economia emocional pessoal e coletiva. Houve mesmo
quem anunciasse que a doença do sécul o XXI seria a depressão, tamanha a pressão
emocional a que o frênesi cotidiano expõe as pessoas. Estaríamos doentes de nós mesmos.
O certo é que assistimos a uma desenfreada ebulição de questões e problemas
emocionais, junto com os quais també m proliferam pesquisas a respeito e um mar de
literatura de autoajuda. Se, no século XX, houve descobertas que trouxeram à luz as
variadas potencialidades humanas relacionadas à base cerebral, transcendendo o aspecto da
cognição, esse interesse se mu lt ipli c ou nos últimos 50 anos. As novas tecnologias abriram
novas possibilidades às pesquisas : Elas tornaram visível, pela primeira ve z na história
humana, o que sempre foi um g rand e mistério: co mo atua essa intrincada quantid ade de
células enqu ant o pensamos e sentimos, imag i namos e sonhamos
7
.
No decorr er do século XX houve diversas pesquisas que bateram na porta da
inteligência emoci ona l. O termo Inteligência emocional surge na década de 1920, pelo
psicólogo e pesquisador norte-americano Edward Thorndike (1874-194 9 ). Thorndike
notou que a eficiência interpessoal era de importância vital para o sucesso em muitas áreas,
sobretudo na liderança (In: GO LE M A N, 2019, p. 106). Os avanços na investigação da
mente e das inteligências foram abrindo novos horizontes, mesmo que mui ta s ainda
permanecessem filiadas à cognição. Foi por Daniel Goleman, ps i cólog o e jornalista
científico, que essa nova descoberta foi conhecida no mundo todo, com a publicação de seu
livro Inteligência emocional (1995).
A descoberta é que, quando se trata de decisões e ações, desde as mais simples como
as mais complexas e importantes, a emoção pesa tanto quanto a razão (GOLEMAN,
2012, p. 30). A emoção não é um desvio da razão, senão uma forma de inteligência, talvez
mais antiga que a inte le c tu al. Todas as emoções são, em essência, impulsos, legados pela
evolução, para uma ação im ed ia ta, para planejamentos ins ta ntâ ne os que visam a lidar com
6 Daniel GOLEMAN, Inteligência emocional, p.36, mostra que existiu um cére bro emocional muito antes do
surgimento do cérebro racional .
7 Daniel GOLEM A N, Inteligência emocional, p.2 3.
BALBINOT,Rodinei.
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a vida. A própria raiz da palavra emoção é do latim movere mover acrescida do prefixo
e-, que denota afastar-se, o que significa que em qualquer emoção está im plíc it a a
propensão para um agir imediato
8
. À vista disso, as emoções i nf lu e nc iam mais em nossa
vida do que podemos perceber.
A síntese da IE apresentada por Goleman mostra que um indivíduo emocionalmente
inteligente pratica, ao mesmo tempo, autoconsciência e autogestão, consciência social e
gerenciamento dos relacionamentos. Ou seja, conhece as suas próprias emões, sentimentos,
os administra, agindo sobre eles e tem consci ê nci a das suas relações, gere nc i ando- as. Em
poucas palavras, tem autodomínio e capacidade para gerenci ar as relações
9
.
Em Mateu s (4,1-11), após Jesus ter sido batizado, o Espírito o conduz ao d e se rt o,
para ser tentado pelo diabo (Mt 4,1). Deserto, na Bíblia, é local de transformação, de
mudança, de revisitar as questões fundamentais da vida e ressignificar o modo de ser. É no
deserto que Moisés v iv e a experiên ci a do encontro com Deus na montanha (Êx 3,1-6). O
povo de Deu s , despois de sair da s it u ão de escravidão do Egito, passa pelo deserto, onde
reconstrói as bases sociais, religiosas, políticas e econômicas da sociedade (Êx 16;18; 19; 20;
21). Jesus passa quarenta dias no deserto, assim como o povo passou quarenta anos.
Quarenta é um número simbólico, significa um tempo necessário e oportuno. No deserto
Jesus vai passar pelo teste da autoconsciência, da autorresponsabilidade, do au toc ont role .
O diabo acusador, que pretende dividir, criar conflitos propõe a ele os benefícios do
poder, do dinheiro e do prazer. Ser rico, ser controlador do mundo e ser feliz o que mais
alguém poderia desejar? São as tentações da existência, que podem ser pagas com o preço
do isolamento, do vazio e da tristeza. Jesus precisará responder por si mesmo, com
autorresponsabilidade. É o que faz, mantendo-se f i rme na doação, na humildade, no
serviço. Eis que, ent ão, o diabo o deixa, e os anjos passam a servi-lo.
Este diálogo i nt er ior Jesus o manterá ao longo de sua vida em missão. Segu i dam en te
vemos J e su s subir a montanha ou apartar-se do grupo para descansar, meditar e rezar.
Especialmente quando tem de tomar uma de c is ão importante, como quando se
transfigurou (Mt 17,1-8), quando queriam fazê-lo rei por ter alimentado a multidão (Jo
6,15), quando estava prestes a ser preso, no Getsêm ani (Mc 14,32-36). A vida de Jesus será
deserto (autorre f le xão , meditação), planície (missão, ação-reflexão-ação), montanha
(oração, contemplação) , manancial/fonte (experiência profunda de Deus).
3 DIMENSÃO SOCIAL DA INTELIGÊNCIA:SERES DE SOLIDARIEDADE
O s estudos de G oleman sobre a IE o conduziram à percepção de outra dimensão
da intelincia, relacionada tant o à int electual como à emocional, mas com
características próprias, que o l evaram à ideia de que fomos programados para nos
conectar
10
. Nosso cérebr o, ao lon go da evolução, foi sendo preparado para os
relacionamentos. É inevel, pel as no ssas próprias experiências de interação social,
que os encontros, as r elações, os contatos entre as pessoas geram reaçõ es quase que
e spontâneas, sobr e as q uais temos pouco controle. Uma p essoa ri e , sem mesmo
conhecê-la e s em poder controlar, sorrimos de volta, mesmo que timidamente. Vemos
u ma p essoa irritada e franzimos a testa. O encontro emocionado de pessoas que há
tempo o se viam, tamm nos toca as ent ranhas. Ao que parece, sofremos de
e ncontros, ou seja, as relações provocam nosso corpo e no ssa mente de um modo todo
8 Daniel GOLEMA N, Inteligência emocional, p. 3 2.
9 Daniel GOLEMA N, Inteligência emocional, p. 2 7.
10 Daniel GOLEMAN, Inteligência social, p.10.
BALBINOT,Rodinei.
Ciência, prática de Jesus e formão humana
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 95-104, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
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e special, que não vivemos em outras exp eriências. Somos equipados com um módulo
social. D vem a questão: qual a química de um encontro? O que de especial e sin gular
acontece na psicologia de dua s pessoas juntas?
Como bem expressa as emoções são contagiosas e a transmissão acontece sem que
nos demos conta. Algumas mensagens emocionais são viscerais, sentimos primeiro nas
entranhas e somente depois é que as process amos no pensamento. E també m
sentimentos viscerais que não conseguimos compreender
11
. A descoberta dessa dupla
forma de comunicação, uma direta e muitas vezes inconsciente e a outra processada pelo
intelecto, condu z iu Goleman a considerar que nosso cérebro social possui uma estrada
principal (consciente) e um atalho, por onde trans i tam as mensagens que se manifestam
em sentimen tos e emoções das relações antes que o intelec t o possa processá-las.
Essa estrada secundária, o atalho, é o circuito que opera abaixo da nossa consciência,
automaticamente e sem esforço, a uma imensa velocidade. A maior parte do que fazemos
parece ser comandada por colossais redes neurais que atuam nesse atalho principalmente
em nossa vida emocional. Quando ficamos encantados com um rosto atraente, ou
percebemos o sarcasmo em um comentário, é graças a esse atalho
12
.
A IE tem base biológica cerebral, mas, assim como as outras, precisa ser
desenvolvida para que potencialize a existência humana, bem como a busca da formação
integral. O desenvolvimento dessa forma de inteligência se relaciona ao trabalho formativo
que mobilize e aperfeiçoe tanto a capacidade de sentir os outros como a de agir sobre o que
sentimos para possibilitar crescimento mútuo numa espécie d e sensibilidade pedagógica
compartilhada. Daí a conclusão de que somos seres de empatia e temos genes de
solidariedade. O bem também é contagios o e quando vemos alguém fazendo um ato de
misericórdia s e nti mos a inclinação a participar.
É interessante notar como os evangelhos mostram, com certa abundância, a
e mpatia e a compaixão de Jesus. Ao chegar em Betânia e ver o d rama de Marta e
Maria, que ac abavam d e perder o irmão, Lázaro, Jesus entra numa sintonia
compassiva que impressiona. Os judeus ta mbém estavam na casa delas, mas para
consolar, uma espécie de resposta r acional para uma perda emocional. Ant es de tu do,
Jesus vive a empatia. Ao ver Maria chorar, Jesus c omoveu-se e ficou perturbado (Jo
11,33). Ap ós pe rguntar onde o havi am colocado, Jesus chorou. A o se dirigir ao
sepulcro, Jesus comoveu-se de novo. H á, em Jesus, uma admirável capac idade de sentir
com o outro. É o que vemos também em muitas outras passagen s. Ao ver a multidão,
Jesus teve compaio, pois percebe u que estava cansada e abatid a como ovelha sem
pastor (Mt 9,36); é o m esmo que sen te quando vê a m ultidão que há três dias o
come (Mt 15,32). Ao ver o cortejo f únebre do único filh o da vva, na cidade de Naim,
Jesus ficou comovido e disse: N ão c hores ( Lc 7,13) . Ficou admirado também com a
g rande fé do oficial romano que pedia por seu servo (Lc 7,9). Em J erusalém, Jesus vê
u m i nvivel enf ermo que havia trinta e oito a nos aguardava por um milagre na
piscina de Betesda, lhe dá atenção, conversa para saber a suas necessida des e, ao ver
tamanho sofrimento, diz: Le vanta-te, toma teu leito e anda! (J o 5,8).
11 Uma emoção pode passar silenciosamente de uma pessoa para a outra sem que nenhuma das duas perceba de forma
consciente ( Dani e l GOLEMAN, I n t eligência So ci al , p.27).
12 Daniel GOLEMAN, Inteligência Social, p.27.
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4 DIMENSÃO ESPIRITUAL DA INTELIGÊNCIA:SERES DE ESPIRITUALIDADE
Às pe s qu i s as sobre a inteligência não pa ss ou despercebida a agitação neural de uma
área do cére bro quando se tratava de qu e st õe s existenciais fu ndam e nt ais , como por q e
para q viver, o que realmente importa, quais as razões fundamentais pelas quais vivemos,
em uma palavra, qual o sentido da vida. Junto à inteligência lóg i co- mate m áti c a,
sistemática, procedimental, e à que mobiliza a sensação e a comunicação emocional
começou a ganhar forma a existência de uma inteligência criativa-integradora, que pode
capacitar o ser humano a buscar e viver um sentido mais profundo da vida, a busca da
transcendência e o enfrentamento equilibrado das adversidades. Foi o que se chamou de
Ponto Deus no cérebro
13
e, em seguida, de inteligência espiritual.
Se nosso cérebro pudesse ser comparado a um s of t wa re , este seria equipado, por
natureza, com um módulo Deus sem o qual os outros módulos também não funcionariam
direito. Seria um d aqu e le s módulos sem os quais o sistema ficaria comprome t i do. Danah
Zohar e I an Marschall
14
observaram em suas pesquisas que, quando as pessoas vivem ou
tratam de questões caras de sua existênci a, como quando são confrontadas com situações
limite ou pensam no para que vi ve m, são percebidas osc ila çõe s de ondas em todo o seu
cérebro, fazendo confluir de modo especial ao lobo temporal
15
, onde estaria o chamado
ponto De u s. O ponto Deus não prova a existência de Deus, mas, de fato, demonstra que o
cérebro e volu i u para f az e r as pe rg u nt as finais, para ter e usar a sensibilidade para sentido e
valores mais amplos
16
.
A inteli g ên ci a espiritual é resultado de um longo processo genético-social evolutivo.
Um módulo cerebral intimamente interligado aos outros que usamos para lidar com
problemas existenciais; é ele que nos leva ao âmago das coisas, à unidade por trás da
diferença, ao potencial além de qualquer expressão co ncre t a. Esta forma de inteligê nc ia
nos capacita para sermos mais humildes, flexíveis, resilientes, ter propósito, percepção
holística, sinergia intra e int e rpe ss oal, autoconsciência e autorrespon sab ili d ade . Para Zohar
e Marshall, usamos a inteligência espiritual para lidar com os problemas existenciais
17
,
que nos leva ao âmago das coisas, à unidade por trás da diferença, ao potencial além de
qualquer expressão concreta (...), permite integrar o intrapessoal com o interpessoal,
transcender o abismo entre o eu e o outro (...), ajuda-nos a levar a vida em um nível mais
profundo de sentido
18
. Os autores chegam a dizer que a crise funda me nt al do nosso
tempo é de natureza espiritual
19
.
Conta o evangelho de Lucas que, estando Jesu s em viagem, entrou num povoado
(Betânia), sendo recebido pelas irmãs Marta e Maria. Enquanto Marta se ocupava com os
afazeres da casa, pr ovav e lme nt e , preparando a hospedagem e uma boa comida para o
visitante, Maria se pôs a escutar Jesus, para a indignação da pri me i ra. Parecia-lhe injusto
que, enquanto se debatia com tudo o que faze r, a outra ficasse de boa, ouvindo o Mestre. E
Marta, em vez de se di ri g ir a Mar ia, sua irmã, em segredo, i nt e rpe la Jesus em tom de
repreensão: Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe assim sozinha a fazer o
13 Os neurobiólogos Michael Persinger e Vilayanu S. Ramachandran, depois de testes, pesquisas e experimentos de
acionamento dos lobos temporais do cérebro, durante a década de 1990, batizaram esta área de ponto Deus.
Quando ela é ativada, as pessoas vivem experiências religiosas transformadoras.
14 Zohar é professora de Liderança Estratégica na Universidade de Oxford, especialista em Psicologia e Filosofia. E
Marshall formou-se em Psicologia, Filosofia e Medicina e, atualmente, é psiquia tra e psicoterapeuta da Universidade
de Londres. São casados.
15 Estrutura cerebral responsável pelo processamento da memória.
16 Danah ZOHAR e Ian MARSHALL, Inteligência espiritual, p.25.
17 Danah ZOHAR e Ian MARSHALL, Inteligência espiritual, p.27.
18 Danah ZOHAR e Ian MARSHALL, Inteligência espiritual, p.27-28.
19 Danah ZOHAR e Ian MARSHALL, Inteligência espiritual, p.33.
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serviço? Dize-lhe, pois, que me ajude? Jesus não entra na pilha de Marta, pois compreendeu o
seu problema e a sua indignação. Ela está toda voltada para o que tem a fazer, na verdade, são
as atividades que têm Marta, o ela as atividades. A questão o é propriamente o fazer,
mas fazer o que precisa ser feito, o que traz vida. Jesus afirma: Marta, Marta, tu te inquietas e
te agitas por muitas coisas, no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma (Lc
10,41). Esse trecho, no evangelho de Lucas, vem logo depois da parábola do bom samaritano,
onde Jesus repõe a prática do mandamento do amor como a porta para a vida eterna. A
intenção de Jesus é reconduzir Marta ao que realmente importa, a partir do qual tudo o mais
terá sentido, até mesmo os pequenos afazeres da casa. Em nosso tempo de excessivas
agitações e inquietações por muitas coisas, o conselho de Jesus a Marta nos serve de
referência. Na formação, pelas muitas atividades, muitas vezes nos perdemos no que
deveríamos nos encontrar. É necessário repor a essencialidade, a integralidade.
5 DIMENSÃO CULTURAL DA I NT E L I N CI A:SERES DE CULTURA
Quando nos reportamos à história da humanidade, à primeira vi st a, parece ter
havido um movimento linear de evolução em um único grupo de hominídeos a partir de
um determinado local, que foi aos poucos e gradualmente se espalhando por todo o planeta
e se adaptando ao clima e ao ambiente. Descenderí amos , então, de uma única cepa e
seríamos uma grande famí lia. Mas a aparente homogeneidade revela grande diversidade
desde as origens, que é fartamente percebida através d a hi st óri a e ai nd a hoje nas diferenças
culturais e linguísticas. O que uniria a espécie seria esta ampla potencialidade de saber que
sabe e que não sabe, regada de emoções, de desejos, ne ce s s id ade s , sonhos, motivos, causas,
sentidos e diferenças.
Cultura, em senti do abrangente, é toda e qualqu e r produção humana. Os animais
procuram abrigo e têm f ormas de sobreviver. O ser humano, além disso, faz de seu abrigo
um lar, constrói e aperfeiçoa a sua moradia, a que ch ama de casa. Os animais u ti li zam
artefatos simples como auxílio para algumas tarefas, como pedras para quebrar noze s . Os
seres humanos produzem grande diversidade de instrumentos, artefatos, rec u rsos e
materiais para utilizarem como suporte de seu modus vivendi. Ao tomar uma árvore e
confeccionar um instrumento ao qual se chama cadeira e dando a ele uma utilidade, o ser
humano está criando cultura. Não surgem apenas nov os instrumentos, mas acompanha-os
os significados. Eis a cultu ra em seu sent id o mais originário: a criação de inst rum e nt os,
recursos, utensílios, significados, normas, cultos, r it os , se n ti me nt os , e moç õe s, gestos,
narrativas... qu e sustentam a existência.
As diferenças culturais foram e são motivos de diálogo e conflitos. No livro de Atos
dos Apóstolos, capítulo 15, vemos aquilo que se tem como o primeiro Concílio da Igreja
Cristã. O ponto da discórdia é a atitude de Paulo e seus cola borador es , q u e avançaram para
a Ásia Menor, anunciando a mensage m de Jesus Cristo ao mundo grec o-roman o e não
exigindo a circunci são aos batizados costume do povo judeu. Temos aí, também, uma
decisão significativa s obre o aspecto da inte rc u lt u rali dade : após discussão em assembleia,
os após t olos decidem que não é necessário exigir aos batizados a circuncisão e, desde que se
abstenham de comer a carne imolada aos ídolos, podem ser batizados.
outras passagens bíblicas que podem ser tomadas como sinal de inteligência cultural
e seu desenvolvimento. Em Mateus (15,21-28) vemos Jesus entrando no território de Tiro e
Sidônia, habitado por gentios, tidos pelos judeus como cães
20
. Uma mulher daquela rego
(cananeia), suplica compaio por sua filha que, segundo ela, estava fora de si, endemoninhada.
20 Filipenses 3,2 pede Cuidado com os cães.
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A prinpio, Jesus o a nima para ela, e os discípulos, vendo que insistisse, tentam
persuadir Jesus a despedi-la. Jesus diz aos dispulos que foi enviado às ovelhas perdidas da casa
de Israel apegando-se a uma vio cultural sobre a promessa de um messias para os judeus. A
mulher, todavia, aproxima-se, prostra-se e suplica. Ela, por conta de suas necessidades, e-se
em condão de abertura e humildade. Jesus insiste no argumento da cultura e diz o ser justo
tirar o pão dos filhos (judeus) para dar aos es (gentios). A mulher o se por vencida e
implora pelas migalhas. Jesus reconhece a grandeza da sua fé e atende à sua prece.
Um dos mais belos textos dos evangelhos é o encontro e o diálogo de Jesus com a
Samaritana (Jo 4). Ele também revela nuances profundas da inteligência cultural. Os judeus
tinham conflito antigo com os samaritanos, que eram considerados idólatras, uma das
maiores abominações para os judeus. A caminho, passando aos arredores de Sicar, enquanto
os discípulos se ocupam em comprar rapidamente alimentos para seguir viagem, Jesus se
aproxima do poço que saciava a sede daquela cidade. Era próximo ao meio-dia. Geralmente,
as mulheres buscavam água pela man e à noite. Contudo, naquele dia, uma mulher
apareceu justo no momento em que se encontrava Jesus. É possível que, vendo Jesus, um
judeu, e sabendo das desavenças, a mulher deva ter se apressado para pegar a água e sair logo
do local. Mas algo inesperado acontece: Jesus pede de beber. Um sinal de reconhecimento do
outro, de abertura cultural e de necessidade de ajuda. A mulher estranha sobremaneira. Os
judeus tradicionais jamais falariam com uma mulher estrangeira em público, quanto mais
com uma samaritana. Jesus, todavia, o apenas fala com ela, ele pede água. O poço, para
aquela cidade, não era apenas uma fonte de subsistência, significava também uma fonte de
sentido: era o que o patriarca Jacó havia deixado como herança. Jesus, portanto, o es a
pedir apenas água, ele pede troca. Por óbvio, reação da mulher, que tenta dissuadi-lo em
tom de estranhamento: Como, sendo judeu, tu me pedes de beber a mim que sou
samaritana? (Jo 4,9). Então, inicia-se um diálogo intercultural que parte da cultura de cada
um, mas a transcende para algo que está além delas, nem somente em uma, nem somente na
outra, mas em espírito e verdade
21
. A mulher, que antes estava sedenta, pois o esperou o
tardar do dia para buscar a água, esqueceu até mesmo o ntaro e voltou apressadamente à
cidadã para contar a boa nova da mensagem daquele judeu que, sem aquele encontro
intercultural, seria enxotado da cidade. Os discípulos, em decorrência de verem Jesus junto ao
poço falando com uma mulher samaritana, ficaram perplexos. E, para quem desejaria apenas
passar depressa pela cidade, de preferência sem serem vistos, entram e ficam dois dias na
cidade (Jo 4,43). Certamente, depois desse encontro, tanto a visão de Jesus e seus discípulos,
quanto a dos samaritanos mudou sobremaneira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Jesus indica caminhos para a formação integral, que supõe uma visão também
integral da inteligência e uma organização pedagógica que conta de desenvolvê-la
também integradamente. As pesquisas avançam na direção de mostrar que, em uma única
ação são requi s it ado s neurônios de diferentes regiões do cérebro e, em tentativas ulteriores
de reproduzir essa mesma ação outros e d if e re nt e s neurônios são envolvidos, o que aponta
para um fantástico dinamismo cerebral, que sempre surpreende e se re nov a. O c é re bro
humano, pois, sempre opera como um todo
22
e a formação humana é, em boa parte,
devedora da capacidade de integrarmos as difere n te s dimensões da formação. Tamanha a
21 Em Aprender a ser: cuidado com a vida e sentido do ser, faço uma análise pormenorizada deste texto e tematizo e st e
encontro, apresent ando 33 passos para a busca do sentido, que podem também ser tomados como passos do
desenvolvimento da inteligência cultural.
22 Miguel NICOLELIS, O verdadeiro criador de tudo, p.19.
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maravilha da criação. Somos sempre e a cad a momento seres únic os, indiv is os , dignos e
livres.
De um lado, o ser humano, este ser inquieto e inacabado tem dentro de si a semen te
divina da admiração, da curiosidade, do encantamento, da reverência, da empatia, da
compaixão, do amor; e, de outro, o mundo, o cosmos e o próprio ser humano mostram
sinais de um universo de mistérios desconhecidos, prontos para a surpresa, o assombro, o
estupor, a fascinação, o maravilhamento. Como bem disse São Paulo, a criação inteira
geme e sofre as dores do parto até o presente. E não somente ela. M as t amb é m nós , qu e
temos as primícias do Espírito (Rm 8,22-23). Estamos, pois, em um movimento constante
de formação integral, por meio da qual nossa salvação se torna objeto de esperança. Um
movimento f ormat i vo intencional, hoje, tem o desafio de trabalhar com a integralidade da
inteligência, ou seja, congregando em um mesmo processo formativo as dimensões
intelectual, emocional, social, espiritual e cultural. E, assim como ao especialista, Jesus nos
dirá: Faça isso e viverá (Lc 10,28).
REFERÊNCIAS BIBL I OG RÁFI CAS
BALBINOT, Rodinei. Aprender a ser. Cuidado com a vida e sentido do ser. o Paulo: Paulinas, 2015.
BALBINOT, Rodinei. Educação e Gestão em Transcendência. São Paulo: FTD, 2018.
BÍBLIA DE JERUSA M. São Paulo: Paulus, 2002.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. A teoria revolucionári a que redefine o que é ser
inteligente. 2ed. Rio de Jane iro: Ed. Objetiva, 2012.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência Social. A ciência revolucionária das relões humanas. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2019.
LIVERMORE, David. Inteligência Cultural. Trabalhando em um mundo sem fronteiras. Rio de
Janeiro: Be s t Se lle r, 2012.
NICOLELIS, Miguel. O ve rda dei ro criador de tudo. São Paulo: Planeta, 2020.
THOMAS, David C. e INKSON, Kerr. Inteligência cultural. Instrumentos para negócios globais. Rio
de Janei ro: Record, 2006.
ZOHAR, Danah e MARSHAL L , Ian. Inteligência espiritual. QS: Aprenda a desenvolver a
inteligência que faz a difere a. Rio de Janeiro: Viva Livros: 2012.
BALBINOT,Rodinei.
Ciência, prática de Jesus e formão humana
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 95-104, Jan./Jun./2021.ISSN on-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
O MINISTÉRIO DA MULH ER/L EIGA
NA IGREJA
Sal da terr a e luz do mundo (Mt 5,13-14)
THE MINISTRIES OF LAYWO M EN IN
CHURCH
Salt of t h e earth and light of the world (Mt
5,13-14)
Ourora Rosalina Bolzan*
Resumo: As mulheres estão assumindo os ministéri os do laicato como
ousadia mi ss i onári a no s e i o das comunidades cristãs. Nas palavras do Papa
Francisco, ve j o, com prazer, como muitas m u lhe re s partilham
responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para
o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas
contribuições para a re f le xão teológica (EG 103). Impulsionados pelas
palavras do po ntí f ic e , o objetivo desta reflexão contempla, prime ir o retomar
o papel determinante das mulheres leigas nas comunidades nos diferentes
ministérios e serviços. Segundo perce be r o dinamismo da batismal, como
fonte de todas as vocações e que em Crist o todos pertencem a família do
povo de Deus.
Palavras-chave:Mulher. Missionária. Compromisso. Leigas. Igreja.
Abstract: Women are taking on the ministries of the laity as a missionary boldness
within Christian communitie s . In the words of Pope Francis, I am pleased to see
how many women share pastoral responsibilities together with priests, contribute
to the accompaniment of individuals, families or groups and make new
contributions to theological reflection (EG 103). Driven by the ponti f f 's words,
the purpose of this refle ct i on contemplates, first, to resu me the determining role of
lay women in communities in different ministri e s and services. According t o
perceiving the dynamism of the baptismal faith, as the source of all vocations and
that in Christ all belong to the family of the people of God.
Keywords: Wom an. Mi ss i onary . Commi t me nt s. L ay. Ch u rch .
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 105-1 12 , Jan./Jun./2 0 21 ,
ISSN on-line : 2763-5 20 1
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.43
* Professora doutora vi nc ul ada a
UNIASSELVI Universitário Leonardo da
Vinci - C ampu s de Indaial. Professora nos
cursos de Pós-Graduação e Graduação na
Celer Fac u ldad e s de Xaxim/SC. Assessora
nos Cursos de Te olog ia de L e i g os da Dioc e se
de Chapecó, conveniada com a Itepa
Faculdades P ass o Fundo/RS. Compõe a
Equipe de coordenação das Comunidades
Eclesiais de Base s a nível Nacional (CNBB).
E-mail: ou rorabolz an@ yah oo. com. br
https://orcid.org/0000-0002-0572-7634
Recebido em 13/1 1 /20
Aprovado em 22/02/21
106
INTRODUÇÃO
Este texto parte do conceito de Leigo, sob a ótica das igrejas cristãos, como aque le
que não recebeu nenhuma ordenação, ou q u e não é clérigo, e objetiva refletir
especificamente sobre a atuação da mulher/lei g a, que por uma que s tão cultural ainda
exerce múltiplas tarefas e funções: de ser mãe, esposa e profissional, mas que conforme
pode depreender-se da leitura dos e v ang e lh os, desde tempos remotos e iniciais, é
evangelizadora. Nesta missão, busca e é testemu nh a do Reino, através de um conjunto de
ações e princ ípi os que materializam os sinais do Reino de Deus na vida das comunidades,
incentivando, prestando servi ços , aconselhando, rezando, cantan do, fomentando grupos,
agregando, liderando.... e assim tornando pos sív e l este grande projeto que é construirmos
conjuntamente, homens e mulheres, um mundo de justiça.
Este exercício ou função dent ro da Ig re j a, durante a maior parte do tempo, ne m
sempre foi tarefa fácil, uma vez que não está dissociado de diversos fatores, tais como: o
modo de pensar do mundo, a maneira histórica de considerar a missão da mulher na Igreja
e mesmo seu papel na sociedade. E m que pese não ser objeto da presente explanação
adentrar especificamente sobre o papel da mulher/leiga na história da Igreja, bastaria uma
breve leitura dos seus documentos h is t óric os e mesmo da história universal da
humanidade, para que se averigue que dentro da estrutura Ig re j a, por muitos anos, a
presença da mulher/leiga nas atividades pastorais, não foi reconhecida ou valorizada.
Mesmo nos dias atuais, este aspecto cultural e social da pr es e a femin in a, e suas
implicações, é complexa, especialment e para alguns setores da Igreja. É fato que a Igreja
tem dado u ma importânc i a maior à atuação das mulheres, e trazido à lume as diversas
personagens e protagonistas que ajudaram a constituir/const ru ir a I g re ja, pri nc i palme nt e
com o Papa Francisco que, em diversas ocasiões, manifesta seu especial interesse para qu e
as mulheres não se sintam hóspedes, mas participante s plenas na vida da Igreja.
Neste magistério que vem sendo protagoni zad o pelo Papa Francisco, encontramos
uma página importante no reconhecimento e dignidade das mulheres, tant o na vida soc i al
como eclesial. A s reivindicações dos leg ít im os direitos das mulheres, a partir da f ir me
convicção de qu e homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões
profundas que a desafiam e não se podem ilu di r superficialmente (EG 104). Sem desprezar
o ministério sacerdotal que é um dos meios q u e Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a
grande dignidade vem do Batismo, que é acessível a todos. A c onf i gu ra ção do sacerdote
com Cristo Cabeça isto é, como fonte principal da graça não comporta uma exaltação
que o coloque por cima dos demais (EG 104).
Em um primei ro momento iremos discorrer como se manifesta e se desenvolveu o
Ministério da mulher/leiga na Igreja, especialmente a partir do Concílio Vaticano II; para,
posteriormente, adentramos no conceito da missionariedade da mulher/leiga na Igreja.
Esta, entendida como um carisma de serviço, que torna-se um ministério quando viv i do e
reconhecido nos serviços, visando a edificação, transformação e aperfeiçoamento da
comunidade/igreja, tendo por pilar a valorização e constante busca da espiritualidade
como processo de humanização, cuja centralidade é o ser humano , h ome ns e mulheres,
feitos à imagem e semelhança de Deus.
1 ODESENVOLVIMENTO DO MINISTÉRIO DA L E I G A
Conforme afirmado, desde o i níc io da cristandade e da história da Igreja, a mulher
esteve presente assumindo serviços dentro e fora de suas estruturas. Os estudos históricos
registram, também, a discriminação da mulher, quanto a sua participação na Igreja, por
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 105-112, Jan./Jun./2021. ISSNon-line: 2763-5201.
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muito tempo e longos períodos, foi c ons id e rada e vista como aquela que gera a vida
(procriar), mas sem qualquer direito, port ant o, sem voz e sem vez de participação nas
decisões.
Foi sobretudo a partir do Concílio Vaticano II (1965) que se abriram perspectivas,
em vistas da construção de reflexão e tomada de decisões estruturais em relação à
valorização da participação das mulheres no seio da Igrej a. O batismo, como fonte de todas
as vocações, começa a ganhar espaço e, indiretamente, reflete na temáti ca da presença das
mulheres. A abertura a este diálogo, se após muitas questões conflituosas no contexto
do ambiente Conciliar e na perspectiva da volta às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas,
na qual se descobre o sensus fides de todo o povo de Deus. Surge daí, entre outros temas, a
necessidade de a Igreja abrir suas portas não somente para a presença da mulher, mas no
diálogo com as realidades do mu ndo em desenvolvimento. De modo particular, na
Constituição dogmática Lumen Gentium, desenvolve-se o conceito e a compreensão da
Igreja como sacramento de salvação (LG 48). A Igreja é sacramento do Reino de Deus,
inaugurado por Jesus e edificado no Espírito por todas as pessoas de boa vontade
1
.
Recupera-se o conc e i to Povo de Deus para qualificar o conjunto dos batizados, sejam eles
clérigos, reli g i osos /as ou leigos/ as.
Na conclusão do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI envi a uma mensagem às
mulheres, dando a elas a esperança e a certeza de que, a partir de então, o espaço que estava
sendo ocupado de fato, passaria a ser processualmente reconhecido como de direito dentro
da Igreja.
Às mulheres
E agora, é a vós que nos di ri g im os, mulheres de todas as condições, jovens,
esposas, mães e viúvas. A vós também, virgens consagradas e mulheres
solteiras: vós constituís a metade da família humana.
A Igreja org u lha- se , como sabeis, de ter di g ni f ic ado e libertado a mulher, de ter
feito brilhar durante os séculos, na diversidade de caractere s , a sua igualdade
fundamental com o homem.
Mas a hora vem, a hora chegou, em que a vocação da mu lhe r se realiza em
plenitude, a hora em que a mulhe r adquire na cidade uma influência, um
alcance, um poder jamais conseguidos até aqui.
É por iss o que, neste mome nt o em que a humanidade sofre uma tão profunda
transformação, as mulheres impregnadas do es píri t o do Evangelho podem tanto
para ajudar a humanidade a não decair.
Vós, mulheres, tendes sempre em partilha a g u arda do lar, o amor das fontes, o
sentido dos berços. Vós estais presentes ao mistério da vida que começa. Vós
consolais na partida da morte. A nossa técnica corre o risco de se tornar
desumana. Reconciliai os homens com a vida. E sobretu do velai, nós vos
suplicamos, sobre o futuro da nossa espécie. Tendes que deter a mão do homem
que, num momento de loucura, tentasse destruir a civilização humana.
Esposas, mães de família, primeiras educadoras do gênero humano no segredo
dos lares, transmiti a vossos filhos e f i lhas as tradições de vossos pais, ao mesmo
tempo que os preparais para o insondável futuro. Lembrai-vos sempre de que
uma mãe pertence, em seus filhos, a esse futuro que ela talvez não chegará a ver.
E vós também, mulheres soltei ras , sabei que pod e is cumprir sempre a vossa
vocação de dedicação. A sociedad e chama-vos de toda a part e . E as próprias
famílias não podem viver sem o socorro daqueles que não têm família.
Vós especialmente, virgens consagradas, num mundo em que o egoísmo e a
busca do prazer querem ser lei, sede as guardiãs da pureza, do desinteresse, da
piedade. Jesus, que deu ao amor conjugal toda a sua plenitud e , exaltou também
a renúncia a esse amor humano, quando é feita pelo Amor infinito e para
serviço de todos.
1 Agenor BRIGHENTI , Teologia pa st o ral, p.132.
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 105-112, Jan./Jun./2021. ISSNon-line: 2763-5201.
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Mulheres que sofre i s provações, finalmente, vós que estais de junto à cruz, à
imagem de Maria, vós que, tantas vezes através da história, tendes dado aos
homens a força para lutar até ao fim, de testemunhar até ao mart íri o, ajudai-os
uma vez mais a conservar a audácia dos grandes empreendimentos, ao mesmo
tempo que a paciência e o sentido de humildade de tudo o que principia.
Mulheres, vós que sabeis tornar a verdade doce, terna, acessível, empe nh ai -vos
em fazer penetrar o espírito dest e Concílio nas instituições, nas escolas, nos
lares, na vida de cada dia.
Mulheres de todo o universo, cristãs ou não-crentes, vós a quem a vida é
confiada neste momento tão grave da história, a vós compete salvar a p az do
mundo
2
.
Esta mensagem do Papa Paulo VI surge como verdad e ira revolução na vida e na
missão das mulheres, para a época. Uma palavra anunciada aos qu atro ventos e
iluminadora para ajudar a dissipar as trev as e os pesos colocados nas costas das mulheres ao
longo de tantas décadas da história da Ig re ja . Chama atenção, em específico, o chamado
para a missão confiada às mulheres do cuidado da vida perante uma história marcada por
sinais de morte. Palavras e ações q u e continuam a nos interpelar, ape sar do tempo
transcorrido. Ainda hoje, a luta pela forma em que se a participação e i ncl us ão das
mulheres permanecem e se atualizam. Ao contrário, estas se avolumaram e se
complexaram, tendo em vista os problemas em relação à vida das mulheres e das pessoas
em geral (estruturais, econômicos, soc iológ i c os, gênero, violências...). Contudo, foram
palavras proféticas de um Papa, que reverbe raram e calaram fundo, cons id e rada a sua
época e que cont in u am desafiand o a sociedade e a Igreja a reconhecer a importância e a
missão das mulheres no protagonismo de outras formas de Igreja e mundo possível.
O Concílio, no documento Gaudium et Spes, reconh e ce a dignidade de todo o gênero
humano. A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais
reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos
tem a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos tem a mesma vocação e
destino divi nos (GS 29).
Na década de 80, Leonardo Boff refletia que precisou haver uma mudança sócio,
cultural e psicológi ca na sociedade para que a mulher passasse a ser vista como sujeito.
Compreendia ele que a mulher se fortalece na sociedade, e acaba fortalecendo a sociedade
como um todo, e ao mesmo tempo contribui para o seu desenvolvimento. Ainda continua,
porém, sendo um proces s o lento e conflituoso, de quebra de paradigmas, revisão de
conceitos e novas formas de agir e pensar, mudanças de mentalidade e comportamento.
Ideias, conceitos e valores, enraizados por séculos em um a soc ie d ade , n ão de s apare ce m de
um momento para outro.
Atualmente, a mu lh e r conquistou espaços, emancipação, buscando a igualdade de
direitos políticos, jurídicos e econômicos. Libertar-se é ir além, realçar as condições de
diversidade n as relações de gêneros.
Desde a antiguidade cristã, as mulheres aprofundaram a st i ca e desenvolve ra m
métodos para viver a intimidade com Deus. Mulhere s como Hildegardis de Bingen (séc.
XI) e Catarina de Sena (séc. XVI) , viveram a intimidade com Deus como relação afetiva e
com uma lingu ag e m própria do universo feminino. Testemunharam Deu s como
ministério de amor e de paixão.
2 Papa Paulo VI conclusão do Concílio Vaticano II. ÀS MULHERE S . 8 de dezembro de 1965. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1965/documents /hf _p- vi _spe _1 9 65 1 20 8 _e pilog o- conc i lio -
donne.html..
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 105-112, Jan./Jun./2021. ISSNon-line: 2763-5201.
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Quando analisamos as narrativas bíblicas, as mulheres ora aparecem como víti mas ,
mas, também, como testemu nh as oculares da na ressurreição de Jesus (Lc 24,8-11)
3
. O
ministério inclusivo do Reino de Deus, pregado por Jesus, questionou muitos estere ót i pos
de gênero de seu tempo, como também censuras costumeiras impostas às mulheres. E
ainda transparece um ideal inclusivo de Igreja, quando diz: não judeu nem grego, nem
escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus (G l
3,28).
A chave para a superação desta dificuldade está no reencontro com o Jesus dos
evangelhos, procurando contemplar e perceber os traços de sua personalidade e os passos
de seu itinerário, tal como o perceberam as primeiras testemunhas. O result ado de nos sa
observação n os levará a vislumbrar um homem que viveu uma espe ci al aliança e sintonia
com as mulheres de seu tempo, fundou uma comunidade e inaugurou um estilo de vida
onde elas eram bem-vindas e tinham seu lugar.
Esta postura includente de Jesus revelada nos Evangelhos encontra eco no coração
do pe ns ame nt o do atual Papa. Segundo Francisco, a esperança tem um rosto femini no: no
seu cair com Jesus, no seu perseverar, mesmo no meio do sof ri me nt o do seu povo; no seu
agarrar-se à esperança que vence a mort e ; na sua maneira jubilosa de anunciar ao mundo
que C ri st o está vivo, ressuscitou. A mulhe r descobriu Jesus Cristo como um amigo
compassivo, libertador dos fardos, u m amigo que consola na angústia e um aliado na vida
das mulheres
4
.
Como membros vivos na missão da Igre ja, as mulheres são chamadas a desenvolver
as suas fu õe s na família, na comunidade e na Igreja, atuando em trabalhos voluntários,
especialmente aos mais necessitados, nos movimentos e nas missões fora da Igreja. As
mulheres hoje continuam a escrever e reescrever a história de vida das mulheres da
doutrina da Igreja, na Bíblia, entre as muitas: Miriam, Hulda, Ana, Débora, R u te , Abigail,
Maria, Maria Madalena, e todas as anônimas que permanecem na poeira da história, mas
que contribu íram , e muito, no seu tempo e para o nosso tempo.
2 AMISSIONAR I E DADE DA LEIGA NA IGREJA
As mulheres são prot ag oni s tas e oferecem à Igreja e à sociedade uma contribuição
indispensável. Na missão, especificamente, podem ser encontra das nas õe s de
misericórdia e solidariedade, assumindo ministérios nas comunidades como diz o
documento 61 da CNBB. Atuam em muitas instit u i çõe s de saúde, casa de idosos, orfanatos,
casa de recuperação de entorpecentes e álcoo l, doenças mentais e muitas outras
importantes ob ras de luta pela dignidade humana. Neste sentido, todo discipulado
missionário independe nt e de gêne ro, deve eng aj ar-s e ativamente em algum mi ni s ri o
eclesial, ou em obras de ações soc iai s voltadas ao bem da comunidade. Estando incorporada
mais ativamente na obra divina produzem frutos abundantes na casa do Pai. Amizade com
o P ai, servindo-o com açõe s de fraternidade realizadas e reconhecidas em todas as missões
exercidas para o bem comum da humanidade é certeza do caminho salv íf i co trilhado pe los
cristãos (Gl 6,10)
5
.
3 ...então elas se lembraram das palavras de Jesus. Voltaram do túmulo, contaram tudo aos onze e a todos os outros.
Eram Maria Madalena, Joana e Maria mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas contaram
tudo isso aos apóstolos. Mas eles acharam tudo um absurdo, e não acreditam nelas.
4 Vendo-a, Je s u s dirigiu-se a ela e disse: mulher, você está livre de sua doença Jesus colocou as mãos sobre ela, e
imediatamente a mulher se endireitou e começou a louvar a De u s (Lc 13,10-1 3) . No Apocalipse, a mulher é símbolo
da vitória sobre o mal, ensinando-nos que o fraco vence o forte pelo poder da resistente (Ap 12,1-17).
5 O serviço ao próximo é um dos maiores testemunhos de do verdadeiro cristão, pois formamos um corpo em Cristo
(Rm 12,4-5), trazendo para a terra um pedaço do céu, onde Deus está a serviço de suas amadas criaturas (Mc 10,45).
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
Revista Teopráxis,
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Um carisma de serviço reconhecido torna-se um ministério quando vivido e
reconhecido no serviço que visa a edificação da comunidade eclesial. V iv e r uma
espiritualidade libertadora, como uma maneira de ajudar as pessoas a buscar Deus, é u ma
opção de fé. Amamos a Deus e aos irmãos como centralidade do mandamento de Jesus (Mt
22,37-39). Assumir ministérios é part i ci par do cuidado pastoral, integrar equipes que
ajudem o povo de Deus no desem pe nh o de suas responsabilidades através do s e rvi ço de
animação das comunidades.
Na Igreja povo de Deus, entendida a partir da teolog i a d as comunidades com seus
diferentes carismas e ministérios, todos são importantes para a vida do seguimento e na
vivência dos valores do Reino de Deus. A missão de an u nci ar a boa nova para o mundo
aproximando os que mais necessitam, segu i nd o Cristo como cabeça, participando juntos
na missão confiado por Ele como sacerdotes, re li g i osos /as , homens ou mulheres e
planejando com amor e a misericórdia, com perseverança e fé, evitando o exacerbado
clericalismo cumprindo assim a missão de batizados/as. Seg u ndo o documento 105 da
CNBB, os leigos e leigas tem como imediata tarefa o vasto e complicado mundo da política
da realidade social e da economia, e também outras realidades a evangelização, como sejam
o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescen te s , o trabalho profissional e o
sofrimento (n.6). Portanto, ser cristão é assumir compromissos, dar continuidade ao
projeto de Jesus Cristo, estar unidos a Ele, entre si e com os irmãos e irmãs na Igreja por
meio do Espírito Santo.
Pelo batismo todos os fiéis participam do sacerdócio comum de Cristo e de s e u
caráter profético e régio. Jesus ele g e um povo sant o e sacerdotal, u ma nação eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus para anunciar os seus louvores (1Pd
2,4-10). Este povo de Deus é chamado e enviado para três tarefas missionárias
fundamentais: a primeira é conduzir a comu ni dad e com amor de mãe; a segunda é ajudar
na vivência da e s pi rit u ali dad e no encontro íntimo com Deu s ; e a terceira é a organização e
conquistas de justiça, alimentação, saúde e dignidade. A este conjunto de tarefas
corresponde o tríplice múnus de Cristo. Nos dias atuais o profet i smo, fato comprovado
desde as mais pequenas comunidades, é assumido cada vez mais pelas leigas, que atuam
com fé, espe ran ça e caridade. A cristã entra como elemento for te e contagiante na
missionariedade d a obra evangelizadora. Ela é, antes de tudo, vivida e propagada. É visível
o crescimento expressivo da s mulheres assumindo os ministérios de presidir a Celebração
da Palavra, por exemplo, hoje tão importante em muitas comunidades; alé m de ministras
da Sagrada Eucaristia e participação efetiv a na organização e admin is tr ação das
comunidades.
Outras atividades e ministérios desenvolvidos pelas mulheres e assumi dos por elas,
até então, como de competência exclusiva dos homens, são os de coordenação dos
conselhos paroq u i ais e diocesanos, a tesouraria e de dimensão administrativa. Para citar
um exemplo concreto explanamos o da Diocese de Chapecó, na qual muitas mulheres são
coordenadoras de conselho paroquial, comunitário e diocesano; coordenadoras das equipes de
finanças e do dízimo
6
. Nesta Diocese, segundo seus registros, consta de aproximadamente
55.500 li de ran ças envolvidas na evangelização. Destas, a maioria são mulheres atuando nos
conselhos, catequese, liturgia, grupo de reflexão, CEBS, pastorais sociais, etc, (grifo meu).
Outros espaços que podemos citar, e que se abrem para a reali dad e das leigas, são
espaços nas faculdades de teologia, Juiz(a) do tribunal eclesiásti co, promotora da justiça no
mesmo tribunal missionário. Além disso, atuam entre outros, no ministério da música, da
liturgia, são ministras dos enfermos, levando a Eucaristia e uma palavra de conforto e
6 Diretório Diocesa no de Chapecó/SC, 2020, p.10 .
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
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esperança aos doentes. Celebram as exéqu ia s, acompanham as famílias enlutadas dando
força e coragem para que permaneçam vivas na esperança e na fé.
A mulher, sendo a primeira catequista e missionária para seus filhos e filhas, assim
como Maria foi para Je s u s, assume de igual forma na comunidade o ministério da
catequese, se ja como coordenadora, catequista, na preparação das crianças e adolescentes
para a vida, para o encontro com Jesus através do sacramento e da vivência, para colocar
em prática o que assumiu no Sacramento recebido. Atuam, também, na pastoral dos
encarcerados até considerados de alta periculosidade, levando esperança, a presença de
Cristo através do Evangelho , na mensagem de que sempre podemos mudar de vida.
Na Exortação Apostólica Evangelli Gaudium, o Papa Francisco reconhece a atuação e
a presença nos espaços da Igreja. Existem os carismas que são dons do Espírito Santo dados
aos seres humanos para edificação da Igreja, para o bem dos homens e das mulheres e de
toda a comunidade. O Papa Francisco reconhece que muitas mulheres f ort e s, corajosas e
corretas, são capazes de sofrer e carregar muitos pesos, não tem medo de enfrentar
questões espinhosas e pe rce be r que é necessário dese mpe nh ar seu papel na Igreja, ass i m
como Maria que assistiu ao da cruz a morte de seu própri o filho Jesus e, mesmo assim,
não se deixou abalar na fé, mas a cada dia aumentava mais. No entanto, reconhece a
necessidade de avançar: É preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais
incisiva na Igreja no âmbi to do trabalho e nos vários lugares onde tomam as decisões
importantes, tan to na Igreja como nas estruturas sociais (EG 103).
Além disso, o Papa Francisco com carinho a missionariedade e a d oação da
mulher na Igreja. No dia 3 de março de 2013, na praça São Pedro, no Vaticano, afirmou:
Eu gostaria de ressaltar que a mulher tem uma sensibilidade particular pelas
coisas de Deus, sobretudo para nos ajudar a entender a misericórdia, a ternura
e o amor que Deu s tem por nós. Gosto de pensar também que a I gre j a não é o
Igreja, mas a Igreja. A Ig re ja é mulher, é mãe, e isto é bonito. Deveis pensar e
aprofundar isto
7
.
no dia 8 de março de 2013, em sua mens age m ao dia internacional da mulher,
acrescenta ainda que os dotes da deli ca de za, sensibilidade e ternura que enriquecem o
espírito feminino, represe nta não apenas uma f orça para a vida das famílias, mas para a
propagação de um clima de serenidade e de harmonia. As mulheres tem muito a dizer-nos
na sociedade atual. Às vezes somos machistas e não deixamos espaço para a mulher, mas a
mulher sabe ver as coisas com olhos diferentes dos homens
8
.
CONCLUSÃO
Nossa reflexão versou sobre o desenvolvimento da ação das leigas/mulheres, na vida
eclesial apontando avanços e dificuldades, haja vista a atuação das mulheres leig as nas
comunidades, nas instituições de caridade, nas pastorais e ministérios. Fato somente
possível com a nova primavera ocasionada pelo Con lio Ecumênico Vaticano II. Este foi o
acontecimento impulsi onador ao reconhecer as mulheres, as leigas, como protagonistas da
Igreja através do Sacramento do Batismo.
Na missão de evangelizar, homens e mulheres caminham juntos na construção do
Reino de Deus. Dia nte de Deus, a mulher não existe sem o homem e o homem não existe
sem a mulher, pois o homem nasce pela mulher e tudo vem de Deus (1Cor 11,11-12).
7 https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2013/francisco-e-o-papel-das-m u lhe re s -na- ig re j a.h tm l
8 https://www.a12.com/redacaoa12/santo-padre/papa-francisco-e-as-mulheres.
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É claro que não podemos fechar os olhos e o coração aos desafios ainda hoje
enfrentados pelas mulheres leigas e nem ficar indiferentes aos problemas cruciais na
atualidade. E num contexto que desafia e provoca homens e mulheres a serem
verdadeiramente sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14). Diante da profunda crise que abarca
a sociedade atual, cujos valores humanos e evanlicos o refratados ou mesmo manipulados,
precisamos ser profetas e profetizas do Reino de Deus e de sua justiça (Mt 6,33).
Quando olhamos para as açõe s pastorais das comunidades percebemos a quantidade
de leigos e na grande maioria leigas engajadas e comprometidas com a prática cristã. Leigas
que, juntamente com padres e bispos, contribuem ativamente na missão evangelizadora,
anunciam Jesus Cristo e seu projeto, motivadas pela ação do Espírito Santo. O Papa
Francisco tem buscado generosame nte falar sobre o papel das mulheres, da necessidade das
mulheres e do lugar das mulheres na Igreja, mas temos um longo caminho a percorrer.
Segundo Agenor Brighenti, o Papa Francisco, quando este ve no Brasil, falando aos
bispos do Celam, pergunta:
Nós, pastores, bispos e presbíteros, temos consciente e convicção da missão dos
leigos e lhes damos a liberdade para irem disce rni ndo, de acordo com o seu
caminho de discípulos, a missão que o Senh or lhes c onf ia? Apoiamo-los e
acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevi da
submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca
do bem da Igreja e pela sua missão no mundo?
9
REFERÊNCIAS BIBL I OGRÁFI CAS
BÍBLIA SA GRA DA . Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 19 9 0.
BOFF, Leonardo. E a Igreja se fez povo. Eclesiogênese: A Igreja que nasce da do povo. Petrópolis:
Vozes, 198 6 .
BRIGHENTI, A g e nor. Teologi a pastoral: A inteligência reflexa da ação evangelizadora. Petrópolis:
Vozes, 202 1 .
CATECISMO DA IGR EJA CATÓL IC A . São Paulo: Loyola, 1993.
CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus, 2008.
CNBB. Cristã os Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade: Sal da Terra e Luz do Mundo (Mt 5,13-14).
Brasília: Ed. CNBB, 2016. (Documento da CNBB, n.105).
CNBB. Diretório Nacional de Catequese. Brasíli a: Ed. CNBB, 2006.
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNIC O. São Paulo: Loyola, 1983.
Documentos do CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium.
São Paulo: Paulus, 1997.
PAPA
PAULO
VI
NA
CONCLUSÃO
DO
CONCÍLIO
VATICANO
II:
ÀS MULHERES. 8 de
dezembro de 1965. Disponível em: http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1965/
documents/hf_p-vi_spe_19651208_epilogo-concilio-donne.html. Acesso em 27 de abril de 2021.
Diretório Diocesano de Chapecó/SC, 2020, p.10.
Francisco e o papel das mulheres na Igreja. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/
papa/news/2018-03/francisco-e-o-papel-das-mulheres-na-igreja.html. Acesso em 14 de
setembro de 2020.
Mensagens do Papa Francisco sobre as mulheres. Disponível em: https://www.a12.com/
redacaoa12/santo-padre/papa-francisco-e-as-mulheres. Acesso em 28 de agosto de 2020.
9 Agenor BRIGHENTI, Teologia pastoral, p.193.
BOLZAN, Ourora Rosalina.
O ministérioda mulher/leiga na Igreja: Sal daterrae luzdo mundo (Mt 5,13-14)
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.38, n.130,p. 105-112, Jan./Jun./2021. ISSNon-line: 2763-5201.
Este artigo es licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
M
ULHERES QUE LUTAM
Comunidades periféricas como espaço de
transformação pes s o al e coletiva à luz do
feminismo bíblico
W
OMEN WHO STRUGGLE
Peripheral communitie s as a space for
personal and collective transfo rm a tio n in
the light of biblical femin is m
Elis Alberta Ribeiro dos Santos*
Lucila Tresinha Mai**
Resumo: O presente artigo tem como objetivo dar visibilidade à luta de
mulheres, inseridas em espos sociais de comunidades periféricas da Região
M e t r op o li t an a d e Po r to A l eg r e /R S , te n do c o mo b a se a l e it u r a fe m in i s ta d a bíblia.
Visa-se trazer à tona os problemas sociais que afetam estas mulheres, agravados
pelo poder e ação patriarcal que continua oprimindo e silenciando as vozes
femininas, pelo
qual, historicamente foi-lhes negado a participação efetiva em
espaços políticos, sociais, econômicos e religiosos. Urge a necessidade de serem
ouvidas e retomarem suas vidas, por vezes, subalternizadas por uma sociedade
moderna que discrimina e fragiliza suas lutas drias. Nessa perspectiva,
c ompreen de- se qu e as co mun ida des p eri fér ica s org ani zadas, se a pre sen tam como
portadoras de oportunidades para que se criem espos de acolhida, escuta e
atividades empreendedoras, de modo que se possibilite a emancipação pessoal e
do coletivo feminino. Este é um projeto desenvolvido pelas Irmãs da Divina
Provincia, que conta com uma equipe técnica formada por educadoras/es,
coordenadoras de núcleos, psicóloga, assistente social e voluntárias/os.
Palavras-chave: Emancipação. Mulher. Feminismo bíblico.
Abs tr ac t: T h is a r t i cl e o b je c t s to
g iv e v i si b i li t y t o th e s t r ug g l e of w o m en , i n se r t ed i n social
spaces, from peripheral communities in the Metropolitan Region of Porto Alegre/RS,
based on the feminist reading of the Bible. It wants to bring out the social problems that
affect these women, aggravated by the patriarchal power and action that continues to
oppress and silence female voices, in which, historically, they have been denied effective
p a rt i c i p a ti o n i n p o l it i c a l , s o ci a l , e c o no m i c a n d r el i g i o u s sp a c e s . T h er e i s a n u r g en t n e e d to
be heard and to resume their lives, sometimes subordinated by a modern society that
discriminates and weakens their daily struggles. In this perspective, it is understood that
t h e p er i ph e ra l o rg a ni z e d co m mu n it i es , p re s en t t he m se l v es a s c ar ri e r s of o pp o rt u ni t i es , so
that spaces of welcome, listening and entrepreneurial activities are created in a way that
a l l ow s t h e p e r s o n a l a nd c o l l e c t i v e e m a n ci p a t i o n o f w o m e n. T h i s i s a p r o j e c t d ev e l o p e d by
t he S i s te r s o f Di v i n e Pr o v id e n ce , w h ic h h a s a t ec h n ic a l t ea m m a de u p o f e du c a t or s , center
coordinators, psychologist, social worker and volunteers.
Key Words: Emancipation. Women. biblical feminism.
v. 38, n. 130, Passo Fundo,
p. 113-123, Jan./Jun./2021,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI: dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v38i130.38
* P e s q u i s a d o r a I n d í g e n a , p e r t e n c e n t e a e t n i a M u r a do
Médio/Amazonas. Formada em Licenciatura em
Pedagogia - Manaus/AM. Possui Especialização em
O r i e n t a ç ã o E d u c a ci o n a l p e la U n i v e r s i d a d e Ca t ó l i ca de
Brasília (UCB). Mestranda em Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) sob a Orientação do Prof. Dr. Pablo
Quintero. Membro do Núcleo de Antropologia das
Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT-UFRGS) e
pesquisadora em comunidades indígenas urbanas,
atuando
como bolsista pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
S e u s i n t e re s s e s e s t ã o n as á r e a s d e e s t u do s d e etnologia
indígena e as teorias Pós-coloniais. Tem experiência
com projetos educacionais, desenvolvidos em escolas
públicas e privadas (Manaus/AM), atuando como
P rofe sso ra e Ori enta dor a Educ acio nal ( Mana us/ AM e
Porto Alegre/RS). Atualmente acompanha Projetos
Sociais na região Metropolitana de Porto Alegre
como religiosa da Congregação das Irmãs da Divina
Providência. É membro da Rede Afro-Indígena de
Porto Alegre/RS e da Organização brasileira para
economia de Francisco e Clara (ABEFC).
E-mail: elisidp@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9507-9270
** Possui graduação em Licenciatura Plena Em
Pedagogia pela Universidade de Passo Fundo (1994),
Pós-Graduaçao em Psicopedagogia por Faculdades
Integradas Severino Sombra (1995) e em
Fundamentos da Educação (1998) pela Universidade
do Oeste de Santa Catarina e mestrado em
Psicopedagogia pela Universidade do Sul de Santa
C at ar in a (2 0 02 ). A tu alm en te é di r et or a da u nid ad e da
Faculdade da Fronteira.
E-mail: lucilaidp@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8205-6205
Recebidoem18/10/20
Aprovadoem03/02/21
114
INTRODUÇÃO
Nos moldes de uma sociedade androcêntri c a
1
, romper com o patriarcado tornou-se
um dos sinônimos de luta dos movimentos feministas no Brasil e fora dele. Com o advento
de novas t e ori as nos ramos das ciências sociais e hu manas que questionam pesqu is as
androcêntricas, epistemologias feministas têm ganhado força, ocupando um lugar de fala.
Nessa perspectiva, o obje t i vo deste artigo é trazer as voze s e atuação de mulheres, que se
reúnem em núcleos, para realização de projetos sociais inseridos em bairros periféricos, na
região metropolitana de Porto Alegre/RS. Toma-se como pont o de referência profetizas
bíblicas e mu lh e re s que tiveram significativas atuações na luta, pela libertação dos corpos
femininos, dentre elas; Elisa Salern o, Elisabeth Fiorenza, Silvia Federici e , com destaque
especial, Marielle Franco, que foi vítima de feminicídio e em quem, as mulheres muito se
identificam. Demarcar a importância do es paço geográfico de inserção dos corpos
femininos, como um espaço sagrado para transformação pessoal e coletiva é também um
dos objetivos deste trabalh o.
As vozes etnográficas ecoadas neste artigo decorrem de um movimento que teve um
impulso inicial propositado no trabalho das Irmãs da Divina Providência
2
, que um
bom tempo, juntamente com educadoras/es, vêm desenvolvendo um trabalho de oficinas
com crianças e adolescente s, no Serviço de Convivência e Fortale c i me nt o de Vínculos, no
morro Aparecida/Viamão, bairro Umbú/Alvorada e bairros Guajuviras e Rio
Branco/Canoas. A partir dos es paços oferecidos para as crianças e adolescente s sentiu-se a
urgência de juntar os anseios das mulheres que estão inseridas e vivem nestas realidades,
promovendo espaços de encontros, partilhas e empreend ed ori sm o, para também
compreendermos que nossos corpos estão vinculados às re g iõe s periféricas, c ons tr das
pelo sistema capitalista, que oprime e marginaliza pessoas, silenciando vozes femininas,
seja nos espaços políticos, sociais e religiosos.
Nessa perspectiva servirão como memória e serão retratados aqui exemplos de
mulheres que leram a Bíblia e a história de maneira inovadora e encon tra ram chaves de
leituras, is e nta s de fanatismo e fundamentalismo, como fontes reveladoras da força e
atuação das mulheres na história humana, visibilizando a presença feminina, em meio à
história of i ci al, historicamente marcada pela tradição masculina. Toma-se por inspiração
estas mulheres e outras que viviam e vivem no anonimato das reg i õe s periféricas, citadas
acima. Esta visão imprime força para uma atuação emancipadora, rompendo c om as
formas que personificam o patriarcado. Tornam-se, as si m, mentoras e emancipadas nas
escolhas de caminhos para as suas próprias vidas.
Asementeplantadanochãodavida
Registrar as memórias de um trabalho idealizado conjuntamente, abre possibilidades
para partilhar as belezas de quem, a partir de uma saudáv e l convivência, ressurge das
cinzas, como verdadeiras fênix que lutam pela vida. São mulheres que viviam na
clandestinidade e, a partir do convite de outras mulheres sábias, educadoras, juntas, vêm
fazendo um caminho de emancipação. Nas palavras de uma das coordenadoras de grupo:
1 Em um a visão androcêntrica de mundo e de História, o homem tem o benefí ci o de representar o ser humano, quando
este engloba todos os gêneros. Os seres humanos podem ser chamados de os homens, mesmo sabendo-se que
mulheres no conj u nt o. Ele representa a ele mesmo, e também ele e ela simultaneamente. Em uma metáfora biológica,
é c omo se o ele fosse o gene dominant e , enqu ant o o ela é apenas uma fração secundária de sua espéci e . Nunca se
chama o ser humano de a mulher. Ela pode representar ela mesma, nunca ele e ela juntos. É como um gene
recessivo (Lu c il a B. NASCIMENTO , A desconstrução da história androcêntrica e o empoderamento de mulheres, p.5-6).
2 A Congregação das Irmãs da Divina Providência realiza um trabalho de assistência social, através da Rede Divina
Providência de Ação Social e Cidadania (REDIPASC), com sede no município de Canoas/RS. Atende três Casas Lar
em Canoas e quatro projetos sociais nos municípios de Viamão, Alvorada e dois em Canoas.
SANTOS, Elis Alberta Ribeiro dos ; MAI, Lucila Tresinha.
Mulheresquelutam:Comunidadesperiféricascomo espaço de transformãopessoale coletivaà luzdo feminismobíblico
Revista Teopráxis,
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Fazer ressurgir da brasa o fogo da vida, que existe escondido em cada mulher deste espaço
subjugado pe la sociedade moderna.
Este projeto surgiu a partir da liberação dos espaços eclesiais disponibilizados pe las
paróquias: Santa Isabe l/Vi amão , Nossa Senhora Desatadora dos Nós/Alvorada, Nossa
Senhora Aparecida e Santo Antônio/Canoa s, para que as Irmãs da Divina Providência,
pudessem oferecer às crian ças e adolescentes dessas comunidades, um ambiente de
promoção social e defe s a da vida, conforme a Lei 12. 435/20 11 que atualizou a redação da
Lei da Organização da Assistência Social de 1993 (LOAS)
3
. Mesmo que o trabalho junt o às
crianças e adolescentes viesse sendo realizado com foc o no Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculo
4
, visando um processo de integração pessoal e coletiva, com
atividades f ormat iv as e culturais, todo o empenho não era o suficien te para fortalecer as
famílias dess as comunidades periféricas e gerar uma transformação social.
Um dos fatores é o descaso do sistema econômico que as torna v ul ne ráve i s e vítimas
da desigualdade social que assola estas regiões periféricas. Conforme constatado na prática,
na sua maioria, são mulheres pobres, chefes de f amíl ia e que não conseguem o suficiente
para comprar comida, com baixa escolaridade, sem a formalização do vínculo trabalhista.
Outras ainda, são mulheres que morrem ao procurar abortos clandestinos, são mulhere s
espancadas; mulheres que lutam, criando seus filhos sozinhas; mulheres que se tornam
alvos de ataques racistas. Para muitas a luta termina por leva-las ao assassinato. Pessoas
LGBTPQIA+
5
também encontram neste ambiente u m espírito de acolhida, no qual podem
falar de suas dores e sobre os preconceitos que sofrem. São estes retratos concretos e duros
que precisam encontrar es paç os para se tornarem visíve i s , debatendo sobre questões de
gênero e, principalmente, trazendo para as pautas as sérias consequê nci as , decorrentes das
violências qu e esses g ru pos sociais m enfrentado n as periferias das cidades.
A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha
6
, tem como principal objeti vo criar e
estabelecer os mecanismos necessários para coibir a violên ci a doméstica e familiar contra
as mulheres, uma das formas mais grav e s de violação dos direitos humanos. Esta e outras
leis, de proteção às mulheres, são extremamente importantes e se faz necessário que
cheguem ao conhecimento de todas as mulheres, para q ue possam, não apenas tomar
3 A promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social, em dezembro de 1993, regulamentando a Constituição Federal,
representou o reconhecimento da política pública de Assistência Social sob responsabilidade do Estado e deu início a
uma das mais ricas trajetórias de política social em nosso país [...]. Este processo ganhou um novo marco histórico com
a aprovação, em 2011, da Lei 12.435 de 2011. Com a nova Lei, o Sistema Único de Assistência Social SUAS, passa a
integrar plenamente o escopo da Lei Orgânica da Assistência Social. São importantes mudanças abrigadas no texto legal
que acolhem os aspectos mais relevantes da construção recente do SUAS, ocorrida especialmente nestes últimos 7 anos,
após a aprovação da Nob-SUAS (Norma Operacional Básica) pelo Conselho Nacional de Assistência Social.
4 O Serviço de Convivê nc i a e Fortalecimento de Vínculos SCFV, é um Serviço da Proteç ão Social Básica do Si st e ma
Único de Assistência Social - SUAS. A REDIPASC de se n volv e esse serviço nas unidade s de segunda à sexta-fei ra, no
contraturno escolar, de forma a complementar o trabalho social com famílias , realizado por meio do Serviço de
Proteção e A t en di me nt o Integral às Famílias - PAIF. É uma forma de intervenção social planejada que cria situações
instigadoras, e st i mu land o e orientando os usuários na constru ção e reconstrução de suas histórias de vida, vivências
individuais, coletivas e familiares, cuja a finalidade é a pre ve n ção do trabalho infantil e todas as formas de violências e
vulnerabilidades. Prioriza- se especialmente as atividades lúdicas e recreativas, em formas de oficinas, no
reconhecimento de que toda criança e adolescente tem o dire it o ao lazer, convivência e cultura, garantidos pelo
Estatuto da Criança e do Ad ole sc e nt e - ECA, sendo sua efet iv açã o um dever da família, da comunidade e a sociedade
em geral. Este trabalho é realizado em redes, em parceria com o poder público e a Igreja local.
5 De acordo com Botelho (2020), ao longo dos anos, as sig las do movimento, LGBT , sofreram mudanças para englobar
todas as identidades de gênero, afinal, seu principal objetivo é unir as pessoas que fazem parte dessa comunidade e
fazer com que elas s e sintam representadas: G: Gays; L: Lésbicas; B: Bissexuais; T: Travesti s ; transexuais e
transgêneros; I: Intersexuais; P: Pansexuais; Q: Queer; A: Assexuais; +: Sinal utilizado para incluir pessoas que não se
sintam represen tad as por nenhuma das outras oito letras.
6 A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulh e r,
nos termos do § do art. 226 da Consti t ui ç ão Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; alt e ra o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e outras providências.
SANTOS, Elis Alberta Ribeiro dos ; MAI, Lucila Tresinha.
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consciência de seu s direitos, mas es pe ci alme n te denunciar os abus os acometidos aos seu s
corpos, à sua moral psicológica e assim lutar contra todas as formas de violências.
De acordo com Federici
7
, a caça às bruxas que matou mulheres no passado
permanece atual. Para esta filósofa, as leis o são suficientes para combater a onda de
violência contra as mulheres. Além da camada jurídica, é preciso entender as origens, causas e
sintomas que se manifestam e estruturam a base da sociedade capitalista. Surge a necessidade
de uma releitura sobre a história: As mulheres tiveram maior probabilidade de serem
vitimizadas porque foram as mais destituídas de poder. Nesse sentido, Federici propõe que
a acumulação primitiva possui uma face obscura que gera opressão histórica às mulheres.
Calibã e a bruxa, de Sílvia Federici, é uma obra clássica do feminismo
anticapitalista. O livro examina o investimento do capitalismo no sexismo e no
racismo, mostrando como a consolidação do sistema capitalista dependia da
subjugação das mulheres, da escravidão dos negros e indígenas e da exploração
das colônias. Federici demonstra que o trabalho não remunerado
especialmente o das mulheres confinadas ao ambiente doméstico e dos
trabalhadores escravizados é um suporte necessário ao trabalho assalariado
8
.
Ainda para a Autora, olhar a história sob a perspectiva das mulheres, nos diz o
porquê em vez de estar ligada de alguma forma às dinâmicas desencadeadas pelo
capitalismo, a libertação surg e da luta e da resistência autônomas contra essas dinâmicas.
Ao compreender os direitos da mu lhe r como parte integrante dos Direitos
Humanos, presentifica o alerta para a h is t óric a discriminação que as mulheres sofreram e
sofrem, através de um discurso que se moderniza, mas se repete e f az com que alguns
direitos hu manos , mínimos, como a integridade f í si ca, psíquica, liberdade de ir e vir, e
acesso ao direito legal, não sejam garantidos efet iv ame nt e
9
.
Por esta razão, este trabalho de conjunto conta com ajuda de vários profission ai s que
desempenham um papel importante, tanto no acompanhamento como na oferta de uma
formação profissional. O projeto conta com uma psicóloga, coordenadoras/es dos projetos
Sociais (com formação na área da assistência social e pedagog ia) , assessorias jurídicas,
monitorias de cursos de capacitação e empree nde d oris mo e de outras áreas afins. Em
conjunto todos atuam para que realmente se viabilize emancipação e a resiliê nc ia.
1.1Oaproximardasmulhereshoje
O sonho de reunir estas mulheres, gradativamente, foi ganhando corpo e se concretizando.
Um primeiro encontro foi preparado e conduzido de forma atraente, com dinâmicas variadas,
uma calorosa acolhida, descontrão, linguagem acessível. Este e os demais encontros
aproximaram o coração dessas mulheres, facilitando a comunicação e a relação de confiaa.
O desenvolvimento do projeto trouxe em seu bojo descobertas positivas. Estar junto
a estas mulheres, através da linguagem que elas utilizam no cotidiano, abre poss i bi li dade s
de romper barreiras e fazer despertar as vozes silen ci adas pelo medo, vergonha e
incertezas. Nestas vozes se personificam os s onh os e as situações que as afligem,
impulsionando-as a emergir e imergir no espaço de acolhida que o grupo lhes proporciona.
Construir um cotidi ano solidificado nos sonhos e nas esperanças foi um dos desafios.
Para tanto, fez-se necessário promover encontros q u e visassem, entre outros objetivos, a
construção de um diagnósti co.
7 Silvia FEDERIC I , Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
8 Jodin DEAN, A exploração das mulheres e o desenvolvimento do capitalismo, p.1.
9 Lei Maria da Penha - Lei 11.340/06.
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Partindo deste movimento surgiu a ideia da ampliação do projeto para Pastoral da
Mulher marginalizada X Cultura do Encontro e transformação numa Igreja Sinodal. Com
as palavras chaves: mulheres bíblicas, empoderamento feminino, t rans f ormaç ão. Os
principais objet i vos que deram norte ao projeto são:
I - Em um diálogo e entreajuda, incentivar encontros com as mulheres visando o
empoderamento e fortaleci me n to do feminino, trab alhan do a autoestima, e st im u lando o
autoconhecimento pessoal.
II - Ampliar o círculo de amizade, apoiando o fortalecimento i nt e ri or das mulheres
que buscam o resgate da identidade pessoal de vida.
III - Olhar no espelho do passado q u e reflete o presente, para aprender, com os
exemplos de mulheres da Bíblia, os traços e atitudes de mulheres fortes que podem ajudar a
transformar a realidade que as envolve.
Desde o início o proje to teve como meta atender aos desafios de um novo jeito de
evangelização junto às mulheres ocult ada s pela sociedade, apostando no poder exist e nt e
em cada mulher. Os textos bíblicos, relacionad os ao contexto, contemplando uma
hermenêutica crítica feminista, serviram e ser ve m como iluminação para a compreensão
da realidade e para o enfrentamento do cotidiano de s ta s mulheres. A partir destas
experiências, visasse agregar outras que podem ser tocadas e movidas para esse processo de
libertação pess oal e coletiva.
Constatou-se no desenvolvimento do projeto que mulheres que carregavam nos
ombros a marca da história do sistema, aliceado no patriarcado, sentiam-se tristes,
desamparadas , sozinhas. Eram e são situões que estavam e est ão presentes na vida d a
maioria dessas mulheres, que subiam, sobem, desciam e descem a ladeira do bairro em
meio aos lixos espalhados, c aminhos cheios de sulcos rasgados pelas ch uvas,
e nlameados e com odor quase insuporvel
10
. Rostos feridos, machucados pelo
descaso. Ter um lugar onde se dizer, pe rceber a existência do eco foi importante para
o início de uma nova história.
Muitos são os testemunhos, após terem vivenciado e experimentado os encontros. os
envolvimentos em espaços pro g ramados a partir da realidade de vidas sofridas. No
âmago portam um sonho e um vigor inestimável. Trazemos presentes ecos de superação
e resistência através do acolhimento de alguns testemunhos:
Não somos mais as mesmas, hoje nós nos reconhecemos, uma olha para a outra, uma
ajuda a outra o que ante s não acontecia, antes tínhamos medo uma da outra, cada uma
guardava um silêncio para si…”
Foi algo que foi acontecendo aos pouco s e foi superando nossas expectativas, enfim no
primeiro encontro f oram 20 mulheres, depois 4 0, sem de mora tinha 60. Em cada
encontro a ge nt e que gerou grandes mudanças em nossas vidas.
Infelizmente por causa da pandemia, nós não podemos nos encontrar e está fazendo
falta, e posso dizer que esse grupo mudou muit a coisa na minha vida, porque eu me
sentia isolada, sozinha, e mu i t as vezes sem o que fazer. Eu como sou uma pessoa
despojada, me juntei aqui e ficou maravilhoso, se vocês não têm nos seus bairros, peçam
para fazerem, pois aqui além de ter um espaço para nossos f ilho s, tem um espaço para
nós também, um espaço de cuidado e carinho
O que foi mais gratificante pra mim, foi a p rox i mi da de das moradoras e nesse s
encontros que são proporcionados para nós, a gente conversa, a gente conhece a
necessidade umas das outras e isso nos uniu. Como moramos numa comunidade pobre,
foi importante pois nos aproximou e fortaleceu.
10 Realidade das mulheres do grupo do morro Aparecida de Viamão/RS.
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Esses ecos vêm com esperança, nutrida pela reflexão bíblica e pelas possibilidades
empreendedoras e emancipadoras que são construídas j u nto às mulheres. De pequenos
gestos, gradativamente, vão surgindo sinais de ressurreição, de vida que se entrelaça com
outras vidas, como as de seus filhos e de outras companheiras de caminhada.
São expressões de tantos ou t ros rostos, como das mulheres encon trad as por Jesus de
Nazaré, narrados nas Escritura s, apontadas por Teólogas Feministas, como sinal do Reino
de Deu s. A representatividade de mulheres que se dedicam ao aprofundamento dos estudos
bíblicos, define características importantes no movimento femi ni st a na Teologia.
Elegemos algumas delas, em virtude de terem contribu íd o na linha de pensamento e na
filosofia de vida desse s grupos de mulhere s as quais refere nc iam os no projeto
desenvolvido.
A motivação para soprar as cinzas e encontrar forças para essa retomada de vida,
surge da Palavra de Deus. Pela Palavra reinterpretada es sas mulheres deixam-se iluminar.
Os estudos, reflexões e revelações as impulsionam a buscar novos modos de viver as
relações humanas, a igualdade e a diversi d ade . Cada uma age com o intuito de
reconhecerem-se. A partir da experiência de e da ciência que caminham juntas,
descobrem suas potencialidades e a grande força impulsionadora de um valor
imprescindível que vem de Deus Un o e Trino. É a Providência que age e transforma vidas.
Mulheres bíblicas como Marta e Maria (Lc 10,38-4 2) , a Mãe de Jesus ( Lc 1,1s),
Maria Madalena (Jo 8,1-11), a mulher samaritana (Jo 4,5-42), a mulher encurvada (Lc
13,10-17), a Cananéia (Mt 15,21-28), não poderiam faltar nes t e m ovi me nt o t ão es pe c ial. A
identificação com estas mulheres, é o que ajuda a tirar a venda dos olhos e enxergar a
realidade e o poder existente em cada ser: No dizer de u m a das coordenadoras do grupo:
Fazer emergir o poder dos sonhos e da resiliência.
1.2Mulheresidealizadoras
Todo este processo, aparentemente muito simples, gerou um movimento de buscas
de alternativas para efetivação da proposta. Trabalho árduo, que exige outras fontes de
conhecimentos em especial d e mulheres , teólogas feministas , que com coragem,
demonstraram por suas ações a batalha pela busca da verdade, da justiça e igualdade de
gênero. Mu lhe re s idealizadoras e de resgate da presença e da visão feminista da Bíblia e de
seus ensinamentos, que sem temor denunciaram as contradições, levando adiante uma
leitura emanc i padora e igualitária das Sagradas Escrituras. Mulheres que, por suas ações,
marcaram a história.
Elisa Salerno (1873-1957), entre outras, é uma dessas mulheres sábias, que
encontrou nas lacunas da interpretação bíblica os fundamentos da exclusão feminina. Com
muito empenho bus cou novos modos de fu ndam e nt ar o bem viver, a partir de um intenso
e consciente envolvi me nt o. No processo, desc obre que a Palavra precisa estar cone ct ada
com a vida e é este o segredo do saber e do sabor.
Elisa Salerno, mulher que aparece nas bibliografias quando se vasculha a história da
luta pela libertação das mulheres, foi c h amada de feminista cristã, dedicando toda a sua
vida pela afirmação da dig nid ade da mulher, lutando contra todos os compone nt e s sociais
da época (prime i ra metade do século XX) que manti nh am as mulheres em situação de
inferioridade: o capitalis mo liberal que as explorava com cargas de trabalho muito pesadas
e baixa remuneração; o conse rvad oris mo católico baseado na sujeição da mulher em todos
os organismos da Igreja; a mentalidade da superioridade do homem sobre a mulher. De
acordo com Elisa:
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Fazer fe mi ni smo em Vicenza é o mesmo que que re r cavar a terra com pregos
para encontrar um filete de água para matar a sede. conservadorismo,
desprezo em praticamente todos os lugares. Nas próprias mulheres encontrou
pouca colaboração em suas lutas: Será que ninguém se sente capaz de escrever
algumas linhas expondo seus julgamentos, suas ideias e sentimentos sobre a
condição da mulher, sobre suas necessidades, sobre seus deveres e direitos?
11
.
Conforme Salerno, ser feminista significa querer o aperfeiçoamento e a elevação das
mulheres na ordem doméstica, econômica, civil, intele c tu al , de acordo com os direitos que
lhes pertencem e, contrariame n te , ser antifeminista signif i ca antes querer o statu s quo,
que a mulher, mesmo no futuro como hoje, deprimida e explorada, está destinada a sofrer
sempre
12
. Urge a necessi dade da tomad a de consci ê nc ia, da luta pela libe rt ação e a
proclamação do di re it o de ir e vir, direito de ser, direito de coloc ar suas potencialidades e
de exibir as belezas presenteadas pe lo Criador.
Hoje, a mesma história prolongada ao longo de t ant os séculos, se repete. Os estigmas
são encontrados vivamente nas mulheres, cujas condições de vida as colocam em situação
de vulnerabilidade. São mulheres negligenciadas pela sociedade, pe lo estado e pelo poder
patriarcal ainda instituído pe las mais divers as instituições.
Assim como Elisa Salerno, a marca de outras mulheres sábias n u nca se exauriu e
retoma vig or, nos dias atuais, como os estudos e as reflexões de teólogas que impulsionam
suas igrejas a buscar novos modos de viver a igualdade e a diversidade, com o intuito de
reconhecer na diversidade um valor impre sc i ndí ve l para a no Deus Uno e Trino.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ e
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mes ma universidade. Ela é graduada
em Jornalismo, Mestr e em Teologia e dou tora em Teologia Sistemática, com vários livros
publicados, dentre eles, destacamos a obra: Experiênc ia de Deus em Corpo de Mulher. O
livro é uma coletânea de artigos sobre a qu e s t ão de gênero e da teologia sobre o desafio de
pensar Deus desde a ótica da mulher. A m ís ti ca baseada no sagrado feminino apresenta a
maternidade de Deus que interage com suas f i lhas amadas.
Outra teóloga biblista femini s ta é Elisabeth Fiorenza, conhecida a nível
Internacional. A teóloga, depois da Segunda Gue rra Mundial, foi para Alemanha. Ali foi
uma das primeiras mulheres católicas a se formar em teologia, doutorando-se n a área da
Bíblia. Desde 1970 vive nos Estados Unidos e ensina exegese/interpretação bíblica
feminista (atualmente na Divinity School da Universidade de Harvard, Cambridge, Mas s .)
e em outros países do mundo. Ao longo de s u a vida, Fiorenza desenvolveu uma
abrangente metodologia de interpretação bli ca feminista crítica e libertadora, que ela
apresenta com paixão e primor em seu livro Wisdom Ways (Caminhos da Sabedoria),
publicado em 2001.
Ivone Gebara é brasileira, freira feminista. Pert e nc e à Congregação das Irmãs de
Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho e por décadas viveu no Nordeste do Brasil,
numa vida de inclusão no meio popular. De dentro da Igreja procura mudá-la. Dedica-se,
fundamentalmente, a partir de uma teologia feminista, desconstruir o direito natural,
patriarcal e machista que a hierarquia católica pretende impor. Entre as obras, enc ont ra-s e
o livro que no momento ofe re ce reflexõe s apropriadas para os trabalhos: Trindade, palavra
sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva ecofeminista.
Estas mulheres, teólogas feministas, contribuíram através de seus escritos, para
promover novas maneiras de interpretações bíblicas, tendo por premissa a perspec ti va
11 Elisa SALERNO, Una penna inquieta, p.114.
12 Elisa SALERNO, Una penna inquieta, p.191.
SANTOS, Elis Alberta Ribeiro dos ; MAI, Lucila Tresinha.
Mulheresquelutam:Comunidadesperiféricascomo espaço de transformãopessoale coletivaà luzdo feminismobíblico
Revista Teopráxis,
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feminista. Não é difícil para as mulheres, que f aze m parte dos grupos, identificarem-se nas
reflexões abordad as e demonstrada s pelas autoras acima nominadas, nas inquiet açõe s , nas
buscas de respostas, principalmente quando conseguem perceber e resgatar a atuação
libertadora do feminismo bíblico, para descobrir as dinâmicas do Reino anunciadas por Jesus.
E assim vão se colocando em movimento para ocuparem out ros espaços, que são os
espaços de anúncio. A partir do encontro com o Messias, do encontro consigo mesma,
tornam-se semeadoras do Reino de esperança e de amor, parafraseando o que consta no
Livro de João, verbalizado pela mulher samaritana: Venham ver quem que me disse tudo
o que eu fiz! (Jo 4,29). Eis a dinâmica de um processo que é libertador.
1.3AformaçãoBíblicaeahermenêuticafeminista
Jesus com gestos e palavras acolhe e integra as mulheres na vida social, olhando-as
com ternura, defende sua dignidade e as acolhe como discípulas. Jesus rompe tabus e
preconceitos, se aproxima delas sem nenhum temor, até se deixando acariciar por elas. Ele
ofereceu às mulheres relações sociais bem contrárias às do androcentrismo da época. Ele
enaltece mu lh e re s meretrizes (Mt 21,31); mulheres pobres (Lc 21,1-4); as defende em
ocasiões em que são acusadas (Mc 14,3ss); cura os doentes mostrando compaixão com as
mães (Lc 7,11-19); lhes acesso ao saber religioso (Lc 10,38-42); lhes acesso ao
discipulado (Mc 15,40s) e aceita s u st e nt o de várias mulheres (Lc 8,1-3).
Segundo Arns (2004)
13
, os quatro evangelhos retratam o papel das mulheres em
relação a Jesus, especialmente durante seu ministério. Embora Lucas aprese n te narrativas
em que as mulheres aparecem subordinadas ao homem, coloca em destaque também Jesus
dando atenção às mulheres. É exclusivo do evange lh o Lucano: o cântico de Maria (1,46-
56), a pecadora perdoada (7,36-50), a narração de Marta e Maria (10,38-42), a mulher que
procura a moed a perdida (15,8-10 ), a mulher encurvada (13,10-17 ), Jesus consoland o as
mulheres (23 ,2 7 b-2 9 ).
É possível evidenciar essa presença feminina na genealogia de Mateus e no
evangelho da infância de Lucas. Em Marcos todas as mulheres creram em Jesus com
exceção de Herodíades e sua filha. Em João vem os o evangelista dar atenção especial às
mulheres. Ali elas aparecem bastante envolvidas por sua mensagem e tornam-se
anunciadoras do Reino. Acima de tudo, elas emolduraram a vida de Jesus desde o seu
nascimento até a sua morte e ressurreição
14
.
Na árvore gene alóg i ca de Jesus aprese nt ada por Mateus, vamos encontrar quatro
nomes de mulheres que foram matriarcas da história do povo de Israel: Tamar, Raab, R u te
e Betsabeia. De acordo com Arns (2004), a história das mães em cada geração mencionada
no texto (Mt 1,1-17) garante a futura realização da nova Aliança, através de Jesus Cristo,
centro da história da salvação.
A últ ima mulher que aparece na genealo gia de Jesus é Maria, a e do Salvador.
Maria abre as portas para a realização do pro jeto de Deus em sua vida ao ouvir a
saudação do anjo Gabriel: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! (Lc 1,28b).
Me smo sem entender, sentiu-se envolvida pelo anúncio do anjo e depois de um d logo
colocou-se a serviço do Rei no: Eu sou a s erva d o Se nhor; fa-se em mim segundo a tua
palavra! (Lc 2,3 8b). Em Maria é manifestada a glória de D eus para rede ão do mundo,
a vinda do M essias é concretizada no seu Sim. Uma resposta de amor e cu mprimento a
vontade de Deus.
13 Paulo Evaristo ARNS, Mulheres da bíblia, p.22.
14 ARRUDA, Mulheres na vida de Jesus: a h is t óri a das primeiras discípulas, p. 25 .
SANTOS, Elis Alberta Ribeiro dos ; MAI, Lucila Tresinha.
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Ainda no Capítul o 1, do evangelho de São Lucas, aparece Isabel (Lc 1,3 9-4 5 .5 6 ),
prima de Maria, que era estéril, no entanto, Deus também realiza nela sua obra de vida.
Isabel é escolhida par a ser a mãe de João Batista, que vai preparar o caminho do Messias,
tão esperado pelo povo de Israel.
Maria vai às pressas à casa de Isabel. O encontro das duas primas representa a
possibilidade da intervenção de Deus em meio à hi st óri a da humanidade. Maria grávida de
seis meses canta as maravi lhas que Deus realiza em sua vida. É agraciada por ser a mãe do
filho de Deus. Magnificat (Lc, 1,46-55) é o canto de Maria que manifesta seu amor ao Pai e
o reconh e ci me nt o de sua obra redentora e libertadora que também se realiza através de la
em favor dos pobres e injustiçados. Um canto de profecia e libe rt ação que derruba os
poderosos de seus tronos, elevando os humildes (L c 1,52).
Essas narrativas bíblicas do encontro de Jesus com as mulheres iluminam as
realidades em que se encontram as mulheres, que se colocam nesse movimento de busca e
libertação, e assim como Maria, cant am a graça da realização da promessa do Pai no seio da
humanidade.
Jesus andava pelos povoad os, anunciando a boa notícia, qu e bran do preconceitos e
ideologias religiosas. Para tantas mulheres Ele foi tocando, curando, libertando e
chamando para o seguimento e muitas permaneceram junto a Ele e aos doze, entre elas:
Maria Madalena, Joana, Suzan a e várias outras mulheres q u e ajudavam Jesus e os
discípulos com os seus bens (Mc 15,40-41 e Lc 8,1-3).
Nessa perspectiva, podemos também trazer presente aqui, que para além do
patriarcalismo bíblico, muitas exe ge t as conseguiram extrair das sagradas escrituras uma
atuação libertadora de muitas mulheres tocadas por Deus. Lendo, estudando e atualizando
textos bíblicos atrelados a esses aspectos históricos e aos direitos femininos, mu i t as
mulheres das regiões periféricas vinculadas aos projetos vêm se colocando nesse
movimento de libertação e transformação, assumi ndo um protagon is mo, historicamente
negado.
Baseado na ação libertadora d e Jesus que acolhe e integra mulheres em seu
movimento, este projet o idealizado com mulheres que se encontram em pe ri f e ri as, tem
proporcionado um elo vital entre elas e as pessoas que fazem parte de suas vidas, de modo
especial, com seus/as filhos/as. Sentindo-se amadas e acolhidas pelo grupo são tocadas
pelas experiên ci as das mulhere s que se encontraram com Jesus e foram libertas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encontramos nos textos bíblicos que versam sobre o feminismo, interpretaçõe s
importantes que se traduzem em práticas efetivas na at u ão ju nt o às m u lhe re s , a part i r
das realidades dos lugares que são subalternizados pelo sistema econômico v ig e n te , que
exclui e mata a população de peri fe ri a. O chão que se pisa torna-se s olo sagrado, ecoando
dali as vozes daquelas que foram silenciadas pelo poder patriarcal.
As comunidades pe ri f ér ic as tornam-se lugares de emancipação, à medida qu e são
oportunizados momentos de encontro, partilha de vida, formação de lideranças, estímulos
ao cuidado de si e da outra/o, momentos de encontros com quem sofre das mesmas dores.
A periferia subjugada é transformada, por essas mulheres, que assumem seu papel com
protagonismo diant e das duras realidades qu e afetam seu ser fem in in o.
Lugares de partilha em torno da Palavra de Deus tornam-se sementes geradoras de
vidas. As mulheres bíblicas, a partir da experiência do encontro com Jesus, são
transformadas por seu amor. Apr ofu n dar o conhecimento destas mulheres nos encontros e
SANTOS, Elis Alberta Ribeiro dos ; MAI, Lucila Tresinha.
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partilhas de vida, pequenos milagres de ressurreição vão acontecendo. Jesus integra, acolhe e
promove. Elas se conectam com Ele, com suas próprias vidas e realidades. Esta transformação
não se como em um passo de mágica, mas dentro de um processo, não ausente de dores e
sofrimentos, no entanto, desejosas de poder se encontrar e valorizar suas próprias histórias,
com passos gradativos mediante um processo de resiliência e emancipação.
Todo esse processo de busca de alternativas está diretame nt e ligado à proposta do
Evangelho de Jesus que integra e acolhe mulheres em seu discipulado de iguais. Nós, como
Irmãs da Divina Providência, a partir da opção de estarmos inteirament e l ig ad as às causas
das/os pobres, fazemos desses momentos de encontros, espaç os d e nossa atuação conjunta,
como mulheres consagradas. Estamos jun tas a essas mulheres, aprendemos muito com elas
e nossa missão é de também estar nesse movimento de luta pelos direitos que nos foram
negados, durant e toda históri a, em todas as esferas e dentro das Instituiçõe s .
Poderíamos nos perguntar: Por que, ainda hoje, somos subjugadas quando queremos
participar da construção de uma soc ie d ade mais justa e igualitária? O lugar da mulher está
em qualquer lugar que ela queira estar. Sentimo-nos sempre pressionadas a lutar por
nossos dir e it os, porque enquanto houver uma sociedade alicerçada sob os preceitos do
patriarcado, as mulheres permanecerão sofrendo violências. Romper com essas estruturas
de poder é nosso maior desafio.
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Paulo: Pauli nas , 2004.
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feminista em L uc as 8,1-3; 10,38-42 e Atos dos Apóstolos 9,36-43 [manuscrito] Dissertação
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