A HISTÓRIA DA MULHER
NA IGREJA E NA
CONTEMPORANEIDADE
v. 40, n. 135, Jul./Dez./2023
ISSN on-line: 2763-5201
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T314
Revista Teopráxis, vol.1, n.1(1984-) / Instituto de Teologia e Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v.40
- n°135, Jul./Dez./2023. Semestral.
ISSN:1677-860X versão impressa (descontinuada)
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Periódicos I. Instituto de Teologia e Pastoral-ITEPA
SUMÁRIO
Editorial.................................................................................................................................................................... 4
Luísa de Lucas
ENTREVISTA
Conversando sobre a história da mulher na Igreja e na Contemporaneidade........................ 7
ARTIGOS
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia........................................... 11
The feminine in Ancient Christianity: an essay about Matrology
Elisângela Pereira Machado
O Discipulado de Iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas..................22
The Discipleship of Equals in the biblical pericope The Sinner of the Gospel of Luke
Dorcelina do Carmo Alves Gomes
Mulheres, sociedade e a Igreja Católica Apostólica Romana........................................................... 33
Women, society and the Roman Catholic Apostolic Church
Maria Cristina S. Furtado
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica
e as questões sobre gênero................................................................................................................................ 42
The God who acts on the social borders of the human: the biblical narrative and questions about gender
Ângela Maringoli
Vi o Senhor!”: a dimensão feminina do relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado
no Quarto Evangelho e um Papa que acolhe o testemunho das mulheres................................ 51
“I saw the Lord!”: the feminine dimension of the account of the first apparition of the risen
Jesus in the Fourth Gospel and a Pope who welcomes women’s testimony
Luísa de Lucas e Marcela Machado Vianna Torres
Implicações da sororidade na sinodalidade............................................................................................. 67
Implications of sorority in synodality
Bárbara P. Bucker
Minha experiência com Maria de Nazaré.................................................................................................77
My Experience with Mary of Nazareth
Alzira Munhoz
DEMANDA CONTÍNUA
O caráter pastoral da Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Mitis Iudex
Dominus Iesus,
sobre
a reforma do processo canônico para as causas
de declaração de nulidade do
matrimônio no Código de Direito Canônico:
uma leitura conjunta com Amoris Laetitia
................. 88
The pastoral character of the Apostolic Letter in the form of Motu ProprioMitis Iudex
Dominus Iesus, on the reform of the canonical process for the causes of declaration of
nullity o marriage in the Code of Canon Law: a joint reading with Amoris Laetitia
Aloísio Ruedell
PARCERISTAS AD HOC
Nominata dos pareceristas Ad Hoc da Revista Teopráxis: edições 134 e 135 de 2023............ 106
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
EDITORIAL
Luísa de Lucas*
A Revista Teopráxis tem a alegria de apresentar a seus
leitores(as) a segunda edição de 2023. O dossiê se volta para uma
temática muito sensível e que ocupa um importante lugar de diálogo
nas produções teológicas, a saber: A História da Mulher na Igreja e
na Contemporaneidade. As questões ligadas ao feminino estão,
também, particularmente próximas das reflexões tecidas pelo Papa
Francisco. Ele tem feito um movimento inédito para maior inclusão
feminina nas decisões da Igreja nesta última década, inspirando um
novo olhar teológico, pastoral e missionário. No documento
Evangelii Gaudium (2013), o Papa afirma que “a Igreja reconhece a
indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma
sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares”(n.103),
dando mais vida e vigor ao anúncio do Reino. No mesmo
documento, ele reforça a necessidade de ampliar os espaços para
uma presença feminina mais incisiva na Igreja, especialmente nos
lugares onde se tomam decisões importantes.
As mulheres são indispensáveis para a ação missionária e
evangelizadora da Igreja no Brasil e no mundo. Em audiência com os
membros da Comissão Teológica Internacional, Papa Francisco
reiterou o papel decisivo da contribuição das mulheres para a reflexão
teológica. Para o Pontífice, isso requer compreender a teologia sob a
ótica feminina para poder compreender o que é a Igreja e os sinais de
Deus na história. Por isso, é fundamental desmasculinizá-la a partir
de uma teologia e linguagem de inclusão, engajada, comprometida e
sensível às novas realidades que requerem mais cuidado, atenção e
uma leitura mais aguçada do mundo. Enfim, necessitamos de uma
teologia ainda mais evangelizadora, na promoção do diálogo e atenta
a um mundo em constante transformação, complexo e plural. São
reflexões sobre essa dimensão que a presente edição da Revista
Teopráxis tem o prazer de apresentar a seus (suas) leitores (as), a fim
de amadurecer e qualificar sempre mais a relação sine qua non do
feminino na evangelização.
Partindo da compreensão do significado desse tema para a atual
conjuntura eclesial em tempos de sinodalidade, abrimos esse dossiê
dialogando sobre a participação feminina nos âmbitos bíblico,
histórico, teológico e antropológico. Por isso, o leitor terá alegria de
apreciar a entrevista com a teóloga brasileira Maria Clara Bingemer. Ela
versa sobre algumas questões pertinentes em relação ao fazer teológico
das mulheres e que são centrais para uma hermenêutica capaz de
pensar e problematizar os desafios para a missão da mulher na Igreja,
num contexto marcado por machismos e centralização do poder.
Na sequência, abrimos a seção artigos do dossiê apresentando
textos que dialogam sobre As Mulheres na História da Igreja e que
problematizam seu papel e sua participação no ontem e no hoje do
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 4-6, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.200
* Professora no Instituto de Teologia e
Pas
toral (Itepa) na área da Mariologia.
Doutoranda em teologia na PUCRS
(Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul). Possui Mestrado em Teologia
Sistemática pela PUCRS e graduação em
Pedagogia pela Universidade Paulista (2005)
Religiosa da Congregação das Irmãs de Notre
Dame. Tem experiência na área de Educação,
com ênfase em Educação Musical, Ensino
Religioso e Orientação Vocacional, com
aprofundamento principalmente nos
seguintes temas: Vida Religiosa Consagrada,
Pluralismo Religioso, Santidade, Mulher,
Juventudes e Cristianismo.
Email: marialuisa@notredame.org.br
https://orcid.org/0000-0003-1629-6814
5
Projeto da Salvação, continuando o seguimento e o discipulado de Jesus (Cf. Lc 8).
Iniciamos com a bela reflexão produzida pela Doutora em Teologia e Professora na pós-
graduação da PUC Minas, Elisângela Pereira Machado, que apresenta o artigo intitulado
O feminino no Cristianismo Antigo, um ensaio sobre a Matrologia”e traz à tona um tema
bastante recente nos estudos teológicos em torno da Matrística. São figuras que foram
esquecidas pela tradição da Igreja e que agora são recuperadas, pois foram fundamentais na
constituição da tradição espiritual do Cristianismo Antigo, sendo muitas delas mulheres
do Império e do deserto, ammas-madres-mães da Igreja, mulheres de sabedoria,
compromisso e de profunda ascese.
Seguindo a seção, são apresentados três artigos com enfoques específicos em diálogo
com a temática da mulher sob a abordagem bíblica. Refletindo sobre o protagonismo
feminino na Igreja e na Sagrada Escritura, com o artigo O discipulado de iguais na perícope
bíblica, pecadora do Evangelho de Lucas”, a autora Dorcelina Gomes nos apresenta o tema do
Discipulado de Iguais, partindo do texto de Lucas de 7,36-50, perícope sobre a pecadora
pública. O discipulado de iguais apresentado no artigo está presente no diálogo entre Jesus
e a ‘pecadora sem nome’, no encontro ocorrido na casa do fariseu que revela a comunidade
lucana em sua sensibilidade especial pelas mulheres, sobretudo as pobres e as desprezadas
pela sociedade. As mulheres ocupam o seu lugar nas comunidades fundadas por Jesus que
lhes voz e torna-as suas discípulas. Partindo do texto de João 4, a teóloga Ângela
Maringoli, com o artigo intitulado O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: A
narrativa bíblica e as questões sobre gêneroapresentam a narrativa bíblica do encontro de
Jesus com a Samaritana, abordando questões cruciais sobre gênero, segregação,
preconceito racial e religioso. uma conexão apresentada entre ensinos de Jesus com a
realidade cultural da mulher, numa história da relação entre dois povos. A figura de Maria
Madalena no quarto Evangelho nos relatos pascais e a instituição da solenidade da festa
dessa grande apóstola são temas abordados no texto: Vi o Senhor! a dimensão feminina do
relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado no Quarto Evangelho e um Papa que acolhe o
testemunho das mulheres”. As autoras Marcela Machado Viana Torres e Luísa de Lucas
apresentam o artigo refletindo sobre a “Apóstola dos Apóstolos” através da análise de
aspectos narrativos do texto, trazendo também um breve apanhado sobre o
desenvolvimento do tema do protagonismo feminino no Pontificado do Papa Francisco.
Os dois artigos que seguem tratam de temas referentes à mulher na Igreja Católica e
as implicações da sororidade e sinodalidade. Através do artigo “Mulheres, sociedade e a Igreja
Católica Apostólica Romana”, a doutora em teologia e especialista em educação, Maria
Cristina Furtado, defende em seu texto que a cultura patriarcal trouxe para a mulher, na
contemporaneidade, a herança de ser considerada inferior em termos intelectuais, e ter
apenas uma grande capacidade afetiva. O movimento feminista tem contribuído nesta luta
e o estudo da teologia pelas mulheres, levou-as a conhecerem o Deus libertador,
possibilitando, assim, novos desdobramentos e olhares teológicos para a mulher exercer
seu potencial e lugar na Igreja. Trazendo à tona o tema da Sinodalidade na ótica da Vida
Religiosa Feminina, a teóloga e religiosa Bárbara Bucker apresenta o seu artigo “Implicações
da sororidade na sinodalidade”, partindo da necessidade de redescobrir e valorizar a Igreja
como uma “casa inclusiva”, através da partilha e do reconhecimento mútuo. O caminho
sinodal propõe um retorno à autenticidade e simplicidade, na transformação das estruturas
autoritárias, clericalistas e patriarcais.
Partindo de sua experiência com a pessoa de Maria de Nazaré, a doutora em teologia
e missionária na Guatemala, Alzira Munhoz, nos abrilhanta com sua produção intitulada
Minha experiência com Maria de Nazaré”, fruto de seu trabalho com mulheres mais de
DE LUCAS, Luísa
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 4-6, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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trinta anos. O artigo elaborado em primeira pessoa adentra uma marialogia feminista e
latino-americana e coloca Maria como uma mulher identificada com seu povo e
comprometida na luta pela justiça. Nossa Senhora é solidária com as mulheres e pessoas de
boa vontade na sua luta por criar uma nova ordem social.
Para concluir a edição desta revista, na seção demanda contínua, o nono artigo,
produzido pelo Pe. Aloísio Ruedell, apresenta um tema muito pertinente e discutido em
nossas comunidades, com o título O caráter pastoral da Carta Apostólica em forma de Motu
Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, sobre a reforma do processo canônico para as causas de
declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito Canônico: uma leitura conjunta com
Amoris Laetitia”. O texto apresenta a preocupação pastoral e a orientação do Papa
Francisco. Através de uma leitura conjunta dos dois documentos Amoris Laetitia e do MIDI,
que se complementam, o texto abordará o tema da família e suas dificuldades e como a
Igreja deve orientar e refletir esse assunto no seu cuidado pastoral.
Desejamos a todos(as) uma ótima leitura. Que esta edição da Revista Teopráxis
possa contribuir para avançar mais na reflexão, debate e abertura para o tema o
protagonismo feminino na Igreja e na sociedade, inspirados(as) pelo exemplo de grandes
mulheres bíblicas, líderes cristãs e tantas outras que inspiram nosso fazer e pensar
teológico-pastoral.
DE LUCAS, Luísa
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 4-6, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
ENTREVISTA
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CONVERSANDO SOBRE A HISTÓRIA
DA MULHER NA IGREJA E NA
CONTEMPORANEIDADE
1
Maria Clara Lucchetti Bingemer*
A edição 40/135 de 2023 da Revista Teopráxis, da Faculdade de
Teologia e Ciências Humanas, Itepa Faculdades, tem a alegria de
apresentar este dossiê que dialoga sobre o tema da Mulher na história
da Igreja e na contemporaneidade. Abordar essa temática tem sido
algo latente para a evangelização hoje, sobremaneira quando tanto se
reflete acerca da sinodalidade. Desde a Igreja Nascente, as mulheres
foram fundamentais para o crescimento e florescimento do cristianismo
em suas primeiras comunidades, na evangelização e no discipulado.
Para contribuir e qualificar esse diálogo, convidamos a teóloga
doutora Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora de teologia da
PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da
mesma faculdade, uma das grandes referências da teologia elaborada
pelas mulheres no Brasil e no mundo. A Dra. Maria Clara atua na área
de Teologia Sistemática, principalmente nos seguintes temas: Deus,
alteridade, mulher, violência e espiritualidade. Atualmente, seus
estudos e pesquisas vão primordialmente na direção do pensamento e
escritos de místicos contemporâneos e da interface entre Teologia e
Literatura. Várias de suas obras dialogam com o tema proposto nesta
edição: “Cultura da paz e prevenção da violência”; “Mulheres de
palavra”, “Mulher e Relações de Gênero”; “Maria, Mae de Deus e Mãe
dos Pobres”, em coautoria com Ivone Gebara; “Simone Weil - Ação e
contemplação”; “A experiência de Deus num corpo de mulher”; “A
Igreja e os intelectuais”; “Doutrina Social da Igreja e Teologia da
Libertação”; “O Segredo Feminino do Mistério”, entre tantas outras que
trazem à tona uma teologia em ritmo de mulher.
Para dialogarmos com a autora, propomos algumas questões que
visam aprofundar e problematizar essa abordagem o premente na
produção teológica atual. Por isso, é um prazer para nós podermos
estabelecer essa interlocução mais direta com a autora que está muito
presente em nosso círculo de reflexões. Nossa Revista Teopráxis a acolhe
com muita ternura e admiração e, ao mesmo tempo, desejamos que
nossas(os) leitoras(es) apreciem essa troca de experiências. Enfim,
gratidão, Maria Clara, pela sua disponibilidade
em contribuir com
nosso fazer teológico através dessa entrevista.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 7-10, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.182
* Possui graduação em Comunicação Social
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (1975), mestrado em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (1985) e doutorado em Teologia
Sistemática pela Pontifícia Universidade
Gregoriana (1989). Atualmente é professora
titular no Departamento de Teologia da
PUC-Rio.
Email: agape@puc-rio.br
https://orcid.org/0000-0003-3443-8214
Recebido em 10/09/2023
Aprovado em 21/10/2023
1 Entrevista concedida à Luísa de Lucas, coordenadora desta edição da Revista Teopráxis.
8
1 Quais são suas principais referências (obras, pessoas) na teologia que
inuenciam seu pensar e fazer teológico?
Poderia mencionar várias. A primeira sem dúvida é Santo Inácio de Loyola, sobre
cuja obra fiz minha tese de doutorado. A partir da experiência dos Exercícios Espirituais
apaixonei-me por sua espiritualidade, sua mística e pela síntese teológica trinitária que
nela havia. Reuni aí meus dois amores: a mística e a Trindade, temas com os quais trabalho
até hoje. Em seguida, e mesmo a partir da tese, Karl Rahner, cuja obra teológica para mim
foi fundamental para compreender a teologia moderna e mesmo contemporânea que
começava a estudar. Seu axioma que diz que a Trindade Econômica (Deus para nós) é a
Trindade Imanente é fundamental para toda a compreensão que tenho da Teologia. Em
meus estudos teológicos pude ver a influência de Rahner sobre a teologia latino-americana
que se forjava naquele momento. Outra referência para mim é sem dúvida a Teologia da
Libertação, que entende a práxis como ponto central de convergência e irradiação da vida
cristã. A abertura de Rahner para tudo que é secular e do mundo foi fundamental para
isso. Dentro da própria TdL, meus interlocutores maiores foram sem dúvida J. B. Libanio,
professor e amigo, que muito me ensinou e ajudou durante meu percurso teológico;
Leonardo Bo, que me convidou para dar aulas em seu lugar no ITF na época em que não
podia assumir essas aulas. E finalmente Jon Sobrino, com quem trabalhei ao longo de dez
anos na revista Concilium. Seu pensamento a partir das vítimas, que alarga a concepção da
identidade dos pobres foi e é fundamental para mim.
No período em que trabalhei no diálogo fé e cultura, estudei muito a modernidade e a
pós-modernidade e as mutações que aconteciam na cultura e atingiam a religião. Foi então
que me deparei com o pensamento de Simone Weil, que para mim hoje é referência
obrigatória como filósofa, pensadora e como mística. Ela me abriu todo o mundo da mística
contemporânea no qual fui encontrar outras referências importantes. Mulheres sobretudo
como Etty Hillesum, Edith Stein e Julia Kristeva que pensa sobre essa mística. Igualmente
Dorothy Day, ativista e mística estadunidense, cuja mística tem muitos pontos em contato
com a Teologia da Libertação. Igualmente Thomas Merton, monge trapista escritor, que
conheço menos, mas que sempre me fascina e me mostra como a mística é livre e como a
teologia que dela brota é a que mais pode atingir os ouvidos e os corações contemporâneos.
Ao lado disso, eu diria que meu terceiro campo maior de influências é e tem sido a
literatura e a poesia. Vejo a literatura como a nova mediação hermenêutica por excelência
para que a teologia encontre espaço para dizer novas palavras ou palavras que ressoem e
sejam entendidas hoje. Neste campo tenho descoberto sobretudo autoras mulheres, como
Adélia Prado, Sophia de Mello Breyner Andresen, assim como também alguns homens,
tais como Guimarães Rosa. Vejo que hoje a teologia deve estar realmente nas fronteiras e
no átrio dos gentios, dialogando com as questões que a sociedade levanta. assim
cumprirá sua missão, tal como a entendo. O Papa Francisco tem falado constantemente
sobre isto e creio que suas palavras começam a produzir frutos.
2 A partir do seu trabalho como docente e teóloga, quais são os maiores desaos
contemporâneos que observa? O que você aconselharia para as mulheres que
optam em seguir e atuar nessa área? Quais aspectos considera relevantes e que
deveriam ser uma ocupação dos (as) jovens teólogos(as)?
Os desafios o muitos e muitos deles eu creio que apontei na resposta acima. A
teologia hoje não pode mais se limitar aos manuais e compêndios. Nem lhe é permitido
restringir-se aos espaços apenas eclesiásticos. Deve ocupar-se nestes, claro está, mas deve
também sair, dentro do modelo de Igreja em saída que propõe o Papa Francisco e fazer
Conversando sobre a história da mulher na Igreja e na Contemporaneidade
Entrevista com Maria Clara Lucchetti Bingemer
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ouvir seu discurso fora do templo, no chão da vida, em meio às pessoas as mais diversas,
mesmo que estas não comunguem da que marca e deve marcar o discurso teológico. A
grande intuição do Concílio Vaticano II é esta: Deus não se faz presente apenas dentro da
instituição eclesiástica, mas estende sua autocomunicação e revelação a toda a
humanidade e a toda a criação, a toda a festa dos seres vivos. Igualmente nas fronteiras,
nos lugares ambíguos e talvez suspeitos, ali a experiencia de Deus pode estar emergindo
de formas originais e insuspeitadas. Os teólogos então deveriam dirigir seu olhar com
muita atenção a tudo isso.
Para as mulheres, enquanto mulher, diria que sabemos que o caminho é árduo.
Ainda existe muita suspeita, muita distância, muita discriminação com relação à presença
da mulher fazendo teologia. Justamente por isso, nosso esforço deve ser ocupar os espaços,
fazer-se visível e audível. Mostrar a que viemos. Nesse sentido essa foi minha
experiencia então a partilho aqui creio que não devemos elaborar nossos textos e
reflexões apenas em torno ao tema da mulher. É muito importante fazê-lo, claro está, mas
é importante também demonstrar que podemos e sabemos refletir e falar sobre outros
temas teológicos: sobre Deus, sobre Jesus Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a Igreja,
sobre a antropologia, escatologia, a Bíblia etc. E o fazemos enquanto mulheres. Creio que
isso ajuda as portas a se abrirem, ou melhor, a não se fecharem tanto.
Aos jovens (tenho alunos jovens e me enchem de esperança) diria que nos ajudem,
que não tenham medo de expressar-se livremente, de colocar suas perguntas, de levantar
suas vidas e suas questões. São eles que nos abrirão as portas dessa nova época que
estamos vivendo. Precisamos de sua presença e dos temas que os ocupam e lhes move o
coração para que nossa teologia procure responder às perguntas que são feitas e não
àquelas que já tiveram seu momento, mas não serão mais feitas.
3 Partindo da perspectiva da mulher, sua contribuição na reexão teológica atual
atravessa continentes, evidenciando que não é possível fazer teologia sem olhar
para o feminino. Nesse sentido, em que aspectos a hermenêutica da teologia
feminista contribuiu para a teologia hoje? Como essa releitura está promovendo
uma exegese e análise dos textos bíblicos e impactando na produção teológica no
Brasil e no mundo?
A meu ver, a teologia feminista abriu uma fenda no discurso hegemônico e
monolítico do patriarcalismo que marcava boa parte da teologia cristã. Trouxe perguntas e
dúvidas e suspeitas sobre algo que parecia dado por assente desde sempre e para sempre.
Trouxe a diferença da mulher mostrando que é constitutiva da humanidade, a qual não
encontra sua identidade sem ela. Trouxe uma perspectiva diferente para abordar o texto
bíblico, trouxe novidades retumbantes para falar sobre a antropologia, e sobre a
Cristologia e o discurso sobre Deus e a experiência que o funda. E trouxe temas próprios,
de sua agenda, para o centro da teologia: a sexualidade, o gênero, a corporeidade.
Ultimamente creio que um dos temas mais importantes é a analogia do discurso sobre a
corporeidade feminina com a corporeidade da terra dentro da grande temática da
Ecologia. O ecofeminismo é um dos veios mais promissores da teologia, a meu ver, assim
como a mística. A redescoberta das mulheres místicas de ontem e de hoje, medievais,
modernas e contemporâneas é algo de extrema importância e que traz luz nova para
muitas questões importantes.
Conversando sobre a história da mulher na Igreja e na Contemporaneidade
Entrevista com Maria Clara Lucchetti Bingemer
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4 A hermenêutica feminista e de gênero, particularmente na América Latina, teve
como pano de fundo a Leitura Popular da Bíblia. A mudança de vocabulário e de
questões práticas que promovem o protagonismo feminino ainda revela um grande
abismo na igreja. Que movimentos a igreja deverá avançar mais para a vivência do
Discipulado de Iguais?
Eu sou otimista quanto aos passos e ao espaço que a mulher vem ganhando na
Igreja, apesar de reconhecer que esses passos ainda o primeiros e estão longe de terem
dado toda a sua medida. Ainda muito que caminhar. No entanto, creio que uma coisa é
imprescindível e fundamental: que as mulheres estejam juntas e solidárias e trabalhem
sempre mais em rede. Nossa teologia tem que ser “Madalena” como nos ensinou Moema
Miranda, ao falar da Igreja Madalena. Não é nem pode ser uma teologia de competição,
mas de comunidade e solidariedade. Temos que pensar em rede, fazendo um trabalho
sempre inclusivo e deixando claro aos companheiros homens que o pretendemos isolá-
los do nosso convívio. Pelo contrário, nós os queremos conosco, sabendo que quanto mais
eles se conscientizarem da importância de que a nossa diferença esteja presente no
discurso e no tecido comum da teologia, todos teremos a ganhar. Não se concebe mais um
espaço onde a presença e a voz feminina não estejam presentes na linha de frente.
Enquanto isto não acontecer, haverá sempre uma nota falsa na bela sinfonia que Deus
deseja que a teologia faça soar e ressoar pelos espaços contemporâneos.
5 O Papa Francisco tem insistido em seu magistério na valorização e inclusão
feminina. Um exemplo é ter permitido que mulheres votem no próximo Sínodo dos
Bispos em um movimento inédito que pode abrir caminho para maior inclusão
feminina nas decisões internas da Igreja Católica. O que você espera desta abertura?
Penso que o Papa Francisco está fazendo o que pode, com a lúcida consciência de que
não pode fazer tudo. Abriu espaços para as mulheres, situando-as em cargos de
importância dentro da Igreja. A questão do voto no Sínodo é uma das questões, não a
única. Ele assim promoveu uma maior visibilidade das mulheres e isso foi um passo.
Cabe a nós ocuparmos bem esse espaço que foi aberto e procurar ir abrindo outros,
incluindo outros e outras. Certamente após o Sínodo poderemos ouvir coisas novas. Não
é algo do terreno da evidência, não se fará sem muita luta e provavelmente nossa geração
não verá a terra prometida em todo o seu esplendor. Mas a alegria de ser semente de um
processo tão belo e importante como essa inclusão feminina para consolar e muito
nossos corações e alegrar nosso espírito. Que assim seja!
Conversando sobre a história da mulher na Igreja e na Contemporaneidade
Entrevista com Maria Clara Lucchetti Bingemer
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 7-10, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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O FEMININO NO
CRISTIANISMO ANTIGO
Um ensaio sobre a Matrologia
THE FEMININE IN
ANCIENT CHRISTIANITY
An essay about Matrology
Elisângela Pereira Machado*
Resumo: É possível constatar, nos últimos anos, o empenho do escrutínio
histórico que vem sendo realizado com relação à presença e à liderança da
mulher na sociedade e na Igreja. Não mais dúvidas, resistências, talvez,
de que a mulher teve papel fundamental na consolidação do Cristianismo.
O feminino foi responsável agente transformador na expansão dessa
tradição de fé, preponderante na cultura ocidental. É esse feminino, de
muitas nuanças, que, em grande parte, segue responsável pela formação
sistemática da maioria dos fiéis em um serviço autêntico, gratuito e
anônimo. A emergência da questão feminina lança luzes a figuras
esquecidas, testemunhas autênticas de uma profunda experiência de Deus e
de uma maestria espiritual tão solicitada hoje, em nosso plural contexto,
dominado pela velocidade, funcionalismo e economismo. Em um encontro
do passado com o presente, este artigo pretende evocar algumas figuras
femininas da tradição espiritual do Cristianismo Antigo, mulheres do
Império e do deserto, ammas-madres-mães da Igreja, que alicerçaram duas
desconhecidas ciências, a Matrologia e a Matrística. Junto delas, queremos
problematizar a importância de retomar elementos de sua Força vital, capaz
de gerar e de cuidar da Boa Nova.
Palavras-chave: Espiritualidade. Mulher. Força vital. Boa Nova.
Abstract: It is possible to see, in recent years, the commitment of the
historical scrutiny that has been carried out in relation to the presence and
leadership of women in society and in the Church. There is no longer any
doubt resistance, perhaps that women played a fundamental role in
the consolidation of Christianity. The feminine was responsible for the
transforming agent in the expansion of this tradition of faith,
preponderant in Western culture. It is this feminine, with many nuances,
that, to a large extent, continues to be responsible for the systematic
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 11-21, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.195
* Doutora em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2021). Mestra em Filosofia pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(2012). Graduada em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(2006). Assessora de Retiros. Educadora e
coordenadora da Pós-graduação em
Protagonismo Feminino na Igreja na
PUCMINAS. Tem experiência nas áreas da
Educação, Filosofia, Ética Naturalizada e
Teologia Sistemática, atuando nos seguintes
temas: educação, mulher, transcendência,
espiritualidade e mística. É pesquisadora pós-
Doc junto ao Grupo de Pesquisa Educação,
Gênero e Trabalho Artesanal, liderado pela
Profª. Edla Eggert/PUCRS. Pesquisa o
protagonismo e experiência de Deus na voz e
presença da mulher na Igreja, desde origens
primitivas das mães do deserto, medievais
em diálogo com as modernas, a partir do
pensamento e obra de Edith Stein.
Email: elispmachado@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6820-3590
Recebido em 04/08/2023
Aprovado em 12/11/2023
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
formation of the majority of the faithful in an authentic, free and
anonymous service. The emergence of the female question sheds light on
forgotten figures, authentic witnesses of a profound experience of God and
a spiritual mastery that is so requested today, in our plural context,
dominated by speed, functionalism and economy. In an encounter between
the past and the present, this article intends to evoke some female figures
from the spiritual tradition of Ancient Christianity, women of the Empire
and the desert, ammas-mothers-mothers of the Church, who founded two
unknown sciences, Matrology and Matristics. Together with them, we
want to problematize the importance of resuming elements of their vital
force, capable of generating and caring for the Good News.
Keywords: Spirituality. Woman. Vital force. Good News.
INTRODUÇÃO
Percebe-se que toda investigação sobre o legado do feminino
sofre uma escassez de vestígios em torno de seu passado e, isso se
traduz numa das mais agudas questões em termos da legitimidade de
seu protagonismo. De fato, ainda hoje, queiramos ou não, é o
discurso dos homens que valida as representações construídas sobre
as mulheres. Uma constatação averiguada desde quando encontramos
mulheres que sobressaem na história, mediante seus conhecimentos,
sabedoria e maestria espiritual, essas, quase sempre, estão permeadas
de elementos de vida transmitidos mediante o imaginário masculino,
que apresenta esses registros de forma mais “fantasiosa” do que
condizente com a realidade histórica de seus fatos memoráveis.
Atenta às reivindicações e aos avanços do feminino hodierno,
ainda que permeado de muitas lacunas e indagações, quem redige as
páginas que seguem é uma mulher, religiosa, educadora, ciente dos
desafios da viragem dos tempos, da nova cultura midiática, bem
como do apelo ao retorno do calor de uma reflexão antropológica
intuitiva, de uma espiritualidade que resgate e integre o ser humano
em todas as suas dimensões e propósito último. Assim, ancorada em
leituras sobre questões relacionadas aos estudos de gênero e histórias
de mulheres dos primeiros séculos do Cristianismo (I-VII), a proposta
é a de apresentar a Força vital do feminino no testemunho de mestras
espirituais que podem inspirar, hoje, a pessoa humana imersa em um
mundo materializado e aparentemente ignorante de transcendência.
Nossas investigações decorrem de um estágio pós-doutoral
1
,
ainda em andamento, em textos reconhecidos dos chamados “Pais da
Igreja”. Este título é originado do termo grego pater, pai, ou do
hebraico abba, paizinho, do qual resulta a conhecida corrente de
estudos teológicos denominada “Patrística”. De modo surpreendente,
foi possível localizar, no acervo patriarcal das origens da história
ocidental da fé cristã, a presença de mulheres que rompem silêncios e
que são mencionadas, mesmo que em linhas brevíssimas.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 11-21, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
1 Um ano de Pós-doutorado, sem bolsa, em estudos na linha de pesquisa “Teorias e Cultura
em Educação, Teologia e Pensamento Contemporâneo”, junto ao Grupo de Pesquisa
“Educação, Gênero e Trabalho Artesanal” da PUCRS.
13
Sabe-se que os Pais da Igreja tardia eram, principalmente, orientais, pois procediam
de comunidades e igrejas do Oriente Médio e da Ásia. Mas quem eram essas mulheres?
Ao planarmos no cenário da Igreja cristã tardia, dos séculos II e III, encontramos um
intermediador entre os padres apostólicos e as escolas teológicas; uma figura transeunte
entre as Igrejas do Oriente e Ocidente em tempos repletos de celeumas relacionadas à
Igreja em expansão e sua relação com o Império Romano: Irineu de Lyon (103-202). Dele é
a sentença: a Fonte tem sede de ser bebida. Movida por essa máxima do Bispo de Lyon, o
convite é o de revisitar a Fonte e de encontrar mulheres que expressem o feminino do
Cristianismo antigo, e que puderam sorver de seu frescor e experienciar em suas vidas a
abundância de seu conteúdo.
Sabe-se que o sistema patriarcal da tradição cristã contou com a colaboração de
muitas mulheres que acolheram, naturalmente, o ancestral status de inferioridade do ser
mulher na sociedade e na religião. Mulheres que ciclicamente, tiveram de se adaptar às
mudanças impostas. Elas tiveram de elaborar em suas vidas o giro de uma anterior
condição do livre seguimento, da diaconia das casas, da entrega martirial
2
, do patrocínio
financeiro às viagens missionárias de líderes da Igreja, das traduções e propagação da
Palavra, ao obscuro silenciamento e submissão em um novo contexto. Ainda assim, houve
aquelas que buscaram recorrer a outros modos de viver a dimensão do feminino.
Elas são identificadas como ammas da Igreja, mulheres repletas do Espírito Santo,
mães espirituais que buscaram abraçar uma forma de vida radical de oração, conversão e
anúncio. Mulheres sábias, tanto no nível pessoal quanto coletivo, determinadas em
romper com os limites impostos pela estrutura do poder patriarcal que se estruturava e
fortalecia o Cristianismo e, aos quais, elas estavam sujeitas. Como em nossos dias, essas
mulheres não ocupavam postos de responsabilidade eclesiástica, mas, de um modo
criativo, elas propunham uma igualdade espiritual para ambos os sexos. Obviamente,
ciente das controvérsias teológicas e da perspectiva de gênero, muito importantes, não nos
deteremos em questões que solicitem mais profundidade no quesito do patriarcado
mantido por um confortável feminino da época. O que nos retém no presente estudo é o
processo de muitas mulheres avançarem para além da casa e do matrimônio,
condicionadas pelo contexto de Igreja, contudo, dispostas ao risco em um tempo em que a
coragem e a autenticidade poderiam resultar em heresia e exclusão comunitária na
sociedade cristianizada.
O que se propõe é uma aproximação, um olhar atento a um movimento feminino
silencioso, de pequenas revoluções, resultantes da autêntica opção por uma vida de
interioridade radical partilhada. Opção essa em que elas se revelaram verdadeiras mestras
de sabedoria e oração, mulheres ocultas, repletas do Espírito de Deus, que exerceram
grande ascendência aos homens da tradição e aos peregrinos que as buscavam e que nelas
reencontravam o propósito de suas vidas. Por isso, é emergente o exercício de releitura de
suas vidas e de seus ensinamentos, numa hermenêutica feminina que compreenda a força e
a extensão de seu pioneirismo em romper a subordinação milenar prescrita pelo homem.
De fato, elas têm algo a dizer e a contribuir na atualização e no ressignificado vital do
progresso da religião cristã em nossos dias.
Trata-se da história de gênero, em seu plural contexto e diálogo, de uma
antropologia inclusiva que incentiva o questionar dos parâmetros de estudos
2 Não como subestimar o número de vítimas nas perseguições do Império Romano contra os cristãos. Aos que
morriam, assassinados brutalmente, confessando a em Jesus Cristo, a Igreja deu o nome de “mártires”. Muitas das
mulheres de que iremos nos aproximar, dos sécs. III IV, tinham amigos ou familiares que sofreram perseguições e
martírio, reconhecido nos primeiros séculos como “martírio vermelho”; depois, como “martírio branco”, relacionado
à vocação ascética e celibatária (Nota da autora).
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 11-21, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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socioculturais e da religião, no que condiz ao papel da mulher aqui, especificamente, no
Cristianismo. Mulheres que nos instigam ao exigente exercício da indagação histórica, em
um dinamismo teológico profundo, mediado pela hermenêutica da suspeita, numa espécie
de escavação arqueológica dos seus silêncios e de seus ditos; resquícios de seu
protagonismo originário, ainda tímido no tocante a sua capacidade de liderança, produção
e de promoção da palavra, seja ela dita ou escrita. Um movimento vital, da força interior
do ser mulher que fez e potencializou o deserto, na trajetória dos séculos I a VII, um lugar
de encontro da história Sagrada e da história humana.
Para elas, o deserto foi lugar decisivo em que se adquire a experiência do madurar
das próprias opções, espelho profundo em que se reflete o que somos, temos e,
autenticamente, desejamos (PEDRÓS, 2003, p.28). Em tempos emergenciais, em que há de
se cuidar da pedagogia integral do ser, elas são, por excelência, modelo da pedagogia
divina; do viver em plenitude convicções e verdades transcendentes comprometidas com o
humano, especialmente, o mais fragilizado, deixado à margem do propósito do Reino
anunciado pelo Mestre que as inspirou: Jesus de Nazaré, o Cristo Ressuscitado.
Assim, iniciemos o resgate histórico das mulheres da Igreja primitiva que o
portadoras de uma corrente teológica espiritual valorosa para o presente. Elas nos
convocam para uma peregrinação em seus lugares e vidas (MARTINS, 2017, p.133), ou
seja, da realização de um emergente exercício arqueológico em seu estilo sapiencial de ser,
de estar, de viver e de protagonizar o feminino em relação ao Mistério, ao Eterno, ao
Amor. Um Amor em discordância do belicoso e do poder que corrompe a vida em todas as
suas instâncias. Portanto, que a viagem comece, assim como nas palavras dirigidas às
senhoras da alma, amigas de Egéria: Vnde si Deus noster Iesus iusserit et uenero in pátria, legi si
uos, dominae animae meae.
3
1 UMA INEXPLORADA LITERATURA
O estudo da Matrologia é um peregrinar por territórios um tanto inexplorados da
literatura cristã. Afinal, por muito tempo, a mulher esteve refém de uma sociedade que a
impedia de ler e escrever - felizmente, não de pensar. Por certo, é possível encontrar
brevíssimos relatos, escritos, menções, sombras de um feminino eclipsado pela literatura
cristã dos Pais da Igreja. Contudo, é visto que o período de nossa investigação, os séculos
I-VII, está repleto de mulheres que se lançaram dos anseios de sua natural condição finita a
uma jornada sem volta rumo às possibilidades do Eterno. Disso resultou que elas iriam
caminhar nas ruas de Roma, passar pelas portas das Igrejas e se lançariam na aventura do
deserto e da vida monacal; buscariam os lugares sagrados em que Jesus esteve. E, a partir
daí, elas começaram a falar franca e corajosamente daquilo que experienciaram.
Foi um tempo de muitos questionamentos acerca da Igreja, de Jesus e de Sua
mensagem
4
, de desafios, em que as pessoas desejavam, ardentemente, o Sagrado, buscando
na singularidade das vidas acionar a interioridade, conscientes de transcendência em um
movimento em que se consideravam peregrinos/peregrinas e, assim, rezavam como o
salmista: Escuta a minha súplica, Senhor, atende o meu grito, não sejas surdo a minhas lágrimas,
pois sou teu hóspede, peregrino, como todos os meus pais.(Sl 39,13). Pessoas que buscaram a
3
(...) E se Jesus nosso Deus ordenar e eu voltar desse lugar à pátria, vós também as lereis, senhoras de minha alma. (Trad.
da autora).
4 Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, algo notável e estranho aconteceu. Um
movimento de pessoas começou a se reunir às margens do Império para buscar a Deus. Elas foram para os desertos
da Palestina, Capadócia, Síria e Egito. Este é o surgimento daqueles e daquelas que chamamos coletivamente de Pais
(abbas) e Mães (ammas) do deserto. Esses indivíduos no deserto procuraram refletir mais profundamente sobre o
Mistério de Deus e a vontade de Deus por meio do trabalho, da oração e do estudo das Escrituras.
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 11-21, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Fonte e que, em seu testemunho de vida espiritual, transbordavam de um fervoroso amor
pela Pessoa de Jesus, Verbo Encarnado, Deus feito humanidade.
A raiz da palavra “Matrologia” vem da denominação madre-mãe-amma e está ligada
ao termo “Patrologia”, cuja raiz repousa no termo mencionado: pai-padre-abba. O
criador do termo “Patrologia” foi o luterano J. Gerhard (1637). Com ele, quis expressar tudo
o que se relaciona ao estudo histórico e literário, à vida e obra de autores antigos, também
conhecidos como “Pais da Igreja”, homens, mestres da fé, nem sempre sacerdotes, responsáveis
pela história e pela literatura cristã e eclesiástica. Logo, a Patrística, mais conhecida em
nossos dias, é um adjetivo que se refere ao conteúdo teológico dos padres da Igreja
5
.
Matrologia e Patrologia estão, lado a lado, da Patrística e da Matrística; estas
últimas, ciências posteriores, estão presentes na Teologia por meio de documentos
autorizados mais elaborados, estudos sistematizados oriundos dos Pais da Igreja
(PEDRÓS, 2003). A Matrística é pouco conhecida e divulgada; no entanto, mesmo
próxima da Matrologia, ela avança em um período em que a tradição oral começa a ser
organizada e redigida. Nela, encontramos nomes de mulheres da aristocracia romana,
economicamente bem-sucedidas na sociedade e, consequentemente, na Igreja. Mulheres,
portadoras de uma herança familiar cristã que procuraram dar continuidade à de seus
ancestrais. Assim, elas acompanhavam, em viagens e na elaboração de estudos bíblicos,
homens eruditos, como São Jerônimo.
Figuras como Paula, Marcela, Marcelina, Asela, Princípia, Lea e Fabíola estão na
lista das precursoras na fundação de monastérios no Oriente. Marcela, por exemplo, é
carinhosamente chamada pelo Santo de philoponotate, que significa “a estudiosa”. Assim
como outras de suas companheiras, é mencionada nas Cartas de o Jerônimo
(JERÓNIMO, 1963).
A diferença entre Patrologia e Matrologia é unicamente cultural. O legado da
Matrologia, da tradição oral das ammas dos séculos I a VII, teve os seus ensinamentos
recolhidos e, como mencionado, transmitidos através de literatura autorizada em escritos
respectivos. Vale a ressalva de que estamos nos referindo a um período em que a teologia, o
estudo da Escritura Sagrada, não era uma atividade puramente intelectual, mas era
entendida por relatos de uma experiência interior, abertura do coração e reto entendimento
dos mistérios de Deus em Jesus, manifestação do divino na natureza efêmera de ser.
À medida que a história avança, o legado da tradição oral inclusiva, que dignifica e
considera o feminino, lugar a um processo de construto interpretativo dos Evangelhos,
da Boa Nova do Mestre resguardada, redigida e proclamada por homens que irão lançar às
sombras o testemunho ocular da mulher discípula e apóstola. De fato, à medida que a
tradição cristã se expandia e estruturava, o universo masculino suprimiu o protagonismo
de suas homólogas. As mulheres, mães, ammas espirituais, jamais foram incentivadas a
escrever, plasmar uma doutrina ou a redigir tratados da fé, desde a perspectiva da
experiência de Deus em seu gênero; no entanto, elas souberam viver, até as últimas
consequências, as disciplinas e a Doutrina em que se firmavam. Delas, encontramos
somente 128 apotegmas
6
. Talvez, inspiradas em Jesus, que nada deixou por escrito, a o
ser os enigmáticos rabiscos na terra quando poupou a mulher adúltera da condenação ao
apedrejamento dos homens (Jo 8,6).
5 Teólogos luteranos e católicos no século XVII utilizam o termo ao especificar a teologia como Bíblica, Escolástica,
Patrística, simbólica e especulativa.
6 Apotegma é um estilo literário de sentenças breves, memoráveis, incisivas e intensas, próximo da parábola e da
sabedoria popular. Ele expressa a sabedoria das eremitas e monásticas; não argumentação, defesa, teorização ou
exegese. São ditos ou palavras iluminadas que intentam abrir o coração do ouvinte peregrino. NdA.
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
Revista Teopráxis,
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A Matrologia desponta de uma iniciativa ousada, de partida para o deserto, risco na
procura de uma experiência de encontro íntimo com o Mestre, a fim de, de coração a
coração, ser novamente tocadas e visibilizadas pelo Mistério em todo o ser mulher.
Inspiradas por suas predecessoras, elas sabiam que Nele o melhor da vida pulsa, ergue-se,
dança e avança, proclamando o propósito da existência em uma esperança demencial que
poucos compreendem.
Sem dúvida, de se considerar o período em que se contextualiza a experiência,
bem como aspectos da cosmovisão antiga, traduzindo o tempo e atualizando as suas
mensagens. No calor de uma reflexão intuitiva, recepção criativa aos ensinamentos dessas
mães do viver e do crer, pressupõe-se um legítimo diálogo com a cultura e as comunidades
do Antigo e Novo Testamentos. Sob a orientação do Divino Mestre, Verbo Encarnado, a
teologia espiritual dessas mulheres desdobra-se em pedagogia espiritual. Não no intuito de
ensinar, mas de aprender juntos, de colaborar na formação plena do humano, sempre em
peregrinação e, muitas vezes, distante de si mesmo, exilado em seus desertos pessoais e
míope diante da Fonte - condições que se repetem, seja em qual for o século. Elas nos
conduzem rumo a uma pedagogia da interioridade, da leitura Sagrada da vida, pedagogia
que difere daquela reproduzida pelos homens, mais conquistadora e belicosa.
O papel de liderança da mulher, da cidade ao deserto, nas ammas, mesmo que se
revelando um papel emancipatório, um importante espaço de liberdade e protagonismo,
ante à hierarquização do Cristianismo, sofre, mais tarde, impactos que forçam ao novo
estruturamento de suas vidas. Emergem os monacatos femininos sob o controle do bispo.
Destarte, as ammas, que integram a Matrologia e/ou Matrística, estendem-nos as suas
mãos em um convite salvífico para retomarmos o Caminho (At 9,1-2), reconsiderarmos
que, onde quer que estejamos, o deserto terá de ser atravessado de tempos a tempos, muros
continuarão a ser erguidos, estruturas irão, muitas vezes, sufocar e engessar o Espírito, ou
melhor, a Sagrada Ruah
7
, mas que ela é Vento incessante e sopra onde quer, e é Ela quem
auxilia, sempre mais, na retirada dos poderosos de seus tronos e na confusão dos “sábios”.
É no deserto que a oração cria raízes, e a vida é revitalizada pela Força daquele que
elas encontraram. Um lugar primordial onde o peregrino alcança voo em suas asas da e
da razão e, assim, volta a aterrissar, mais dono de si, ciente das dores da realidade;
compromete-se em cuidar dela. Lugar de abertura, expansão e profundidade, que se
traduzem em comunhão e misericórdia. Em um processo experiencial do Cristo, cristifica-
se, apura a sua sensibilidade e a certeza de que não pode avançar, evoluir, sem buscar o
frescor da Fonte que lhe nutre; somente assim poderá gerar vida, comunhão, caridade e
manter o aperfeiçoamento de sua geração.
Vamos ao resgate histórico da literatura inexplorada dessas mulheres da Igreja
primitiva, figuras portadoras de uma criativa corrente teológica espiritual para o presente.
Elas nos convocam para uma peregrinação até elas (MARTINS, 2017, p.133), ou seja, para a
realização de um emergente exercício arqueológico em seu estilo sapiencial de ser, de estar,
de viver e de protagonizar o feminino em relação ao Mistério, ao Eterno, ao Amor.
2 UM PERFUME QUE SE ALASTRA
O estudo sobre as ammas da Igreja, da Matrologia, diz respeito à vida de mulheres
que transbordavam de maestria espiritual. Elas são parte da história do protagonismo de
mulheres que romperam com um coletivo anônimo, figuras situadas na fileira do legado
7 Em estudos hermenêuticos da Sagrada Escritura, relacionados à terceira Pessoa da Santíssima Trindade, essa é
representada mediante o uso de três termos que a caracterizam, a saber, o termo grego neutro Pneuma, o termo latino
masculino Spiritus, e o termo hebraico feminino Ruah. NdA.
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
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querigmático, do testemunho de anúncio instintivo, apostólico, profético, feminino da
Nova Aliança, conforme visto em textos como os dos Evangelhos de Mateus (Mt 28,7-8),
Lucas (Lc 24,9-10) e de João (Jo 20,1-2; 17-18). É visto que as suas antecessoras abriram
clareiras no que condiz ao protagonismo da mulher no Cristianismo; foram mulheres
repletas de gratidão, que, irredutíveis, permaneceram em Jerusalém durante todo processo
de julgamento, condenação e execução Daquele que as compreendeu, amou e visibilizou:
Yeshua, Jesus de Nazaré.
De fato, como dissemos, à medida que a tradição cristã se expandia, o universo
masculino suprimiu o protagonismo feminino. Um exemplo está na experiência
querigmática em Madalena, que é desconsiderada quando substituída pela experiência de
Paulo (1Cor 15,1-11). Em Paulo, a experiência do ver o Cristo Ressuscitado (At 9,1-19)
torna-se mais relevante do que a Revelação propagada pelos lábios de Madalena (Lc 20,11-
18). Tais circunstâncias tocam a sensível questão de reaver e de considerar a criatividade do
Espírito (Jo 3,8), a grandiosidade da Revelação e de seu anúncio, que acontece onde menos
se espera e seja para qual for o gênero (1Cor 1,27).
Todas elas, essas amigas da alma, são protagonistas da Boa Nova, mulheres
comprometidas com o cuidado de tudo e do todo e responsabilizadas pelo próprio Jesus a
espalharem o perfume salvífico do Reino. Elas transbordam de transcendental sensível, de
um interior intimo meo que conduz todos e todas que as encontram para o reconhecimento
da presença de um cálido centro do Ser. A Igreja sempre contou com a ajuda incontável
dessas mulheres; infelizmente, poucas foram mencionadas em sua história. Por isso, temas
como a inferioridade feminina e a dualidade de gêneros sempre estarão presentes no
progresso, na evolução da sociedade, em problematizações encontradas, da mesma forma,
na religião.
O Papa João VI, sensível à realidade subterrânea da valoração da mulher na Igreja,
escreveu sobre o estatuto especial de sua dignidade, presente no ser mulher, porque elas
estão chamadas a formar parte da estrutura viva e operante do Cristianismo. Ele escreve: A
Igreja orgulha-se, como sabeis, de ter dignificado e libertado a mulher, de ter feito brilhar durante
os séculos, na diversidade de caracteres, a sua igualdade fundamental com o homem. É por isso que,
neste momento em que a humanidade sofre uma tão profunda transformação, as mulheres
impregnadas do espírito do Evangelho podem tanto para ajudar a humanidade a não decair
8
.
Tempos mais tarde, na Carta Apostólica Mulieres dignitatem, o Papa João Paulo II,
equivocado em chamar a mulher de “complemento do homem” possibilitou a expansão de
sua reflexão ao expor que a mulher é o arquétipo de todo gênero humano e, assim
admoesta: É preciso continuar neste caminho! Estou convencido, porém, que o segredo para
percorrer diligentemente a estrada do pleno respeito da identidade feminina não passa pela
denúncia, apesar de necessária, das discriminações e das injustiças, mas também, e sobretudo, por
um eficaz e claro projeto de promoção, que englobe todos os âmbitos da vida feminina, a partir de
uma renovada e universal tomada de consciência da dignidade da mulher. Ao reconhecimento
desta, não obstante os múltiplos condicionalismos históricos
9
.
Atualmente, o Papa Francisco, em seu testemunho de liderança que escuta e almeja
mudanças, empenha-se em abrir espaços e dar voz e espaço à mulher na Igreja em saída
que ele propõe. E, mesmo com toda movimentação de possibilitar o voto à mulher no
Sínodo, o feminino continua sendo uma novidade e são colocadas, seletivamente, em
lugares específicos, mantendo assim, o curso estabelecido por João Paulo II. Desse modo, a
8 Mensagem do Papa João Paulo VI na conclusão do Vaticano II às mulheres. 8 de dezembro de 1965.<https://
www.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651208_epilogo-concilio-donne.html>.
9 Carta do Papa João Paulo II às mulheres. Vaticano, 29 de Junho de 1995, Solenidade dos Apóstolos S. Pedro e S.
Paulo.<https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1995/documents/hf_jp-ii_let_29061995_women.html>.
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
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situação do feminino, sucessora de Eva em sua sóror-herança, segue um lento progresso,
de uma minoria silenciada, anônima e silenciosa. Uma herança em que todas somos
partícipes, e isso nos impele a proclamar, ou melhor, poematizar, seriamente implicadas:
Eu fico de sobre o sacrifício de um milhão de mulheres que vieram antes e penso o que é que eu
faço para tornar essa montanha mais alta para que as mulheres que vierem depois de mim possam
ver além.” (KAUR, 2017, p.216).
Quanto mais alta a montanha, o nosso empenho por comunhão e esperança, melhor
o propagar do perfume que elas carregam em si. O perfume, essa metáfora repleta de
sentido, é considerado porque, em suas cabeças, mentes, corações e pés, reside a fragrância
da humildade de todas as mulheres que estiveram aos pés do Mestre e as quais, mediante o
Amor, Ele reergue (Rm 8,31). O fato é que estamos todos - e todas as que buscamos
desconhecer menos e evoluir no progresso dos tempos, seja na sociedade ou na Igreja -
ainda reféns do martelo do julgamento no que condiz à vida da mulher e de sua vocação. A
espiritualidade das ammas, a Matrologia, sobre a qual nosso ensaio, modestamente,
discorre, é conteúdo, por si, de uma teologia espiritual do feminino em relação ao Verbo
Encarnado, trata-se de um legado, um sério compromisso testemunhal que fundamenta a
Matrologia e a Matrística na autenticidade do feminino em estreita relação com Deus.
A vida de mulheres em relação ao Mistério, do como elas O buscaram e O
encontraram; em tempos áridos de des-transcendência e des-esperança, elas também
desejam que O encontremos. Esse encontro evidencia às nossas vidas, de ritmo acelerado e
confuso, afetadas pela sociedade que incita o status, a posse e o poder, de que é preciso
realizar a escolha pela vida, pelo humano e por tudo em que nos sintamos interligados.
O protagonismo dessas mulheres tem de ser considerado, redescoberto e estudado
com entusiasmo na Igreja “em saída”, a que hoje nos inspira e desafia o Papa Francisco, que
almeja experiências da vivência do Evangelho nas comunidades, da forma mais coerente
possível. O presente ensaio é uma introdutória antologia dessas mulheres. Vale a ressalva
de que o arquétipo do ascetismo que as ammas projetam, do papel de sapiência feminina
no evoluir do mundo religioso tardio, está repleto de lacunas em relação à problematização
obscura da legitimação da autoridade da Igreja, fato a que não iremos nos deter neste texto.
Por certo, a nossa pretensão não é de reproduzir os feitos e ditos de todas as ammas,
mas de salientar que elas souberam configurar as suas vidas com a de Jesus e acolheram
como es espirituais todos os filhos e as filhas, peregrinos, ricos e pobres que a elas
recorreram. A teologia espiritual da Matrologia não faz sombra à espiritualidade dos
conhecidos Padres da Igreja em seu grande círculo; elas engrandecem, abrilhantam, em seu
modo peculiar de ser, a espiritualidade do Cristianismo, da vida cristã como um todo.
Em fontes mencionadas, é visto que autoridades do Cristianismo antigo
escreveram sobre algumas delas, mesmo que de forma diminuta diante da real dimensão
profética de suas vidas. Outras fontes, como Evágrio Pôntico (346-349), Paládio de Galácia
(363-432), João Crisóstomo (345-407), Gregório de Nissa (330-394), Gregório de
Nazianzo (330-389), Atanásio de Alexandria (296-373), Teodoreto de Ciro (393-466),
Jerônimo (347-420) e ainda outros tantos, nas referências do tempo, abriram espaço -
pequenas frestas, passagens na história - que possibilitou que as encontrássemos agora.
Dessa herança, hoje, por meio de um primeiro encontro para muitos leitores, na
contribuição das presentes páginas, há um portal que se abre e por onde as ammas, em suas
diásporas espirituais, sem referenciais seguros, datas ou pátrias de origem, surgem,
rompendo um anonimato milenar.
Para tanto, o convite é de rastreá-las, encontrá-las e segui-las, na luz de seus
testemunhos e palavras, essas mulheres que foram mais sábias que as serpentes e tão inocentes
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 11-21, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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quanto as pombas (Mt 10,16). Um movimento de mulheres fortes, anunciadoras da Palavra,
que se irmanavam para propagar o coletivo de uma sapiencial profecia em que as riquezas
eram repartidas numa Evangelização, desde o corpo de mulher. O fenômeno da
espiritualidade feminina, das mulheres presentes na Matrologia e na Matrística, tem
despertado interesse, pois elas o um tesouro no que diz respeito a uma educação não
formal que transforma e qualifica, de dentro, o humano. Trata-se de um arcabouço da
cultura feminina para o qual as páginas do presente ensaio são insuficientes no que tange a
descrevê-las adequadamente. Logo, o que temos a seguir, são alguns dos nomes existentes
dessa inexplorada literatura, que exalam o perfume do Ressuscitado na transmissão da Boa
Nova de que todos somos chamados a experienciar, seguir e propagar.
Protomártires, Matronas, Eremitas, Virgens Consagradas, Ammas maiores e
menores, mulheres do Caminho, fragrância que se alastrou pelo Egito, Síria, Palestina,
Capadócia; do Oriente ao Ocidente. Célebres pensadoras que a tradição oral salvaguardou
em seus manuscritos. A documentação onde estão registradas é escassa, mas o testemunho
de suas vidas, abundante. Acolhamos os seus nomes e, nos lancemos na aventura de ir ao
seu encontro para que, assim, do mesmo modo como antes, elas possam nos dizer uma
palavra e iluminar o nosso proceder.
a) Tecla de Icônio (séc.I)
b) Macrina, a jovem (327-380)
c) Sinclética (380-460)
d) Catarina de Alexandria (287-305)
e) Sara, Teodora (548)
f) Marana e Cira, Domina, Maria Egipcíaca (344)
g) Maria, irmã de Pacômio, Pelágia, Eudócia, Olimpia de Bizâncio (360-408)
h) Melânia maior e menor (343-411)
i) Marcela (325-410)
j) Paula (397)
k) Lea (325-410)
l) Asela (325-410)
m) Blesila (363-383)
n) Fabiola (400)
o) Escolástica (480)
p) Marina
10
.
Portanto, dessas mulheres, temos de trazer à luz de nosso tempo as suas ideias e os seus
posicionamentos, ditos e feitos, referências de cunho masculino, mas que serão analisadas sob
a perspectiva da hermenêutica feminista, valorizando os vestígios dessa tradição espiritual
feminina da Igreja, do Cristianismo. Como já mencionado, o presente ensaio quer provocar a
continuidade da investigação, em um dinamismo arqueológico espiritual do tesouro
escondido dessas vidas, totalmente, voltadas ao serviço e propagação do Amor Encarnado.
CONCLUSÃO
A Matrologia evidencia que as ammas não foram mulheres cativas em sua condição
de gênero no mundo patriarcal. Elas foram proféticas na denúncia da desvirtuação do
propósito do Reino e buscaram, na fidelidade delas mesmas, dar testemunho de que a Boa
10 Devido à oscilação das datas nas hagiografias das ammas aqui mencionadas, algumas seguem sem o período ou século
exposto. NdA.
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
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Nova poderia ser experienciada. Desse modo, na busca de fidelidade ao Caminho,
desbravaram um caminho alternativo para viver o Evangelho, da forma mais autêntica
possível, mediante o silêncio e a palavra inspirada pelo próprio Verbo. Enquanto os Pais
da Igreja empreitavam uma pedagogia viril, de uma visão mais conquistadora dos mundos,
mesmo permeada do discurso de amor, elas instituíram a pedagogia do Amor que se
capilariza por meio da Força Vital que diverge da lógica de poder e se curva diante da dor
do outro; a maestria estava em humanizar-se a cada dia, a fim de colaborar na formação da
humanidade em todas as suas dimensões.
É preciso entender e ressignificar a missão dessas mulheres, a importância da
Matrologia para o nosso tempo, de um Cristianismo que solicita atualização, criatividade e
profundidade. Os ditos e feitos das ammas nos desafiam a buscar suas histórias de vida, as
suas experiências vividas e, intuitivamente, mediante uma hermenêutica feminina da
suspeita, podermos compreendê-las e nos deixar inspirar. Seguimos, peregrinos sedentos
da Fonte. O Cristianismo tem de divulgar e em sua formação revelar que a tradição conta
não somente com os Pais da Igreja e do deserto para nos indicarem o Caminho da Fonte;
há uma multiplicidade de mulheres extraordinárias, prontas para partilhar conosco a Força
Vital que as moveu, envolveu, fortaleceu e impulsionou.
Em Jesus, elas rompem os espaços em branco, de nulidade e invisibilidade, à margem em
que haviam sido lançadas e, assim como na tenda (Is 54,2-3), um novo espaço se alarga. Elas
iniciam uma nova dinâmica histórica, social e religiosa. Urge conhecer melhor essas mulheres
e finalmente aprender delas algo que edifique a nossa humanidade. Tendo seus nomes e
considerando a presença de muitas anônimas, resgatemos a pedagogia do Amor, a maestria
espiritual delas em tempos de mutismo e de superficiais, rasas palavras. E, assim, rezemos com
o salmista inspirado para que elas continuem a iluminar os nossos passos (Sl 119,105).
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O DISCIPULADO DE IGUAIS NA
PERÍCOPE BÍBLICA
A pecadora do Evangelho de Lucas
THE DISCIPLESHIP OF EQUALS IN
THE BIBLICAL PERICOPE
The Sinner of the Gospel of Luke
Dorcelina do Carmo Alves Gomes*
Resumo: A intenção desse artigo é refletir sobre o protagonismo feminino
na Sagrada Escritura e na Igreja. Para isso, usa-se como recurso a perícope
intitulada A pecadora do evangelista Lucas, capítulo 7, versículos 36 a 50. O
que se quer mostrar são aspectos relevantes da mudança de mentalidade
proposta por Jesus quanto à presença da mulher no ambiente eclesial.
Ainda, partindo desse foco, pretende-se apresentar brevemente traços do
discipulado de iguais, que devem ser recuperados na atualidade. O diálogo de
Jesus com a mulher que aparece sem nome no evangelho lucano encontra-se
na seção chamada Ministério de Jesus na Galileia (4,14-9,50). Esta começa com
a narrativa em Nazaré e termina com Lição de humildade e tolerância. Por fim,
é conveniente dizer que o texto assume uma análise na perspectiva da
hermenêutica feminista.
Palavras-chave: Perícope. Pecadora. Lucas. Hermenêutica feminista.
Discipulado de Iguais.
Abstract: The intention of this article is to reflect on the female role in
Sacred Scripture and in the Church. For this, the pericope entitled the
sinner of the evangelist Luke, chapter 7, verses 36 to 50, is used as a
resource. What we want to show are relevant aspects of the change of
mentality proposed by Jesus regarding the presence of women in the
ecclesiastical environment. Still, based on this focus, it is intended to briefly
present traits of discipleship of equals, which must be recovered today.
Jesus' dialogue with the woman who appears unnamed in the Lucan gospel
is found in the section called Ministry of Jesus in Galilee (4.14-9.50). This
begins with the narrative in Nazareth and ends with Lessons on Humility
and Tolerance. Finally, it is convenient to say that the text assumes an
analysis from the perspective of feminist hermeneutics.
Keywords: Pericope. Sinner. Luke. Feminist hermeneutics. Discipleship of
Equals.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 22-32, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.184
* Jornalista graduada em Comunicação Social
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e
em Letras/Habilitação em Português pela
mesma instituição. Mestrado em Teologia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Cursa a s-
graduação on-line Protagonismo Feminino
na Igreja pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) Minas Gerais. É membro da
Rede Brasileira de Teólogas (RBT).
E-mail: dorce.dorce@yahoo.com.br
https://orcid.org/0009-0009-1316-2264
Recebido em 25/07/2023
Aprovado em 11/10/2023
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INTRODUÇÃO
O Evangelho de Lucas dedica seus dez capítulos à saída de Jesus da Galileia a
Jerusalém. O que interessa é o final do capítulo sete, porque Lucas guarda para a conclusão
da narrativa uma cena especial e de matéria própria: o encontro da pecadora sem nome
com Jesus na casa do fariseu Simão (MAZZAROLO, 2013, p.121). Essa perícope fecha uma
seção de ensinamentos relacionados à acolhida, à e às obras. Também faz uma dura
crítica aos conservadores, chamados fariseus. Estes voltam suas ações para a prática
farisaica de fixação ao passado, rejeição ao novo e a tendência de condenar e julgar os
inocentes. Abre-se uma nova seção, que é o ministério da mulher e dos discípulos em geral.
O contexto dessa crítica é a Lei que impede uma prática da misericórdia e da graça.
Os personagens que transitam nesse cenário são três: a mulher, o fariseu e Jesus.
Segundo o doutor em teologia bíblica, Isidoro Mazzarolo, é o evangelho que mais
títulos recebeu pelos exegetas e pesquisadores: evangelho da mulher, dos pobres, da
inclusão, da misericórdia.
A reflexão parte de um ponto de vista feminino e tem como aporte referências
bibliográficas, em sua maioria, de mulheres teólogas. Infelizmente, pouca bibliografia
específica sobre o discipulado de iguais, o que dificulta, de certa maneira, a análise. Nesse
caso, o estudo baseia-se, em grande parte, das obras de Fiorenza (1995) e de Santinon;
Mariotti e Ottaviani (2023). O objetivo é mostrar que o discipulado de iguais esteve
presente durante todo o tempo no diálogo entre Jesus e a pecadora sem nome no encontro
ocorrido na casa do fariseu. É imprescindível que se diga que essa e outras passagens
demonstram que a comunidade lucana tem uma sensibilidade especial pelas mulheres,
sobretudo as pobres e as desprezadas pela sociedade.
Nas comunidades fundadas por Jesus, as mulheres ocupam seu espaço. Nesse sentido, as
narrativas dos Evangelhos registram essa presença feminina e o diálogo do nazareno com elas,
“dando-lhes voz”, tornando-as suas discípulas. Não impunha “obstáculos ao seu protagonismo
no anúncio do querigma” (SANTINON; MARIOTTI; OTTAVIANI, 2023, p.25).
A perícope em análise (Lc 7,36-50) não apresenta propriamente um diálogo entre Jesus e
a pecadora. Apesar disso, a simbologia da linguagem gestual e atos da mulher sem nome
revelam um encontro de dignidade e igualdade entre ambos. Parte-se dessa premissa para
revisitar o texto do Evangelho de Lucas e apresentar fundamentos para o discipulado de iguais.
1 CONTEXTO LITERÁRIO E HISTÓRICO
O Evangelho de Lucas origina da índole particular de seu autor. Nesse sentido, é
fácil perceber uma mensagem evangélica de um modo quase original. Afinal, deixa
transparecer a ternura de Jesus para com os humildes e os pobres. A partir disso, o
evangelista se torna, entre os sinóticos, aquele que mais enfrenta o argumento das
mulheres. Assim, qualquer investigação a respeito do papel delas nas comunidades cristãs
primitivas não pode, evidentemente, prescindir dessa referência. Contudo, uma leitura
mais elaborada da narração lucana a respeito desse assunto indica como os textos sobre as
mulheres estão marcados por certa tensão, ligada a uma possível ambivalência quanto ao
papel da mulher na comunidade cristã. Lucas apresenta a mulher com características de
grandeza humana exemplar, mas também acolhe a mulher em sua fraqueza: são pecadoras,
doentes, possessas, viúvas. A mulher ora é exaltada, ora é diminuída. Para se compreender
o modo pelo qual Lucas enfrenta este tema e sobretudo para que se torne mais claro o
sentido do agir de Jesus evidenciado nos textos evangélicos, faz-se necessário, antes de
GOMES, Dorcelina do Carmo Alves
O discipulado de iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas
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tudo, esclarecer qual era o contexto social e histórico em que vivia a mulher na região do
Mediterrâneo no século I. A sociedade se pautava em uma estrutura patriarcal e
culturalmente androcêntrica, ou seja, em que predominavam as decisões dos varões.
Há quem até chegue a confundir os dois acontecimentos, o de Maria de Betânia
com a da mulher pecadora. Não semelhança alguma entre as duas narrativas.
Para corroborar com esta versão, observe o que traz o exegeta Mauro Orsatti:
Qualquer probabilidade a mais poderia ser reservada à identidade com Maria,
irmã de Lázaro. Lê-se em Jo 11,2: “Maria era aquela que havia derramado óleo
perfumado no Senhor e havia enxugado seus pés com seus cabelos”. Isso poderia
convalidar o relato de Lucas. Nota-se, todavia, que o episódio de João é
apresentado com algumas divergências, também em Mateus e em Marcos (Mt
26,6-7
1
; Mc 14,3-4
2
). Mateus, Marcos e João concordam na interpretação
profética do gesto realizado, antecipação do sepultamento. Enquanto, porém,
Mateus e Marcos falam de perfume derramado na cabeça de Jesus, João indica
que perfumados foram os pés, enxugados depois com os cabelos. Somente em
João a mulher recebe uma identificação segura: Maria, irmã de Lázaro.
Lucas concorda com João em que os pés é que foram perfumados e enxugados,
acrescenta, porém, que a mulher chora a seus pés. Lucas, igualmente com
Mateus e Marcos, deixa a mulher no anonimato. Destaca-se dos três outros
evangelistas em colocar o episódio distante da Páscoa, ou ao menos sem
referência direta a ela.
Sem poder dizer uma palavra definitiva, a conclusão mais aceitável é esta: trata-
se de um caso semelhante, mas diferente do que é narrado pelos outros
evangelistas. A mulher é deixada propositalmente no anonimato, por uma fina
delicadeza de Lucas. Mais importante que seu nome é saber que uma mulher
deixou para trás uma vida pecaminosa para encaminhar-se com gestos de
reconhecido amor a uma vida nova (ORSATTI, 2000, p.81-82).
Descarta-se, também, a identificação com Maria de Magdala porque esta aparece
poucos versículos mais adiante (cf. Lc 8,2-3)
3
.
A contribuição do biblista Isidoro Mazzarolo, que primeiro explicita sobre o
contexto histórico no qual está inserida a mulher daquela época, é necessária para a
compreensão do evangelho lucano.
Alguns “pregadores”, mas não exegetas afirmam que Lucas é machista ao não
dar o nome à mulher. É, exatamente, para mostrar a distância que entre a
mulher, julgada pela sua situação de prostituta marginalizada, que ela não tem
nome. O evangelista está condenando a sociedade que exclui as prostitutas,
usadas pelos nobres, com nome e sobrenome, como é nesse caso
(MAZZAROLO, 2013, p.121).
Ainda, conforme Mazzarolo (2004), os evangelhos de Lucas e João trabalham a lição
da mulher pecadora dentro de uma mesma moldura teológica. Dessa forma, a vertente
principal do relato abarca três contrastes: 1) um conflito entre Jesus e as autoridades dos
judeus, que revela uma forma ideológica e perversa de aplicar a justiça; 2) uma rejeição de
Jesus por parte dos judeus e 3) uma revelação messiânica pela mulher. O biblista acrescenta
que tanto em Lucas quanto em João uma antítese entre a mulher e os judeus (fariseus).
O eixo central das perícopes o contempla, propriamente, a mulher como pecadora, mas
1 Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Uma mulher aproximou-se dele, com um frasco de alabastro
cheio de perfume caríssimo, e derramou-o na cabeça de Jesus, que estava à mesa.
2 Quando Jesus estava sentado à mesa, em Betânia, em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher com um frasco de
alabastro cheio de perfume de nardo puro, muito caro. Ela o quebrou e derramou o conteúdo na cabeça de Jesus.
Alguns que lá estavam ficaram irritados e comentavam: “Para que este desperdício de perfume”.
3 E também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada Madalena, de
quem saíram sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e muitas outras mulheres,
que os ajudavam com seus bens.
GOMES, Dorcelina do Carmo Alves
O discipulado de iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas
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salienta a crítica de Jesus à hipocrisia da aplicação da lei por parte da tradição dos judeus.
Quer no relato de Lucas, quer no de João, a mulher serve como trunfo para os fariseus
questionarem ou tentarem Jesus. Na outra mão da estrada, Jesus usa este episódio para
mostrar quão falsos e tendenciosos eram os caminhos da justiça judaica e como a maldade
se tornava uma prática social. No substrato teológico dos relatos está o juízo muito severo
à tendência em excluir os que erram. Por outro lado, Jesus evidencia que o perdão pode
criar espaços à profecia e ao amor, mas o julgamento fecha as portas para a redenção
(MAZZAROLO, 2004, p.177-178).
O episódio coloca em cena três personagens: o fariseu, Jesus e a mulher pecadora. No
interior da perícope encontra-se uma parábola, cujos protagonistas são exatamente a
contrafigura dos três personagens precedentes. O comparecimento dos comensais no fim
(v.49) vale como vozes fora do lugar para sublinhar a centralidade de Jesus, a figura-chave
em volta da qual gira toda a narração. Analisando melhor esse trecho, esse compõe-se da
apresentação dos personagens, do diálogo de Jesus com o fariseu e da avaliação que Jesus
faz da mulher (ORSATTI, 2000, p.79).
Tem-se primeiro a apresentação dos personagens (vv.36-38). Não indicativos de
lugar e de tempo e começa-se logo apresentando os personagens pela ordem: fariseu,
Jesus e a mulher. Sendo assim, o fariseu é apresentado como aquele que convida e Jesus
como convidado. a mulher não é convidada do fariseu, autoconvida-se para junto de
Jesus e por ele é convidada a ir em paz. A ação da mulher é descrita com detalhes, porque
Jesus quer ensinar em qual banquete se deve tomar parte, no banquete em que se e se
recebe misericórdia.
Após esse momento, segue o diálogo entre Jesus e o fariseu (vv.39-47). Esta parte é o
coração de toda a narrativa e revela o significado do gesto realizado pela mulher. Trata-se de
uma verdadeira prova de pedagogia. Tem início com o pensamento do fariseu que classifica
e julga a mulher, colocando, ainda, fortes dúvidas sobre o valor de Jesus. Este aceita a
provocação, fala e envolve o fariseu, interessa-o no diálogo e conta-lhe uma parábola que
termina com uma interrogação. Em contrapartida, o fariseu responde à conversa, obtém a
aprovação de Jesus que conclui suas palavras. Depois, ressoam as palavras de Jesus a respeito
da mulher (vv.48-50). Desenrola-se, praticamente, um monólogo porque Jesus é o único
interlocutor. Ao mesmo tempo, configura-se como um diálogo, tendo em vista que
sobraram dois personagens: Jesus e a mulher. O fariseu desaparece da narrativa.
Em síntese, a narrativa antecedente em Lucas apresenta o confronto da pecadora
com Simão, o fariseu (Lc 7,36-50). A teóloga Lucy Mariotti (2023) toma como base José
Tolentino Mendonça (2018, p.20-30) ao se referir ao confronto entre Jesus, a mulher e o
fariseu. Desse modo, observa que Lucas descreve refeições, tanto no Evangelho como no
livro do Ato dos Apóstolos. Eram momentos coletivos e não apenas restritos a duas ou
três pessoas. Também era costume deixar as portas abertas durante os banquetes. Pode-se
dizer que o paradigma da mulher no reconhecimento e na acolhida a Jesus contrasta ou
mesmo entra em conflito com a não-acolhida por parte do fariseu. Fica subentendido uma
possível relação íntima entre a desconhecida e o dono da casa, dado que as “mulheres
presentes em banquetes poderiam ser prostitutas dos bordéis de propriedade de
cobradores de impostos, contratadas para jantares ou festas. Daí se entende o porquê do
nervosismo de Simão nesse texto de Lucas” (PAGOLA, 2019a, p.260-261). Assim, a
mulher, sem nome e sem identidade, conhecida na cidade apenas como pecadora, torna-se
capaz de um gesto nobre em favor do Mestre. Por sua vez, preso pela ganância ou pela
autossuficiência, o fariseu é incapaz de qualquer gesto de sensibilidade, mesmo o mais
comum da cordialidade: a acolhida de um hóspede.
GOMES, Dorcelina do Carmo Alves
O discipulado de iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 22-32, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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2 P-TEXTO
Na obra de Lucas, o texto antecedente começa com a cura do servo do centurião
romano (Lc 7,1-10). Nesse sentido, ele é um estrangeiro, funcionário de Estado, opressor e
responsável pela manutenção da ordem, ainda que pelo uso da violência. Mazzarolo (2004)
acredita que é uma entre as muitas provocações de Jesus à sensibilidade de seus discípulos
e, acima de tudo, a seus opositores (fariseus e escribas) para uma nova percepção do Reino
de Deus. Mais adiante, Jesus provoca novamente a posição deles com um gesto de
consideração profunda pela viúva de Naim
4
, ao ressuscitar o filho da mesma (Lc 7,11-17).
Desse mesmo evangelho, o texto subsequente em Lc 8,1-3 é a resposta ao tratamento
de Jesus à mulher. Ele as institui discípulas junto aos Doze. A partir disso, surge a outra
vertente nas ações novas de Jesus como propostas do Reino. Após esse episódio, Jesus
narra a parábola do semeador (Lc 8,4-15). Mazzarolo (2004) faz a seguinte constatação: “O
discípulo é como a terra na qual a semente do evangelho cai. Se ele for fecundo, a semente
germinará e produzirá fruto, mas se ele for estéril, a semente perder-se-á. É o julgamento
proclamado sobre a mulher e Simão, o fariseu”. O autor também salienta que:
O texto subsequente pode ser prolongado até Lc 8,40-48, onde temos uma cena
semelhante à do texto antecedente: Jesus vai curar a filha do chefe da sinagoga e
no caminho aparece a mulher que sofria de hemorragias doze anos. É a
caridade e a misericórdia que suplantam a lei (MAZZAROLO, 2004, p. 179).
Do ponto de vista do biblista dentro da tradição judaica, no pré-texto dos destacam-
se dois pontos no pré-texto dos evangelistas Lucas e João. 1) o tratamento dispensado pela
lei à mulher dentro da visão farisaica, a partir de Esdras
5
para frente (Esd 9-10)
6
e 2) o
segundo aspecto pode ser visto como a forma interpretativa da lei e da profecia pelos
fariseus, os quais não reconhecem Cristo. Mais adiante, tem-se essa afirmação.
Na questão específica dos dois relatos, a mulher é objeto de subjugação pela lei
judaica. Instituída no s-exílio pelos reformistas de Esdras, a lei do divórcio e
ao mesmo tempo do casamento preservava critérios de raça e de economia,
colocando o homem no gerenciamento dos bens como possuidor dos bens e dos
direitos da mulher. Para tanto, os sacerdotes e os fariseus constituíam-se em
guardiães da lei. No aspecto das profecias, eles sabiam tudo, menos entender
que elas estavam cumprindo-se em Cristo (MAZZAROLO, 2004, p.180).
3 A PEDAGOGIA DE JESUS
Mazzarolo (2004) esclarece que o perdão dos pecados da mulher é apenas o
fechamento da perícope e aponta para a postura profética de Jesus. Ao longo de seu
ministério, ele deixou claro que seu propósito não era buscar culpados, nem mesmo acusar
o mundo do seu pecado, mas anunciar a redenção, a libertação e a misericórdia (Lc 4,18)7.
Mazzarolo (2013) oferece a ideia de que o encontro de Jesus com a mulher pecadora
na casa do fariseu evidencia a pedagogia do amor cristão. Afinal, Jesus ama a mulher do
mesmo modo que ama o fariseu. O amor é, por excelência, a atitude da inclusão. A oferta
da graça é estendida à mulher, mas na mesma proporção é feita ao fariseu. Para ser
merecedora da graça, faz-se necessário que a mulher assuma o seu pecado e tome uma
4 Vila da Galileia próxima ao Tabor – cerca de 20 km ao sul do lago.
5 Fundador do judaísmo e promotor da Lei.
6 Os capítulos tratam da proibição de casamentos com estrangeiras e expulsão das mulheres estrangeiras.
7 O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para
proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos.
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atitude de ruptura com o tipo de vida que levava até o momento, a fim de se tornar
discípula de Jesus. Ao fariseu cabe um caminho mais difícil, porque se trata de assumir a
falsidade de sua inocência e confessar a hipocrisia de sua fé, além de aprender o caminho
real da santidade, que se traduz na caridade, perdão, compaixão e resgate. No encontro na
casa do fariseu, Jesus une os extremos: aquela que se confessa pecadora com aquele que se
confessa puro.
Jesus chama o pecado de pecado. No entanto, a luta dele contra o pecado acontece de
maneira diferente da dos fariseus. Estes excluíam os pecadores do povo santo de Deus e se
afastavam deles. Ao contrário, Jesus anuncia e traz o perdão, santifica os pecadores e os
leva ao seio do povo de Deus.
4 HERMENÊUTICA FEMINISTA: REFLEXÕES PARA UM DISCIPULADO DE IGUAIS
No artigo intitulado A hermenêutica do feminino na teologia: suas lutas e conquistas,
Maria Cristina Furtado apresenta alguns conceitos que são imprescindíveis antes de
analisar a perícope lucana sob a perspectiva da hermenêutica feminista para um
discipulado de iguais. A autora se refere às palavras feminismo e feminista. Esses vocábulos
sempre foram cercados de preconceito na sociedade brasileira.
Segundo a teóloga, nas décadas de 60 e 70, o Brasil vivia a efervescência dos
movimentos sociais, em especial o movimento feminista. Neste contexto conturbado
surgiu a teologia feminista. Inicialmente, com o acento forte da teologia feminista do
primeiro mundo. Entretanto, os problemas da América Latina, sobretudo os do Brasil,
logo chamam mais atenção, e as teologias latino-americana e brasileira assumem
características próprias.
Na verdade, a teologia feminista torna-se então cria da Teologia da Libertação (TdL).
Por isso, Maria Cristina Furtado (2022) disseca o tema com a contribuição de
outras teólogas.
De acordo com Neiva Furlin tanto Brunelli quanto Rohden distinguem três
fases da produção teológica das mulheres latino-americanas, incluindo as
teólogas brasileiras. A primeira fase foi chamada de «a teologia e a “questão da
mulher”». Ocorreu na segunda metade da década de 1970. Uma produção que
surgiu a partir das experiências das mulheres e das dificuldades que enfrentaram
no interior dos cursos de Teologia. «Traziam a discriminação que, por serem
mulheres, sofreram nas comunidades eclesiais, quando procuravam compartilhar
os conhecimentos teológicos.» Desta experiência as teólogas sentiram a
necessidade de uma nova hermenêutica para a leitura bíblica que servisse de
ferramenta no processo de «libertação», tanto no interior da instituição eclesial,
como nas outras esferas sociais. «Um grande esforço para tornar o sujeito
mulher visível, a partir de uma nova leitura bíblica, sobretudo pela
reinterpretação dos textos bíblicos na ótica da mulher (FURLIN, 2011, p.144).
Maria Cristina ainda cita a segunda e a terceira fase da teologia feminista.
A segunda fase, de acordo com Delir Brunelli, foi a «teologia na “ótica da
mulher”». Ocorreu na década de 80, com as produções denunciando o caráter
androcêntrico, patriarcal e demasiadamente racional do discurso teológico.
Nesta época, as mulheres teólogas começaram a questionar o fato de a Teologia
da Libertação tratar os pobres de forma genérica, pois perceberam ser diferente
fazer teologia com base nas experiências dos homens, ou nas experiências das
mulheres pobres. A terceira fase foi a partir de 1990, com dois tipos de
produção: a teologia ecofeminista e a teologia feminista pela perspectiva de
gênero (FURTADO, 2022, p.85-86).
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Em síntese, o feminismo se caracteriza como um movimento que visa a estabelecer a
igualdade de gênero entre homens e mulheres, a vivência humana por meio do
empoderamento feminino e a libertação de padrões do androcentrismo e patriarcais. De
fato, o objetivo não é uma disputa de poder, mas a equidade feminina e masculina.
A propósito do quadro traçado por Lucas a respeito da mulher diante do fariseu e
ampliando essa reflexão para os dias atuais, Mazzarolo (2004) não se manifesta otimista,
ao comentar que as mulheres são consideradas perigosas, ainda que fiéis, heroínas,
lutadoras e corajosas. No entanto, complementa o autor, a sociedade sacrifica a mulher no
serviço doméstico, em um salário menor e com maiores cobranças de responsabilidade.
Por outro lado, as pastorais básicas ficam com as mulheres piedosas, fiéis e perseverantes.
Isso significa que as pastorais de deserto e periferia estão nas mãos delas. Por sua vez,
Mazzarolo lembra que o tratamento dispensado por Jesus às mulheres que o seguiam
revela o lugar que ele queria para elas: o de discípulas (Lc 8,1-3)
8
.
Se Jesus não condena as mulheres que pecaram, é porque reconhece nelas
grandes valores que as capacitam a serem protagonistas do evangelho. Muitas
vezes, por melhor que seja a intenção, acontece a discriminação, subvalorização
ou cerceamento dos espaços, de modo particular, nas esferas eclesiais internas.
Diante da proposta de Jesus, é possível aceitar alguma exclusão sem ferir o
evangelho? Se Deus não faz distinção de pessoas (Dt 10,17; Gl 3,28; Rm 3,22;
10,12; cf. At 10,34) é justificável que a comunidade possa fazê-lo?
(MAZZAROLO, 2004, p.183).
A partir da perícope, fica claro que Jesus não se indispõe com as prostitutas contra
os fariseus, menos ainda está do lado da desordem ou da paixão da ordem e da lei. O que
lhe interessa é a pessoa humana. Ele vai ao encontro do fariseu, acolhe logo seu convite e
depois o ajuda a entender a dimensão de Deus.
A lição ultrapassa os limites históricos do acontecimento e chega à contemporaneidade.
Com referência à atitude de Jesus, Lucas lembra aos cristãos que não se pode permitir um
regresso à soberba farisaica. Jesus entendeu o silêncio da mulher, pois seus gestos lhe
falavam de amor, de arrependimento e do desejo de redenção. Muitos séculos depois, a
postura de Jesus revela traços característicos do discipulado de iguais, um tema que tem
ganhado repercussão nas discussões teológicas. Inclusive, recentemente a pesquisadora
Ivenise Santinon em parceria com os também teólogos Edélcio Ottaviani e Lucy Mariotti
lançou o livro Discipulado de Iguais. Em um dos capítulos da obra, Santinon (2023) discorre
sobre ‘a presença das mulheres na Igreja: apontamentos para um discipulado de iguais’ e
nele apresenta que no contexto dos evangelhos, nas comunidades primitivas, as mulheres
receberam de Jesus uma atitude diferente. A partir dos argumentos assertivos de Santinon,
fica claro que em nenhum momento ouviram dele uma exortação à submissão no contexto
judaico. Trazendo para a nossa análise, a própria pecadora teve respeito, acolhimento,
misericórdia, compaixão e perdão. Não houve sequer um olhar de repúdio. Jesus rompeu
esquemas estruturais vigentes, derrubou estereótipos. Então, está na hora de “repensar o
significado e o lugar da mulher na Igreja” (SANTINON, 2023, p.107).
Nas palavras de Bezerra, a crítica feminista ao terceiro evangelho, o de Lucas,
converge em duas vertentes contrárias: a primeira considera que o Evangelho é assertivo
para os papéis femininos, com mulheres retratadas positivamente e integradas às funções
do movimento de Jesus. Por sua vez, acrescenta a pesquisadora, “a segunda entende que os
8 8,1-3 Depois disso, Jesus percorria cidades e povoados proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. Os
Doze iam com ele, 2 e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria,
chamada Madalena, de quem saíram sete demônios; 3 Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e
muitas outras mulheres, que os ajudavam com seus bens.
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objetivos do Evangelho para as mulheres são silenciá-las e controlar sua atuação, de modo
que se comportem bem, mas não atinjam lugares de decisão nas comunidades cristãs
(BEZERRA, 2020, p.357).
Face a uma sociedade judaica dominada por homens, marcada pela forte tradição
patriarcal, não era fácil compreender a nova postura de Jesus. Ele rompe com esses privilégios
e acolhe sem discriminação homens e mulheres na sua comunidade de seguidores. Inaugura,
portanto, a práxis libertadora pautada pelo diálogo, pelo respeito e pelo reconhecimento da
alteridade da outra e do outro. Depreende-se da sua atuação, com clareza, é que, para ele,
homens e mulheres têm igual dignidade pessoal, sem que a mulher tenha de ser objeto de jugo
masculino. No entanto, na atualidade, os cristãos ainda não são capazes de extrair todas as
consequências que resultam da atitude do Mestre. René Laurentin chegou a dizer que esta é
“uma revolução ignorada” pela Igreja. A fala do teólogo francês vem ao encontro das ‘nossas
discussões’ nas aulas do curso de pós-graduação on-line Protagonismo Feminino na Igreja, que
as mulheres seguem abafadas e reprimidas dos seus direitos mais básicos.
Jesus principia o que hoje se sobressai na hermenêutica feminista a partir dos
pressupostos teóricos de tantas teólogas e biblistas. É uma nova hermenêutica dos
textos sagrados.
O relacionamento mantido por Jesus com as mulheres de seu tempo assume
características de ampla liberdade. Deixando de lado os preconceitos que proibiam falar
com uma mulher nas ruas da cidade, Jesus mantém encontros frequentes com elas [...].
Jesus não apenas fala com as mulheres, mas introduz também uma mudança radical junto
aos mestres de sua época, pois se permite ter discípulas que o escutam (Lc 10),
acompanham-no (Mc 14) e o servem com seus bens (Lc 8) (LADISLAO, 1995, p.27).
Assim, a prática de Jesus revela-se um tanto quanto inovadora e até mesmo chocante para
os padrões preestabelecidos da época. Era uma atitude tão surpreendente que confundiu
até os seus próprios discípulos.
De outro modo, a perspectiva da hermenêutica feminista significa um instrumento
de interpretação tanto da Bíblia quanto da vida, para que “assim, mulheres silenciadas e
tornadas invisíveis pela tradição voltem a falar e recebam de volta seu rosto e valor
histórico” (REIMER, 1995, p.45). Ele não apenas convive, mas acolhe os desprezados,
renegados e rotulados pela religião e pelo sistema político de sua época e promove a eles
uma nova situação de vida. “Ele veio chamar os que se sentem pecadores como [a mulher
pecadora em Lc 7,36-50], não os que se creem justos como o fariseu” (CONTI, 2003, p.61).
Na atividade evangelizadora de Jesus, a mulher adquire outro patamar, muito
diferente do judaísmo e do império romano, tomando seu lugar na sociedade. “Elas não
foram ouvintes do evangelho, mas também praticantes. Elas não passaram a crer no
Messias Jesus, mas também testemunharam a respeito dele e passavam a formar comunidades
a partir desse anúncio e desta fé” (REIMER, 1995, p.46). Sendo assim, ganham liberdade e
são protagonistas no movimento de Jesus e nas origens da Igreja, tanto na ação quanto na
fala, o que significa que fazem parte do ministério de Jesus desde o início.
A teóloga Adela Ramos chama a atenção para alguns elementos. O primeiro deles é
que a história da pecadora impressiona por sua simplicidade e sua coerência. Este episódio,
tão rico em pormenores, é próprio de Lucas e nos apresenta a condescendência de Jesus
para com os pecadores (RAMOS, 2003, p.89). Outro aspecto, segundo ela, é que o texto diz
que a mulher veio porque soube, antes, que Jesus estava na casa do fariseu. Deduz-se que o
conhecia ou tinha uma opinião clara sobre ele ao decidir ir ao seu encontro. A mulher
chegou sabendo muito bem o que ele significava para ela e manifestou por gestos
inequívocos sua confissão de amor e respeito.
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Por último e o menos importante, Ramos defende que, na perícope em evidência
(Lc 7,36-50), a mulher é descrita sendo “da cidade” e “pecadora” (v.37). Seu nome o é
mencionado, porém, ela foi muito mais protagonista no episódio do que Simão.
Não é dito explicitamente que era prostituta, mas há indícios claros disso: o fato, por
exemplo, de enxugar os pés de Jesus com seus cabelos indica que a mulher soltou seus
cabelos em público. O fato de a mulher trazer “um vaso de alabastro cheio de
perfume” (v.37) denota que ela gastou uma alta soma para comprá-lo, ou utilizou o
presente de algum cliente rico. Tratava-se, qualquer que seja o caso, de um gesto de
gratuidade, de manifestação inequívoca do grande valor que Jesus representava para ela
(CAVALCANTI, 2010, p.222-223).
Jesus interfere na ordem da sociedade patriarcal, desperta a potencialidade da mulher
e a chama para ser também sua discípula. Jesus revela com sua atitude outra visão e, mais
ainda, ele altera com seu gesto o relacionamento entre homem e mulher, colocando-os em
um mesmo nível, ou seja, inaugurando a comunidade dos iguais.
É pertinente reiterar que as mulheres estiveram ausentes da história ou foram
silenciadas pelo modelo androcêntrico. Elas são lembradas em relação aos homens ou
dependentes deles, um padrão referencial definido pela história universal como correto.
Diante disso, é preciso um olhar mais amplo e uma compreensão crítica das relações
sociais, pois através da: [...] hermenêutica crítica da libertação [se inscreve] a teologia
feminista [como] teologia crítica da libertação [justamente] porque ela reconhece e analisa
criticamente as estruturas sexistas e opressivas da Igreja e da tradição cristã, enquanto, ao
mesmo tempo, redescobre as tradições e elementos libertadores da e da comunidade
cristã (FIORENZA, 2009, p.153).
Enfim, a perícope bíblica de Lc 7,36-50 nos reporta que “para uma hermenêutica
feminista, o tema mais importante do relato é a igualdade de gênero que se evidencia na
forma como Jesus trata o fariseu e a mulher” (CONTI, 2003, p.77). O papel de destaque,
negado à mulher, não deve permanecer no anonimato e ser apagado da história universal e
tampouco da modernidade. Lucas procura evidenciar esse protagonismo feminino e a
estratégia narrativa criada para formá-lo e, como consequência, a interpretação
androcêntrica que oculta e inviabiliza as mulheres.
Diante de qualquer análise, é preciso ter em conta que os textos bíblicos foram
escritos por homens e refletem a realidade daquela época sob a ótica masculina. Assim, faz
sentido dizer que as narrativas permeiam um enredo fortemente marcado por uma
linguagem sexista, pelo silenciamento e pelo banimento do feminino na sociedade. Era
mais fácil esconder e ‘sacrificar’ a presença e a voz das mulheres.
Na perícope analisada, o fato de ser considerada pecadora é somente mais um
agravante, um mal maior ao seu histórico enquanto mulher, que era discriminada, vista
como um perigo, alguém não confiável e objeto de controle e pertença do homem.
Ivenise Santinon sistematiza a seguinte ideia.
O discipulado de iguais enfrenta dificuldades para se efetivar práxis cristã, porque
os futuros sacerdotes, os primeiros responsáveis pelas comunidades eclesiais, são
formados segundo a ideia de que as coisas sempre foram assim e devem continuar
assim. O clericalismo não inibe uma presença mais efetiva do laicato na vida
pastoral da Igreja, como se constitui num entrave ao discipulado de iguais, muito
embora sejam as mulheres a maioria na Igreja, conforme aponta a Conferência de
Aparecida (2007). (SANTINON, 2023, p.100-101).
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Na concepção da teóloga, alguns pontos são fundamentais para reverter o problema
levantado acima. O primeiro deles, segundo ela, é reconstruir a imagem de Jesus em
consonância à coerência do seu contexto histórico, de maneira que faça sentido ao
pluralismo cultural e religioso dos dias de hoje. Por sua vez, acrescenta que seria
importante “trabalhar uma educação da baseada na história do cristianismo, enriquecida
pela perspectiva das mulheres e dos novos estudos exegéticos que se voltam para a
convivência de Jesus com as mulheres” (SANTINON, 2023, p.102). Nesse sentido, mostrar
através desses estudos que a postura de Jesus é inovadora ‘no trato com as mulheres e
caminha na direção de um discipulado de iguais’.
A constituição dogmática Lumen Gentium, do Concílio Ecumênico Vaticano II, acentua
no capítulo 2 a vocação batismal e a dignidade de membro atuante do Povo de Deus. Isso
significa que todos, independentemente de gênero, aos olhos do Criador são iguais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção desse artigo não é de forma alguma apresentar fórmulas prontas, dizer
que o capítulo de silenciamento das mulheres que permanece arraigado na história da
Igreja por quase dois milênios está encerrado, mas dizer acima de tudo que o discipulado
de iguais pode e deve ser restabelecido nas relações eclesiais assim como o fez Jesus no
encontro mantido com a mulher pecadora sem identidade no evangelho de Lc 7,36-50. Na
casa do fariseu que se julgava acima da Lei, ela é respeitada e tratada em condições de
igualdade não pelo anfitrião e sim pelo Mestre. Aliás, este tratamento condiz com a
Lumen Gentium. Este documento do Concílio Ecumênico Vaticano II, a partir de um
resgate antropológico, indicou a mesma dignidade de homens e mulheres em uma
perspectiva eclesiológica de Igreja Povo de Deus, “onde todos os batizados são chamados
ao mesmo seguimento de Jesus aspectos relevantes para se pensar a situação das
mulheres nos tempos atuais” (SANTINON, 2023, p.97).
No entanto, infelizmente, o aggiornamento eclesial, proposto pelo Papa João XXIII,
não é realidade contemporânea nos diversos âmbitos. O Documento da Conferência de
Aparecida (2007) que suscita a participação plena e decisória das mulheres na vida da
Igreja ainda não foi colocado em prática, talvez pela resistência de grupos contrários às
mudanças conciliares. Estas interferências impedem os avanços. Assim, o silenciamento
das mulheres nas estruturas eclesiais persiste.
Ivenise Santinon (2023), uma voz constante na luta pela igualdade de gênero,
reforça essa reflexão ao mencionar que mesmo o apoio do Papa Francisco é insuficiente
para a presença feminina legítima e relevante para a vida da Igreja. Segundo a teóloga, os
retrocessos em parte da Igreja dificultam “a emancipação eclesial feminina e um
consequente discipulado de iguais” (2023, p.97), conforme destacou no final do último
século a teóloga Elisabeth Fiorenza (1995).
Comungando na mesma linha de pensamento de Santinon (2023), entende-se a
necessidade de ‘enxergar’ nas comunidades de fé as injustiças causadas pela invisibilização e
pelo silenciamento das mulheres, que, sem dúvida, não encontra respaldo e está em direção
contrária àquela praticada por Jesus nos Evangelhos. A perícope ‘A pecadora’ de Lucas, que
mereceu um olhar mais atento, ilustra as condições de igualdade com as quais Jesus tratava
as mulheres; não se importando com a visão androcêntrica da sociedade da época. Enfim, é
imprescindível a promoção do protagonismo das mulheres na Igreja e discussões em prol
do discipulado de iguais, que resgate as decisões do Concílio Vaticano II e que enfrente o
clericalismo e o legalismo.
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MULHERES, SOCIEDADE E A IGREJA
CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA
WOMEN, SOCIETY AND THE
ROMAN CATHOLIC APOSTOLIC
CHURCH
Maria Cristina S. Furtado*
Resumo: A herança patriarcal da inferioridade da mulher, em termos
intelectuais, ainda é grande em nossos dias, trazendo o desrespeito e a
desvalorização da mulher, tanto nos espaços domésticos, como nos públicos,
e religiosos. O resultado é a falta de participação decisória das mulheres, e a
forte violência que vemos no dia a dia. Neste artigo, traremos um
retrospecto histórico da violência contra a mulher desde a Bíblia (AT e NT),
como esta visão negativa penetrou no cristianismo, e ajudou a chegar em
nossos dias. Veremos como a mulher tem trabalhado intensamente para
modificar esta realidade. Será também analisado como o movimento
feminista tem sido importante nesta luta, e como o estudo da teologia pelas
mulheres, levou-as a conhecerem o Deus libertador, possibilitando as
teologias feministas, que com seus desdobramentos trouxeram novos
olhares teológicos, e têm ensinado às mulheres a verem o seu potencial e
lugar na Igreja. Finalmente, serão abordadas as pequenas mudanças que a
Igreja Católica tem feito, desde a entrada do Papa Francisco, e as
perspectivas futuras desejadas.
Palavras-chave: Violência. Mulher. Sociedade. Amor incondicional.
Abstract: The patriarchal inheritance of women’s inferiority, in intellectual
terms, still looms large these days, bringing disrespect and devaluation of
women into domestic spaces, as well as in the public and religious spheres.
The result is the lack of female participation in decision-making processes,
as well as the increasing violence we are witness to daily. In this article, we
will bring a historical retrospective of violence against women since Bible
times (OT and NT), how this negative view was inserted into Christianity,
and reached our days. We will see how women have worked intensely to
modify this reality. The feminist movement will also be analyzed in how
important it has been in this struggle and how women’s study of theology
had led them to encounter the liberating God and enabled feminist
theologies. These, with their developments have collaborated to bring new
theological perspectives, teaching women to see their potential. Finally, it
will address the small changes that the Catholic Church has made, since the
arrival of Pope Francis, and the desired prospects.
Keywords: Violence. Woman. Society. Unconditional love.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 33-41, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.194
* Doutora em teologia sistemática-pastoral
(PUC-Rio), Especialista em Educação (PUC-
RS) e Psicóloga (CNP-BH). Realizou
doutorado sanduiche na Universidade de
Roehampton, Londres. É professora na
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-MINAS) e no Instituto São
Paulo de Estudos Superiores (ITESP).
Diretora do Centro de estudos de Gênero,
Diversidade sexual e Violência (RJ). Membro
da Sociedade Brasileira de Teologia Moral
(SBTM) e da Sociedade de Teologia e
Ciências da Religião (SOTER).
Email: mcristinafurtado@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0078-3853
Recebido em 31/07/2023
Aprovado em 03/11/2023
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INTRODUÇÃO
As mulheres são protagonistas de uma Igreja em saída, através da escuta e do
cuidado que manifestam com as necessidades dos outros e, com uma marcada
capacidade de sustentar dinâmicas de justiça em um clima de ‘calor doméstico’,
nos diferentes ambientes sociais em que se encontram para trabalhar [...]. (PAPA
FRANCISCO, 08 out. 2020)
O Papa Francisco sempre diz palavras fortes e amorosas em relação à participação
das mulheres, mas o que vemos, constantemente, na Igreja Católica, é a rejeição para a
mulher estar nos principais ministérios. Na mídia, no atual momento, as mulheres têm
sido amplamente festejadas, mas o que lemos, vemos, e ouvimos, diariamente, são notícias
sobre a violência contra a mulher.
Seja violência física, psicológica, institucional, simbólica, e sexual é comum as
mulheres serem, constantemente, ofendidas e difamadas por homens que se sentem
ultrajados quando questionados, ou pressionados, de alguma forma, por uma mulher,
que para eles, as mulheres o consideradas seres inferiores, subalternas. Da mesma forma
as mulheres são agredidas pelos maridos, namorados, ex-maridos, e assassinadas, quando
tentam tomar as rédeas de suas vidas e/ou tentam romper seus relacionamentos.
A cultura patriarcal trouxe para a mulher, na contemporaneidade, a herança de ser
considerada inferior em termos intelectuais, e ter grande capacidade afetiva, o que a
qualifica para atividades domésticas e a desqualifica para a vida pública. Essa análise junto
com os interesses da sociedade da época, dissociou o orgasmo da reprodução, e a mulher
foi chamada a dispensar o prazer, e a se voltar para a família e a procriação. Para Elza
Tamez, (2011, p.154), a raiz fundamental da violência de gênero encontra-se no fato do
homem ter sido considerado “um ente superior, e a mulher inferior”. Uma visão que a
relaciona ao mal, à tentação, à sedução, à Eva que instigou Adão a cometer o pecado,
tornando-a maldita sobre a terra. Apesar de todas as lutas e conquistas, o patriarcalismo
ainda é uma realidade, e essa visão da mulher, persiste em muitos ambientes, e entre eles,
na religião cristã, em especial, na Igreja Apostólica Católica Romana.
Na sociedade ocidental os homens ocupam grande parte dos lugares de decisão, e as
mulheres ainda têm pouca participação decisória. Em 2022, tivemos apenas 18% de
deputadas federais mulheres, e de deputadas estaduais e distritais eleitas em todo país.
Embora tenha sido um recorde, ainda é mínima a participação das mulheres nas decisões
que dizem respeito à sociedade e a elas próprias (NEXO, 03 out.2022). A consequência
disso, é a continuidade de decisões que favorecem ao sexo masculino sem a preocupação da
implementação de políticas públicas que ajudem a diminuir a violência de gênero. Políticas
que favoreçam uma educação não sexista, visando paridade entre os gêneros, respeito à
liberdade das mulheres, equiparação salarial, o avanço de novas leis e a fiscalização para o
cumprimento das que existem contra a violência doméstica, e todo o tipo de violência
contra a mulher. Os números da violência no Brasil são preocupantes. De acordo com a
pesquisa que nos traz Raissa Basílio, na revista CLAUDIA (3 mar.2023) “Em 2022, cerca de
21,5 milhões de mulheres acima dos 16 anos sofreram violência física ou sexual dos
parceiros ou ex-parceiros e 18,6 milhões foram assediadas, de forma verbal ou física”.
Neste artigo, refletiremos sobre a violência de gênero que as mulheres ainda sofrem
na atualidade, tanto na sociedade como na Igreja Católica Apostólica Romana, e
mostraremos a sua luta para ter direitos igualitários.
FURTADO, Maria Cristina S.
Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 33-41, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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1 RETROSPECTO HISTÓRICO
Na Bíblia, no A.T. encontramos mulheres citadas como líderes, juízas, profetisas e
outras importantes ações, entre elas, Sara, Míriam, Raabe, Rute, Ana, Ester. Entretanto, de
acordo com a teóloga Maria Clara Bingemer, em determinado momento, isso mudou.
Quando a “circuncisão” passou a fazer parte do ritual de iniciação ao Judaísmo, a mulher
passou a ser oprimida, inclusive, pela sua constituição corporal. Começou a receber menos
mandamentos do que os homens, o que a diminui em sua dignidade, pois para o povo de
Deus, a glória era viver segundo a lei de Deus. Nesta época, até os seus ciclos menstruais
foram considerados impuros, e elas segregadas em muitas esferas da vida (FURTADO,
2022, p.115). No entanto, ainda de acordo com esta teóloga, “Jesus resgatou a dignidade das
mulheres, pela sua práxis libertadora, e a Igreja Primitiva parece ter assimilado as
esperanças de Jesus ao introduzir um ritual de iniciação não sexista, como o
batismo” (BINGEMER, et al, 2008, p.92). Para ela, “o batismo trouxe uma ruptura radical
com o passado, surgindo um novo modo de ser. Com esta ruptura o batizado se faz
semelhante a Cristo, por uma morte semelhante à sua(BINGEMER, 2010, p.36). Jesus foi
revolucionário, e na Igreja Primitiva a mulher era ativa, engajada, discípula, missionária,
líder, e responsável pelas igrejas domiciliares.
De acordo com Ana Maria Tepedino, Jesus o fazia acepção de pessoas. “A todos
acolheu e com todos se relacionava da mesma forma” (TEPEDINO, 1990, p.82). Ela cita a
feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza, dizendo que esta teóloga vai ainda mais além,
quando afirma que as mulheres exerciam liderança, como apóstolas, em situação de
igualdade com os 12” (IDEM, p. 90). Entretanto, o forte androcentrismo em Israel,
decretava que o fato de se nascer homem ou mulher determinava um grau de maior ou
menor dignidade da pessoa.
A teóloga Tereza Cavalcanti (2002, p.355), nos relembra que, na sociedade judaica,
no século II d.C., os judeus rezavam três vezes ao dia uma oração em que “agradeciam por
não ser mulher”. Talvez esta compreensão, ajude-nos a entender que a liderança de
mulheres, dificilmente, poderia ser aceita por muito tempo, em uma sociedade, com tão
fortes padrões androcêntricos. Este pode ser o motivo para que, entre os escritos de Paulo,
onde forte valorização da mulher, exista uma passagem, nas Cartas Paulinas que, no
início do século XIX, passou a ser usada para marcar a mulher, na esfera doméstica,
submetendo-a ao marido, mandando-a se calar na Igreja. Passagem não compatível com as
ações de Paulo, que levou diversas mulheres a assumirem cargos de liderança em suas
comunidades, inclusive, citando-as, nominalmente. De acordo com o biblista Jerome
Murphy O`Connor (1996, p.296), esta passagem não foi escrita por Paulo. Teria sido uma
inserção feita, posteriormente, como aconteceu com outras passagens.
Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas
dos santos. As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é
permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E se querem
aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é
vergonhoso que as mulheres falem na igreja (1Cor 14,34-35).
Aos poucos o Cristianismo para penetrar no mundo grego e Romano, foi se
afastando de alguns importantes aspectos da revolução de Jesus, e ao aproximar-se da
filosofia estoicista, deixou penetrar em sua doutrina não os aspectos positivos, mas uma
forte negatividade sobre a sexualidade. Esta passou a ser vista como pecado, e admitida
apenas em função da ‘procriação’. Com isto as mulheres voltaram a ser vistas como
inferiores ao homem, e consideradas traiçoeiras e pecadoras. Pouco a pouco, foram
FURTADO, Maria Cristina S.
Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
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retiradas do trabalho apostólico, e as que decidiram consagrar sua vida a Jesus, foram
recolhidas a clausuras, obrigadas a usar hábito, e a trabalharem às margens do poder.
Segundo a historiadora Ana Maria Bidegain (2009, p.16), as mulheres foram colocadas em
vida privada, e apesar de invisibilizadas pela história, continuaram exercendo não uma
função catequética, mas “exercendo funções de organização de redes ligadas ao poder
econômico, social, educativo e religioso, dentro dos conventos.
Para o Jesuíta Gary Macy (2009a), a participação das mulheres era o grande, que
na Idade Média, aa metade do século XII, “as mulheres eram cogitadas para a ordenação
como qualquer homem. Eram consideradas parte do clero”. Foram diaconisas, serviam
como bispas, distribuíam comunhão, e aouviam confissões. Para ele, “as evidências mais
óbvias vêm dos ritos de ordenação” (2009a). Entretanto, quando começou a reforma
religiosa, os reformadores resolveram afastar as mulheres para estabelecerem o celibato, e
fizeram uma campanha colocando as mulheres como incapazes de exercer qualquer cargo
na Igreja. Segundo Macy, em 1230, o ritual de ordenação sofreu duas importantes
mudanças que até hoje são usadas para excluir as mulheres. 1) A ordenação sacerdotal se
tornou uma cerimônia para conceder poder e novo estado espiritual. 2) A ordenação
passou a ser focada em apenas um ministério, com o poder de consagrar o pão e o vinho
durante a missa. Além disso, teve início um processo que procurou expurgar do
cristianismo a memória da ordenação de mulheres (FURTADO, 2022, p.125).
No início da modernidade as mulheres sofreram ainda mais perseguição, com uma
grande caça às feiticeiras. Segundo Jean Delumeau (2001, p.310). “A mulher foi identificada
como perigosa agente de Satã, dentro e fora da Igreja Católica”. A partir do século XV, a Igreja
enfatizou ainda mais o sexo como função procriadora, colocando o ato sexual que não
levasse à procriação, entre os pecados contrários à natureza, e abusivos à sexualidade humana.
De acordo com a doutora em Ciência Política, Céli Regina J. Pinto (jun. 2010, p. 16)
“durante a inquisição a Igreja católica foi implacável com qualquer mulher que desafiasse
os princípios por ela pregados como dogmas insofismáveis”. Houve ainda uma ampla
difusão da doutrina cristã, e aos poucos, a necessidade da mulher de estar somente ligada à
procriação, e a visão negativa da sexualidade, uniram-se às exigências da sociedade da
época. No final do século XIX, os estudos biológicos, sem mencionar a carga cultural que
existiam em suas análises, ajudaram a inferiorizar a mulher, dando a capacidade intelectual
para o homem, e a capacidade afetiva à mulher. Esta foi a visão que chegou aos nossos dias.
2 A LUTA E RESISTÊNCIA DAS MULHERES
As mulheres não se conformaram com a situação de inferioridade que lhes foi
conferida, e muito têm lutado para modificar esta situação. Elas procuraram se organizar, e
no início do século XX, os movimentos de resistência feminina multiplicavam-se e as
conquistas começavam a acontecer. O movimento recebeu o nome de “feminista”, e as
mulheres feministas foram consideradas indesejáveis, pois lutavam pelos seus direitos,
sendo muitas delas, despedidas de seus empregos, presas, e até assassinadas. A primeira
grande luta foi pelo “sufrágio”, e no Reino Unido, ainda no final do século XIX, as
mulheres conseguiram o direito de votar. No Brasil, as mulheres conseguiram o
sufrágio, em 1930, quando foi promulgado o novo código eleitoral brasileiro. Mas, por
volta de 1950, em mais de 100 nações o voto feminino era uma realidade.
Durante a segunda Guerra Mundial, o movimento feminista enfraqueceu, pois em
muitos países, as mulheres precisaram assumir o trabalho que, anteriormente, era feito
pelos homens, e o feminismo inicial reaparecerá, com importância, na década de 1960.
FURTADO, Maria Cristina S.
Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
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Ele voltou revigorado, como um movimento libertário que deseja, não espaço para a
mulher no trabalho, na vida pública, na educação –, “mas que luta, sim, por uma nova
forma de relacionamento entre homens e mulheres, em que esta última tenha liberdade e
autonomia para decidir sobre sua vida e seu corpo (PINTO, 2010, p.16). De acordo com
esta autora, o mais importante foi mostrar a existência da dominação do homem sobre a
mulher, cujas características são diferentes da dominação de classe.
Nessa época, a Igreja Católica realizou o Concílio Vaticano II (1962-1965). Um
concílio que levou a Igreja Católica a mudar a compreensão sobre a sua presença no
mundo, e realizou algumas aberturas, como a permissão para leigos, mulheres, jovens e
adultos, participarem de seus centros de estudos. Estas e outras mudanças levaram as
mulheres católicas acreditarem que a Igreja abriria as portas para a entrada nos
ministérios, e faria alguma mudança em relação à sexualidade, principalmente, em relação
à função reprodutiva. Mas não foi isso que aconteceu:
- A Carta Encíclica Humanae Vitae, em 25 de julho de 1968, assinada pelo Papa
Paulo VI, reafirmou que qualquer ato matrimonial deveria permanecer aberto à
transmissão da vida, e apenas o método do ‘ritmo’ continuaria a ser considerado
lícito pela Igreja Católica.
- Em 1975, o Papa João Paulo II, disse ser impossível as mulheres atingirem ao
ministério presbiteral, e a doutrina da Fé (CDF) justificou como sendo fidelidade
ao Senhor, pois a Igreja nunca teria admitido que as mulheres recebessem a
Ordenação presbiteral ou episcopal. (FURTADO, 2022b, p.139-141).
No entanto, mesmo impedidas de atingir os ministérios, as mulheres foram estudar
teologia, e inspiradas no movimento feminista, e na espiritualidade do Deus libertador, da
teologia da libertação, elaboraram a teologia feminista. De acordo com Elizabeth
Schüssler-Fiorenza (1992, p.29), “a intuição básica de todas as teologias da libertação,
incluindo a teologia feminista, foi o reconhecimento de que toda teologia quer queira quer
não, é, por definição, comprometida em favor ou contra os oprimidos”.
Para Neiva Furlin (2011, p.144-147) existiram três fases de produção teológica das
mulheres latino-americanas e brasileiras. Todas trouxeram novas hermenêuticas teológicas
e interpretações bíblicas, ligadas a reflexões de ‘gênero’, entre elas:
- a dimensão feminina de Deus e a importância da mulher na Igreja primitiva; -
a denúncia e o questionamento do caráter androcêntrico, patriarcal e
demasiadamente racional na Bíblia e na teologia; - elaboraram a teologia
ecofeminista (Ivone Gebara); - a teologia feminista pela perspectiva de gênero,
onde o discurso normativo masculino deixou de ser universal, e o gênero
passou a ser percebido como relações de gênero, e relações de poder.
(FURTADO, 2022a, p.85-98).
Com muita persistência e capacidade, as mulheres, além de estudarem e escreverem,
tornaram-se agentes pastorais, entraram nas Universidades Católicas como professoras, e nas
Igrejas, como agentes pastorais, e desde então, espalham o seu saber. Hoje, são professoras de
Teologia ou de Ciências das Religiões, coordenadoras de departamentos, diretoras, decanas.
Possuem ampla produção, e muitas, por suas ações na Igreja, são reconhecidas, nas
universidades do seu país, e internacionalmente, embora, sintam que seus trabalhos e textos
teológicos ainda sofrem discriminação, dentro da Igreja. Sempre aqueles que procuram
diminuir o que fazem, e negar a seriedade da produção teológica das mulheres.
A teologia feminista não é homogênea, e muitos preferem dizer “teologias
feministas”. A compreensão da importância de gênero nas relações, e o aspecto social e
psicológico que estas teologias trazem, possibilitaram novas pesquisas e conclusões, e
FURTADO, Maria Cristina S.
Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
Revista Teopráxis,
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através das mais variadas ciências. Cito aqui as principais teólogas que falam sobre estes
temas: - a teologia negra (Cleusa Caldeira); - as teologias libertadoras inclusivas
LGBTQIA+ (Maria Cristina S. Furtado), a teologia Queer (Marcella Althaus-Reid, Lisa
Isherwood, Ana Ester), a teologia lésbica (Mary Hunt), a teologia ecológica, a teologia pós
e decolonial, a teologia ecumênica, interreligiosa etc. (FURTADO, 220a p.88-93).
3 PAPA FRANCISCO E AS MULHERES
Desde a entrada do Papa Francisco, o tema da igualdade feminina, voltou a ser
debatido na Igreja. Algumas mulheres foram chamadas para participarem destes debates,
entretanto, reconhecem estar sendo difícil fazer qualquer mudança. Um número
considerável de padres, bispos e cardeais, parece que ainda não conseguiram ver a mulher
como alguém que possa acrescentar novos olhares e experiências. Phyllis Zagano, membro
da comissão dos estudos sobre o Diaconato, diz que o trabalho realizado não foi
conclusivo, pois ao final, havia bispos e cardeais contrários, e outros favoráveis. Dessa
forma, a decisão para a Igreja Universal deve ser aplicada pelas Conferências episcopais, ou
seja, pelos bispos individuais (IHU, 17 mai. 2019).
A grande novidade que trouxe o Papa Francisco em relação às mulheres foi,
inicialmente, ter dado cargos decisórios a algumas mulheres, e mais recentemente,
modificar o Cânon 230, § do Código de Direito Canônico, permitindo que as mulheres
assumam os ministérios de leitor e de acólito. O primeiro, relacionado com a Palavra, e o
outro, com a Eucaristia. Para o prof. Pe. Antônio J. de Almeida, as mulheres agora podem
ser instituídas, o que é diferente de ordenadas. “Para alguém se tornar bispo, presbítero, ou
diácono são-lhe impostas as mãos, e realizada a oração consacratória que introduz ao
ministério pastoral, na hierarquia da Igreja; e para os outros ministérios, a pessoa é
estabelecida numa determinada posição”. Segundo Almeida, as viúvas, e as mulheres, em
geral, não eram ordenadas até a Idade Média, e sim instituídas (IHU, 2021).
Esta modificação no cânon, provocou muitas reações, pois, para alguns, o
impedimento legal foi removido, e isto, vai além do que possibilitou para as mulheres,
neste momento, e simbolicamente é muito importante. Para os progressistas, foi um passo
importante para as mulheres virem a assumir os ministérios principais. Afinal, para eles,
homens e mulheres cristãos são, pelo batismo, iguais em dignidade. Para os conservadores,
isto é inconcebível (IHU, 2021).
É importante dizer, que as mulheres se encontram ainda mais ativas, organizando-
se, dentro e fora da Igreja, em diferentes movimentos, e cada dia conseguindo mais
vitórias em relação aos seus direitos.
Dentro da Igreja Católica são vários os movimentos de mulheres existentes. Uns mais
independentes, e outros mais ligados ao clero. Entre eles, cito o Conselho Mundial de
Mulheres Católicas (CATHOLIC WOMEN’S COUNCIL - CWC), onde sou uma das
representantes brasileiras junto com Ivenise Santinon; e a União Mundial das Organizações
femininas católicas. Ambos têm trabalhado, incessantemente, para que os bispos recebam
as suas reivindicações, de modo que possam ser debatidas, no Sínodo, em outubro de 2023,
e em 2024. Entre as mulheres teólogas, vários grupos também têm se formado. Cito aqui,
duas redes das quais faço parte: a rede Teomulher, em que sou uma das fundadoras. Ela
existe, desde 2018, e busca unir e divulgar os trabalhos realizados pelas teólogas; e a recém-
formada, Rede Brasileira de Teólogas, que já conta com mais de 90 participantes.
As reivindicações das mulheres têm chegado ao Vaticano, e o Papa Francisco não se
mostra indiferente a estas ações. Ao contrário, foi publicado um documento que convocou
FURTADO, Maria Cristina S.
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70 pessoas entre padres, religiosas, diáconos e leigos católicos, que foram escolhidos para
as Conferências Episcopais Nacionais (CNN. BRASIL, 26 abr. 2023). Destes 50% o
mulheres que têm direito a voto. Entre as mulheres encontra-se Sonia Gomes de Oliveira,
Presidente do Conselho Nacional do Laicato do Brasil. (G1. Grande Minas, 8 jul. 2023).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O retrospecto histórico, neste artigo, mostra-nos: - o quanto o processo de
inferiorização e invisibilidade da mulher tem acompanhado a história da mulher, e como o
cristianismo tem colaborado para isso. - Como o movimento feminista, sempre apontado
como subversivo, e criticado pelos setores conservadores, dentro e fora da Igreja, foi e é
crucial, na luta pelos direitos das mulheres. - A teologia feminista ou teologias feministas
são um marco na produção das mulheres na Igreja, e crucial para a pluralidade teológica
hoje existente. - A importância do conhecimento para as mulheres, e de sua organização
em grupos de mulheres. - E finalmente, o quanto as mulheres são importantes para a
Igreja, e para o mundo.
A luta da mulher na sociedade, na teologia e na Igreja Católica Apostólica Romana
continuará por longo tempo. Quanto mais a mulher estudar, produzir, e se encontrar nos
espaços públicos, universitários e pastorais, seus trabalhos e ações abrirão mentes e
corações, e ela contribuirá para a Igreja, em saída, tão desejada pelo Papa Francisco e como
ele próprio diz:
Escuta, meditação, ação amorosa: esses são os elementos constitutivos de uma
alegria que se renova e se comunica aos outros, através do olhar feminino, no
cuidado da Criação, na gestação de um mundo mais justo, na criação de um
diálogo que respeite e valorize as diferenças. (PAPA FRANCISCO, 08 out.
2020)
Para a continuidade da luta, algumas mulheres que foram fundamentais no passado,
precisam ser lembradas para continuarem a inspirar as mulheres, da atualidade. Vanildes
Gonçalves dos Santos (s/data), professora da Universidade Católica de Brasília (UCB),
pede em oração:
Que a coragem e sabedoria de Maria Madalena e de tantas mulheres, que
fizeram parte do movimento de Jesus, continuem a nos inspirar na luta contra
todas as formas de violências contra as mulheres (nas casas, nas ruas, favelas,
campos, florestas, templos, trabalhos, escolas, redes sociais...)”.
Como mulher, católica, posso desejar e rogar para que todas as mulheres,
inspiradas na coragem de Maria Madalena, e como ela, envolvidas pelo amor
incondicional de Deus, continuem a anunciar que viram Jesus, e o que Ele disse (Jo.20,18).
E sob o manto de Maria, em oração com todos os irmãos e irmãs, digamos, “façam tudo o
que Mestre Jesus mandar” (Jo 2,3-5).
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Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 33-41, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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FURTADO, Maria Cristina S.
Mulheres, sociedade e a Igreja Calica Apostólica Romana
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 33-41, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
O DEUS QUE AGE NAS FRONTEIRAS
SOCIAIS DO HUMANO
A narrativa bíblica e as questões
sobre gênero
THE GOD WHO ACTS ON THE
SOCIAL BORDERS OF THE HUMAN
The biblical narrative and questions
about gender
Ângela Maringoli*
Resumo: O artigo quer refletir o encontro de Jesus com uma mulher do povo
que vivia em Samaria. Apesar das diferenças sociais a samaritana foi ousada ao
entabular uma conversa com um homem judeu. O recorte está no Evangelho
de João no capítulo 4 que apresenta algumas mulheres que atuaram ao lado de
Jesus como protagonistas em algumas narrativas do Evangelho. A narrativa
bíblica aborda questões interessantes sobre gênero, segregação, preconceito
racial e religioso. A perícope aborda a vida das mulheres das províncias da
capital de Samaria em especifico “a mulher samaritana” texto bastante
conhecido no meio cristão. Releitura de textos antigos é sempre um processo
investigativo que busca por preciosas descobertas que ao serem encontradas
serão usadas na história presente. Entre essas pepitas encontramos as ações
restauradoras de Jesus, o Deus encarnado. Desprezado e sofrido vivia na
marginalidade da sociedade de sua época com um status quo semelhante ao da
personagem samaritana. Mulher determinada em esclarecer suas dúvidas
religiosas ela é cativada por Jesus, tornando-se discípula e missionária.
Palavra-chave: Samaria. Mulher Samaritana. Evangelho. Jesus.
Abstract: The article wants to reflect the encounter of Jesus with a woman of
the people who lived in Samaria. Despite the social dierences the Samaritan
woman was daring to engage in conversation with a Jewish man. The cut is in
the Gospel of John in chapter 4 that presents some women who acted alongside
Jesus as protagonists in some Gospel narratives. The biblical narrative
addresses interesting questions about gender, segregation, racial and religious
prejudice. Pericope addresses the life of women in the provinces of the capital
of Samaria in specific "the Samaritan woman" text well known in the Christian
milieu. Rereading of ancient texts is always an investigative process that seeks
for precious discoveries that will be used in present history. Among these
nuggets we find the restorative actions of Jesus, the incarnate God. Despised
and suering he lived in the marginality of society of his time with a status quo
similar to that of the Samaritan character. Woman determined to clarify her
religious doubts she is captivated by Jesus, becoming a disciple and missionary.
Keywords: Samaria. Samaritan Woman. Gospel. Jesus;
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 42-50, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.192
* Teóloga, professora, doutora e mestre em
Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo. Química e Pós-
Graduada em Bioquímica. Membro e
pesquisadora da Rede Latino-Americana de
Estudos Pentecostais (RELEP) pesquisadora
do Fenômeno do Protestantismo e
Pentecostalismo Brasileiro. Membro e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa Teologia
no Plural. Coopera como pesquisadora com o
Instituto Tecnológico Social (ITS), uma
ONG hispano-brasileira atuando em Guiné
Bissau desde 2010. Compõem junto a outros,
a diretoria da ONG OIKOS, Escola da Vida.
Tem trabalhado com missionária no Brasil,
Peru, Espanha, PortugaleGuinéBissau.
Email: prof.angela.maringoli@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1844-6492
Recebido em 29/07/2023
Aprovado em 22/10/2023
43
INTRODUÇÃO
Os samaritanos eram um povo segregado por parte dos judeus e das autoridades
religiosas. Os judeus e samaritanos eram inimigos de longa data antes mesmo de Juir
para o exílio babilônico. Devido aos acontecimentos históricos e a miscigenação de
Samaria após a invasão militar dos assírios e da implantação da política devastadora de
dominação aplicada pelos bárbaros assírios aos povos da região de Samaria. Os assírios
invadiram o Norte do país de Israel, dominaram a cultura, a religião, os costumes, levaram
os homens como prisioneiros de guerra e subjugaram as mulheres em atrocidades,
gerando filhos bastardos durante a tomada e queda o reinado do rei Jereboão II (722 a. C.).
A tradição oral preservou os textos e as memórias que através de testemunhos
oculares evocam o passado do cristianismo. Jesus, mestre e rabino interagindo com o dia a
dia das comunidades entra em cena, quando ao conversar com a mulher, desconstrói as
barreiras culturais, étnicas e religiosas fomentadas pelos judeus a respeito dos samaritanos.
O diálogo entre Jesus e a mulher samaritana, que no texto é apresentada sem uma
identidade ou nome, acontece em meio ao nada, em um poço onde costumeiramente as
mulheres das aldeias, caravanas e viajantes paravam para beber água.
Na narrativa da “mulher samaritana” houve uma recuperação identitária através de
uma conexão entre ensinos de Jesus com a realidade cultural da mulher uma história da
relação entre dois povos. Jesus, em terras carregadas de séculos de história, guerras, lutas,
mortes e derrotas. Samaria e o monte Geresim considerado o local sagrado para os
samaritanos. Para os povos antigos se dirigirem a locais sagrados era comum essa atitude
de adorar, faz parte do diálogo de Jesus com a mulher samaritana. Jesus desconstrói quando
ensina que adorar a Deus em Espírito é mais importante que estar em um local geográfico.
1 E STRANGEIROS EM ISRAEL
Em Israel os estrangeiros eram divididos em dois grupos. O primeiro são os de
passagem, aqueles que usufruem da hospitalidade, porém não são protegidos pela lei e o
segundo são os estrangeiros residentes em Israel chamados de gerî e esses sim contavam
com a proteção da lei. O geri era o estrangeiro vivia estável em meio à comunidade e
usufruía de certos direitos. Ele era menos associado social e religiosamente. Abraão foi um
geri em Hebron (Gn 23,4), Moisés em Mídiã, (Ex 22) 87 e Elimeleque era um homem de
Belém, que foi com sua família se estabelecer como geri em Moabe (Rt 1,1). Moabe (Rt 1,1).
O redator retrata os estrangeiros em Moabe (Rt 1,1) como uma alusão ao patriarca Abraão
o arameu que se tornou o pai de muitas nações, em especial a dos hebreus). Bom lembrar
que Rute a moabita é descendente de Ló. Os moabitas serviam ao deus Milcon (de Camos)
mas Rute tem um encontro com o Deus de Noemi sua sogra.
1.1 O Ritual das Águas - Batismo na religiosidade judaica
João 4 inicia com Jesus se retirando do ajuntamento de fariseus porque o desejava
participar do embate entre os judeus religiosos e os discípulos sobre a questão do batismo.
Se evidencia uma discussão sobre o número de batizados de Jesus sendo superior aos de
João Batista (cf. Jo 4,1). O que se questiona é se o batismo praticado por Jesus é lícito ou
não. E o autor alerta que Jesus não era quem batizava, mas os seus discípulos.
Jesus, esquivando-se da conversa, se dirige a caminho da Judéia em direção para a
Galileia. Por que naquele momento do embate entre fariseus e discípulos Jesus não quis
reagir teologicamente e discorrer a respeito significado do rito do batismo? Por que os
MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
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grupos religiosos dos fariseus se encontravam por perto daquele local? Talvez a resposta
seja porque essa seria uma discussão em torno dos costumes culturais judaicos sobre a lei
mosaica ou a respeito da maneira com a qual o batismo era praticado pelos povos antigos.
O batismo é um ritual religioso com lavagens cerimoniais feitas por imersão nas
águas purificadoras. Para a religião judaica o batismo significava a conversão do
paganismo para o judaísmo. O rito era praticado uma única vez. João Batista, o profeta, ao
batizar, pregava o batismo e o arrependimento aos não judeus para que esses se
convertessem ao judaísmo e obtivessem o perdão dos pecados, anunciando que o Reino de
Deus estava próximo. O batismo o era um ritual comum, havia no rito a
intencionalidade de que o pecador durante o momento libertário do batismo entendesse
que existia nele necessidade de uma mudança em sua “atitude mental” e que era necessário
ao pecador convergir para uma direção correta que o levasse ao encontro de Deus. João
Batista queria dizer aos povos judeus e não judeus, que era necessário que todos eles se
batizassem para o perdão e arrependimento dos pecados. O que poderia soar ofensivo aos
ouvidos religiosos, onde dominava a crença entre eles sobre salvação única para os judeus
por serem o único povo nascido sobre a Lei de Deus. João Batista apregoava que todos que
quisessem vir a Deus deveriam se batizar. Prevendo que uma longa discussão religiosa o
aguardava e que para aquele momento essa conversa seria pouco proveitosa faz com que
Jesus se retire do ambiente religioso farisaico para priorizar sua saída do território da
Judéia em direção à Região da Galileia. Chegando à Samaria onde inicia um diálogo sobre
águas batismais e arrependimento, outras paragens com outros ouvintes. Jesus priorizara
falar sobre o Espírito da Verdade, aquele que liberta (Jo 4,1-41).
Jesus o Senhor, é o Kyrios, que controla os acontecimentos decidiu que era
necessário ir à Samaria por um caminho o costumeiro que margeava o Rio Jordão, ele
mudou a rota e mudou de espaço geográfico, porém a conversa e o ensino continuam
sendo o mesmo, libertar os cativos, fracos e oprimidos. Jesus é recebido na Galileia. João, o
apóstolo, testemunha ocular do episódio, fornece informações para que o leitor construa
em sua mente o ambiente onde a cena da chegada da mulher samaritana ao poço e Jesus
lhe pede água para beber.
A água ainda era o tema central. Logo, inicia a conversa entre Jesus e a mulher e o
tema da água viva. O preconceito dos discípulos os endurecia e os cegava. Jesus cruza
fronteiras geográficas - culturais rígidas e se dirige em direção ao itinerário que para Ele
era necessário. Necessário me é passar por Samaria, diz Jesus. Por que me é necessário?
Necessário fazer o que nessas paragens? Por que não ir para a Galileia pelo caminho
tradicional seguindo pela Transjordânia? Para que complicar? Por que ir por uma rota
onde gente desinteressante cruzaria o caminho? Jesus escolhe a rota mais difícil é a que o
dirige para a sua missão de reconciliar a humanidade, é a nova aliança que nasceu durante
o casamento que ficou conhecido nos textos bíblicos como as Bodas de Caná que é
aplicada, Jesus tinha que passar por Samaria (4,4). O manancial citado nesse versículo mais
tarde ficou conhecido na história como o “poço de Jacó”. A localização do poço de Ja
ficava perto dessa aldeia que no tempo de Jesus chamava- se Sicar onde ficava o terreno
que Jacó deu ao seu filho José e que nos tempos de Jacó tinha o nome de Siquém, atual
Nablus, localizada entre os montes Gerizim e Ebal, região de Samaria, ficou sendo a capital
do Reino do Norte (Israel ou Samaria), quando as tribos de Israel se dividiram em duas
nações na época dos sucessores do rei Salomão. O texto busca fazer o leitor lembrar que a
terra é dos herdeiros de Jacó.
Concluído o diálogo a mulher se dirige para avisar aos de sua aldeia que havia
conhecido um profeta. Enquanto a mulher corre euforicamente para avisar os seus
MARINGOLI, Ângela
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conterrâneos sobre a presença do Messias entre eles os samaritanos, Jesus aproveita para
entabular uma conversa com ensino com os discípulos, que não estavam entendendo o que
se passara ali e menos ainda do porquê o mestre, um judeu se dirigira a uma mulher
samaritana em assunto e prosa.
2 DIREITOS LEGAIS DA MULHER NO MUNDO ANTIGO
Na época patriarcal, o costume do casamento era monogâmico e o homem possuía
somente uma mulher igual como foi no início, no relato da criação onde os casamentos
eram monogâmicos (Gn 2,21-24). Abraão possuía apenas uma mulher. Nos escritos
históricos, encontram-se as mulheres, principalmente no papel de mãe, que ensinavam e
nutriam o continuar da história do povo e mesmos as que assumiam o papel de esposa e
ajudante de seu marido. Os patriarcas seguiam os mesmos costumes do oriente e dos seus
ambientes em relação ao casamento. Era na Palestina da Idade Média do Bronze, e não a
Palestina do Império Egípcio.
A situação dos direitos legais da mulher israelita era então diferente da mulher
escrava. Um homem poderia vender sua escrava ou até sua filha legítima (Ex 21,7), mas
não poderia vender a sua esposa, ou nem mesmo aquela esposa que houvesse sido cativa de
guerra (Dt 21,14). O marido podia repudiar sua esposa, mas o documento e repúdio a
protegiam e lhe restituíam a liberdade. O provável é que depois do repúdio, a mulher
recebesse apenas o usufruto do marido, mas também uma parte do mohar que veio com
ela, por meio de seus pais (Jz 15,19; Jz 1,15). (MARINGOLI, 2014 p.98).
A estima dos parentes pela mulher sempre era maior quando a mesma gerava filhos
o que gerava herdeiros para a posteridade (Gn 16,4; 29,31; 30,24); se fosse menino, o
respeito de seu marido aumentava, pois o menino tinha o direito da herança da terra e de
preservar a família pela progenitora. A lei condenava tanto o homem como a mulher, pela
falta de filhos (Ex 21,17; Lv 20, 9; Dt 21, 18-21) e o decálogo insiste no respeito aos pais (Ex
20,12), essa orientação é repassada nos escritos dos livros sapienciais, como os de
Provérbio. No código de Hamurabi (1700 a.C.), marido não poderia tomar uma segunda
mulher a não ser em caso de esterilidade da primeira.
A mulher estéril era quem arrumava uma concubina escrava para o seu marido. A
esposa titular era única e ela possuía o direito de esposa. Segundo Ana M. Tepedino, as
mulheres fazem com que as histórias aconteçam tanto no presente quanto no passado ou
em qualquer lugar que estejam. No Oriente, em geral, segundo a autora, havia uma
mentalidade bastante preconceituosa em relação à mulher, e em muitos textos bíblicos,
muitas vezes, nem o nome do personagem feminino é citado. (MARINGOLI, 2014, p.98).
Em outras situações, como no caso da mulher samaritana o nome da pessoa não é
mencionado explicitamente, por se encontrar inserido no coletivo, iguais aos das citações:
“povo”, “multidão”, “discípulos” e outros. Ivoni Richter Reimer [...]comenta em uma de
suas palestras que existem maneiras de se fazer a história se calar e uma delas é mencionar
alguém rapidamente e se centrar então em pessoas e acontecimentos aparentemente mais
importantes. (REIMER, 2008)
1
. Para encobrir a história verdadeira será através da
interpretação da história tradicional.
A história interpretativa de um texto pode silenciar ou deixar de perguntar por
algum elemento pertencente a ela. Nesse sentido, essa herança acaba legitimando na
história o poderio do homem sobre a mulher. A teologia feminista tem uma leitura
1 Reimer Ivoni Richter, Tema: Jesus e a tradição das transgressoras, II Congresso Internacional de Estudos Bíblicos,
PUC, São Paulo, 2008.
MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
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própria de natureza alternativa que se constitui como uma intervenção política, religiosa,
mas que vivenciada muito mais nos meios acadêmicos que nas próprias ruas. É uma
teologia que dialoga e provoca um enfrentamento de luta nos valores e verdade, com os
seus discursos opostos a essa opressão kyriarcal. (MARINGOLI, 2014, p.97).
Fiorenza comenta que as pesquisas hermenêuticas bíblicas no viés feminino ainda
são interpretativas do que linguísticas, havendo a necessidade de se fazer uma pesquisa
histórico-exegéticas das narrativas. (FIORENZA, 1992).
Sob o ponto de vista social, jurídico e político, a mulher em Israel e na
circunvizinhança possuía menos privilégios que as mulheres dos grandes países vizinhos.
Poucas foram as mulheres que se destacaram e que tiveram uma identidade algumas as
conhecemos pelo seu nome Miriam, as parteiras do Êxodo, Débora, Rute e a Sulamita são
alguns dos poucos exemplos de prestígio e identificação feminina.
No Egito, a mulher comumente aparece com os mesmos direitos de um chefe de
família. Na Babilônia, quando no cativeiro a mulher judia passou a adquirir posses, agir
judicialmente e ter partes na herança de seu marido. Na colônia de Elefantina, sob a
influência estrangeira, a mulher judia adquiriu direitos de representar o seu bet ‘ab na
assembleia. Na Babilônia ela podia adquirir posses, agir judicialmente e ter partes na
herança de seu marido. E, ao mesmo tempo, essas mesmas mulheres constituíam, por
vezes, uma ameaça, quer em uma apostasia externa, quer na liderança interna, como é o
exemplo da mulher cuxita, esposa de Moisés, que suscitou a ira dos irmãos de Moisés,
Mirian e Arão por ser uma estrangeira e idólatra. Estes consideravam o casamento de
Moisés com uma cuxita uma ligação sexual fora da vontade de Deus (Nm 12,1-5). Um
israelita ligado a uma estrangeira era severamente condenado às maldiçoes com pragas e
doenças. Entretanto, Mirian, quando contestou a liderança e autoridade de Moisés, foi
desvestida das suas funções de liderança e punida com uma doença. Mesmo assim, o campo
da história das mulheres e das relações de gênero mantém-se como “um campo” na história.
No Oriente Próximo não era comum, que uma mulher andasse sozinha por uma
questão de precaução dos muitos casos de abusos sexuais e estrupo como os citados no
livro de Juízes no Antigo Testamento, as mulheres quando se dirigiam para realizar
qualquer tarefa doméstica como os exemplos da mulher samaritana, que era retirar água
do poço, caminhavam em pequenos grupos ao irem buscar água. (Gn 29.10). É intrigante
pensar uma mulher sob o sol escaldante ir ao poço para buscar água sozinha.
Pedir água a essa mulher seria um flerte? Com certeza não naquelas paragens. Isaque
e Jacó ficaram conhecendo suas mulheres junto a poços (Gn 29.10), mas através do servo
de Abraão, o Eleazar. A noção importante (Jo 4,10) desse versículo é o significado de “o
dom de Deus” para alguns biblistas esse “dom” é a “água viva” que Jesus oferecia à mulher, a
água espiritual que lhe daria a vida eterna (Jo 4,14). Havia um confronto racial entre eles e
foi desta maneira que a mulher avaliou esse encontro com Jesus. Para as leis judaicas Jesus,
judeu, não poderia tocar a comida e até mesmo a vasilha que ela carregava que eram
consideradas impuras. Foi com essa mulher impura e estigmatizada que Jesus abriu um
diálogo. Acaso tu és maior do que nosso Pai Jaque nos deu o poço, do qual ele mesmo
bebeu e, bem assim, seus filhos e seu gado.? Que audácia da mulher ao comparar Jesus com
Jacó ela entende que Jacó iniciara naquele local um povo fundante e Jesus queria uma
nação e uma só raça.
MARINGOLI, Ângela
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3 VIDA E A CONV E RSÃO DA SAMARITANA
Não tenho marido, Jesus se admira da resposta da mulher, frase que demonstra
vergonha e Ele não a quis envergonhar, mas precisa mostrar a gravidade do assunto a ser
revelado. Vai buscar teu marido- Eu não tenho marido! A experiência da coragem de ser
apesar da angústia de não ser! Dissestes a verdade, esse que tem não é seu. Esse é o que te
oprime. Parece-nos que na frase esse não é seu marido está embutido o conselho de Jesus
que quer dizer que esse marido não é bom para você, porque ele não lhe cuida, não zela
por sua vida humana nas suas necessidades, não é seu cúmplice e nem lhe protege. Jesus
introduz a mulher, um sujeito isolado e discriminado, demonstrando a presença desses
novos sujeitos, no cristianismo e sugerindo a inserção de novos conceitos bem como de
novas abordagens para esse novo modelo religioso.
A mulher estava em crise, cinco maridos - senhores (baal), com os quais ela foi
casada, no grego a palavra está como “marido” e não amante, ela não foi uma concubina,
mas “esposa” desses cinco maridos com quais ela fez uma aliança de casamento e que a
tripudiaram por muito (o) tempo, talvez por setecentos anos e o atual não era seu
governo, não era responsável por cuidar e tratar dela, não era o esposo, mas era o poder
militar dos romanos.
Quem são os cinco maridos? Como foi dito, a situação dos direitos legais da mulher
israelita era então diferente de uma mulher que fosse uma escrava. Um homem poderia
vender sua escrava ou até sua filha legítima (Ex 21,7), mas não poderia vender a sua esposa,
ou nem mesmo aquela esposa que houvesse sido cativa de guerra (Dt 21,14). O marido
podia repudiar sua esposa, mas o documento e repúdio a protegiam e lhe restituíam a
liberdade. O provável é que depois do repúdio, a mulher recebesse apenas o usufruto do
marido, mas também uma parte do mohar que veio com ela, por meio de seus pais (Jz
15,19; Jz 1,15). Paralelamente, o exército assírio invadia e conquistava cruelmente as nações
circunvizinhas espoliando-as e dominando-as à escravidão.
A ação militar da Assíria e o cerco de Samaria dura por três anos e meio sob o
reinado do rei Salmaneser, que sujeitou até a queda do reino do Norte no ano nono do
reinado de Oseias rei de Israel. O rei da Assíria após ter implantado a sedimentação das
muitas raças e religiões em Samaria mandou buscar gente da Babilônia, (primeiro marido)
Cuta (segundo marido) Ava (terceiro marido) Hamate (quarto marido) e Sefar (quinto
marido) e fez com que se estabelecessem nas cidades de Samaria, em lugar dos Israelitas, e
eles tomaram posse de Samaria e habitaram em suas cidades (2Rs 17,24). Uma centralidade
matrimonial aparece. Babilônia, (primeiro marido) Cuta (segundo marido) Ava (terceiro
marido) Hamate (quarto marido) e Sefar, são os cinco maridos da Samaria que parece
ainda estar de insatisfeita com suas relações conjugais, Samaria quer a oportunidade de
saciar a sede. Poucos deuses o bastam e então, “cada nação fabricou para si os seus
próprios deuses e os colocou nos templos dos lugares altos, que os samaritanos haviam
feito; assim fez cada povo nas cidades em que habitou” (2Rs 17,29-32). Desde 722 a.C. aos
romanos e aconhecer Jesus, Samaria foi dominada por uma falsa religiosidade o que a
fez permanecer isolada da religião judaica. Samaria abandonara o Deus de Israel e por ter
sido dominada por forças invasoras territoriais havia corrido atrás de outros deuses.
Depois mandou o rei de Assíria buscar um sacerdote dos que haviam sido exilados para
ensinar como esses estrangeiros deveriam adorar o Deus da terra.
MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
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4 QUEM SÃO OS CI NCO MARIDOS
O Método Histórico-Crítico é um método de estudo exegético para a interpretação
dos textos bíblicos que pretendia ser isento de pressupostos. A ciência moderna usa o
método como ferramenta para análise literária visando se aproximar do texto original.
Dessa forma, este método retirou da Bíblia o status de texto sagrado, tornando-o uma
coleção com o testemunho do povo antigo de Israel e dos cristãos do primeiro século,
sujeito a críticas como qualquer outro texto
2
.
Essas ciências têm como tarefa auxiliar o entendimento do texto respeitando sua
cultura. Uwe Wegner define que a exegese possui três funções: a primeira é aclarar as
situações descritas nos textos, ou seja, redescobrir o passado bíblico de tal forma que o que
foi narrado nos textos se torne transparente e compreensível para nós que vivemos em
outra época e em circunstâncias diferentes; a segunda é permitir que pudesse ser ouvida a
intenção que o texto teve em sua origem; e a terceira função da exegese é verificar em que
sentido opções éticas e doutrinais. (WEGNER, 2009).
Os cinco maridos não são homens humanos, mas são os povos das terras distantes,
são as cinco nações que invadiram a nação de Israel. Nações que por doze séculos
roubaram, abusaram sexualmente das mulheres, mataram a espada homens crianças e
mulheres. O texto de 2Rs 17,24, ilumina a questão. Povos que invadiram a Samaria e a
sitiaram tomando-a à força e alterando-a em seus valores. Babilônia, (primeiro marido)
Cuta (segundo marido) Ava (terceiro marido) Hamate (quarto marido) e Sefar (quinto
marido). O redator do texto não poderia expressar de maneira melhor para simbolizar o
abuso que Samaria sofreu fazendo-a passar por uma mulher.
Cada nação edificou para si colocando os seus deuses nos montes que os samaritanos
tinham como sagrado. Assim procedeu cada povo adorando segundo a sua cultura. Foi
assim formado o sincretismo religioso em Samaria, até os tempos de Jesus. Eles temiam a
Yahweh, mas nomeavam qualquer religioso que se prontificasse a servir como sacerdotes
nos altares idólatras” (2Rs 17,28-32). Como ensinar sobre a unidade do amor de Deus?
Então, Jesus retoma o diálogo e explicando à mulher que “Mulher, podes crer-me, está
próxima a hora quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai”. Durante a
conversa a mulher demonstra certa dúvida ao afirmar: “Nossos pais adoravam sobre este
monte, mas vós, judeus, dizeis que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. E Jesus lhe
responde: “Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a
salvação vem dos judeus. Mas a hora está chegando, e de fato chegou, em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai, em espírito e em verdade; pois são esses que o Pai
procura para seus adoradores. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o
adorem em espírito e em verdade”. A prioridade de Jesus é restaurar o Reino de Deus na
Terra. Instituir o Reino de Deus é uma ação humana, e feita de forma individual de um em
um, nada massificado ou em produção de série. A implantação do Reino de Deus por sua
voz e participação vem acompanhada por um ensino que tem como propósito produzir a
cura física, mental e espiritual e uma didática com uma metodologia. No Antigo
Testamento (Is 44,3; Ez 36,25), temos passagens que nos citam o Espírito de Deus sendo
derramado como água para ungir o povo na implantação do Reino de Deus capacitando o
povo a falar em seu nome.
2 Fee Stuart (1984, p.245) in Lopes (2004, p.189).
MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 42-50, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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CONSIDERAÇÕES GERAIS
No desafio de um estudo sobre a narrativa da mulher samaritana o artigo optou por
pesquisas realizadas por biblistas feministas porque para esse grupo de pesquisadoras é
fundamental interpretar a Bíblia a partir de uma visão que respeite as relações de gênero
dentro do que ele representa na história e no tempo, e para isso o auxílio da exegese e o
método histórico-crítico são imprescindíveis.
Os samaritanos eram um povo de religião heterodoxa que desprezada pelos judeus
acolhem os ensinos de Jesus destituindo todo outro tipo: templo, sincretismo religioso,
culto, simbolismos e substituindo a relação com o Espírito. E é sobre isso que Jesus
conversa com os discípulos, sobre a comida, a colheita abundante e sobre a dos
rejeitados e excluídos samaritanos.
Nas narrativas bíblicas é comum encontrar um perfil androcêntrico Por outro lado, as
interpretações hermenêuticas dos primeiros pais da igreja dessas narrativas viam a figura
feminina de maneira estereotipada, evidenciando estruturas que relegavam as mulheres a
uma posição de segundo plano como aquela que engana, como “Eva” no livro de Gênesis
(Gn 3,1-7) adultera a palavra sendo ela a pecadora, ou como as filhas de Ló que embriagam
o pai no intuito de procriarem (Gn 19,30-35) ou o exemplo de Maria Madalena (Lc 8,1-2)
muitos outros exemplos poderiam ser citados. Androcentrismo que apresentavam as
mulheres por meio de narrativas que as concebiam como invisíveis, insignificantes e
marginalizadas, Entretanto, em Jesus as mulheres silenciadas ganharam vozes e deixaram
suas mensagens de maneira por vezes metaforizadas como no caso da mulher samaritana.
Narrativa que discute o poder majoritário de forças invasoras sobre uma nação fraca.
Profundamente ligado à história social e cultural de cujas perspectivas tem se
apropriado e ao mesmo tempo para cujas discussões teórico-metodológicas tem
grandemente contribuído, conforme admitem historiadores e cientistas sociais. Talvez
porque a violência contra a mulher seja sustentada por estruturas multiplicadoras de
controle opressoras e desumanas.
A implicação nessa associação de gênero à herança das culturas judaico-cristão
europeias, na leitura dos textos, cultura que centralizam na sociedade o antropocêntrico e
a visão dicotômica e biológica de homens e mulheres como seres socialmente diferentes no
poder de decisão. Nesse sentido, a mulher samaritana cuja voz soa através da história e dos
séculos como um grito que ecoa “eu sou livre” carrega na sua bagagem a força libertadora
do cristianismo de Jesus, que relembra que o Deus encarnado acolheu o fraco incluindo-o
como igual, conversou e dialogou com “ela” ouvindo-a e instruindo-a não o com os
homens, mas com ela. Durante muito tempo as mulheres não foram consideradas sujeitos
da história e, portanto, estiveram excluídas das narrativas dos historiadores ou quando
usadas por essa era de uma forma pejorativa e segregativa. livro do profeta Oseias é um
desses exemplos. Felizmente o panorama da historiografia por Jesus parece ter mudado.
Jesus, igual aos redatores do Antigo Testamento metaforiza simbolicamente com a mulher,
mas diferentemente desses ele restaura a dignidade simbólica do gênero. Para alguns
estudiosos trata-se de uma metáfora. Jesus queria tratar de um assunto político religioso
que se arrastava por sete séculos de história dos samaritanos e essa miscigenação racial
separava os judeus dos samaritanos de uma maneira segregativa. Jesus queria resolver essa
peleja e diplomaticamente ele toma uma mulher como exemplo e a usa como um símbolo
para o seu ensino.
A mulher não representa o gênero feminino, mas sim a nação de Samaria. Jesus não
estava falando do ser humano de gênero feminino, mas está explicando sobre o
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O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
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comportamento das muitas alianças erradas feitas pelo povo de Samaria. Jesus o único que
poderia restaurar Samaria realiza esse feito para que mais tarde ao dizer: Indo, por todo o
mundo ensinando os a guardar tudo o que vos tenho dito a começar por Jerusalém, Judéia
Samaria e confins da Terra. Se Samaria não houvesse sido restaurada por Jesus o seu
método restaurativo e inclusivo de conviver com o diferente nunca teria chegado até nós.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
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MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as questões sobre nero
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 42-50, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
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International License.
VI O SENHOR!
A dimensão feminina do relato da
primeira aparição de Jesus ressuscitado
no Quarto Evangelho e um Papa que
acolhe o testemunho das mulheres
I SAW THE LORD!
The feminine dimension of the account of
the rst apparition of the risen Jesus in the
Fourth Gospel and a Pope who welcomes
womens testimony
Luísa de Lucas*
Marcela Machado Vianna Torres**
Resumo: Este artigo estuda o texto de Jo 20,1-2.11-18 motivado pelos atuais
debates sobre o protagonismo feminino na Igreja e na sociedade. É
pertinente repensar o papel das mulheres nestas esferas a partir dos relatos
evangélicos, em especial, Maria Madalena reconhecida pela Tradição como
“Apóstola dos Apóstolos”. À luz da autoridade que Jesus confere a ela, em
2016, ano da Misericórdia, o Papa Francisco elevou a celebração de Santa
Maria Madalena, no dia 22 de julho, ao nível de festa no Missal Romano.
Este constitui um gesto simbólico que ilustra o debate sobre a importância
fundamental da mulher na vida sócio eclesial.
Palavras-chave: Maria Madalena. Quarto Evangelho. Papa Francisco.
Protagonismo feminino na Igreja.
Abstract: This article studies the text of Jo 20,1-2.11-18 motivated by the
current debates about the feminine frontline role in the Catholic Church
and in society. It is pertinent to rethink the women’s role in both these
spheres from the Gospel’s accounts, particularly, the one of Mary
Magdalene, recognized by Tradition as “Apostle of the Apostles”. In the
light of the authority that Jesus confers on her, Pope Francis raised, on July
22nd, 2016 the Year of Mercy, the celebration of Saint Mary Magdalene
to the level of a feast in the Roman Missal. This symbolic gesture illustrates
the debate on the fundamental importance of women in socio-ecclesial life.
Keywords: Mary Magdalene. Fourth Gospel. Pope Francis. Female
leadership in the Church.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 51-66, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.190
*
Professora no Instituto de Teologia e
Pastoral (Itepa) na área da Mariologia.
Doutoranda em teologia na PUCRS (Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Possui Mestrado em Teologia Sistemática pela
PUCRS e graduação em Pedagogia pela
Universidade Paulista (2005) Religiosa da
Congregação das Irmãs de Notre Dame. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase
em Educação Musical, Ensino Religioso e
Orientação Vocacional, com aprofundamento
principalmente nos seguintes temas: Vida
Religiosa Consagrada, Pluralismo Religioso,
Santidade, Mulher, Juventudes e Cristianismo.
Email: marialuisa@notredame.org.br
https://orcid.org/0000-0003-1629-6814
** Bacharel em Direito pela Universidade
Cândido Mendes (RJ). Bacharelanda em
Teologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Mestranda em
Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Membro do Grupo de Pesquisa de Análise
Retórica Bíblica Semítica, constante no
Diretório do CNPq e da Rede de Teólogas
Brasileiras (RBT).
Email: marcelamvtorres@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-1922-3613
Recebido em 26/07/2023
Aprovado em 10/10/2023
52
INTRODUÇÃO
O presente artigo foi realizado com base em pesquisa bibliográfica. Este se inicia
com a tradução do texto grego de Jo 20,1-2.11-18 para o português, cuja temática verte
sobre Maria Madalena e sua visita ao sepulcro e depois seu encontro com o Ressuscitado.
O Quarto Evangelho segue uma tradição independente dos sinóticos. Maria
Madalena aparece em todos os relatos pascais, porém no Quarto Evangelho, ela está em
relevo. Ela é apresentada
por João no final de seu Evangelho, em momentos decisivos da
missão de Jesus: na cruz (Jo 19,25-27) e na ressurreição (Jo 20,1-2.11-18).
Em seguida, comenta-se o contexto anterior próximo, formado de duas narrativas, e
o contexto posterior próximo. O primeiro contexto anterior próximo, Jo 19,38-42,
prepara o relato da aparição de Jesus por meio do tema do cuidado com o corpo, no qual,
se desenvolvem a narrativa sobre a retirada do corpo de Jesus da cruz e a preparação do
mesmo para o sepultamento. O segundo contexto anterior próximo, Jo 20,3-10, relata a
ida de Pedro e do discípulo amado ao sepulcro após receberem a notícia por parte de Maria
Madalena sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. O contexto posterior próximo é a
narrativa da aparição do Ressuscitado à comunidade dos discípulos, sem a presença de
Tomé (Jo 20,19-23), ocorrido na tarde do primeiro dia da semana.
Em seguida, analisa-se os sentimentos e atitudes de Maria Madalena no relato de Jo
20,1-2.11-18 e a temática do corpo de Jesus. Posteriormente, estuda-se a intertextualidade
ad intra e na sequência, a intertextualidade ad extra ao texto de Jo 20,1-2.11-18.
Depois de abordar literariamente Maria Madalena e os aspectos narrativos do texto,
parte-se para um breve apanhado sobre
o desenvolvimento do tema do protagonismo
feminino no Pontificado
do Papa Francisco, que completou 10 anos em fevereiro de 2023.
A conclusão do artigo versa sobre a maneira pela qual Maria Madalena interpela e
influencia as mulheres junto à Igreja do século XXI.
Tradução e segmentação
1 O autor coloca a primeira pessoa do plural nos lábios de Maria Madalena “não sabemos”. Anteriormente ele descreve
que ela foi sozinha ao sepulcro no v.1a.
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
“Vi o Senhor!”: a dimensão feminina do relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado no Quarto Evangelho [....]
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 51-66, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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2 O verbo se encontra no particípio perfeito, a tradução na língua de chegada “estava de pé” mantém a ideia de algo que
aconteceu e continua acontecendo.
3 (LN 15.201) βαστάζω:Mesmo campo semântico e tradução para “levar”, porém trata-se de remover algo relativamente
pesado.
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
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2
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1 MARIA MADALENA NO QUARTO EVANGELHO
Maria Madalena é uma personagem bíblica e histórica, frequentemente confundida
com outras personagens, especialmente as outras Marias, nos Evangelhos. Maria de
Betânia e Maria Madalena foram confundidas e associadas à mulher que ungiu Jesus.
Maria de Betânia é mencionada em João 12,1-8, por isso ela foi associada à mulher que
ungiu Jesus nos Evangelhos, cujo nome não é mencionado. Maria de Magdala e Maria de
Betânia foram interpretadas por muitos como a mesma pessoa, apesar destes marcadores
geográficos distintos em seus nomes.
O Papa Gregório Magno proclamou em um sermão no ano de 591 d.C.: “Aquela que
Lucas chama de mulher pecadora, a quem João chama de Maria [de Betânia], acreditamos
ser Maria, da qual Marcos diz que foram expulsos sete demônios”. O Papa condensou três
personagens distintas, cujos nomes eram Maria e daí surgiu a confusão sobre a figura de
Maria Madalena. Esta exegese desatenta do Papa Gregório praticamente se tornou doutrina
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
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4
5
4 Irmãos está relacionado aos crentes, os discípulos (μαθηταῖς) presente no v. 18b.
5 O nome “Μαριάμ/ Mariamaparece 10 vezes no Evangelho de João a partir do capítulo 11 até o capítulo 20. O nome
“Μαριὰμ Μαγδαληνὴ/ Mariam de Mágdalaaparece somente em 20,18. O nome Μαρια/ Maria” aparece 4 vezes
no quarto Evangelho, sendo que duas ocorrências grafado como Μαρία ἡ Μαγδαληνὴ/ Maria de Mágdala(Jo 19,25;
20,1). As outras duas ocorrências são localizadas Jo 19,25, Μαρία τοῦ Κλωπᾶ/ Maria de Cleófas”. Em 20,11 o nome
aparece grafado como “Μαρία/ Maria” referindo-se à Maria Madalena.
55
6 Samuel PEREZ-MILLOS questiona se três ou quatro mulheres aos pés da cruz. São citadas sua mãe, a irmã de sua
mãe, as outras duas são Maria, a esposa de Cleofas, e Maria Madalena. Porém alguns autores entendem que são
apenas três, desta forma, a irmã de sua mãe tinha que ser Maria, a esposa de Cleofas (19,25). Perez-Millos argumenta
que seria difícil duas irmãs possuírem o mesmo nome.
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
“Vi o Senhor!”: a dimensão feminina do relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado no Quarto Evangelho [....]
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e por consequência, Maria Madalena foi confundida com a pecadora que ungiu os pés de
Jesus narrada em Lc 7,36-50 e referida implicitamente como Maria de Betânia, irmã de
Lázaro e Marta (Jo 12,1-3) (CLARK-SOLES, 2013, p.626). Ao longo dos séculos, várias
interpretações surgiram a respeito de sua identidade e história. Ela é reconhecida como
uma discípula de Jesus e testemunha de eventos cruciais em sua vida, morte e ressurreição
.
A primeira menção à Maria Madalena no Quarto Evangelho ocorre no final do
mesmo, quando ela e as mulheres encontram-se de pé, próximas à cruz. Ela está junto com
Maria, a mãe de Jesus, Maria de Cléofas, irmã de sua mãe, e o discípulo amado (19,25)
(PÉREZ-MILLOS, 2016, p.1706)
6
.
Depois ela é citada em Jo 20,1.2.11-18. No v.1, ela vai sozinha ao sepulcro no primeiro
dia da semana, de madrugada. Ao chegar no local, depara-se com a pedra do sepulcro
rolada. No v.2 sai em disparada para comunicar este fato a Pedro e ao discípulo amado.
No v.11, ela é novamente citada, como protagonista da narrativa da aparição do
Ressuscitado. Não explicação de onde e nem por que voltou ao sepulcro, mas ela é
posicionada no mesmo local do v.1. A última menção à Maria Madalena no Evangelho de
João se dá no v.18, em que ela é comissionada por Jesus para ir ao encontro dos discípulos.
No Evangelho de João, Maria Madalena foi testemunha ocular da paixão, morte e
ressurreição de Jesus. Enquanto nos Evangelhos, a experiência com o Ressuscitado é
vivida primeiramente pelas mulheres e o anúncio da Boa Nova foi confiado primeiro a elas
(Mt 28,7-8.10; Mc 16,10; Lc 24, 9-10; Jo 20,18), no Quarto Evangelho ela está em relevo, é
a primeira testemunha do Ressuscitado, a escolhida por Jesus para anunciar aos discípulos
sobre a sua ressurreição. Deste modo, percebe-se que João tende a personalizar os
encontros de Jesus com seus interlocutores: Nicodemos (Jo 3,1-36); Samaritana (Jo 4,1-42);
Mulher adúltera (Jo 7,53–8,11); Maria Madalena (Jo 20,1.2.11-18) e, também destaca vários
personagens femininos (Maria, a Samaritana (Jo 4,1-27); as irmãs de Lázaro Marta (Jo
11,1.5.19.20.21.24.30.39; Lc 12.2) e Maria [de Betânia] (Jo 11,2.19.20.28.31.32.45; 12.3); a
mulher adúltera (Jo 7,53–8,11); Maria Madalena e as mulheres aos pés da cruz (Jo 19,25).
1.1 Contexto anterior próximo
O contexto anterior próximo é formado de duas narrativas distintas e interligadas
pelo tema do corpo. A primeira (19,38-42) relata que José de Arimateia pediu autorização
a Pilatos para retirar o corpo de Jesus da cruz. O corpo de Jesus foi envolvido em faixas de
linho e embalsamado com perfumes trazidos por Nicodemos (19,41). Ele e José de
Arimateia prepararam o corpo conforme o costume judaico (19,40). Jesus havia sido
crucificado e sepultado num jardim, num mulo novo (19,41). Era dia de preparação dos
judeus para o grande sábado, isto é, o shabbat solene porque coincidia com a Páscoa judaica
(19,31). Os personagens desta narrativa são: o narrador, Pilatos, José de Arimateia,
Nicodemos e o corpo de Jesus. O local é o jardim e o tema é o sepultamento do corpo
conforme o costume dos judeus.
O segundo contexto anterior próximo narra a ida de Pedro e do discípulo amado ao
sepulcro após receberem a notícia por parte de Maria Madalena sobre o desaparecimento
do corpo de Jesus (20,3-10). Eles vão correndo para o local do sepultamento, sendo que o
amado chega antes de Pedro. Ele o espera do lado de fora, inclina-se para olhar dentro do
sepulcro e vê as faixas de linho no chão, mas não entra. Pedro então entra no sepulcro e
56
observa as faixas de linho no chão e o pano que tinha coberto a cabeça de Jesus enrolado
num lugar à parte. O outro discípulo, o amado, entrou, viu e creu. Eles voltam para casa.
Esta narrativa se desenvolve a partir da iniciativa de Maria Madalena. Os personagens do
contexto imediatamente próximo dos vv.1-2 são o narrador, Pedro e o discípulo amado. O
local é o sepulcro e o tema é a procura do corpo de Jesus, a visão dos panos e a crença do
discípulo amado.
1.2 Contexto posterior próximo
O contexto posterior próximo é a narrativa da aparição do Ressuscitado sem a
presença de Tomé (Jo 20,19-23). Na tarde daquele dia, o primeiro dia da semana, os
discípulos encontravam-se fechados num lugar com medo dos judeus e Jesus coloca-se no
meio deles, oferecendo a paz como dom, mostra as mãos e o lado para os discípulos que se
alegraram em vê-lo. Jesus a paz mais uma vez, envia os discípulos e sopra sobre eles o
Espírito Santo, dando-lhes o poder de perdoar os pecados, bem como o de retê-los.
No sentido narrativo, parece que a notícia de Maria Madalena (v.18c) não teve
repercussão entre os discípulos que continuavam com medo no v.19. Nota-se, portanto,
que não continuidade entre o testemunho de Maria Madalena e o sentimento dos
discípulos no v.19. Entretanto, o tema da aparição do Ressuscitado é continuado.
2 MARIA MADALENA: SEUS SENTIMENTOS E ATITUDES NO RELATO DA PRIMEIRA
APARIÇÃO DE JESUS RESSUSCITADO
No v.1, Maria Madalena vai sozinha ao sepulcro no primeiro dia da semana, de
madrugada. Ela teve a iniciativa de ir para onde Jesus havia sido sepultado. O texto não diz
o motivo da ida ao sepulcro, mas pode-se imaginar que tenha ido visitar seu amado,
chorar sua morte ou mesmo estar perto do seu corpo, mesmo que do lado de fora (v.1). É
difícil se separar de quem se ama. Ao chegar no local, depara-se com a pedra do sepulcro
rolada e sai em disparada para comunicar este fato a Pedro e ao discípulo amado: “Levaram
o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram” (v.2). Maria usa a primeira pessoa
do plural, entretanto, ela é apresentada sozinha nos vv.1-2. Os discípulos acreditam nela,
pois correm para o sepulcro. Ela torna a aparecer no texto no v.11 sem explicação de onde
ela voltou, mas é posicionada no mesmo local do v.1: ἔξω/forado sepulcro. O narrador
não diz porque ela se encontra ali após a visita dos dois discípulos
7
. A mesma raiz verbal é
utilizada no v.11 εἱστήκει/estivera de da mesma forma que esteve com as outras
mulheres na cruz em Jo 19,25 “εἱστήκεισαν/estiveram
8
.
A narrativa joanina neste ponto integra história e teologia em um relato no qual a
ação divina é apresentada aos leitores/ouvintes do relato, no entanto, o é claro se esta
mesma percepção é tida pelos personagens. Ela chora, abaixa-se para olhar dentro do
sepulcro e dois anjos de branco ladeando o local onde o corpo de Jesus havia sido
colocado. Um à cabeceira e outro aos pés, sinalizando que a presença divina testemunha
que o corpo de Jesus ali jazera. O ato de inclinar-se para olhar dentro do sepulcro pode
indicar ao mesmo tempo reverência por estar diante do sagrado, ou, que ficava num local
baixo, como afirma Brodie, próprio da sepultura dos pobres (BRODIE, 1993, p.561).
7 Existe um hiato narrativo no qual não se explica o que aconteceu com Maria Madalena após a visita dos discípulos ao
sepulcro. Não se diz, por exemplo, se ela segue os discípulos.
8 Εἱστήκεισαν δὲ παρὰ τῷ σταυρῷ τοῦ Ἰησοῦ ἡ μήτηρ αὐτοῦ καὶ ἡ ἀδελφὴ τῆς μητρὸς αὐτοῦ, Μαρία ἡ τοῦ Κλωπᾶ
καὶ Μαρία ἡ Μαγδαληνή (Jo 19,25).
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
“Vi o Senhor!”: a dimensão feminina do relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado no Quarto Evangelho [....]
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57
Maria Madalena é fiel a Jesus, ela não sai de perto do sepulcro, ao contrário dos
discípulos que voltam para casa, como afirma Clark-Soles, ela permanece (CLARK-
SOLES, 2013, p.636). Ela está angustiada, triste, chora porque descobre que o corpo de
Jesus desaparecera. Sua angústia é tamanha que nem mesmo a visão de seres celestiais no
sepulcro desviam o foco de sua preocupação ou mesmo ela está tão absorta em sua dor e
tristeza que não os percebe como anjos
9
.
Maria Madalena é uma personagem fragilizada pela dor, mas forte pelo amor que a
impele a buscar o corpo do Senhor. O texto grego enfatiza o verbo chorar, da mesma
forma que insiste em pontuar suas atitudes de protagonista diante de uma situação
desafiadora. Em determinadas situações, a dor pode despertar forças desconhecidas
naquele que sofre.
2.1 Maria Madalena e o corpo de Jesus
uma continuidade do tema do zelo com o corpo de Jesus que se inicia na
preparação e sepultamento realizados por Nicodemos e José de Arimateia (Jo 19,38-42).
Em Jo 20,1-2.11-15, Maria Madalena vai ao sepulcro por causa do seu amor por Jesus. A
sua motivação não é explicitada, porém ao atestar a pedra rolada e a ausência do corpo, a
motivação pela procura deste se torna prioridade.
No que tange às obscuridades encontradas no relato sobre o sepulcro vazio, García
(GARCÍA, 2015, p.57) destaca que no v.1a o narrador diz que Maria Madalena foi ao
sepulcro de madrugada, no primeiro dia da semana (v.1a) e a pedra rolada (v.1b), mas
não diz que ela olhou para dentro do sepulcro ou que entrou nele. No v.2a ela corre e vai a
Pedro e o amado (2b) contar que removeram o Senhor do sepulcro (2cd). O autor chama a
atenção de que se ela não havia olhado dentro do sepulcro, portanto, soa estranho que
aos discípulos e afirme categoricamente sobre o desaparecimento do corpo de Jesus. As
palavras de Maria “não sabemos” (2e) “onde o puseram” (v.2f) sinalizam incongruência
entre esta conjugação de terceira pessoa do plural e todo o restante do relato que Maria
fala em primeira pessoa do singular.
A temática do corpo de Jesus nessas passagens enfatiza tanto sua humanidade quanto
sua ressurreição. O corpo de Jesus foi crucificado e sofreu, mas agora ele está ausente do
túmulo, indicando sua vitória sobre a morte. A ressurreição de Jesus é uma afirmação
poderosa de sua divindade e do cumprimento de sua missão redentora. Por sua vez, a
busca de Maria Madalena pelo corpo se faz de duas maneiras narrativas que se
desenvolvem da mesma forma na qual o Ressuscitado é revelado. Em um primeiro
momento, Maria busca um cadáver, deseja manter o vínculo físico, com o Jesus histórico,
seu Mestre, a quem seguiu, viveu tantas experiências e aprendizados, como último
elemento que os vincula. Em um segundo momento, ela encontra aquilo que busca, mas
não um corpo morto e sim, o Vivente. Uma nova perspectiva de vida se abre na percepção
de Maria Madalena que entende que Jesus vive, além desta história, mas continua presente
na força de seus atos e palavras dos quais ela é agora portadora.
9
O narrador mostra aos leitores que a angeologia do relato evidencia um acontecimento sobrenatural, no qual a
personagem Maria Madalena não necessariamente percebe ou compreende. Os motivos podem ser a insipiência de
sua fé pascal ou, seu estado emocional diante da cena, ou ainda uma estratégia retórica de preparação para a
revelação do Ressuscitado.
DE LUCAS, Luísa; TORRES, Marcela Machado Vianna
“Vi o Senhor!”: a dimensão feminina do relato da primeira aparição de Jesus ressuscitado no Quarto Evangelho [....]
Revista Teopráxis,
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2.2 Intertextualidade ad intra
Como dito, o Evangelho de João apresenta diversas personagens femininas que têm
um encontro pessoal com Jesus. Algumas narrativas nas quais elas são protagonistas, se
assemelham narrativamente e tematicamente com Jo 20,1-2.11-18.
Um primeiro relato narra o encontro de Jesus com uma mulher samaritana no poço
de Jacó, onde ele conversa a sós com ela (Jo 4,1-42). O diálogo se inicia em torno do
assunto da água e do poço e se desenvolve no debate sobre qual seria a verdadeira cidade
de culto, Samaria ou Jerusalém. A mulher se fixa em torno dos conflitos históricos, mas
Jesus lhe revela que quem bebe da água da vida não tem mais sede. Depois, a conversa
converge para a questão esponsal, na qual ela o reconhece como um profeta. Jesus então
diz a ela que há um novo jeito de adorar a Deus, independente do lugar em que o santuário
se encontra, isto é, em Espírito e Verdade. Em seguida, ela indaga sobre a questão
messiânica e então, Jesus se revela como o Messias. Neste ponto da narrativa, a mulher sai
para anunciar, esquecendo o cântaro cheio da água. Muitos creram nela em sua aldeia (Jo
4,39), indicando que houve uma boa acolhida pelos samaritanos, elemento que se contrasta
com o ambiente hostil de Jerusalém (MAZZAROLLO, 2015, p.123).
Percebe-se que no sentido de estrutura literária, alguns elementos importantes
transparecem nesta narrativa assim como no relato da aparição do Ressuscitado à Maria
Madalena: Jesus encontra-se dialogando a sós com uma mulher, um ensinamento, uma
revelação, um anúncio e um elemento de intimidade.
Da mesma forma, como na narrativa da samaritana, percebe-se a presença de
elementos comuns entre o episódio da reanimação de Lázaro e da aparição de Jesus à
Maria Madalena. O contexto é de morte e vida em ambas as narrativas. Primeiro, o tema
do corpo de Lázaro que morreu e foi sepultado e o corpo de Jesus que desaparecera do
sepulcro; assim como Maria Madalena vai ao sepulcro e toma a iniciativa de achar o corpo
de Jesus, Marta e Maria têm a iniciativa de mandar um recado a Jesus sobre a doença de
seu irmão (Jo 11,3); as emoções de Maria Madalena são evidenciadas da mesma maneira
que os sentimentos de Jesus, como o amor que ele sente por Lázaro (Jo 11,3), por Marta (Jo
11,5), a reação comovida ao choro de Maria (Jo 11,33), o seu choro (Jo 11,35) e a
cumplicidade diante da morte de seu amado amigo (Jo 11,36). O diálogo de Jesus com
Marta (Jo 11,21-27) desencadeia num ensinamento de que ele é a ressurreição e a vida (Jo
11,25-26), o que parece ser uma prolepse do que ocorrerá no encontro do Ressuscitado
com Maria Madalena. Assim como Marta professa sua no Messias (Jo 11,27), Maria
Madalena reconhece Jesus como Senhor e o anuncia (v.18). semelhança na postura de
Maria que se prostrou aos pés de Jesus (Jo 11,32) e Maria Madalena que se inclinou para
olhar dentro do sepulcro (v.11) e na visão de alguns exegetas, Jesus teria evitado seu toque
porque ela teria se jogado aos seus pés, tentando tocá-lo (v.17a). Maria e Jesus choram por
Lázaro (Jo 11,33.35) e Maria Madalena chora por Jesus (v.1.11). Ambas narrativas se
encontram próximas ao contexto pascal. No fim predomina a vida e não a morte.
As narrativas do encontro de Jesus com a samaritana e da reanimação de Lázaro
desencadeiam à adesão da comunidade, o anúncio de Maria Madalena aos “irmãos”
parece não ter repercussão direta na narrativa, uma vez que nada é dito sobre isto nos
episódios seguintes. Dada a importância do relato da aparição de Jesus à Maria Madalena
parece que o objetivo principal está conectado mais ao ouvinte-leitor do que à narrativa
em si mesma, pois ela não tem repercussão posterior.
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2.3 Interxtualidade ad extra
A busca de Maria Madalena pelo Senhor Jesus (20,1.11ss) é comparada por alguns
estudiosos à procura do amado pela amada em Ct 3,1-4, que retoma o tema nupcial do
livro. A voz da amada responde à do amado no jardim (Jo 20,16). Segundo Mateos e
Barreto, Maria Madalena, no seu papel de esposa, representaria a comunidade da nova
aliança, que começa na cruz (Jo 20,15) (MATEOS; BARRETO, 1989, p.35).
Metaforicamente, a dimensão do diálogo entre o amado e a amada em Cântico dos
Cânticos pode ser relida, como um pano de fundo, no diálogo estabelecido entre Maria e
Jesus no jardim. Maria escuta a voz de Jesus e o confunde com o jardineiro (Jo 20,15), no
entanto, o reconhece quando ele a chama por seu nome (Jo 20,16). Nesta comparação, o
amado diz “Maria” (Jo 20,16a) e a amada responde Rabouni(Jo 20,16c) com alegria (Ct
3,29), sendo este um sinal da restauração da vida/união anunciada.
Segundo Mateos e Barreto, Jesus e Maria Madalena representariam o casal
primordial que início à uma nova humanidade. Ao reconhecer a voz de Jesus, Maria é
impelida a segui-lo (Jo 20,16a), ela chama-o de “Meu Mestre” e pensa que este primeiro
encontro significaria a união definitiva, a etapa final. No entanto, com uma catequese
dirigida a ela, mostra que seu lugar é junto do Pai a partir daquele momento. Jesus a envia
para anunciar a sua mensagem (20,17s) (MATEOS; BARRETO, 1989, p. 200). E ela vai,
como sinal de um recomeço.
Segundo Léon-Dufour, alguns estudiosos relacionam o jardim onde Jesus foi morto
e sepultado (Jo 19,41) ao jardim do Éden (LÉON-DUFOUR, 1998, p. 157). Mazzarollo
amplia ainda mais a conexão com o Éden ao afirmar que ali era um lugar criado com vida e
abundância, um local agradável de se estar; no centro deste jardim havia a árvore da vida,
árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2,9); o pecado entrou no jardim, a vida foi
ameaçada, por causa da desobediência do primeiro casal. Para este autor, a cruz no quarto
Evangelho é o lenho verde plantado no Éden. Este lenho verde é capaz de sustentar novos
ramos que produzem muitos frutos (Jo 15,1-17). O Pai, através do Filho, restaurou a
criação, fazendo brotar outra vez a vida (MAZZAROLLO, 2015, p.302.306).
Ao relacionar a narrativa de Maria Madalena e o encontro com o Ressuscitado,
percebem-se ecos da tradição veterotestamentária que podem ter sido apresentados como
pano de fundo para o desenvolvimento da narrativa. De modo geral, as imagens dialogam
com a temática do amor, da busca e do encontro. A dificuldade de Maria Madalena era
distinguir a morte da vida. Ela buscava um corpo, mas encontra o Ressuscitado.
3 O PAPA FRANCISCO E O PROTAGONISMO FEMININO NA IGREJA DO SÉCULO XXI
Com o Concílio Vaticano II (1961-1965), a Igreja pretendeu entrar numa nova fase
de diálogo com a sociedade moderna. A partir das reformas do Concílio, houve uma
redescoberta de Maria Madalena, que, por muitos séculos, foi celebrada na liturgia da
Igreja como pecadora arrependida por causa da interpretação equivocada do Papa
Gregório Magno. Ao longo da história foi sendo criada uma personagem estranha à
seguidora fiel, corajosa e amorosa de Jesus (MAIA, 2023, p.15).
Em 2019, o Papa Francisco elevou a celebração, memória de Santa Maria Madalena ao
nível de festa no Missal Romano, ressaltando sua importância como primeira testemunha da
ressurreição e o papel das mulheres na evangelização. A decisão foi tomada durante o Jubileu
da Misericórdia, no ano de 2016, e destaca o amor de Maria Madalena por Cristo. Um novo
prefácio foi elaborado e inserido no missal romano, próprio para a festa em que Maria
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Madalena recebeu o título de Apóstola dos apóstolos, que Santo Tomás de Aquino (1225-
1274) havia aplicado a ela MAIA, 2023, p.15). A festa promoveu uma reflexão mais
profunda sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a misericórdia divina. A data
da celebração continua sendo no dia 22 de julho (ANDREATTA, ROCCA, 2019).
Segundo a teóloga Elizabeth Johnson, ao elevar o status do dia de Maria Madalena
para uma festa importante, o Papa Francisco destaca sua relevância como testemunha
primordial da Ressurreição e enfatiza como sua história foi subvertida e seu papel de
liderança injustamente retirado. Corrigir essa injustiça permite que Maria Madalena seja
vista como um modelo de seguidora fiel, líder forte e independente na Igreja primitiva.
Seu protagonismo desafia a Igreja a permitir a participação igualitária das mulheres como
discípulas no século XXI (JOHNSON, 2016).
Nos seus 10 anos de pontificado, o Papa Francisco tem enfatizado o papel das
mulheres na Igreja e na sociedade e tem se pronunciado em favor da valorização, inclusão e
participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida eclesial. Ele tem abordado o
papel das mulheres na Igreja em diversas ocasiões, tanto em seus discursos blicos como
em documentos oficiais. Francisco também tem feito críticas à exploração e à subordinação
das mulheres, defendendo o respeito por sua dignidade e serviço em todos os níveis. Ele
vem pedindo a oferta de novos espaços às mulheres na Igreja e na sociedade, promovendo
sua participação e envolvimento em responsabilidades pastorais. O Papa destaca que a
mulher é portadora de harmonia na Igreja e no mundo, e ressalta a importância do
testemunho das mulheres na transmissão da fé. Sua mensagem enfatiza a valorização do
papel das mulheres e a busca pela igualdade e justiça (GISOTTI; SILVONEI, 2018).
Na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium/Alegria do Evangelho”, de 2013, o Papa
Francisco reconhece a contribuição indispensável das mulheres na sociedade, destacando
sua sensibilidade, intuição e capacidades peculiares. Ele ressalta a importância da presença
feminina em todos os âmbitos, incluindo o trabalho e as decisões importantes na Igreja e na
sociedade (EG 103). O Papa também expressa preocupação com os maus-tratos e a
desvalorização das mulheres, pedindo defesa de seus direitos. Ele reconhece a necessidade
de ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. No entanto, o
Papa reafirma que o sacerdócio reservado aos homens não está em discussão, mas destaca
que a dignidade e a santidade vêm do batismo, acessível a todos. Ele enfatiza que as funções
não justificam a superioridade, e a autoridade do sacerdócio é um serviço ao povo. O Papa
desafia os pastores e os teólogos a refletirem sobre o possível lugar das mulheres nas
decisões importantes nos diferentes âmbitos da Igreja (EG 104).
No discurso aos participantes na Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, em
7 de fevereiro de 2015, o Papa Francisco destaca a importância de estudar critérios e
modalidades que permitam às mulheres serem plenamente participantes na vida social e
eclesial, sem se sentirem apenas como hóspedes. Ele ressalta a necessidade de superar os
modelos de subordinação e igualdade absoluta, buscando um novo paradigma de
reciprocidade na equivalência e na diferença entre homens e mulheres. Ele destaca a
importância de eliminar a violência e a degradação sofridas pelas mulheres, além de
promover uma presença feminina mais difundida e incisiva nas comunidades e nas
responsabilidades pastorais. Francisco reconhece o papel insubstituível da mulher na
família, enfatizando suas qualidades de delicadeza, sensibilidade e ternura, que contribuem
para a serenidade e harmonia familiar. Ele encoraja a presença eficaz das mulheres em
diferentes esferas públicas, no mundo do trabalho e nas tomadas de decisões importantes,
ao mesmo tempo em que ressalta a importância da família. Ele pede que todas as
instituições, incluindo a comunidade eclesial, garantam a liberdade de escolha para as
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mulheres, para que possam assumir responsabilidades sociais e eclesiais em harmonia com
a vida familiar
(FRANCISCO, 2015).
Na Audiência Geral de 15 de abril de 2015, o Papa Francisco destacou a importância
de ouvir a voz das mulheres e reconhecer sua autoridade tanto na sociedade como na
Igreja. O Pontífice enfatizou a necessidade de compreender profundamente o que as
mulheres podem oferecer à sociedade. Ele encorajou a explorar essa perspectiva com mais
criatividade e audácia (FRANCISCO, 2015).
Na Exortação Apostólica pós Sínodo da Família, “Amoris Laetitia/ Sobre o Amor na
Família”, publicado em 2016, o Papa Francisco discute a família e o papel das mulheres
dentro dela e enfatiza a sua importância como mães e esposas, bem como a necessidade de
sua participação na vida da Igreja. O documento, no parágrafo 54, aborda os direitos das
mulheres e a importância de sua participação no espaço público.
Numa entrevista, a teóloga Ivone Gebara foi questionada sobre sua posição à
reflexão do documento no tange às mulheres. Ela afirma que o uso do termo “mulher” de
maneira abstrata é problemático, pois ignora a diversidade de experiências vividas por
mulheres (AL 54). Além disso, ela aponta para o fato de que a teologia e a ideologia cristã
têm contribuído para essa hierarquia de gênero ao longo da história. O texto da AL 54
(FRANCISCO, 2016, p.49). menciona formas inadequadas de feminismo, mas não oferece
informações sobre as formas adequadas ou o que essas formas pedem do governo da Igreja
(GEBARA, 2016).
No discurso para os membros da União Internacional das Superioras Gerais em
2016, o Papa expressou sua gratidão pela presença e serviço das religiosas na Igreja. Ele as
encorajou promover uma maior participação das mulheres nos Conselhos Pastorais e
Comissões Diocesanas, a fim de ampliar sua contribuição nas tomadas de decisões
(FRANCISCO, 2016).
Em 2017, o Papa enfatizou que ao falar das mulheres, não devemos considerá-las
apenas em termos de funcionalidade. A mulher traz uma riqueza única, algo que os
homens, a criação como um todo não possuem. Explorar a mulher é uma forma de
destruição que vai além de um simples delito (FRANCISCO, 2017).
O Papa Francisco institucionalizou o acesso das mulheres aos ministérios do
leitorado e acolitado na Igreja por meio da Carta Apostólica Spiritus Domini(2020). Ele
modificou o cânon 230 do Código de Direito Canônico para permitir que homens e
mulheres exerçam essas funções de forma estável e com um mandato especial.
Anteriormente, esses ministérios eram reservados apenas para seminaristas durante sua
preparação para o ministério ordenado. Com essa mudança, o Papa abriu oficialmente essas
posições para leigos, tanto homens como mulheres (PERETTI, C.; QUEIROZ, 2021,
p.146).
Na Encíclica “Fratelli Tutti/Todos Irmãos” - Sobre a fraternidade e a amizade social
(2020), Francisco ressalta a necessidade de promover a igualdade de gênero e a participação
das mulheres em todos os níveis da vida social. O Papa reconhece que as mulheres ainda
enfrentam desigualdade, exclusão, abusos e violência e afirma que a igualdade não é
alcançada apenas com palavras, mas requer ações concretas. A Encíclica recebeu críticas por
não incluir vozes femininas nas notas de rodapé e por não mencionar mulheres escritoras,
pensadoras e ativistas como fontes de inspiração. Isso suscitou preocupações sobre a falta de
representatividade, como disse a Irmã Mary John (JOHN, 2021). Apesar disso, o Papa
utiliza uma linguagem inclusiva ao se dirigir aos leitores como “irmãos e irmãs”, mostrando
abertura e inclusão. A escolha do título foi considerada por alguns como discriminatório,
no entanto, foi explicado que a palavra “irmãos” é uma citação exata de São Francisco que
quer entender tanto os irmãos como as irmãs (COLAGRANDE, 2016). Ele reconhece o
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papel e a dignidade das mulheres bem como a sua importância na construção de uma
sociedade mais justa e fraterna. Embora encíclicas anteriores tenham sido direcionadas
principalmente a homens, a Fratelli Tutti busca compensar o título controverso e
reconhecer o papel e a dignidade das mulheres (JOHN, 2021).
O Papa escreveu o prefácio do livro “Mais liderança feminina para um mundo melhor:
o cuidado como motor para a nossa casa comum”, organizado por Anna Maria Tarantola. O
Papa comentou: “este livro fala de mulheres, dos seus talentos, das suas habilidades e
competências, e das desigualdades, violências e preconceitos que ainda caracterizam o
mundo feminino. As questões da mulher são particularmente importantes para mim.”
Francisco enfatizou no prefácio, “é justo que elas possam expressar essas habilidades em
todos os âmbitos, não apenas naquele familiar, e possam ser remuneradas igualmente com
os homens por papéis iguais, compromisso e responsabilidade” (COLLET, 2023).
Em de junho de 2023, o Pontífice teve uma audiência histórica com mulheres
indígenas da Amazônia, representantes da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) e
da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM). Durante o encontro, as mulheres indígenas
compartilharam suas preocupações sobre a situação na Amazônia, incluindo questões
ambientais, direitos indígenas e o papel das mulheres na região. Elas enfatizaram a
importância de dar voz aos territórios indígenas e expressaram sua gratidão pelo apoio do
Papa Francisco (MODINO, 2023).
Entretanto, a teóloga Mary Hunt critica o Papa Francisco afirmando que ele tem uma
compreensão limitada das mulheres e se sente mais confortável lidando com questões
relacionadas a homens gays. Ela questiona se o Papa realmente compreende a situação das
mulheres e argumenta que ele o tem se reunido com lésbicas, famílias lésbicas ou freiras
norte-americanas com problemas no Vaticano. Hunt reconhece algumas melhorias durante
o pontificado de Francisco, mas não uma mudança significativa nas relações de poder
entre o Vaticano e as Congregações Religiosas. Ela critica a visão pontifícia de perceber as
mulheres como dóceis e acredita que isso marginaliza aquelas que não se encaixam nesse
estereótipo, tais como as mulheres migrantes, mães solteiras e mulheres pobres. Ela defende
uma perspectiva feminista que busca igualdade de gênero, raça, salários e preocupações
ambientais. Hunt não apoia a ordenação de mulheres, mas sim um modelo mais horizontal
de liderança nas comunidades de base. Ela destaca a existência de grupos que ordenam
mulheres, mas expressa preocupação com a possibilidade de uma reinvenção do
clericalismo. Hunt sugere a nomeação de mulheres cardeais como um gesto simbólico de
compartilhamento de poder. Ela argumenta que permitir que as mulheres ocupem espaços
de tomada de decisão seria fundamental para abordar os problemas estruturais e morais da
Igreja (MACHADO, 2018).
A teóloga Francilaide Ronsi afirma que o Papa Francisco tem insistido na
necessidade de reflexão e mudança em relação ao papel das mulheres na Igreja. Ele
reconhece a importância da presença feminina e a igual dignidade entre homens e
mulheres. Houve avanços, como a nomeação de mulheres para cargos importantes e a
criação de comissões de estudo. No entanto, ainda é necessário que os apelos do Pontífice
sejam ouvidos e acolhidos em toda a Igreja, promovendo uma maior participação e
valorização das mulheres em todos os âmbitos da vida eclesial e social. O objetivo é que as
mulheres se sintam plenamente integradas e ativas na vida da Igreja e da sociedade
(RONSI, 2020, p.71).
As teólogas Clélia Peretti e Ivoneide Queiroz destacam a importância de oferecer
espaços às mulheres na Igreja, valorizando sua presença e reflexão teológica. Elas
reconhecem que Francisco se esforça em propor mudanças para que as mulheres possam
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assumir responsabilidades sociais e eclesiais. Segundo elas, a ordenação feminina é vista
como um gesto corajoso e inclusivo, mas a mudança mais significativa deve ocorrer na
compreensão e exercício do poder, incorporando valores e formas diferentes. O fazer
teológico feminista é essencial, pois as contribuições das mulheres muitas vezes o
invisibilizadas. As mulheres desempenham papéis importantes o apenas na Igreja, mas
também em movimentos sociais, buscando justiça e igualdade. Sua atuação é fundamental
na construção de um mundo mais justo e fraterno. Segundo as autoras, a Teologia
Feminista surge ao reconhecer o cotidiano como um lugar teológico significativo. Ele é
visto como um espaço onde as contradições da vida podem ser compreendidas e superadas,
desafiando visões dualísticas e dicotômicas (PERETTI; QUEIROZ, 2021, p.146-147).
Para a teóloga Maria Clara Bingemer, o Papa Francisco reconhece a importância de
ampliar a presença e visibilidade das mulheres na Igreja, inclusive em posições de
autoridade e tomada de decisões. Ele valoriza o gênio feminino e reconhece a contribuição
vital das mulheres para a missão da Igreja. A autora comenta que o Papa adota uma postura
acolhedora, buscando a inclusão e a participação das mulheres na comunidade eclesial e
reconhece que o machismo tem sido um obstáculo e adverte contra uma filosofia feminista
que poderia prejudicar a riqueza da diferença entre homens e mulheres. O Papa Francisco
deseja que a Igreja seja uma mãe fecunda que acolhe e cuida da vida, e ressalta a importância
de comportamentos positivos e de uma reflexão teológica mais profunda sobre a mulher na
Igreja. No entanto, a teóloga acredita que de Francisco não se deve esperar mudanças
estruturais que transformem radicalmente a letra da lei da Igreja, mas sim uma mudança de
atitude e perspectiva em relação às mulheres. Ele procura exorcizar a culpabilização e a
suspeita eterna que historicamente recaíram sobre as mulheres em relação ao pecado e à
sexualidade. Deste modo, para a teóloga, Francisco inaugura uma nova era de carinho,
proximidade e colaboração mútua na missão da Igreja. Jesus de Nazaré também tratava as
mulheres com respeito e carinho, e o Papa Francisco promete que a Igreja será um espaço
onde as mulheres possam expressar seu gênio, criatividade e sabedoria no projeto da
construção do Reino de Deus (BINGEMER, 2015, pp.199.203.206-209).
Kate Mc Elwee é diretora-executiva da “Women's Ordination Conference/Conferência
de Ordenação de Mulheres”, um movimento de base que promove ativismo, diálogo e
testemunho de oração para pedir a ordenação de mulheres e igualdade de gênero na Igreja
Católica Romana. Comentando os 10 anos de pontificado de Francisco, ela publicou um
artigo intitulado “A evolução do Papa Francisco sobre as mulheres: algum movimento, mas
mais necessário, na National Catholic Reporter em 07 de março de 2023. Mc Elwee destaca
que o Papa é sinodal e tem mostrado uma liderança que escuta e está aberta a mudanças.
Embora sua abordagem tenha sido criticada por ser obscura, confusa e insatisfatória para
muitas pessoas, ele demonstrou uma capacidade de mudar de ideia e adotar uma liderança
sensível a este tema. Ele tem mostrado um crescente entusiasmo em dar às mulheres papéis
de liderança e tomada de decisão na administração da Igreja. Embora as nomeações de
mulheres tenham sido fragmentadas, mais mulheres estão ocupando posições de liderança
no Vaticano. Quanto ao ministério, Francisco fez mudanças canônicas para permitir maior
envolvimento das mulheres em ministérios dentro da Igreja. No entanto, sua posição em
relação à ordenação de mulheres ao sacerdócio tem sido uma fonte de frustração para
muitos, pois ele tem mantido a posição estabelecida pela Igreja de não permitir a ordenação
de mulheres como padres. Sua compreensão da teologia mariana também tem sido criticada
por reduzir as mulheres a metáforas abstratas e colocá-las em um pedestal, negando sua
plena humanidade. Apesar das críticas, há sinais de progresso e oportunidades crescentes para
que as vozes das mulheres sejam ouvidas sob o papado de Francisco (MC ELWEE, 2023).
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Em suma, o Papa Francisco tem expressado a importância da inclusão e valorização
das mulheres na Igreja, reconhecendo sua contribuição única. Para Francisco Jesus tinha
uma visão muito especial e respeitosa em relação às mulheres. Sua abordagem lançava uma
luz poderosa sobre elas, destacando sua importância e valor. Essa visão iluminava um
caminho que tinha um alcance significativo, mas do qual conhecemos apenas uma pequena
parte até agora. Apesar desses apelos, ainda há desafios a serem enfrentados para alcançar a
plena participação das mulheres na vida eclesial.
CONCLUSÃO
Como a narrativa da aparição de Jesus à Maria Madalena pode nos iluminar na
compreensão do papel das mulheres na Igreja? Maria Madalena viveu no obscurantismo
por muitos séculos. Nem mesmo os equívocos com outras personagens bíblicas que a
“confundiram” com uma prostituta, apagaram a força do seu testemunho “Vi o Senhor!”.
Segundo Elizabeth Johnson, Maria Madalena “é tanto uma discípula (alguém que segue)
quanto umaapóstola(alguém que é enviado). Com base em sua relação com Jesus, sua
liderança em ambos os papéis deu uma contribuição destacada na origem do
cristianismo” (JOHNSON, 2016).
Na lógica aplicada por Elizabeth Johnson, Maria Madalena é modelo feminino na
Igreja primitiva, uma vez que seu apostolado reúne os aspectos essenciais do seguimento
de Jesus. Ela é a primeira enviada por Jesus aos seus discípulos, tornando-se apóstola
daqueles que serão mais tarde enviados, tornando-se assim “Apóstola dos Apóstolos”.
Ela foi a escolhida pelo Senhor para anunciar a Boa Nova. Jesus restaura nela a
dignidade da mulher numa sociedade patriarcal em que seu testemunho não era válido
segundo a Lei Mosaica. Sabendo de sua situação frente à Lei, ela busca duas testemunhas
legalmente válidas para atestarem que o túmulo se encontrava vazio
11
. No entanto, ela é
elevada à qualidade de primeira testemunha da ressurreição, pelo próprio Jesus Ressuscitado.
Deste modo, em Maria Madalena, Jesus valoriza as mulheres e as qualifica para a missão.
Jesus demonstra que as mulheres são dignas para servir a Igreja sem serem subservientes.
Serviço sim, submissão, não, diz o Papa Francisco (GISOTTI; SILVONEI, 2018).
Ao se deparar com a pedra rolada no túmulo, a primeira evidência da Ressurreição,
Maria Madalena vai correndo relatar o desaparecimento do corpo a Pedro, líder da
comunidade dos discípulos, e ao amado, o discípulo ideal. Pedro representa a autoridade, a
instituição, é mais lento. de se admitir que não se pode esperar de Francisco algo que
dependa de toda uma estrutura que traz séculos de bagagem patriarcal. As mudanças
estruturais sempre demoram a acontecer, talvez por isso em Jo 20,4, Pedro seja mais lento
do que o amado para chegar ao túmulo; entretanto, apesar de ser “cabeça dura”, a ele é
confiado o rebanho do Senhor. Assim é a Igreja que Francisco nos mostra e oferece como
proposta de vivência do Reino de Deus, que se inicia neste mundo. A fim de viver esta
tensão escatológica, Francisco propõe uma Igreja em saída, um lugar cheio de pontes que
liguem as pessoas em sua pluralidade. A mudança de perspectiva e atitude com relação às
mulheres, nos revela que Francisco promove comportamentos éticos e evangélicos para o
mundo atual (GEBARA, 2016). de se pensar nas mulheres em toda a sua diversidade,
sem excluir aquelas que não são perfeitas, que o correspondem à mulher valorosa de
Provérbios 31, pois, a exemplo de Jesus, o apostolado se faz de pessoas imperfeitas,
capacitadas pela graça. Que a Igreja seja lugar de acolhimento e credibilidade na capacidade
e dignidade feminina de “ser Igreja”.
11 Segundo Dt 17,6; 19,15, o sistema jurídico de Israel exigia a presença de pelo menos dois homens como testemunhas.
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Maria Madalena nos ensina que, assim como Pedro e o amado, ela é Igreja e tem sua
missão e importância dentro da comunidade. O Quarto Evangelho nos mostra que cada
indivíduo tem sua função e importância no discipulado.
As ideias e atitudes de Francisco mostram seu empenho em dar visibilidade e
participação às mulheres dentro e fora da Igreja. Oxaas sementes plantadas em prol das
mulheres nesses dez anos de pontificado oresçam em liberdade, acolhimento, diálogo,
dignidade, autonomia, reconhecimento, participação, nomeação, administração,
igualdade, respeito e que muito mais aconteça para que a Igreja do século XXI se assemelhe
cada vez mais ao Reino de Deus pregado por Jesus. A festa de Santa Maria Madalena, em
22 de julho, leva toda Igreja a refletir profundamente sobre a dignidade da mulher, a nova
evangelização e a misericórdia divina.
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Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
IMPLICAÇÕES DA SORORIDADE
NA SINODALIDADE
IMPLICATIONS OF SORORITY
IN SYNODALITY
Bárbara P. Bucker*
Resumo: Este artigo explora a interseção da sinodalidade e sororidade na
vida religiosa feminina, destacando a importância de reconhecer as
distintas experiências e perspectivas das mulheres. A reflexão parte da
compreensão de que modos históricos de interpretação ainda permeiam o
inconsciente coletivo, dificultando a legitimidade de vivências específicas
das mulheres. Abordando a necessidade de ampliar horizontes na busca por
sentido na vida, o texto destaca a sinodalidade como uma oportunidade
para investir no presente, alinhando-se com o chamado à comunhão e ao
discernimento. Cada pessoa deste projeto com suas lideranças é desafiada a
ser portadora da esperança, revelando “rostos de luz” no caminho a ser
percorrido na sinodalidade. Se questiona se a sinodalidade incluirá a
sororidade, argumentando que a linguagem e atitudes devem refletir uma
mudança essencial no pensamento, promovendo uma semântica inclusiva.
Destaca-se a importância da sororidade como o feminino da fraternidade,
demandando uma compreensão distinta da experiência feminina. O artigo
destaca a necessidade de redescobrir e valorizar a Igreja como uma "casa
inclusiva", enfatizando a importância da partilha e do reconhecimento
mútuo. A autora propõe um caminho de retorno à autenticidade e
simplicidade, afastando-se de estruturas clericalistas e patriarcais. Além
disso, o texto explora a ideia de “viver em casa sem se sentir em casa”,
citando o Papa Francisco, e destaca a importância da comensalidade como
um elemento fundamental na construção de comunidades autênticas. O
resumo conclui ressaltando a necessidade de abraçar a vulnerabilidade,
reconhecendo que a transformação e a verdadeira felicidade surgem da
autenticidade e da aceitação mútua. A sororidade na sinodalidade é
apresentada como uma dimensão profunda no aprendizado mútuo,
promovendo a igual dignidade entre homens e mulheres.
Palavras-chave: Sinodalidade. Sororidade. Vida Religiosa Feminina.
Comensalidade. Comunhão. Linguagem Inclusiva.
Abstract: This article explores the intersection of synodality and
sisterhood in women's religious life, highlighting the importance of
recognizing women's distinct experiences and perspectives. The reflection
is based on the understanding that historical modes of interpretation still
permeate the collective unconscious, hindering the legitimacy of women's
specific experiences. Addressing the need to broaden horizons in the search
for meaning in life, the text highlights synodality as an opportunity to
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ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.191
* Doutora em Teologia Sistemática. Faz parte
da Rede brasileira de teólogas. Professora da
PUC/RJ até 2022 atuando nas disciplinas de
Ética Cristã, Departamento de Teologia.
Esteve na Equipe Teológica da CRB Nacional
(ERT), Equipe de Teólogos de Assessores da
Presidência (ETAP) e da Confederação
Latino-Americano e Caribenho dos
Religiosos (CLAR).
Email: buckerpataro@gmail.com
https://orcid.org/0009-0006-8831-2560
Recebido em 26/07/2023
Aprovado em 07/10/2023
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
invest in the present, aligning with the call to communion and
discernment. Each person in this project with their leaders is challenged to
be a bearer of hope, revealing “faces of light” on the path to be followed in
synodality. It is questioned whether synodality will include sisterhood,
arguing that language and attitudes must reflect an essential change in
thinking, promoting an inclusive semantics. The importance of sorority as
the feminine of fraternity stands out, demanding a distinct understanding
of the female experience. The article highlights the need to rediscover and
value the Church as an "inclusive home", emphasizing the importance of
sharing and mutual recognition. The author proposes a path to return to
authenticity and simplicity, moving away from clerical and patriarchal
structures. Furthermore, the text explores the idea of “living at home
without feeling at home”, citing Pope Francis, and highlights the
importance of commensality as a fundamental element in building
authentic communities. The summary concludes by highlighting the need
to embrace vulnerability, recognizing that transformation and true
happiness arise from authenticity and mutual acceptance. Sisterhood in
synodality is presented as a profound dimension in mutual learning,
promoting equal dignity between men and women.
Keywords: Synodality. Sorority. Female Religious Life. Commensality.
Communion. Inclusive Language.
INTRODUÇÃO
Distinção necessária na formulação do tema para a
compreensão de uma vida vivida e tecida majoritariamente por
mulheres, não pelo que caracteriza modos distintos de ser e de se
relacionar, mas porque, historicamente ainda permanece no
inconsciente coletivo, muitos modos de compreensões que
inviabilizam o possível e viável, dificultando no constituído como
legítimo, o que faz parte somente de uma parte da humanidade.
Em geral como seres humanos, somos todos “chamados a
buscar horizontes cada vez mais amplos”, e a explorar novos
caminhos de sentido para a vida, e não o de se contentar em
reciclar a própria vida dentro de um projeto para fazê-lo valer como
sobrevivência a todo custo, uma vez que o ‘Projeto de vida religiosa
consagrada’ se caracteriza como um estilo de ser e expressar a cristã
na Igreja, e sua subsistência o pode consistir em manter uma
aparência de perseverança.
Mais ou menos assim, expressou-se recentemente uma das
lideranças da vida religiosa, concluindo uns dias de reflexão que teve
como lema: rostos de luz”, que me inspirou para esta reflexão
fazendo emergir a lembrança da vocação de Israel na História da
Salvação, e o modo como Jesus Cristo, o “Servo de Deus”, foi
sustentado e escolhido para ser a concretização de uma promessa de
seguir existindo na história, através de seus seguidores, um presente
da presença amorosa e comprometida de Deus, Pai Maternal para
todos os seus filhos e filhas (cf. Is 42,1).
Vivemos em um contexto de globalização, e não podemos
deduzir que existe muita divergência no modo de coexistência
caracterizado por variadas culturas em uma geografia extensiva, uma
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vez que tudo está interligado em correspondência do humano a ser conquistado,
apreendido e desenvolvido.
O Sínodo da Sinodalidade é ocasião propícia para se investir no agoracomo melhor
momento de tornar realidade o profetismo dos bios e experientes no caminho do
discernimento’, para se viver de mãos dadas com os profetas da Tradição Bíblica, de modo
que a sabedoria e o profetismo possam coexistir como forma de comunhão à serviço ao bem
comum, e no processo de tecer uma nova humanidadeem eixos de identidades que ao longo
dos séculos se buscou constituir como expressão da essência da vida religiosa na Igreja.
Deste modo é que, a afirmação de que Quem não antecipa o futuro, não encontrará seu
lugar”, emerge como exigência e urgência de que sejam as mulheres da vida religiosa, neste
tempo propício da história, as interlocutoras da esperança, na medida em que deixem
transparecer em seus rostos reais, “a luz daquele que as iluminam”, e sejam elas com suas
próprias vidas, estes rostos de luz na sinodalidade da comunhão, e no percurso de o
medir esforços na colaboração e aprendizado do humano.
O dever de armar-se de coragem para apontar com a lucidez de suas vidas, a verdade
e o amor existente nas dificuldades, perdendo o pudor de dar nomes aos conflitos nos
diálogos, mas sem deixar de lado a cumplicidade de colaboração como modo certeiro de
reconhecer as luzes ocultas nos rostos sem brilho dos encontros humanos de muitos seres
no caminho do seguimento de Jesus Cristo.
Em última instância, viver este projeto de vida religiosa, na aquisição de uma
identidade humana, espiritual e carismática como resposta específica de identificação e
personalização para com o modelo de referência que é Jesus Cristo, o Filho de Deus,
presente que se faz presença na missão de fazer irmãos”, tecendo a irmandade de todos
filhos e filhas de Abbá.
SURGE UMA PERGUNTA: A SINODALIDADE INCLUIRÁ A SORORIDADE?
Faz-se necessário, como trabalhou a teóloga Elisabeth A. Johnson em seu livro
“Aquela que é” (JOHNSON, 1995), que se harmonize os ouvidos para uma semântica
inclusiva, que haja expressões de linguagens e atitudes, que façam valer no singular e no
plural das existências, uma verdadeira mudança essencial do pensamento como realidade
de conversão, crescendo em humanidade para participar de uma sinodalidade
corresponsável, e de poder se revisar, todos, como seres humanos.
Sororidade é palavra equivalente ao feminino da fraternidade, termo ainda muito
estranho no vocabulário comum de muitas comunicações oficiais dentro e fora do
contexto comunicacional dos seres humanos; e uma das razões para que não se considere
importante incluí-la, é que o termo mais usado fraternidade’, foi cunhado culturalmente
como o que inclui homens e mulheres.
Mesmo assim, é importante a compreensão do termo que o encontramos em
vários idiomas: latim-sororitas, inglês-sorority, francês-sororité, espanhol-sororidad,
português-sororidade, fazendo vir à luz em seu conteúdo de significado e sentido próprio,
que é diferente da que é mais usual ‘fraternidade’, e que por isso acaba por ser excludente.
As mulheres de fato, são portadoras de uma experiência, uma perspectiva, uma dignidade,
um olhar que não pode ser subentendido, inclusa ou resolvida de um ponto de vista
masculino considerado superior e inclusivo. As mulheres e as irmãs devem ser nomeadas e
não subentendidas nos homens e nos irmãos, daí que a sororidade deve ser explicitamente
dita e não absorvida na ‘fraternidade’ (FRIGÉRIO, 2021).
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Implicações da sororidade na sinodalidade
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Por isso, é que afirma Tea Frigerio (2021), que a correção linguística de considerar a
igual dignidade entre homens e mulheres também deve ser afirmada no nível linguístico.
Seria hoje anacrônico usar os termos fraternidade - irmãos, ignorando ou
desconsiderando os termos sororidade - irmãs.
Sororidade não é um duplo de fraternidade nem uma coqueteria feminista,
motivada pela vontade de explicitar agora tudo pelo feminino. O termo
explicita o desejo de aderir na concretude da existência, o que é real em suas
vidas, sabendo que as mulheres não são de forma alguma homologáveis aos
homens e que a diferença entre elas também marca a esfera existencial de suas
vidas no âmbito emocional e espiritual como modo de se concretizar a
sinodalidade deste caminho eclesial (FRIGÉRIO, 2021).
O que pressupõe um longo aprendizado para uma Igreja de irmãs e irmãos em
Cristo, onde a sororidade somada com a fraternidade cheguem a se constituírem uma
dimensão profunda no mútuo aprendizado da sinodalidade, que a sororidade constitui
um estilo de relações entre as pessoas que fazem parte do humano como Povo de Deus, e
entre estas, a de toda a família humana. Mas, infelizmente sororidadefica completamente
ausente nos discursos e documentos, nos quais somente a fraternidade padece de uma
inflação desgastada na eficácia do simbólico que não consegue se fazer perceptível no
concreto de inúmeras vivências.
Faz-se necessário redescobrir e valorizar a Igreja na dimensão de ‘casa inclusivatanto
de mulheres, como de homens, jovens, crianças, adultos, de todos de boa vontade, etc.
Redescobrir a Igreja doméstica de Atos 2,46 que diz: “Diariamente, todos juntos
frequentavam o Templo e nas casas partilhavam o pão, comendo com alegria e
simplicidade de coração”; partilha como sinal desta nova identidade sinodal, onde não se
deixa de ensinar e de anunciar a Boa Notícia de Jesus Messias, recurso para desenhar uma
outra face da Igreja como casana crise que atravessam nossas comunidades, dentro das
quais mais do que irmãos/irmãs somos estranhos e nos encontramos em uma atmosfera
dos anônimos e desconhecidos.
É nas casas que nascem as comunidades cristãs. É na casa que Jesus celebra a sua
Páscoa. É a eklesia que se reúne nas casas que as discípulas e os discípulos do Crucificado
Ressuscitado se reconhecem, uns aos outros, umas às outras, como frates (irmãos) e
soros (irmãs), membros da família de Deus. É na casa que a Divina Ruah irrompe como
vento impetuoso sobre todos, homens e mulheres dando origem à Igreja, família
universal reunida.
A mesma Ruah Inovadora como ativa criatividade nos desafia a experimentar, ousar
novas formas de ser Igreja, diversamente ligadas ao território, ousando linguagem nova e
antiga, voltando a ser Laos, povo laical, povo de Deus. Novas células, reais lugares do
acontecimento eclesial, espaços alternativos das formas existentes, não para deixá-las
como são, mas para promover uma transformação radical e quem sabe substituí-las, uma
vez adquiridas autoridade e competência.
É a Presença” da Divina Ruah que fortalece a consciência profunda de que
começando desde a simplicidade de existir, com gestos e atitudes que nasçam da vida, na
transparência do que se é, e no despojamento pobre de uma casa que acolhe e partilha,
poderemos voltar a ser um sinal de respeito e de atenção. Mas para que isso aconteça, é
necessário excluir definitivamente toda forma de clericalismo, toda forma de
patriarcalismo, toda hierarcologia indevida. É necessário apropriar-se do conteúdo da boa
nova para devolver aos pobres, abrir-se à fraternidade e sororidade universal sem a
pretensão de seres superiores e abandonando toda espécie de discriminação.
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Chegar a ser apenas comunidades laicais no sentido original do termo, em plena
reciprocidade entre homens e mulheres, incluindo carismas e ministérios, para poder
recriar na Igreja do presente e do futuro o que é próprio do Evangelho.
O FRÁGIL DE MANTER A APARÊN C I A É: “VIVER EM CASA SEM SE SENTIR EM CASA
Tema de reflexão do Papa Francisco em uma de suas alocuções de 14 de março de
2020: “Viver em casa sem se sentir em casa”, e que lembra o episódio de um sacerdote idoso
e sábio, um grande confessor, um missionário, homem que amava tanto a Igreja, falando
com um sacerdote jovem, que era muito seguro de si mesmo, muito crente... que se julgava
valoroso e que tinha direitos na Igreja. Então, o idoso disse-lhe: “Rezo por isto, para que o
Senhor lhe coloque uma casca de banana no caminho e o faça escorregar, isto far-lhe-á bem”.
Como se dissesse, embora pareça blasfêmia: “Far-lhe-á bem pecar, porque depois deverá
pedir perdão e assim encontrará Deus como Pai Maternal, misericordioso e compassivo”.
Esta parábola expressa algumas das vivências do Senhor, em resposta aos que o
criticavam por andar com os pecadores; e outras tantas vivências dos que também hoje
como pessoas da Igreja, sofrem a crítica, porque ousam aproximar-se de pessoas diferentes
e necessitadas de uma nova humanidade, de pessoas humilhadas por situações que
degradam sua dignidade, que trabalham e não são valorizadas, e a daquelas que
trabalham para nós. Este é um tempo privilegiado para buscar entender qual é o ‘problema
de se viver em casa sem se sentir em casa’, porque não relação de filiação e sororidade,
apenas existe a relação de companheirismos e de trabalho, respondendo às exigências
normativas da ordem estabelecida de um estilo de vida que falta alma.
E, ainda pra compreender a Igreja em atmosfera sinodal, e sua extensão no âmbito
dos aprendizados relacionais de comunidades religiosas como “casa”, recordo um escrito de
Leonardo Bo que fala da comensalidade como caminho de refazer a humanidade (BOFF,
2008). Comensalidade que significa comer e beber ao redor da mesma mesa, uma das
referências mais ancestrais da familiaridade humana, pois nela se fazem e refazem
continuamente as relações que sustentam o viver e o conviver.
E segue explicitando: a mesa, mais que um móvel, remete-nos a uma experiência
existencial e a um rito. É o lugar privilegiado dos elos da família, da comunhão e da
irmandade. Nela partilha-se o alimento e com ele comunica-se o que se é, e a alegria de
encontrar-se, o bem-estar sem disfarces, a comunhão direta que se traduz nos comentários
sem cerimônia dos fatos cotidianos, nas opiniões sem censura dos acontecimentos.
Os alimentos são mais que coisas materiais, e nos remetem à qualidade e
profundidade da troca que sai da trivialidade dos assuntos que faltam propósito, o
sacramentos de encontro e de comunhão. O alimento é apreciado e é objeto de
comentários, constituindo a maior alegria quando se nota a satisfação de quem consome o
que chega à mesa através dos que dela participam e partilham a vida como é percebida.
Mas, também é importante reconhecer que a mesa pode ser lugar de tensões e
conflitos, onde as coisas se discutem abertamente, explicitam-se as diferenças e podem
estabelecer-se acordos, onde existem também silêncios que podem ser perturbadores e que
revelam o mal estar coletivo. A cultura contemporânea modificou de tal forma a lógica do
tempo cotidiano em função do trabalho e da produtividade que enfraqueceu a referência
simbólica da mesa, ficando reservada para os domingos, ou para os momentos especiais de
festa e aniversário, apelo para a sororidade em sua capacidade de aglutinação dos elementos.
Afirma L. Bo (2008) que a comensalidade é tão central que está ligada à própria
essência do ser humano enquanto humano. A especificidade do ser humano surgiu de
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forma misteriosa e de difícil reconstrução histórica. No entanto, etnobiólogos e
arqueólogos chamam nossa atenção sobre um fato singular: quando nossos antepassados
antropoides saíam a recoletar frutos, sementes, caça e peixes, não comiam individualmente
o que conseguiam reunir, eles tomavam os alimentos e os levavam ao grupo, e praticando
a comensalidade distribuíam os alimentos entre eles que os comiam comunitariamente.
Deste modo, a comensalidade, que supõe a solidariedade e a cooperação mútua,
permitiu o primeiro salto da animalidade em direção à humanidade. Foi um primeiro
passo, mas decisivo, porque lhe coube inaugurar a característica básica da espécie humana:
a comensalidade, a solidariedade e a cooperação no ato de comer.
Essa comensalidade que ontem nos fez humanos, e continua ainda hoje fazendo-nos
sempre de novo humanos, solicita e faz o apelo de reservar tempo para o encontro, de
modo que a ‘mesa’ em seu sentido pleno de significado nas variadas trocas, e na construção
de vínculos de pertença, seja uma das fontes permanentes de renovação da humanidade
hoje globalmente anêmica de vínculos.
CONSIDERAÇÕES PARA COMPREENDER ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA SORORIDADE NA
SINODALIDADE COM ROSTOS DE LUZ
1. A luz do equilíbrio, que pode ajudar no aprendizado de integração das tensões,
para mostrar ainda mais o núcleo íntimo, maduro e sereno da vida em processo de
integração. Ideal que se persegue nos variados modos de vida, e que dentro da vida
religiosa feminina requer uma tomada de decisão saindo do negativismo dos esquemas
normativos da jurisdição, que proíbe e suscita suspeita, e muitas máscaras, ao invés da
transparência gratuita das vinculações.
Fazendo memória do papel da máscara - Prosophon que no teatro… os atores
representavam distintos papéis… costumava-se cobrir os rostos com máscaras; a máscara
neste contexto constitui tudo aquilo que oculta a verdadeira forma de ser, tanto para os
demais como para si mesmo, conjunto de autoenganos, justificações, mentiras, que se diz
ao próprio ser e aos demais, para não se ver a realidade, porque custa mostrar a realidade
do que se é com simplicidade, preferindo ocultar com uma determinada aparência,
tomando o caminho mais fácil para o conformismo e mentindo para si mesmo. Neste
contexto, a vida religiosa feminina é convidada pela sinodalidade sororal a viver uma
transformação profunda, de dentro para fora, e de recordar que a vida é um processo. A
tarefa e responsabilidade que se apresentam é a de descobrir no caminho, e de afrontar
acompanhada, todos os medos e incertezas que nos habitam, “trazê-las à luz, colocá-las de
frente e nomeá-las”.
A fidelidade e a felicidade poderá ser real e fazer-se vida, se nos animamos a
cultivar uma honestidade e sinceridade profunda em primeiro lugar conosco mesma;
que na origem da consagração está o amor, e não a disciplina. Em muito suprimimos a
falta de amor com o voluntarismo da busca de perfeição radicada no dever, e hoje para a
vida religiosa em geral, o caminho de volta não são os projetos organizativos, mas o de
propiciar espaços de trocas de experiências para que desde a sororidade nós possamos olhar no
espelho do amor mútuo.
A máscara, surge também porque não queremos ver a realidade das coisas, custa
mostrar a realidade do que somos, com simplicidade, e a ocultamos com uma aparência
para ser aceita e considerada.Os seres humanos são frágeis diante da majestade da vida e
dos seus acontecimentos. Muitas vezes sucedem situações que são produto de nossa
responsabilidade, mas que o queremos enfrentar, e deste modo, tomamos o caminho
mais fácil e mentimos para nós mesmas.
BUCKER, Bárbara P.
Implicações da sororidade na sinodalidade
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 67-76, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Podemos dentro desse contexto perguntar-nos: Qual poderia ser a tarefa que temos
daqui por diante? Que convite profundo percebemos que nos faz Deus para nossa
humanidade consagrada?
Creio que o caminho de abraçar a própria vulnerabilidade; amar a própria vida tal
como é, e não como gostaríamos que fosse; mover-se rumo a uma transformação
profunda, de dentro para fora, tendo presente que a vida é um processo, e que nada sucede
de um momento para o outro, inclusive a transformação não é a resolução acabada dos
problemas. As tarefas e responsabilidades que se apresentam para a vida religiosa
feminina, são as de nos descobrirmos no caminho, e a de nos encorajarmos no confronto
de reconhecermo-nos enfrentando de mãos dadas com Jesus, todos os medos e incertezas
que nos habitam, “fazendo vir à luz, e colocar-nos de frente, nomeando o que ocorre e
vislumbrando o passo seguinte.
Qualquer caminho de empatia, de proximidade e de sinodalidade que queiramos fazer
com os demais, motivará para abraçar nossa vulnerabilidade, porque sabemos que: quando
nos sabemos fracas, então somos fortes (2Cor 12,10); que as últimas serão as que vão
‘primeriar’ (Mt 20,16); e que, as que queiram economizar e proteger sua vida, a perderão e
as que decidirem ‘perder’ a sua vida à causa de Jesus Cristo, a encontrarão (Mt 16,25).
O abraço de nossa vulnerabilidade permitirá: crer com humildade; entrar em contato
com nosso potencial criativo; curar e transformar nosso coração; viver uma mística
profunda; recuperar a sensibilidade e viver com sentido; renovar o primeiro amor e viver
enamoradas; crescer em pertença; amar e atualizar o carisma, que descansa na plena
consciência de saber-nos escritas no coração de Deus, único que evoca o significado do
verdadeiro amor, original e livre sem prestação de contas a pagar e de respostas a serem
dadas, porque se nos exige, trata-se de um modo de amor incondicional. Não é necessário
fazer nada para ser amada, mas decidir fazer tudo, porque somos amadas; e deste modo,
aceitar que somos constituídas para a interrelação sinodal.
Recordar-nos mutuamente que na origem da consagração está o amor, não a
disciplina nem o voluntarismo. Hoje, é hora de diagnosticar e propor caminhos de volta à
felicidade nos conscientizando que temos demasiadas ferramentas; muitos ‘egos’, porque
justamente se silenciou, ou se fez o vazio para a experiência do amor, e o caminho de volta
é o de olharmo-nos no espelho do amor (DÍEZ, 2021, p.59-60). Assim, o “rosto de luz” irá
emergindo desde o interior libertando a aparência de um modelo assimilado de existência
e cultuado culturalmente, mas pleno de alma que evidencia a verdade de cada qual no
espaço e tempo.
2. A luz que vem dos outros, que faz com que o outro/outra se converta em um
referencial, tanto quando escurece’ ou dói, porque os processos são distintos, como
quando animam e estão dando apoio, porque os outros também nos realizam, nos
confirmam e nos fazem perceber que existimos. Fazem parte de nosso recorrido vital e nos
devolvem a paixão de compreender a aventura humana como uma aventura sagrada. Os
outros e suas aventuras animam a beber mais desde o sumo do ramo maduro na busca de
existir com sentido e, sobretudo, concedendo-nos a graça da confirmação de que não
acedemos ao projeto de seguimento de Jesus, projetando interesses do inconsciente
necessitado e carente de reconhecimento.
Nascemos constitutivamente humanos, e nosso modo de ser humanos é ir sendo
junto aos demais, e no atuar podemos reconhecer se vamos nos humanizando ou
desumanizando. Também somos seres culturais, e temos modos de nos relacionar conosco
mesmas, com os demais, com a criação e com o Outro que nos distingue e nos
identidade própria. Fala-nos Juvenal Arduini que para compreender o ser humano, exige-
BUCKER, Bárbara P.
Implicações da sororidade na sinodalidade
Revista Teopráxis,
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se ginga inteligente (ARDUINI, 2002). Nos diz com propriedade, que o ser humano se
desata no olhar, no sorriso, no semblante acolhedor, no aceno sororal e fraterno. Desata-se
nas emoções, no amor, na alegria, na expansividade, na irreverência, na cólera, desata-se na
criatividade, na estética, na esperança, na utopia, na audácia, nas buscas, e nos avanços.
Quem não se desata interna-se na solidão para proteger a opacidade existencial.
Quem não se desata cria presídios psicológicos, confina-se no egocentrismo fechado e
condena-se a ser monólogo. Torna-se estranho a si mesmo, traumatiza-se e se machuca na
interioridade do existir. E, a existência que não se desata, torna-se existência engasgada,
asfixiada por falta de oxigenação solidária. Desatar-se é ventilar-se, é romper cercos, é
liberar a voz abafada e emancipar a consciência cativa.
Querer a sororidade na sinodalidade inclui a dimensão solidária, que é capaz de ser
para alguém no singular e plural das inúmeras convivências, esquecer-se para amar e
expressar-se beneficiando quem necessita. Amar sem cobrar amor. Ninguém se basta a si
mesmo, ninguém vive sem os outros nem é possível realizar-se sozinho, daí a importância
da reciprocidade, porque o amor acorrentado leva à loucura e à derrota. A reciprocidade
da sororidade na sinodalidade é vital para o enriquecimento mútuo da vida eclesial e
religiosa ao estilo do que estamos tratando.
A gestação desse “rosto de luz” vem também dos outros como referente, tanto
quando sentimos a dor que escurece o horizonte de nossa compreensão, como quando nos
anima e está ao nosso lado, porque os outros são presentes ofertado nas vivências
cotidianas que podem sim nos fazer perceber que somos parte de um universo de direito
para os demais, formamos parte de nosso recorrido vital que nos devolve a paixão de
compreender a aventura humana como uma aventura que se torna sagrada no
reconhecimento da dignidade do outro, e que este outro existe como espelho que nos
reflete através de suas reações.
O caminho sagrado que as pessoas forem tecendo, ofertando o mistério de Deus
através de suas vidas, se expressa desta maneira; a de poder contar com os outros para
realizar-nos, eixo daquilo que de forma profética a vida religiosa consagrada mantém
como constitutivo em seu modo relacional de existir. Os outros e suas aventuras nos
animam a beber mais desde o âmago da experiência amadurecida, para forjar “rostos de
luz” na vida nas relações que estabelecemos em casa.
3. “A luz de nosso olhar”, em um “tríplice olhar sinodal”, formada pelo olhar
ecológico, com tudo o que exige para o momento presente, e que nos permite ser mais
suscetíveis no contexto atual de mudanças aceleradas e diversas, permeadas pelos efeitos da
pandemia que em alguns aspectos nos paralisaram, e em outros nos revelaram novas
possibilidades e modos de relação. Tendo como pano de fundo, o temor e a ameaça
permanente da guerra que revela as tensões que vivem as nações em diversas partes do
mundo, a crise ecológica que nos preocupa, as mudanças de paradigma, e os avanços
tecnológicos e as consequências de tudo isso.
É dentro deste con texto, que somos convidadas a construir uma Igreja Sinodal e uma
vida religiosa em sinodalidade, que se aproximam mais ao sonho do reinado de Deus que
nos comunicou Jesus; o olhar feminino em voz de mulher que se integra plenamente no
conjunto da vida consagrada, daquela que contribui cuidando com o modo que lhe é
próprio em ternura, tato e delicadeza. Mas, também com paciência e valentia profética de
se ausentar do flagelo das competições e comparações invejosas que sugam as energias
favoráveis da cumplicidade na vida religiosa feminina.
Aproximando-nos deste modo, o nosso olhar para aqueles que estão à margem do
mundo, e que nos descoloca e nos situa de outra maneira na hora de configurar nosso
BUCKER, Bárbara P.
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modo de vida. Reconhecendo com gratidão o que se recebe de cada uma dessas pessoas de
respeito e confiança, pelo fato de procurarmos aprender o que cada uma delas tem a nos
revelar do seu potencial de luta e superação dos obstáculos em sua vida, e assim colocar-
nos em disposição de vincular-nos às suas forças de superação. Luz que nos mostra a
beleza de Deus, porque o belo do rosto de Deus sempre será o de seu Filho Unigênito que
transparece nos demais que nos são confiados.
A luz de nossos modos de olhar, é o que irá configurando nosso próprio “rosto de
luz”, ao fixar com coragem nossos olhares, mantendo este tríplice olhar sinodal, e desde
perceber melhor os ‘sinais dos tempos’. O olhar ecológico, com tudo o que esse olhar exige
no momento presente, e que nos faz mais suscetíveis. O olhar feminino na voz de mulher
que se integra plenamente no conjunto da vida consagrada, e que contribui com a audácia
necessária.E, o olhar daqueles que foram colocados à margem do mundo, e que é duro
encarar, porque dói sua carência e necessidade também em nós, e sem desviar o olhar, ou
preferir fixar em realidades menos dolorosas.
4. A luz de estarmos dispostas para chegar nos limites de nossos carismas. Não
somos o que fazemos, e temos que cuidar ainda mais das pessoas vivendo a
cotidianidade da acolhida. Queremos ser pessoas de esperança, testemunhas do Evangelho
na medida em que deixemos transparecer nossos ‘rostos de luz’, e isto exige constância no
exercício de atenção à fecundidade da graça, que opera esse dinamismo no profundo
daquilo que desejarmos. A esperança o se improvisa, mas vai amadurecendo nas tensões
da vida e nos desafios do momento presente de cada uma.
Chamadas a seguir a Jesus Cristo com esperança nos propomos a ‘despertar o
mundo’ e iluminar o futuro. O Papa Francisco nos recorda que, o que Deus nos pede é a
saída do ninho das seguranças do saber, para aprender, e que nos permitamos ser enviadas
às fronteiras do mundo onde a vida é novidade e surpresa do inédito que revela o que de
Deus nos pertence.
Este é o desafio de uma vocação que cada uma de nós oferece ao próprio Jesus
Cristo, como experiência e resposta dinâmica às perguntas pela fidelidade a ser
comungada. Em cada situação de escuta renovada através do convite de ‘iluminar a vida’,
‘acolher a luz’, e ‘agradecer o caminho’ em dinâmica permanente de renovação, se faz
duradoura e ativa no tempo ‘cronos’, o que é sustentado pelo tempo de Deus ‘kairós’, como
Senhor da História, iniciada por pessoas que acreditaram no amanhã de sua realidade,
tecida em cada família religiosa e sinalizando um específico do dom da Ruah na Igreja, que
chamamos dom carismático.
um valor de sabedoria nos carismas para fazer sustentável a vida que se identifica
nos traços proféticos que o momento histórico deixa entrever em cada Congregação, o que
anima a vida para a missão. Essa luz mostra-nos a beleza de Deus, porque o ‘rosto de Deus
é belo, e por isso devemos atrever-nos a tocar a beleza de Deus no rosto dos demais.
A modo de conclusão, finalizo fazendo referência ao lema da Confederação Latino-
Americana de Religiosos (CLAR) que oferece o ícone das “mulheres com ousada esperança
no despontar da aurora”, porque se trata de tecer o caminho de abraçar nossa
vulnerabilidade, movidas pela esperança no ressuscitado.
A ousadia que conhecemos vem de mãos dadas com a coragem do coração. A vida
consagrada feminina tem coração e não precisa esconder, pois com o coração e com os pés
no seguimento de Jesus Cristo, queremos ser tomadas pela nossa vulnerabilidade para que
a sua misericórdia e compaixão, nos ajudem no processo de integração para estar e viver
mais conectadas com nossa humanidade, e com o clamor dos mais necessitados de nosso
amor e amizade, e os gritos da ‘casa comum’. A fidelidade e a felicidade vamos viver, se
BUCKER, Bárbara P.
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nos animamos a cultivar a honestidade e sinceridade profunda conosco mesmas para
transluzir em nossos rostos a verdade da luz que nos habita.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
ARDUINI, Juvenal. Antropologia: Ousar Para Reinventar a Humanidade. 2.ed. São Paulo: Paulus,
2002.
BOFF, Leonardo. Comensalidad: rehacer la humanidad. 18 abr. 2008. Servicios Koinonia.
Disponível em: https://www.servicioskoinonia.org/bo/articulo.php?num=272. Acesso em: 26 de
setembro de 2023.
DÍEZ, Luis Alberto Gonzalo. ¡Crucemos a la otra orilla! El diálogo y el cambio de la vida consagrada.
Madrid: Perpetuo Socorro, 2021.
FRIGÉRIO, Tea. A Sinodalidade incluirá a Sororidade? 27 nov. 2021. Portal das CEBs. Disponível
em: https://portaldascebs.org.br/a-sinodalidade-incluira-a-sororidade/. Acesso em: 30 de agosto
de 2023.
JOHNSON, Elizabeth. Aquela Que é: O Mistério de Deus no Trabalho Teológico Feminino.
Petrópolis: Vozes, 1995.
BUCKER, Bárbara P.
Implicações da sororidade na sinodalidade
Revista Teopráxis,
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
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International License.
MINHA EXPERIÊNCIA COM
MARIA DE NAZARÉ
MY EXPERIENCE WITH
MARY OF NAZARETH
Alzira Munhoz*
Resumo: Este artigo busca apresentar ressonâncias da minha experiência
com Maria de Nazaré, a partir da caminhada missionária que faz parte da
história de trinta anos de formação teológica que desenvolvo junto a
mulheres de diversas classes e etnias. A teologia mariana na qual me
fundamento perpassa uma perspectiva metodológica narrativa como forma
de teologizar a vida e o culto, partindo da Sagrada Escritura e de vivências.
Para aprofundar esse tema, parto do princípio da origem humilde de Maria
em Nazaré, Maria, como uma anawin de Israel, mulher pobre, integrante de
um povo que esperava pela vinda do Messias, comprometida com a justiça
e a salvação prenunciada, inspira todas as mulheres em todos os tempos a
ocuparem seu espaço na teologia e no ministério da Igreja.
Palavras-chave: Maria. Experiência. Mulheres. Basileia.
Abstract: This article searchs to present resonates with my experience
with Mary of Nazareth, based on the missionary journey that is part of the
thirty-year history of theological formation that developed with women
from dierent classes and ethnicities. The Marian theology on which I base
myself permeates a narrative methodological perspective as a way of
theologizing life and worship, starting from Sacred Scripture and
experiences. To explain this theme, it starts from the principle of Mary´s
humble origins in Nazareth. Mary, as an Anawin of Israel, a poor woman,
member of a people who waited for the coming of the Messiah, committed
to justice and the salvation foretold, inspires all women in all times to
occupy their space in the theology and ministry of the Church.
Keywords: Maria. Experience. Women. Basel.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 77-87, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.198
*
Possui mestrado e doutorado em Teologia
Sistemática; licenciatura em Filosofia,
graduação em Teologia e especialização em
Pastoral e Comunicação Social. Integrante da
Congregação das Irmãs Catequistas
Franciscanas, da Rede Brasileira de Teólogas e
do Núcleo Mujeres y Teología de Guatemala.
Atua como docente da Faculdade de Teologia
na Universidade Rafael Landívar; na Escola
de Teología Monseñor Gerardi, para Leigos;
no Diplomado em Teologia Feminista
promovido pelo Núcleo de Mujeres y
Teología de Guatemala, na Conferência de
Religiosas/os de Guatemala, no Curso de
Formação Bíblica para Leigas y Leigos da
Paróquia Nuestra Señora de los Ángeles.
Email: alziramunhoz2@gmail.com
https://orcid.org/0009-0003-8769-9191
Recebido em 02/08/2023
Aprovado em 27/10/2023
78
INTRODUÇÃO
As reflexões que aqui compartilho antes de tudo expressam minha relação e
experiência com Maria, uma mulher admirável, que assumiu livremente participar do
projeto do Reino de Deus junto com seu povo
1
, e a ele se entregou total e
conscientemente. Como pobre e com os pobres, e sobretudo com as mulheres judias de sua
época, ela também sonhava e buscava o Reinado amoroso de Deus como um mundo
alternativo de justiça, paz e solidariedade
2
.
Revisitando o caminho que percorri com Maria, desde o que aprendi com minha
mãe, passando pelos cursos acadêmicos que recebi, enriquecidos com a marialogia
feminista e latino-americana, sinto que é uma trajetória muito interessante. o alguns
aspectos dessa experiência “com” Maria que quero aqui compartilhar, utilizando uma
metodologia mais narrativa que especulativa.
A narração é um método ou “um modo de estar na vida e compreendê-la, muito
semelhante ao princípio feminino”
(CENTRO PIGNATELLI-CHINI, 1988) muito
apreciado pelas mulheres, embora não seja utilizado exclusivamente por elas. As narrativas
mostram a vida com suas complexidades, conivências e insubordinações subjetivas e
coletivas, muito além da pura razão especulativa. A narrativa é uma forma de teologizar
sobre o processo quente da vida. A própria razão teológica crítica tem uma estrutura
narrativa (cf. METZ, 1973). O método narrativo tem a mesma legitimidade do
especulativo, o mesmo fundamento, porém mais próximo da realidade, mais orgânico e
temperado pelo húmus da vida (cf. BOFF, 1984, p.11).
Entendida como uma história do que acontece com as pessoas, o que elas sofrem, vivem
e desejam, a narração está muito presente na criação teológica das mulheres, permitindo uma
nova forma de compreender e interpretar a realidade. A metodologia narrativa permite
destacar as falas, ações e articulações das mulheres, em sua maioria ocultas pela narrativa
oficial (civil e eclesiástica) e pela reflexão teológica dominante. A teóloga Elisabeth Schüssler
Fiorenza afirma que uma primeira forma de roubar o poder de autonomeação das mulheres e,
por conseguinte, de sua autodeterminação, implica a perda da memória histórica
(cf.
FIORENZA, 1985). Mas, se o processo de dominação começa com o mau uso e a eliminação da
memória histórica, o processo de libertação, ao contrário, segue o caminho da resistência,
tentando reunir os fragmentos ou as brasas da memória subversiva que estão sob as cinzas da
opressão, com o intuito de reacender a esperança e nutrir práticas transformadoras. A partir
destas breves considerações introdutórias volto meu olhar para Maria.
1 MARIA DE NAZARÉ: UMA MULHER IDENTIFICADA COM O SEU POVO
Vejo Maria de Nazaré como uma mulher judia que emerge no primeiro século da era
cristã, provavelmente analfabeta como muitas outras do seu tempo; viveu em Nazaré, um
pequeno vilarejo da Galileia. Uma mulher simples, cuja foi delineada pelas promessas
das Escrituras Hebraicas. Sua espiritualidade foi forjada na vivência e na prática dos
deveres religiosos comuns do lar, como acender as velas do Sabbath, por exemplo.
1 Na Bíblia aparecem dois termos para significar a palavra Reino: o hebraico malkut e o grego basileia. Em português
correspondem a: reino, reinado e realeza. Reino teria uma conotação mais espacial indicando países governados por
monarquias. Reinado teria a ver com tempo. Realeza tem a ver com supremacia e domínio. No hebraico e no grego
não distinção entre esses conceitos. Na Bíblia, o sentido do Reino de Deus vai se firmando como poder divino no
contexto de uma sociedade contrária ao projeto de Deus. Neste texto prefiro utilizar o termo basileia para referir-me
ao Reinado amoroso de Deus.
2
Jesus não apenas falou da Basileia, mas a tornou o centro de sua missão, mediante atitudes e ações que foram uma
constante manifestação de sua preferência pelos simples, pobres e excluídos. Anunciar a Basileia implica em trabalhar pela
libertação de todo tipo de mal, reconhecendo que o dinamismo divino transformador já está presente na história humana.
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Em outras palavras, compreendo Maria como uma mulher atenta à Palavra das
Escrituras que escutava na sinagoga de Nazaré; que a assimilou e a manifestou em suas
atitudes, agindo sob seu impulso durante toda a sua vida. Ela não somente assumiu ser
mãe de Jesus e cuidar dele, mas também mantinha relações com o grupo das mulheres que
o seguiram e ficaram junto dele em suas horas mais difíceis, e também testemunharam sua
ressurreição, como atestam todos os evangelhos. Mesmo sem entender plenamente os
acontecimentos ela não abandonou seu filho em sua missão. Ainda que sejam poucas as
referências à sua pessoa, os escritos do Novo Testamento a configuram como uma mulher
de fé, consciente, decidida e corajosa, aglutinadora da comunidade cristã nascente, junto
com as discípulas da primeira geração crista (Cf. At 1,14).
Com suas amigas discípulas Maria não deixou o projeto de Jesus cair no vazio após
sua morte, justamente porque ele estava bem “gravado e guardado em seu coração”. A
comunidade lucana preservou esse detalhe fixando-o nas primeiras páginas do Evangelho,
onde Maria aparece junto à comunidade dos pobres que aguardavam a realização das
promessas divinas configuradas na Basileia, o reinado amoroso de Deus. Em Atos 1,14 ela é
apresentada, metaforicamente, esperando firme, em oração, a epifania e reviravolta do
Pentecostes, junto com a comunidade das discípulas e discípulos.
Portanto, é justo ver Maria como uma mulher que fez uma escolha livre e consciente
de participar da espera messiânica junto com seu povo, e não como um exemplo de
submissão passiva a uma vontade divina absoluta à qual ela tinha que aderir
inconscientemente. O escritor lucano captou essas características da vida de Maria e, no
Magnificat (1,46-55), coloca em sua boca não apenas um hino de louvor, mas também de
indignação e proclamação da visão subversiva e alternativa da Basileia, onde os primeiros
e poderosos seriam os últimos e os últimos e humildes, os primeiros
3
. Nesse sentido, a
pastora batista Odja Barros me chama a atenção quando contempla a voz ativa de Maria
no Magnificat, a forma
"como todo o seu corpo e seus sentidos estão envolvidos na ação divina. O
corpo de uma mulher pobre e oprimida torna-se o centro da experiência
reveladora e salvadora de Deus. Portanto, o Magnificat é de grande importância
para as mulheres para outros grupos oprimidos que sofrem opressão produzida
por sistemas e estruturas que geram e sustentam desigualdades e
injustiças” (BARROS, 2023).
É importante destacar que nesse cântico Maria é apresentada como uma mulher
israelita que diz “não” ao projeto dos poderosos, em atitude solidária com seu povo, como
suas antecessoras bíblicas que também proclamaram a ação misericordiosa de Deus em
favor dos pobres: Miriam, a irmã de Moisés (Ex 15,21); Débora, a profetisa (Jz 5,12); Ana, a
mãe de Samuel (1Sam 2,1), e Isabel (Lc1,39-45) uma anciã que necessita de apoio numa
gravidez de risco, como a própria Maria, que também enfrenta a difícil situação de gerar
um filho em condições não comuns. Mais à frente Lucas apresenta uma viúva anciã, Ana,
nomeada como profetisa (Lc 2,36-38), que também aguardava firmemente a plenitude da
esperança messiânica.
Maria está situada junto dos pobres e humilhados porque sente que Deus não apoia
o projeto dos poderosos que os explora e oprime, mas assume a defesa dos humilhados e
indefesos (Lc 1,52). Ela é uma anunciadora da esperança porque seu útero carrega a
esperança messiânica dos "anawim" de ontem e de hoje que permanecem crendo e
anunciando o Deus que lhe revelou. Ela acredita firmemente que os famintos do seu povo
3
O tema da Basileia é tratado amplamente por diversos autores. Aprecio muito a abordagem de Elisabeth Schüssler
Fiorenza principalmente em sua obra: As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas,
1992, p.134-166. As reflexões dessa autora muito me iluminaram na reflexão sobre Maria no contexto da Basileia.
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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não serão abandonados de mãos vazias (Lc 1,53); por isso, luta e espera com um mundo
expressado nas promessas da Basileia de Deus. Essa composição do Magnificat nos ajuda a
vê-la ligada a uma tradição judaica de justiça e profecia. A espada que Simeão prevê
atravessar seu coração ainda atravessa os corações de muitas mães cujos filhos perecem sob
a tirania dos poderosos de hoje.
“Quantas pessoas se sentem desprezadas, desanimadas e desesperadas diante da
realidade de injustiça sem poder vislumbrar horizontes e futuros. Na
experiência de Maria de Nazaré e na profecia por ela cantada, somos chamados
a fortalecer o nosso espírito e a renovar a nossa e esperança no Deus de
Maria de Nazaré, o Deus que age pelos "anawim", os pobres de Deus no
mundo” (BARROS, 2023).
Em sua condição de mãe Maria tentou compreender muitas coisas humanamente
“impossíveis”, como também determinadas escolhas de seu filho. Ela “guardava tudo em
seu coração”, observa o evangelho lucano. E não obstante seja apresentada nos bastidores,
podemos imaginá-la inserida na comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus após a
Páscoa. A identidade de discípula e profetisa a situa na comunhão das seguidoras e
seguidores de Jesus, no âmago da tradição eclesial. Não é por acaso que a devoção popular
mariana é rica em orações, ladainhas e outras invocações que mostram uma Maria
solidária com pessoas e grupos humanos abandonados e explorados por sistemas
dominantes; isto acontece em todos os países latino-americanos e em outras partes do
mundo, como mostra o significativo canto de José Freitas Campos, cantado com tanta
pelas Comunidades Eclesiais de Base:
“Mãe dos oprimidos, dos perseguidos, dos desvalidos, rogai por nós! Mãe dos
despejados, dos abandonados, dos desempregados, rogai por nós! Mãe dos
pescadores, dos agricultores, santos e doutores, rogai por nós! Mãe dos boias-
frias, causa da alegria, mãe das mães, Maria, rogai por nós! Mãe dos
humilhados, dos martirizados, marginalizados, rogai por nós! Mãe do céu,
clemente, mãe dos doentes, do menor carente, rogai por nós! Mãe dos
operários, dos presidiários, dos sem-salário, rogai por nós!”
Realmente, em Maria muitas pessoas pobres e sofredoras, principalmente mulheres,
de todos os tempos se encontram. Para Maria elas acorrem com fé, confiança e esperança.
Por conseguinte, a devoção e o culto a Maria não podem ser desvinculados desses
clamores. Ela é a inspiração para as discipulas e discípulos na Igreja missionária que deseja
ser a serva dos pobres, como tem insistido muitas vezes o Papa Francisco. De fato, nas
narrações das aparições ela é identificada com os interesses dos pequenos e oprimidos e a
sua própria experiência de fé está ancorada num Deus que está do lado deles.
2 MARIA DE NAZARÉ: UMA ANAWIN COMPROMETIDA COM A JUSTIÇA SOCIAL
Similaridades entre a vida de Maria e a vida dos pobres, denominados coletivamente
como anawin, são uma importante referência de espiritualidade mariana, sobretudo para
as mulheres que vivem em situação de pobreza. Para elas, assim como para mim, Maria
não é uma rainha do céu, mas uma mulher da terra, que compartilha das nossas vidas
como irmã, mãe, inspiradora e companheira solidária.
Como Maria, muitas mulheres parem seus filhos em situações muito precárias ou
mesmo desabrigadas; muitas são forçadas a fugir de seu bairro, de sua cidade ou de sua
terra-natal, como migrantes ou refugiadas, com seus filhos e filhas. Inúmeras perdem seus
filhos e filhas para as guerras, a prostituição, o tráfico de pessoas, as drogas, o trabalho
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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escravo e muitas outras formas de dominação e opressão. uma certa empatia e
identificação dessas mulheres com Maria. Dessa convergência nascem espiritualidades e
devoções marianas, biblicamente bem fundamentadas, comprometidas com o serviço às
pessoas em situação de vulnerabilidade, na presença ético-solidária e no cuidado da vida
em todas as suas expressões, diferentemente de algumas devoções marianas alienantes e
desconectadas da realidade.
Maria também é apresentada em solidariedade com as mulheres na sua luta por criar
uma nova ordem social, como muito bem expressa o Magnificat, que é uma síntese da
visão alternativa da Basileia, tão sonhada e esperada, como vimos acima, pelos anawin de
Israel. Assim, a tradição judaica da Basileia, entendida como uma visão de justiça, de
dignidade humana, e de salvação para todas as pessoas, em um mundo regido pelos
poderes da dominação, opressão e desumanização, permite-nos identificar Maria como
uma anawin que não se resignou, justamente porque estava comprometida com a
transformação da sociedade em que vivia.
3 MARIA DE NAZARÉ: UMA MULHER QUE ESPERA E FAZ A BASILEIA ACONTECER
A cosmovisão político-religiosa da Basileia como o império do bem-comum, diferente
dos impérios dominadores daquela época, foi realmente determinante e inclusiva para
Jesus e seus discípulos e discípulas, portanto também para sua e. A maior mudança
introduzida pela visão messiânica da Basileia ocorreu principalmente pela “comunhão de
mesa” entre pobres, gentios, pecadores, mulheres e judeus-cristãos; e teve especial impacto
e adesão entre as mulheres, que se sentiram incluídas e perceberam que na Basileia
inaugurada por Jesus elas podiam ocupar um lugar central e serem respeitadas em sua
dignidade, como pessoas e como mulheres (cf. FIORENZA, 1992, p. 134-186).
O movimento de Jesus experimentou um Deus de benevolência e inclusivo, que
aceitava a todos, sem exceção, suscitando justiça e bem-estar para todas as pessoas, como
Maria proclama no Magnificat. Os seguidores e seguidoras de Jesus entenderam que
deviam tornar presente o Reinado amoroso de Deus como acontecimento salvífico coletivo
inclusivo, conforme os princípios e critérios da Basileia, curando, libertando de todo tipo
de opressão, animando e reunindo todas as pessoas para participar alegremente da mesa da
vida. A presença e atuação de Maria no casamento em Caná, memória da comunidade
joanina em Jo 2,1-12, situa-se nessa perspectiva. Nesse texto a figura de Maria o é a de
uma mulher que aceita cumprir passivamente uma vontade divina absoluta; ao contrário,
ela é apresentada intervindo diretamente e por iniciativa própria, na concretização festiva
da Basileia de Deus, que irrompe de formas inusitadas na história dos pequenos através do
poder criativo da Ruah Divina, com a qual Maria mantinha profunda intimidade e
diálogo, como Lucas mostra na cena da anunciação.
Portanto, é surpreendente a espiritualidade mariana que brota a partir da
contextualização bíblica da Basileia. Nela Maria é vista no seu devido lugar, não apenas
como mãe, mas também como uma profetisa, mulher de fé e coragem, que não tem medo
de se expor porque sabe que Deus, por meio dela, faz “grandes coisas” (Lc 1,39-56). Ela
sabe reconhecer os sinais de Deus atuando na história do seu povo para libertá-lo. A
memória da luta de muitas mulheres, suas antecessoras, pela libertação do seu povo está
bem viva no seu coração. Por isso, ela cultiva uma espiritualidade atenta aos seus
clamores e não desanima diante da violência e opressão dos poderosos; é uma
espiritualidade que restabelece a força dos fracos e afirma a coragem de quem luta na
defesa da vida dos pobres.
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Assim é, também hoje, a espiritualidade das mulheres e de todas as pessoas que se
colocam a serviço do povo oprimido: uma espiritualidade que desafia as forças opressoras
e dominadoras porque sabe que o seu Deus não abandona seus filhos e filhas, e quer uma
“vida com abundância para todas as pessoas” (Jo 10,10). Cabe a nós, como servidoras e
servidores do Reinado amoroso de Deus, potencializar a ação de Maria entre os
“pequeninos”, amados de Jesus e causa da sua missão.
Outro aspecto que considero importante é que a pessoa de Maria, como vimos acima,
une e potencializa todas as pessoas que a ela recorrem, sobretudo as mulheres, tornando-as
persistentes e corajosas, capazes de enfrentar e superar obstáculos. A devoção mariana,
nessa perspectiva, adquire uma dimensão profético-libertadora, que é uma
espiritualidade histórica, capaz de ler os sinais de Deus na história pessoal e coletiva, e atuar
na realidade de hoje em consonância com os princípios e critérios da Basileia de Deus.
Desde esta perspectiva, uma “Igreja em saída”, como propõe o Papa Francisco, não
pode assumir e/ou alimentar nenhuma prática devocional mariana que retire Maria do seu
contexto antropológico, sócio-histórico, político e religioso. Os anawim, ainda hoje, têm o
sagrado direito de se aproximar de Maria a partir de sua real situação, ou seja, de seus
sofrimentos e suas esperanças, e de se identificar com ela em sua fé, sua força, sua coragem
e persistência, seu serviço solidário e sua entrega ao projeto libertador de Javé, tão bem
expresso no Magnificat, constituído de justiça, paz e solidariedade universal. que se
questionar, portanto, muitas devoções marianas que não têm essa dimensão bíblico-
missionária libertadora e não conduzem à transformação da realidade das pessoas pobres e
sofredoras, as amadas e preferidas de Jesus e de Maria.
4 MARIA E OS PROJETOS DE SORORIDADE ENTRE MULHERES
A Igreja Católica tem grande apreço pela pessoa de Maria e, por isso, incentiva e
orienta, através de documentos e pronunciamentos, o culto mariano. Mas, as práticas
devocionais criadas e propagadas por muitos clérigos e leigos o condizem com a
orientação dos documentos. Em muitas paróquias, grupos e movimentos eclesiais um
devocionismo mariano ingênuo e fanático, que não educa nem conduz a uma mariana
adulta, comprometida e libertadora.
É comum, na tradição cristã, apresentar Maria como mulher, virgem e mãe. Esses
atributos ou identificações de sua pessoa parecem ser indiscutíveis, sobretudo na tradição
dos antigos Padres da Igreja. É a partir dessa tríplice condição identitária que os fiéis se
achegam a ela, dobram os joelhos, cantam, pedem, choram, fazem promessas e
peregrinações, a proclamam e coroam rainha do céu, mudam periodicamente suas roupas
demonstrando-lhe respeito, cuidado e reverência. Diante da imagem de Maria, todos se
transformam em crianças ou mendigos, como se ela fosse o último recurso para sair de
uma situação extrema, sem perspectivas. As relações com ela nunca são rompidas, mesmo
que os fiéis não tenham seus pedidos satisfeitos. O desejo de superar a orfandade e o
abandono, em suas diferentes formas, está sempre presente nessa relação.
Além dessas identificações de Maria, a nós, mulheres, nos apresentam a figura de
uma Maria humilde, silenciosa, serva, que nada questiona e sempre diz "sim" a todos. Uma
Maria "puríssima”, que nunca passou pelas dificuldades que a maioria das mulheres têm
que enfrentar em sua vida sexual e em suas relações conjugais. Essa figura idealizada e
estereotipada de Maria não nos faz bem. A história e a espiritualidade das mulheres estão
repletas de experiências de auto culpabilização que leva a um distanciamento da Maria
histórica, que passou pelas mesmas dificuldades das mulheres de seu tempo. Por isso, quero
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concluir este texto apresentando Maria desde outra perspectiva. Uma Maria necessitada da
sororidade de outras mulheres, identificada por Lucas na pessoa de Isabel e de outras
mulheres como vemos a seguir:
“...Fique sabendo que a sua parenta Isabel está grávida, mesmo sendo tão idosa.
Diziam que ela não podia ter filhos, no entanto agora ela já está no sexto mês de
gravidez. Porque para Deus nada é impossível” (...) “Alguns dias depois, Maria
se levantou e, às pressas, se pôs a caminho de uma cidade da região montanhosa
da Judéia. Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Quando Isabel
ouviu a saudação de Maria, a criança se agitou no seu útero. Então, cheia do
poder do Espírito, Isabel proclamou bem alto: - Você é abençoada entre todas as
mulheres, e a criança que você vai ter é abençoada também! Quem sou eu para
que a mãe do meu Senhor venha me visitar?! Quando você me cumprimentou,
a criança ficou alegre e se agitou no meu útero. Você é abençoada, pois acredita
que vai acontecer o que o Senhor lhe disse”. (Lc 1,36-37; 39-45 - Bíblia na
Linguagem de Hoje).
Não vamos refletir aqui sobre a questão amplamente discutida a respeito da
historicidade dos fatos mencionados neste texto. Sabemos que os evangelhos são
narrativas de alento espiritual, iluminação da e sustento para a vivência das primeiras
comunidades cristãs, assim como para nós hoje. Portanto, são narrativas que apontam para
realidades teológicas, muito mais que para os fatos descritos.
O texto acima retrata com singeleza e vigor o dinamismo de duas mulheres, uma
adolescente e a outra idosa, buscando, reciprocamente, a confirmação e o fortalecimento
de seu ser mulher, seu poder, sua autoridade e autonomia. Elas não necessitam de
nenhuma permissão ou confirmação de homens para se afirmarem e se proclamarem
particularmente agraciadas pela força da Ruah Divina. Ao contrário, buscam e encontram
em si mesmas e uma na outra as razões da própria fé e esperança.
O encontro ocorre na casa do sacerdote Zacarias, mencionado um pouco antes; mas
nesta cena o nenhuma presença ou ação masculina, nem mesmo do anjo Gabriel,
interlocutor importante nas cenas dos dois primeiros capítulos do evangelho lucano. A
solidariedade entre a jovem e a idosa é apresentada com ênfase. A alegria de ambas é
contagiante. A liberdade e espontaneidade está presente em cada palavra do texto. Cada
uma está vivendo uma situação muito especial como mulher, no contexto de uma
sociedade patriarcal que estimula a inimizade e a competição entre as mulheres. Isabel, em
idade bastante avançada, vivencia uma gravidez inesperada e complexa. Maria, por sua
vez, experimenta as primeiras sensações de uma maternidade juvenil, sob a mira dos
guardiães da lei e da religião, que prescreviam castigos especiais para mulheres que não se
enquadravam no padrão sociocultural e religioso da época.
Embora em idades e condições sociais e religiosas bem distintas ambas vivem, pela
primeira vez, a experiência da maternidade, desafiando as regras estabelecidas pelo sistema
sociorreligioso vigente. As duas são apresentadas cheias de poder, “grávidas” da dynamis da
Ruah, demarcando um novo tempo messiânico de libertação para o seu povo, a exemplo
de diversas mulheres do Primeiro Testamento, como Jael (Jz 5,24) e Judite (Jd 13,18).
É evidente entre Isabel e Maria uma peculiar sintonia, um tipo sororidade e
cumplicidade que contrasta com a cultura androcêntrica patriarcal, a qual concebe as
mulheres como competidoras e inimigas potenciais, e as estimula a assumirem esse
estereótipo. Estas duas mulheres, ao contrário, entrelaçam seu coração e seus corpos num
abraço cheio de ternura, cumplicidade e contemplação recíproca do mistério que as
envolve e pulsa forte em seus ventres. O útero estéril da mulher idosa agora estremece com
a vida que nele se desenvolve pela ação da Ruah Divina. E o útero fértil da jovem, ainda
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Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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inexperiente, também vibra em sintonia com a anciã plena de sabedoria. Ambas abençoam
uma à outra e profetizam. Uma profecia que provoca, denuncia e sacode as bases do
patriarcado, que designava para mulheres em tais situações uma sorte bem diferente.
É impressionante como o texto ressalta a coragem destas duas mulheres. “Maria se
levantou e, às pressas, se pôs a caminho...” (v.39). Quem se levanta é sujeito de ações e,
portanto, de autonomia. Quem toma a palavra e rompe com a obscuridade histórica
imposta às mulheres, mina as bases do sistema patriarcal dominador e opressor. São
mulheres conscientes e audaciosas, que se unem e se apoiam sororalmente; por isso, o
capazes de gerar processos inusitados de transformação.
Por sua vez, Isabel também aparece no texto como uma mulher forte e sábia, que
acolhe uma adolescente grávida. Justamente por estar vivenciando uma gravidez
excepcional, é capaz de compreender, se solidarizar e acolher uma jovem assustada, que
vivencia pela primeira vez uma gravidez inesperada, exatamente no período entre o
noivado e a consumação do casamento. Em sua idade avançada Isabel sabe, por experiência
própria, o que significa ser estigmatizada e marginalizada por estar fora do “padrão”
sociorreligioso designado para as mulheres de sua época. Certamente para Maria foi muito
importante esse apoio de outra mulher mais madura e experiente num momento tão
difícil, assim como o é para tantas adolescentes de hoje que passam por situações não
menos preocupantes.
Antes de começar escrever este texto perguntei a um grupo de mulheres de uma
comunidade urbana qual teria sido sua atitude se cada uma tivesse uma filha adolescente
que, inesperadamente, fosse engravidada por algum atrevido. Os comentários foram bem
diversificados, mas todas foram unânimes em dizer que fariam “o possível e o impossível”
para proteger a garota de olhares maldosos e de comentários e atitudes discriminatórias,
tanto da família como da comunidade. Duas narraram experiências de estupro na própria
família, e de como tiveram que levar a adolescente para a casa de outros parentes da área
rural, a fim de protegê-la e ajudá-la a atravessar aquela fase difícil com segurança e
serenidade, longe das “más línguas”.
Outras contaram que o próprio grupo havia acompanhado uma adolescente grávida,
expulsada de sua família, que buscava apoio e orientação para fazer o acompanhamento
pré-natal, que a mesma adolescente não sabia muito bem no que implicava. Foi importante
para a jovem, mas também para elas, individualmente e como grupo, acolher e
acompanhar aquela jovem e, compartilhando com ela seus próprios conhecimentos e
experiências de gravidez, amamentação e cuidados com suas crianças, assim como os
cuidados que a garota devia ter para não engravidar novamente. Todas ressaltaram a
importância da entreajuda, da solidariedade, do toque, da massagem e de outros cuidados
que elas dispensaram àquela jovem mãe, de forma que todas se assumiram como
“cuidadoras” dela e “madrinhas’ do bebê.
Enquanto eu ouvia essas narrativas pensava em muitas adolescentes que passam por
experiências semelhantes tendo que abandonar os estudos e a vida familiar para se
proteger, em casas de parentes ou amigas, de violências sexuais. As pesquisas ao redor do
mundo mostram que o número de adolescentes engravidadas está aumentando a cada ano,
sobretudo em áreas de imigração e de conflito armado entre muitos países, mas também
em lugares onde não há políticas públicas para mulheres.
Aqui em Guatemala, onde estou vivendo atualmente, cerca de quatro mil
adolescentes, entre dez a catorze anos, são engravidadas e dão à luz a cada ano, sendo que
um grande número dessas gravidezes é resultado de incesto. Em 2017, exatamente no dia 8
de março, Dia Internacional de Lutas das Mulheres, quarenta e uma adolescentes de um
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presídio da capital de Guatemala, se rebelaram exigindo direitos e justiça, e todas
morreram queimadas. As autoridades nada fizeram para evitar ou conter a tragédia. As
cruzes com o nome de cada uma foram fincadas na praça da catedral e do palácio do
governo, clamando por justiça e dignidade. A última pandemia que abalou o mundo
revelou a cara oculta e cruel da violência sexual doméstica que afeta meninas e
adolescentes em nossa região, totalmente desprotegidas por políticas públicas que
simplesmente não existem.
Nesse contexto, o encontro entre Isabel e Maria ilumina e mostra como é
importante a luta por políticas públicas e o cultivo da sororidade entre as mulheres. Não
importa a idade. É através de visitas, da partilha de experiências e de conhecimentos, do
apoio recíproco, da organização, que se pode criar um mundo diferente, onde as mulheres
podem cuidar umas das outras e desenvolver suas potencialidades em favor de si mesmas e
do bem comum. Esta espiritualidade sororal pode ser construída passo a passo, na
cotidianidade. Maria e Isabel, ao se encontrarem, não se limitaram a expressões recíprocas
de afeto e reconhecimento da ação divina em suas vidas, mas a partir do “amor a si
mesmas” e da sororidade, celebram a ação divina em favor de todas as pessoas pobres e
humilhadas da história. Elas estão conscientes de que seus ventres carregam uma história
futura plena da esperança messiânica. O “novo” que cada uma leva em si é semente de
libertação e fonte de alegria e dinamismo para todas as pessoas que acreditam e atuam para
criar uma ordem social diferente, onde todas as pessoas possam desfrutar a vida com
justiça e dignidade.
FINALIZANDO
A contemplação de Maria, como expressa este texto, une e empodera todas as
pessoas que a ela recorrem, especialmente as mulheres, tornando-as persistentes e
corajosas, capazes de enfrentar e superar os obstáculos que a vida apresenta. A devoção
mariana, nessa perspectiva, adquire uma dimensão profética, política e libertadora, a partir
de uma espiritualidade histórica, capaz de ler os sinais de Deus não apenas na história
pessoal, mas, também na história coletiva, e de agir na realidade atual de acordo com os
princípios da Basileia, o Reinado amoroso de Deus.
A Igreja não pode assumir ou nutrir qualquer prática devocional mariana que afaste
Maria de seu contexto sócio-histórico, político e religioso. Os mais pobres (os Anawim),
ainda hoje, têm o sagrado direito de se aproximar de Maria a partir da sua situação real, e
de se identificar com ela pela sua fé, sua força, sua persistência, seu serviço solidário e sua
dedicação ao projeto libertador da Basileia, constituída de justiça, paz, abundância e
solidariedade. Especialmente no contexto do continente latino-americano e caribenho,
Maria brilha como exemplo vivo de adesão ao projeto de Jesus, que nos convida a “sair” ao
encontro das pessoas mais sofridas na realidade em que vivemos. Não é por acaso que
neste continente ela é invocada como “Estrela da Evangelização”.
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CONVERSANDO COM MARÍA
Maria, mãe, irmã, companheira e inspiradora
Permita-nos contemplar teu coração vibrante, pleno da
dynamis divina, que te impulsionou ao encontro de Isabel.
Mulher profética, coração em sintonia com Deus
e atento aos clamores do teu povo, ajuda-nos, com
teu cântico de libertação profética, a estar em
sintonia profunda com os clamores, os sonhos
e lutas dos povos de hoje que clamam
por justiça e direitos.
Mulher peregrina na fé, teus pés empoeirados acompanharam
teu coração missionário pelos caminhos do teu povo,
Ajude-nos a seguir teu exemplo de fé, coragem e profecia
sendo uma presença que acolhe e cuida da
vida ameaçada e desprotegida.
Maria de coração compassivo e aberto à realidade machucada,
abre nossos corações para que sejamos uma presença
de esperança e solidariedade.
Como nas bodas em Caná, nós também queremos estar a serviço da vida
com atenção e criatividade compartilhando alegria, semeando
esperança e construindo a irmandade universal.
Maria, mulher solidária, estreita entre as mulheres os laços de sororidade.
Que continuemos criando espaços de participação em nossas comunidades.
Te pedimos que renoves a esperança do teu povo
com o "vinho novo" da libertação.
Assim esperamos e que assim seja!
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
BARROS, Odja. O Magnificat é a resposta de Mária ao anúncio de Isabel. Reflexão sobre Lucas 1,39-
56. Disponível em: https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/comentario-do-evangelho/
#:~:text=O%20Magnificat%20%C3%A9%20a%20resposta,humildes%20e%20espoliados%20da%20t
erra. Acesso em: 20 de agosto de 2023.
BOFF, Clodovis. Teologia pé-no-chão. Petrópolis: Vozes, 1984.
CENTRO PIGNATELLI-CHINI. Teologia Narrativa, un modo de hacer Teología Feminista, Zaragoza,
noviembre 1998. Disponível em: https://www.google.com/url?
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Uxc7tAhUCCKwKHciKDd4QFjABegQIAhAC&url=http%3A%2F%2Fccparagon.pangea.org%2Fte
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DzrF. Acesso: 14 de agosto de 2023.
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. Trad.
João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1992.
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. Quebrando o silêncio: a mulher se torna visível. Concilium,
Petrópolis, n.202, p.8 (618)-23(633), 1985/6.
JOHNSON, Elizabeth A. Nossa verdadeira irmã: Teologia de Maria na comunhão dos santos. Trad.
Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Loyola, 2006.
METZ, Johann Baptista. Pequena apologia da narração, Concilium, Petrópolis, v.85, n.2, p.580-592,
1973.
SEBASTIANE, Lilia. Maria e Isabel. Ícone da solidariedade. Trad. Tomás Belli. São Paulo: Paulinas,
1998.
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Naza
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
O CARÁTER PASTORAL DA CARTA
APOSTÓLICA EM FORMA DE MOTU
PROPRIO MITIS IUDEX DOMINUS
IESUS, SOBRE A REFORMA DO
PROCESSO CANÔNICO PARA AS
CAUSAS DE DECLARAÇÃO DE
NULIDADE DO MATRIMÔNIO NO
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO
uma leitura conjunta com Amoris Laetitia
THE PASTORAL CHARACTER OF THE
APOSTOLIC LETTER IN THE FORM
OF MOTU PROPRIO MITIS IUDEX
DOMINUS IESUS, ON THE REFORM
OF THE CANONICAL PROCESS FOR
THE CAUSES OF DECLARATION OF
NULLITY OFF MARRIAGE IN THE
CODE OF CANON LAW
a joint reading with Amoris Laetitia
Aloísio Ruedell*
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 88-105, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.183
* Possui mestrado e doutorado em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Graduado em
filosofia pela Faculdade de Filosofia
Imaculada Conceição (FAFIMC) e em
Teologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Foi
professor adjunto da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
Tem experiência na área de Filosofia, com
ênfase em Epistemologia e Filosofia da
Linguagem, atuando principalmente nos
seguintes temas: hermenêutica,
interpretação, linguagem e subjetividade. É
padre na Diocese de SantoÂngelo,RS.
Email: aloisioruedell@gmail.com
https://orcid.org/0009-0001-8681-3605
Recebido em 11/07/2023
Aprovado em 15/10/2023
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
Resumo: O propósito deste artigo é evidenciar a preocupação e a
sensibilidade pastoral do Papa Francisco diante das dificuldades de muitos
fiéis viverem o ideal matrimonial do Evangelho e como seu olhar
misericordioso para os que vivem em situações chamadas “irregulares” o
levou a decretar e estabelecer uma reforma do processo de nulidade
matrimonial, para torná-lo mais simples e acessível. A análise dos critérios,
que nortearam os trabalhos da reforma, mostrou que todos vêm ao
encontro dessa preocupação pastoral. Foi feita uma leitura conjunta da
Amoris Laetitia e do MIDI, porque os dois documentos, ocupados com o
tema da família e suas dificuldades, tiveram em sua origem a mesma
preocupação pastoral e se complementam.
Palavras-Chave: Família. Fragilidade. Misericórdia. Nulidade
matrimonial. Reforma.
Abstract: The purpose of this article is to highlight Pope Francis' concern
and pastoral sensitivity in the face of the diculties of many faithful to live
the marriage ideal of the Gospel and how his merciful gaze towards those
who live in so-called "irregular" situations led him to decree and establish a
reform of the marriage nullity process, to make it simpler and more
accessible. The analysis of the criteria, which guided the work of the
reform, showed that all meet this pastoral concern. A joint reading of
Amoris Laetitia and MIDI was carried out, because the two documents,
dealing with the theme of the family and its diculties, had at their origin
the same pastoral concern and complement each other.
Keywords: Family. Fragility. Mercy. Marriage nullity. Reform.
INTRODUÇÃO
Toda organização e atuação jurídica canônica têm um sentido
pastoral e visa à salvação das pessoas. A própria redação do digo
Canônico [CIC 83]
1
. evidencia isso em seu texto. No mesmo sentido
escreveu o Prof. Dr. Côn. Martin Segú Girona, que publicou um
artigo esclarecedor sob o título A Pastoralidadade no e do Direito
Canônico (GIRONA, 2008). Ele analisa, particularmente, esse
aspecto a propósito da Reforma e da transição do digo do Direito
Canônico de 1917 para o atual de 1983.
A humanidade havia passado por duas grandes guerras e os
sobreviventes almejavam e exigiam novos rumos e novas metas, na
sociedade civil e também na Igreja. Esse clamor tinha sido ouvido
pelo cardeal Angelo Roncalli, especialista em história e profundo
conhecedor da alma humana e das aspirações do homem moderno.
Ao ser elevado ao trono de São Pedro, sob o nome de João XIII, em
seguida ele anunciava o propósito de convocar um Concílio
Ecumênico, a ser realizado no Vaticano. Percebia a necessidade do
“aggiornamento” de muitos institutos do Código e de toda a Igreja.
Estruturas e organizações obsoletas tornaram-se impraticáveis para
o homem moderno. Pois, o que se visava, em primeiríssimo lugar era
“o bem das almas, que, em última análise, é o fim primordial de toda
e qualquer pastoral” (GIRONA, 2008, p.126).
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 88-105, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
1 Muitas vezes referido por CIC 83. [Codex Iuris Canonici, Código de Direito Canônico].
90
Portanto, o Direito Canônico, como toda ação eclesiástica situa-se sempre sob um
horizonte pastoral, numa perspectiva do Reino de Deus. O propósito deste artigo,
contudo, é evidenciar que, na Reforma do Processo Canônico para as Causas de Nulidade
do Matrimônio no Código de Direito Canônico, decretada pela Carta Apostólica em
forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, do Papa Francisco (FRANCISCO,
2015a)
2
, a preocupação pastoral se sobressai ao jurídico. Sem descuidar deste e, mantendo
seus princípios e procedimentos básicos, o foco está na proximidade e na acessibilidade
jurídica para o povo.
A mesma preocupação do Papa em relação ao matrimônio se encontra em Amoris
Laetitia
3
. Já nesta exortação apostólica ele afirma que
aos pastores compete não a promoção do matrimônio cristão, mas também
‘o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram de viver
esta realidade’, para ‘entrar em diálogo pastoral com elas a fim de evidenciar os
elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do
matrimônio na sua plenitude (FRANCISCO, 2016, p.243, n.293).
Com isso, o objetivo deste artigo é fazer uma leitura conjunta dos dois documentos,
ou mais precisamente, do Mitis Iudex Dominus Iesus [MIDI] e da Amoris Laetitia [AL],
particularmente no cap. VIII, a fim de evidenciar o zelo e a preocupação pastoral do Santo
Padre, conforme deixa transparecer em seus escritos. O início será pela Amoris Laetitia,
devido a sua anterioridade cronológica. Suas preocupações e considerações serão
importantes para, num segundo momento, estabelecer um elo de ligação com o MIDI e
fazer a introdução deste com o tema “a preocupação pastoral e pastoral judiciária no
MIDI”. A terceira e última abordagem será “Justificativa e critérios da Reforma”. Por fim,
as considerações finais terão o sentido de retomar brevemente a caminhada da discussão e
deverão dar conta do que fora projetado na introdução. - Será uma pesquisa
exclusivamente teórica e bibliográfica, onde, para as referências, após sua primeira
apresentação completa, serão usadas siglas ou abreviaturas consagradas pelo uso nos
documentos eclesiásticos.
2 LEITURA CONJUNTA DE MITIS IUDEX DOMINUS IESUS E AMORIS LAETITIA
2.1 Amoris Laetitia a Caminho do MIDI
Amoris Laetitia contém um capítulo especial para refletir sobre como “acompanhar,
discernir e integrar a fragilidade” em relação à vivência matrimonial. (FRANCISCO, 2016,
p.241-264, n.291-312). Inicia referindo-se ao relatório do Sínodo dos bispos sobre a família:
embora a Igreja reconheça que toda ruptura do vínculo matrimonial é contra a
vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos de seus
filhos’. Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja ‘dirige-se com amor àqueles que
participam na sua vida de modo incompleto [...] (III ASSEMBLEIA GERAL
EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS. n.24 e 25)
4
.
No mais, sabe-se pela Psicologia, o quanto a afetividade influencia no ajustamento
psicossocial, no humor, na saúde psíquica, enfim, na capacidade de valorar, de vincular-se
e, consequentemente, se engajar numa vivência familiar ou comunitária. Por isso, o
recurso das ciências é bem vindo, para que os pastores conheçam melhor os seus fiéis,
2 A partir de agora também referido por MIDI.
3 A partir de agora também referido por AL.
4 Agora em diante também referido por Relatio Synodi 2014. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.241, n.291.
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evitando cobrá-los indevidamente naquilo que não podem dar ou viver, mas deles se
aproximem com paciência e misericórdia.
“O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e sua Igreja, realiza-se
plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com
um amor exclusivo e livre fidelidade [...]” (FRANCISCO, 2016, p.242, n.292). Há,
entretanto, formas de união que contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o
realizam parcialmente. A Igreja não deixa de valorizar o que existe de construtivo em
situações que ainda não correspondem à sua compreensão de matrimônio.
Isso permite falar em “gradualidade na pastoral”. Pois, referindo-se ao Sínodo dos
bispos, além de uma situação particular de um matrimônio apenas civil, também é de se
considerar uma mera convivência. De tal modo que,
quando a união atinge uma notável estabilidade através de um vínculo público e
se caracteriza por um afeto profundo, responsabilidade com a prole, capacidade
de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar na sua
evolução para o sacramento do matrimônio (III ASSEMBLEIA GERAL
EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS, 2014, p.8-9, n.27. Cf.
FRANCISCO, 2016, p.23, n.293).
Cabe aos pastores discernir. Sua missão não é a promoção do matrimônio, mas
também “o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram de viver
esta realidade”.
Nesse discernimento, a tarefa é identificar elementos que favoreçam a evangelização
e o crescimento humano e espiritual. É necessário valorizar sinais de amor, que de algum
modo refletem o amor de Deus, ou seja, desejam o verdadeiro amor. Enfim, “é preciso
enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em
oportunidades de caminho para a plenitude do matrimônio e da família à luz do
Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza” (III
ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS. 2014, p.11, n.43;
Cf. FRANCISCO, 2016, p.244, n.294). Foi precisamente isso que Jesus fez em seu diálogo
com a samaritana (Cf. Jo 4,4ss.).
No sentido dessas considerações, foi São João Paulo II que “propunha a chamada ‘lei
da gradualidade’, ciente de que o ser humano ‘conhece, ama e cumpre o bem moral
segundo diversas etapas de crescimento’(JOÃO PAULO II, 1981, p.24-25, n.34)
5
. Não se
trata, porém, de uma gradualidade da lei, e sim de uma “gradualidade no exercício prudencial
dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou
praticar plenamente as exigências objetivas da lei” (JOÃO PAULO II, 1981, p.6, n.9).
Ao seguir nessa reflexão, verifica-se que o Papa Francisco faz suas proposições
utilizando-se, basicamente, de duas palavras e conceitos: discernimento e misericórdia.
um destaque especial ao discernimento das situações chamadas “irregulares”. Uma vez que
o Sínodo dos bispos tratou dessas situações e, para não nos equivocarmos no caminho,
ele quer propor com clareza:
Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...)
O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de
Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o
de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre
todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade
verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita (FRANCISCO, 2016,
p.246, n.296).
5 Agora em diante também referido por Familiaris Consorcio ou FC. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.245, n.295.
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Conjugam-se, portanto, discernimento e misericórdia. Deve-se considerar a
complexidade da realidade, e o próprio discernimento das situações irregulares deve ser
conduzido por um olhar misericordioso. “Ninguém pode ser condenado para sempre,
porque esta não é a lógica do Evangelho” (FRANCISCO, 2016, p.246, n.297).
Nesse sentido, o Papa também acolhe as considerações de muitos Padres sinodais,
que quiseram afirmar que
os batizados que são divorciados e recasados devem ser integrados mais
intensamente nas comunidades cristãs, de várias maneiras possíveis, evitando
todas as ocasiões de escândalo. A lógica da integração constitui a chave do seu
acompanhamento pastoral, para que não somente saibam pertencer ao Corpo
de Cristo que é a Igreja, mas possam fazer uma experiência feliz e fecunda da
mesma (...) (XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS
BISPOS, 2015, p.27, n.84)
6
.
A participação pode exprimir-se em diferentes serviços, e também é preciso verificar
as diferentes formas de exclusão praticadas. Enfim, “eles não apenas não devem sentir-se
excomungados, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja, sentindo-a
como uma mãe que os recebe sempre, que cuida deles com carinho e que os anima no
caminho da vida e do Evangelho” (XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO
SÍNODO DOS BISPOS, 2015, p.27, n.84).
Considerando a variedade inumerável de situações “irregulares”, é compreensível
que o Papa não tenha dado uma normativa geral canônica aplicável a todos os casos. Pois,
“o grau de responsabilidade o é igual em todos os casos” (XIV ASSEMBLEIA GERAL
ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS, 2015, p.18, n.51. Cf. FRANCISCO, 2016, p.250,
n.300). Da mesma forma, “as consequências ou efeitos de uma norma não devem
necessariamente ser sempre os mesmos” (FRANCISCO, 2016, p.250, n.300). Cabe ao
sacerdote acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discernimento, conforme o
ensinamento da Igreja e as orientações do bispo.
Ainda, para uma melhor compreensão dessa discussão, também deve ser lembrada a
questão das circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral. O Papa afirma que a Igreja
tem uma sólida formação sobre esse assunto. Por isso, “já o é possível dizer que todos os
que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados
da graça santificante” (FRANCISCO, 2016, p.252, n.301). Os limites atenuantes podem ser os
mais diversos, e não apenas de um eventual desconhecimento da norma. Alguém, por
exemplo, pode conhecer bem a norma, mas não compreender os valores que lhe são inerentes
ou pode estar numa situação concreta que não lhe permite agir de maneira diferente.
O Catecismo da Igreja Católica lembra o Papa exprime-se categoricamente: “A
imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e
outros fatores psíquicos ou sociais” (SANTA SÉ, 1993, p.411, n.1735). Em outro parágrafo,
refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral.
Assim, uma vez reconhecido o peso dos condicionamentos concretos, que podem
atenuar a gravidade da situação “irregular”, deve-se, contudo, trabalhar para “o
amadurecimento de uma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo
discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na
graça” (FRANCISCO, 2016, p.254-255, n.303). Que esse discernimento seja dinâmico,
“aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de
forma mais completa”.
6 A partir de agora também referido por Relatório Final. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.249, n.299.
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Em qualquer situação não pode o pastor limitar-se simplesmente a aplicar “leis
morais aos que vivem em situações irregulares’, como se fossem pedras que se atiram
contra a vida das pessoas” (FRANCISCO, 2016, p.256, n.305). Pois,
por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma
pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado mas subjetivamente não
seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para
isso a ajuda da Igreja (FRANCISCO, 2016, p.257, n.305. Cf. também
FRANCISCO, 2013, p.39, n.44)
7
.
No entanto, levar em consideração os condicionamentos atenuantes de modo algum
significa que a Igreja deixa de propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de Deus em
toda a sua grandeza. Ao contrário, é preciso encorajar e motivar os jovens para a vivência
do sacramento, para receberem a graça de Cristo e participarem plenamente na vida da
Igreja. A compreensão pelas situações excepcionais não implica esconder a luz do ideal
mais pleno. Mais do que uma pastoral dos fracassados, é importante o esforço pastoral
para consolidar o matrimônio, de modo a evitar as rupturas (Cf. FRANCISCO, 2016,
p.259, n.307).
De outro lado, consciente da fragilidade humana e das circunstâncias
atenuantes, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar,
com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas,
que se vão construindo dia após dia’, dando lugar à ‘misericórdia do Senhor que
nos incentiva a praticar o bem possível (FRANCISCO, 2013, p.39, n.44. Cf.
também FRANCISCO, 2016, p.260, n.38).
A teologia moral - no dizer do Papa - deveria assumir todas essas considerações.
Embora ela tenha justa preocupação com a integralidade da doutrina moral da Igreja, deve,
contudo, ter um cuidado especial com os valores centrais do Evangelho, particularmente
com a caridade, como resposta ao amor gratuito de Deus, que se mostra misericordioso
em seu Filho encarnado. Por isso, “a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas,
antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação
mais luminosa da verdade de Deus” (FRANCISCO, 2016, p.263, n.311).
Nessa visão pastoral e assumindo essa compreensão e vivência da cristã, evita-se
desenvolver uma moral fria e de escritório quando se trata de temas delicados, situando-se
num contexto de discernimento pastoral cheio de amor e misericórdia. “Esta é a lógica
conclui o Papa que deve prevalecer na Igreja, para ‘fazer a experiência de abrir o coração
àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais’” (FRANCISCO, 2016, n. 312)
8
.
2.2 Preocupação Pastoral e Pastoral Judiciária no MIDI
O mesmo espírito e a motivação pastoral presentes em Amoris Laetitia verifica-se
também na elaboração da Carta Apostólica em forma de Motu Próprio sobre a reforma do
processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito
Canônico. Francisco parte de Jesus, manso Juiz e Pastor de nossas almas, que se constitui
em fundamento de seu projeto reformista. Jesus confiou sua missão e seu poder ao
Apóstolo Pedro e seus Sucessores, cabendo hoje aos pastores da Igreja o direito e o dever
da obra da justiça e da verdade.
7 A partir de agora também referido por EG.
8 Tmbém: FRANCISCO. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015c, p.21, n.15. A partir de agora também referido por MV.
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Depois, no decorrer do tempo, a Igreja, à luz da Palavra de Deus, foi
compreendendo e expondo com maior profundidade a doutrina da indissolubilidade do
vínculo matrimonial. Assim também elaborou o sistema das nulidades do consentimento
matrimonial, e disciplinou de maneira mais adequada o relativo processo judicial, de modo
que fosse sempre mais coerente com a verdade da fé professada.
Francisco está consciente de que tudo foi sempre feito e deve convergir na “lei
suprema da salvação das almas” (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983, C.1752).
Ciente disso, ele resolveu fazer a reforma dos processos de nulidade do matrimônio, e,
nesse sentido, constituiu um grupo de trabalho, recomendando-lhe manter firme o
princípio da indissolubilidade, ou seja, que a união pelo amor matrimonial é para toda
vida. Mas, o que mais chama atenção é que
o impulso reformador é alimentado pelo ingente número de fiéis que, embora
desejando prover a sua própria consciência, muitas vezes foram afastados das
estruturas jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral; ora, a
caridade e a misericórdia exigem que a própria Igreja como mãe se torne próxima
dos filhos que se consideram separados (FRANCISCO, 2015a, Introdução).
No mesmo sentido, escreve o Papa, o Sínodo Extraordinário dos bispos tem
solicitado processos mais rápidos e acessíveis.
Entretanto, anterior ao processo propriamente jurídico, é importante que se
desenvolvam ações a partir de uma pastoral matrimonial diocesana e paroquial, que ao
encontro de esposos separados ou divorciados, que eventualmente se tenham afastado da
prática religiosa. Pode ser o caminho para uma pastoral judiciária, que seria como que um
“braço estendido” da “Igreja em saída”, que vai ao encontro dos que estão distantes, e
facilita o acesso à estrutura judiciária. Cabe-lhe uma orientação e uma investigação
preliminar ao processo judiciário, com procedimentos que ajudarão aos fiéis que
eventualmente se dirigirem ao tribunal eclesiástico, para que cheguem preparados.
É de certa forma isso que está proposto nas regras processuais para as causas de
declaração de nulidade do matrimônio (FRANCISCO, 2015a, p.9)
9
. Embora não tenham o
nome de cânones, essas regras integram o MIDI, portanto, participam de sua natureza.
“Na leitura dos cânones modificados, como também dos demais artigos do MIDI, é possível
perceber que, na verdade, alguns deles (...) supõem esta pastoral judiciária, inserida na
pastoral familiar” (RIBEIRO, 2016, p.45). Certamente é “desejável que a pastoral familiar
tenha, também, uma dimensão judicial, reforçando-se”, assim, “a estreita relação entre
direito e pastoral, particularmente no que tange às causas de nulidade
matrimonial” (RIBEIRO, 2016, p.45). Sem essa pastoral judiciária, o êxito da reforma
poderá ficar parcialmente comprometido.
Por isso, o Papa insiste nessa direção e, diante do afastamento de muitos fiéis da
estrutura judiciária, ele optou por estabelecer alguns procedimentos que, se aplicados,
poderão contribuir muito, quando as pessoas se dirigirem ao tribunal eclesiástico para
uma análise judicial de seu próprio matrimônio. É importante que elas já venham
preparadas, no sentido de buscar a verdade sobre o seu matrimônio “e não, simplesmente,
obter a nulidade a todo custo, querendo que prevaleça de modo unilateral a sua percepção
subjetiva dos fatos” (RIBEIRO, 2016, p.46). No artigo 1 das RPNM, o Papa recorda que
o Bispo, em virtude do cân. 383 & 1, é obrigado a seguir com ânimo apostólico os
esposos separados ou divorciados que, pela sua condição de vida, tenham
eventualmente abandonado a prática religiosa. Ele partilha, portanto, com os
párocos (cf. cân. 529 & 1) a solicitude pastoral para com esses fiéis em dificuldade.
9 Essas regras processuais... agora em diante serão referidas por RPNM.
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E esse acompanhamento pode fazer-se melhor no âmbito da pastoral familiar, que
“em vários lugares realiza um trabalho com casais separados ou divorciados, embora,
talvez, ainda não se ocupe, mais de perto, da questão jurídica da nulidade do
matrimônio (RIBEIRO, 2016, p. 47). Se ainda não existe esse aspecto jurídico, o
importante é que a pastoral familiar paroquial e diocesana preste este serviço específico de
acolhida e orientação das pessoas que, eventualmente, possam necessitar das estruturas
eclesiásticas da Igreja. No mais, na ausência de uma estrutura propriamente judiciária, há,
positivamente, um maior espaço de liberdade, para agir com criatividade (Cf. RIBEIRO,
2016, p.47, nota 27)
10
.
no artigo 2 das RPNM o Papa escreve sobre a importância de uma investigação
preliminar ou pastoral, com a finalidade de ajudar as pessoas a conhecer sua condição e
recolher elementos úteis para um eventual processo judicial, ordinário ou mais breve.
Nessa tarefa pode ser útil a participação de fiéis especialistas em determinadas ciências
humanas. Por exemplo, a colaboração do psicólogo pode ser importante se as partes (se)
pudessem se reconciliar, o que não significa necessariamente reatar a união. Pode também
ser importante para uma análise mais objetiva da própria experiência matrimonial, e
assim poderem enfrentar “o processo com lucidez, força e coragem, empenhando-se na
busca da verdade que, como afirmado, é uma condição fundamental para se chegar a uma
sentença justa, uma vez que as partes têm direito a um processo justo” (RIBEIRO, 2016,
p.49). Eis o texto do Papa:
Art.2. A investigação pré-judicial ou pastoral, que acolhe nas estruturas
paroquiais ou diocesanas os fiéis separados ou divorciados que duvidam da
validade do próprio matrimônio ou estão convictos de sua nulidade, tem por
fim conhecer a sua condição e recolher elementos úteis para eventual
celebração do processo judicial, ordinário ou mais breve. Tal investigação
desenvolver-se-á no âmbito da pastoral matrimonial diocesana unitária.
Ao analisar o art. 3 das RPNM, evidencia-se que o Papa não mistura competências,
pois, não cabe ao titular do poder jurídico fazer as investigações prévias e, muito menos,
assumir a pastoral judiciária anterior ao processo. Essa deve ser confiada a outras pessoas,
sendo da responsabilidade do Bispo verificar se o idôneas para a função. Embora essas
pessoas não necessitem de uma formação exclusivamente jurídico-canônica, o importante
é que tenham uma formação suficiente sem excluir a jurídico-canônica para exercer
esse serviço de consultoria, acompanhando os cônjuges no discernimento a respeito de sua
própria condição. Entre as pessoas que possam exercer esse serviço, o Papa destaca, em
primeiro lugar, o próprio pároco ou quem preparou os cônjuges para a celebração do
matrimônio, mas também não descarta que essa função seja confiada a outros clérigos, a
consagrados e, até mesmo a leigos, desde que preparados e aprovados pelo Ordinário do
lugar. segue o artigo:
Art. 3. A mesma investigação será confiada a pessoas consideradas idôneas pelo
Ordinário do lugar, dotadas de competência ainda que não exclusivamente
jurídico-canônicas. Entre elas, conta-se em primeiro lugar o pároco próprio ou
aquele que preparou os cônjuges para a celebração das núpcias. Esta função de
consulta pode ser confiada também a outros clérigos, consagrados ou leigos
aprovados pelo Ordinário do lugar.
Organizar e dinamizar adequadamente uma pastoral judiciária certamente será um
grande diferencial para um possível encaminhamento do processo de nulidade
10 Aí o autor refere-se à diocese de Milão, onde foi criada uma estrutura de acolhida dos fiéis separados ou divorciados.
No decreto de criação deste serviço aparece delineada a sua finalidade e as funções que nele são desempenhadas.
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matrimonial. O Papa inclusive sugere que a Diocese ou várias dioceses em conjunto
constituam uma estrutura estável para fornecer esse serviço e, se for o caso, elaborem um
Vademecum, onde se exponham os elementos essenciais para o desenvolvimento mais
adequado da investigação” (FRANCISCO, 2015a, p.9, RPNM, art. 3). Com essa estrutura e
pessoas idôneas a prestar o respectivo serviço,
seguramente a investigação pastoral prévia ao processo de nulidade
matrimonial recolherá os elementos úteis para a eventual introdução da causa
por parte dos cônjuges, ou do seu advogado canônico, diante do tribunal
competente, desde que, obviamente, as partes resolvam, de comum acordo, ou
não, entrar com o pedido de declaração de nulidade matrimonial junto à
autoridade competente (RIBEIRO, 2016, p.50).
Assim, se a introdução da causa for precedida por um trabalho anterior de acolhida e
orientação, onde as partes têm oportunidade de fazer um sério discernimento sobre a
própria situação e, ao mesmo tempo, recolher elementos e, inclusive, documentos,
importantes para sustentar sua visão a respeito da nulidade, ou não, de seu próprio
matrimônio, não dúvidas que se criam condições favoráveis para um processo mais
rápido, sem, contudo, prejudicar a profundidade da investigação dos fatos e o
compromisso com a verdade. Com certeza, isso favorece uma instrução mais rápida e uma
decisão mais célere da causa, vindo ao encontro da imploração do Sínodo Extraordinário
dos bispos ao Santo Padre: que os processos fossem “mais rápidos e
acessíveis” (FRANCISCO, 2015a, Proêmio, p.2).
Ainda cabe lembrar, como visto acima, que o se podem misturar as
competências. Por isso, as pessoas “que atuarem na fase anterior ao processo não poderão
atuar na causa como juiz ou como defensor do vínculo”. O primeiro tem compromisso
com a imparcialidade e este “com a tutela do vínculo nupcial” (RIBEIRO, 2016, p.50). Ao
seguir na fase pré-processual, o art. 4 das RPNM anuncia:
A investigação pastoral recolhe os elementos úteis para a eventual introdução
da causa por parte dos cônjuges ou de seu patrono perante o tribunal
competente. Indague-se se as partes estão de acordo em pedir a nulidade.
Por fim, feito todo o caminho do discernimento e da investigação anteriores, caso se
opte pelo processo, encerra-se essa fase com a elaboração do libelo, que deverá ser
apresentado ao tribunal competente. Eis o artigo 5.: “Recolhidos todos os elementos, a
investigação se encerra com o libelo, a ser apresentado, se for o caso, ao tribunal competente.
Ainda convém distinguir: em relação às estruturas estritamente judiciárias, não
por parte do Bispo muita liberdade de ação, pois elas são definidas por lei, mas o mesmo
não ocorre com as sugestões e iniciativas anteriores ao processo de declaração de nulidade,
indicadas pelo Papa Francisco nesses primeiros cinco artigos do MIDI e que podem estar
inseridas na pastoral judiciária e familiar. Existe um campo aberto, com muitas
possibilidades e “com uma enorme margem de liberdade, que poderia e/ou deveria ser
muito bem explorada”.
O fundamental é acolher e responder com criatividade e generosidade à
reforma proposta para que, assim, seja superada a distância física e moral que
separa a muitos fiéis das estruturas judiciárias da Igreja, privando-os do direito
de discutir processualmente o que diz respeito ao próprio estado de vida
(RIBEIRO, 2016, p.50).
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2.3 Justicativa e critérios da Reforma
Pretende-se mostrar aqui que um caminho lógico e uma coerência entre as
iniciativas e as investigações anteriores ao processo judiciário, indicadas pelo Papa
Francisco, e a justificativa e os critérios que conduziram a reforma por ele decretada. Serão
vistos os principais motivos que levaram o Papa a optar por uma reforma nos processos de
nulidade matrimonial, bem como os critérios que a nortearam. Esses critérios são
fundamentais para uma interpretação adequada das mudanças realizadas na legislação e
também para sanar eventuais dúvidas na hora de sua aplicação.
2.3.1 Justificativa
Após afirmar, no Proêmio do MIDI, que a normativa canônica sobre o matrimônio
sempre deve ser coerente com a verdade da professada, o que significa que o está em
discussão a doutrina da indissolubilidade, o Papa Francisco recordou que na Igreja a salus
animarum (= a salvação das almas) é sempre a lei suprema (cf. cân. 1752). Ou seja, todas as
instituições eclesiásticas têm o sentido de comunicar a graça divina e favorecer o bem dos fiéis.
Também em sua fala aos Bispos, expondo-lhes o propósito de uma reforma das
normas do processo de nulidade matrimonial, o Papa deixou claro que se tratava de uma
preocupação com a salus animarum. Assim se exprime ele:
Alimenta o impulso reformador o enorme número de fiéis que, embora
desejando prover a própria consciência, muitas vezes se afastam das estruturas
jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral; a caridade e a
misericórdia, portanto, exigem que a própria Igreja como mãe se aproxime dos
filhos que se consideram separados (FRANCISCO, 2015, Proêmio, p.1).
Evidencia-se a sensibilidade pastoral do Romano Pontífice, que quer evitar uma
“elitização” da justiça na Igreja. De fato, para muitas pessoas, que vivem uma situação
matrimonial irregular, torna-se muito difícil chegar a um tribunal eclesiástico para
esclarecer quais as reais condições de seu matrimônio. Em geral, é muito custoso,
demorado e incerto. Isso desmotiva as pessoas para procurar o tribunal. Acabam
renunciando ao direito de discutir judicialmente a nulidade do próprio matrimônio,
resignando-se à situação na qual vivem.
Diante desta realidade, o Papa deseja “favorecer mais a proximidade entre os fiéis e as
estruturas judiciárias da Igreja, seja valorizando a figura do Bispo diocesano como juiz
próprio, seja atribuindo a ele a responsabilidade pela organização de uma pastoral judiciária,
incentivando-o, também, a criar o próprio tribunal diocesano, embora no respeito à
normativa vigente no que tange às estruturas judiciárias da Igreja” (RIBEIRO, 2016., p.20).
Na sequência da introdução, para evitar equívocos ou distorções, o Romano
Pontífice teve o cuidado de esclarecer que a reforma proposta não tem por objetivo
“favorecer a nulidade do matrimônio, mas, a celeridade dos processos” (FRANCISCO,
2015a, Proêmio, p.2). É uma afirmação importante, pois, se, de um lado, se quer garantir
que a validade ou nulidade do matrimônio seja decidida e proferida em tempo razoável,
isto é, com celeridade, por outro lado, é fundamental que essa decisão esteja sempre em
conformidade com a verdade. Pois, a decisão da Igreja é de natureza meramente
declarativa, baseada na doutrina e sendo fiel à verdade dos fatos. Isso, porém, não pode ser
argumento para impedir uma maior simplificação do processo.
Um pouco adiante, antes de expor os critérios fundamentais da reforma, o Papa
também explica, no proêmio do MIDI, porque optou por manter a exigência de um
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processo de natureza judicial para verificar a existência ou não da nulidade do matrimônio,
não atendendo àqueles que queriam a adoção de um processo de natureza administrativa:
Fiz isso seguindo naturalmente os passos dos meus Antecessores, os quais
quiseram que as causas de nulidade do matrimônio fossem tratadas por via
judicial, e não administrativa, não porque o imponha a natureza da coisa, mas
porque o exige a necessidade de tutelar ao máximo a verdade do sagrado
vínculo, sendo isso assegurado, sem dúvida, pelas garantias da ordem judiciária
(FRANCISCO, 2015a, Proêmio).
Portanto, o argumento determinante para o Papa optar pelo caminho judicial foi a
necessidade de tutelar ao máximo a verdade do sagrado vínculo. No mais, “é preciso
acrescentar, que é fundamental que se ofereça aos fiéis condições para um discernimento
sério a respeito da própria situação matrimonial, a fim de que a decisão final, seja ela qual
for, realmente reflita a realidade dos fatos e não simplesmente as percepções subjetivas que
deles se tem” (RIBEIRO, 2016, p.21).
Enfim, o Papa Francisco, mantendo-se alinhado com a Tradição da Igreja, o
processo de natureza judicial mais como um valor do que como um problema. Seria
realmente uma grande perda privar os fiéis da possibilidade de esclarecer judicialmente sua
própria situação matrimonial. O importante é que a estrutura judicial seja acessível e o
processo tenha a devida celeridade, com uma dinâmica sempre focada na verdade. E, ao
final, devem caminhar juntas misericórdia e verdade.
2.3.2 Critérios da Reforma
Antes de apresentar as mudanças na atual legislação, o Papa Francisco explicitou os
critérios que conduziram a reforma do processo de nulidade matrimonial. o ao todo
oito. Todos eles vêm ao encontro da preocupação pastoral com a celeridade e
acessibilidade do processo judiciário. São uma resposta àquilo que os Bispos imploraram
ao Santo Padre: que os processos fossem mais rápidos e acessíveis. Cada um desses
critérios será agora objeto de uma breve análise.
- Uma única sentença favorável à nulidade é executiva. O cânon 1682, & 1,
determinava a necessidade de se transmitir ex ocio ao tribunal de apelação a sentença que
tivesse declarado por primeiro a nulidade do matrimônio. O tribunal de apelação deveria
confirmar por um decreto a decisão afirmativa, ou, então, encaminhar a causa para um
e
xame ordinário, que, ao final, levaria a uma sentença afirmativa ou negativa. Esta exigência
de uma dupla sentença foi objeto de discussão na III Assembleia Geral Extraordinária do
Sínodo dos Bispos, que pediram a sua supressão, depois assumida pelo Papa.
Os motivos para esse passo foram diversos. Destaca-se, inicialmente, um motivo de
ordem estatística. Referindo-se a um relatório da
atividade dos tribunais eclesiásticos na Igreja no ano de 2012, publicado em 2014,
consta que a mudança em segunda instância das sentenças pro nulitate matrimonii
(= favorável à nulidade do matrimônio) proferidas em primeira instância foi de 1
por cento nos Estados Unidos da América e no Canadá; de 7
,4 por cento na
Europa e de 3,3 por cento na Igreja como um todo (RIBEIRO, 2016, p.26).
Pondera-se, que essas poucas mudanças da primeira para a segunda sentença ainda
provenham, na maior parte, das apelações dos respectivos defensores do vínculo, ou,
então, do cônjuge que considera válido o matrimônio impugnado por seu consorte. Assim,
se na prática, a grande maioria das sentenças afirmativas encaminhadas aos tribunais de
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segunda instância era confirmada, parece não ter muito efeito prático e é um aumento
desnecessário do tempo do processo manter a exigência de uma dupla sentença. No mais,
suprindo essa exigência, como consta no cânon 1682, não está vedado o direito de apelação,
tanto das partes quanto do defensor do vínculo ou promotor. Ao final dessa discussão,
a dificuldade em observar os prazos fixados por lei, gerando uma grande
demora em prejuízo das partes, somada a pouca utilidade prática da exigência
estabelecida pelo cânon 1682, levaram o Papa Francisco a eliminar a exigência
da dupla sentença conforme que, aliás, é de direito eclesiástico, sem, com isso,
comprometer o direito das partes (privadas e públicas) de apelarem da decisão
(RIBEIRO, 2016, p. 30).
- O juiz único sob a responsabilidade do Bispo. Assim reza o texto: “A constituição
do juiz único, certamente clérigo, em primeira instância é confiada à responsabilidade do
Bispo que, no exercício pastoral do seu poder judicial, deverá assegurar que não se
consinta [em] qualquer forma de laxismo” (FRANCISCO, 2015a, Critérios da Reforma, p.2).
Essa possibilidade de um juiz monocrático na primeira instância para as causas que o
direito preceitua a necessidade de um tribunal colegial existia. Basta conferir o cânon
1425, & 4, que afirma: “No juízo de primeiro grau, o sendo possível, eventualmente,
constituir um colégio, a Conferência dos Bispos, enquanto perdurar tal possibilidade, pode
permitir ao Bispo confiar a causa a um único juiz clérigo que escolha para si, onde for
possível, um assessor e um auditor”.
O MIDI, entretanto, faz uma mudança em relação a essa possibilidade: agora o Bispo
diocesano não precisará mais solicitar a permissão da Conferência Episcopal para confiar
as causas a um único juiz clérigo em seu tribunal. Isso, porém, não significa que o Papa
abra a possibilidade de se criar tribunais diocesanos monocráticos à vontade, para tratar
das causas de nulidade matrimonial, eliminando a obrigatoriedade da tratativa colegial da
matéria. – É uma questão aberta, que é tratada em outro contexto.
- O próprio Bispo é juiz. Este critério também não é uma novidade absoluta, nem
no sentido teológico, nem jurídico. Quanto ao aspecto teológico, o Papa quer traduzir na
prática os ensinamentos do Concílio Vaticano II, ao estabelecer que “o próprio Bispo na
sua Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a
ele confiados”. Quanto ao aspecto jurídico, vários cânones que davam ao Bispo essa
competência de ser o juiz nas causas de nulidade matrimonial, a ponto de se perguntar:
qual, então, a novidade que esse critério do MIDI nos traz?
Cân. 391, & 1. Compete ao Bispo diocesano governar a Igreja particular que lhe é
confiada, com poder legislativo, executivo e judiciário, de acordo com o direito.
& 2. O Bispo mesmo exerce o poder legislativo; exerce o poder executivo
pessoalmente ou por meio de vigários gerais ou episcopais, de acordo com o
direito; exerce o poder judiciário pessoalmente ou por meio do Vigário Judicial
e dos juízes, de acordo com o direito.
Cân. 1419, & 1. Em cada diocese e para todas as causas não expressamente
excetuadas pelo direito, o juiz de primeira instância é o Bispo diocesano, que
pode exercer o poder judiciário pessoalmente ou por outros, segundo os
cânones seguintes.
Em Dignitas Connubii (DiC), contudo, se afirma que não convém que o Bispo
diocesano exercite pessoalmente o poder judiciário, a não ser que motivos especiais o
exijam. Isso significa que, na prática, até a publicação do MIDI, “a principal função
(embora o única) do Bispo diocesano, como juiz próprio, consistia em prover os ofícios
eclesiásticos previstos para a administração da justiça na Igreja local a ele
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confiada” (RIBEIRO, 2016, p.32). Mas, o Vigário Judicial e demais juízes exerciam vicária e
ordinariamente o poder judiciário, e raramente o Bispo reservava para si alguma causa.
Ora, o Papa propõe uma pastoral judiciária e quer uma maior proximidade entre as
partes e quem julga a nulidade matrimonial. Ciente do caráter pastoral do direito, quer que
as estruturas judiciárias da Igreja sejam mais acessíveis aos fiéis, evitando a elitização da
justiça. Por isso, prefere que sejam constituídos tribunais diocesanos, mas também deixa
aberta a possibilidade de tribunais interdiocesanos.
Enfim, o terceiro critério mostra que o Papa quer valorizar e, ao mesmo tempo,
envolver o Bispo diocesano na atividade judiciária, dela tomando parte de diversas maneiras:
seja na provisão dos ofícios judiciais, seja curando a preparação dos operadores
do tribunal eclesiástico diocesano, seja na criação de um serviço de caráter pré-
processual, talvez, ligado à pastoral familiar, seja julgando pessoalmente aquelas
causas que lhe forem remetidas pelo Vigário Judicial para serem decididas por
meio de um procedimento breve, salvo sempre o seu direito de avocar a si
outras causas dentro do âmbito de sua competência (RIBEIRO, 2016, p.34).
- O processo mais breve. Aqui o Papa anuncia uma forma de processo mais breve,
a ser aplicada apenas em casos onde a nulidade do matrimônio for sustentada por
argumentos particularmente evidentes. Atento, e para evitar que esse processo colocasse
em risco o princípio da indissolubilidade do matrimônio, ele o reservou ao Bispo
diocesano, que nele atuaria como juiz monocrático. O Bispo, em virtude de seu cargo
pastoral - entende o Romano Pontífice - é, com Pedro, o maior garante da unidade católica
na fé e na disciplina.
Entretanto, não é novidade absoluta a existência de um processo mais breve para
tratar da nulidade do matrimônio. O atual código de direito canônico estabelece vários
procedimentos judiciais mais breves. Por exemplo, “quando o motivo da nulidade é um
impedimento não dispensado ou um defeito da forma o sanado e documentos, não
impugnáveis, que demonstrem isso”. Também,
se a nulidade é devida a um defeito ou a um vício de consentimento, ou mesmo
quando não se pode demonstrar a existência de um impedimento ou um defeito
de forma mediante um documento não impugnável, a lei prevê dois graus de
juízo, sendo o primeiro chamado de processo (juízo) contencioso ordinário
(mantido), e o segundo de processo judicial abreviado (mantido, mas
modificado) (RIBEIRO, 2016, p.34).
Portanto, segundo Ribeiro, o CIC 83 estabelecia um processo judicial abreviado,
que, porém, foi modificado com a Reforma do Papa Francisco. Mas, o que interessa
particularmente aqui é um
procedimento judicial chamado ‘extraordinário’, que aparece indicado no artigo
118 da Lex Propria do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Esse processo
previa que a Assinatura Apostólica, por meio de um decreto conclusivo do seu
Prefeito, declarasse a nulidade do matrimônio, independentemente dos
motivos, desde que os dados existentes mostrassem a não necessidade de
sondagens posteriores (RIBEIRO, 2016, p.35).
Ao anunciar, agora, a adoção de um procedimento judicial mais breve, o Papa
Francisco está transferindo para os Bispos, e não para aos juízes, uma atribuição que, até
aí, cabia à Assinatura Apostólica (Cf. RIBEIRO, 2016, p.36-37). Este é, sem dúvida, um
gesto significativo para encurtar a distância entre as estruturas judiciárias e as pessoas que
delas necessitam. Faz parte de um movimento de aproximação da Igreja dos que estão à
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margem das estruturas e dos serviços eclesiásticos. O Bispo, que está mais próximo de seus
fiéis, é agora constituído como juiz monocrático, único, daqueles que lhe são confiados ao
seu pastoreio.
- Apelação à Metropolitana. O desejo do Papa é restabelecer a apelação à
Metropolitana, uma vez que tal ofício de chefia da província eclesiástica, estável ao longo
dos séculos, é um sinal distintivo da sinodalidade na Igreja.
O atual Código da Igreja Católica, segundo Ribeiro, prevê quatro hipóteses para o
segundo grau na hierarquia dos tribunais territoriais, tendo cada uma suas normas
específicas. Assim se procura garantir o exercício do direito de apelação para a parte que
eventualmente se considerar injustiçada pela sentença. Sem examinar todas as
possibilidades, cabe destacar que, “a escolha do critério territorial, determinado pela área
geográfica da província eclesiástica, implica que o tribunal metropolitano seja o tribunal
de segunda instância para todos os tribunais diocesanos da província eclesiástica, isto é,
para todas as dioceses sufragâneas (cân. 1438, e DiC, art. 25, 1)” (RIBEIRO, 2016, p.37-
38). A mesma regra também se aplica a um eventual tribunal interdiocesano, se composto
por dioceses da mesma província.
- A tarefa própria das Conferências Episcopais. O Papa Francisco pede que as
Conferências Episcopais se deixem impelir pelo zelo apostólico para alcançar os fiéis
dispersos, respeitem e incentivem os Bispos na organização do exercício judicial em suas
Igrejas, ajudando-os a restaurar a proximidade entre o juiz e os fiéis, bem como a colocar
em prática toda a reforma do processo matrimonial.
Juntamente com a proximidade do juiz, o Papa quer que as Conferências Episcopais
cuidem, na medida do possível, da gratuidade dos processos, para que a Igreja,
“mostrando-se aos fiéis mãe generosa, em uma matéria tão estreitamente ligada à salvação
das almas, manifeste o amor gratuito de Cristo pelo qual todos fomos salvos”.
Entretanto, ao fazer o pedido da gratuidade, o Papa ao mesmo tempo recorda a
necessidade da justa e digna remuneração dos operadores dos tribunais, considerando que
muitos se dedicam integralmente a este serviço, provendo a si mesmos e, por vezes, suas
famílias (quando leigos), com o fruto de seu trabalho. Trata-se aqui de uma preocupação
que está em sintonia com o cânon 281, &1, do Código atual:
Os clérigos, na medida em que se dedicam ao ministério eclesiástico, merecem
uma remuneração condizente com a sua condição, levando-se em conta seja a
natureza do próprio ofício, sejam as condições do lugar e tempo, de modo que
com ela possam prover as necessidades de sua vida e também à justa retribuição
daqueles de cujo serviço necessitam (Código de Direito Canônico, 1983, c.1649).
Em relação à gratuidade do processo judicial canônico, não é algo totalmente novo.
O cânon 1649, &1 do atual Código da Igreja Católica estabelece que ao Bispo cabe
supervisionar o tribunal e estabelecer normas, e entre estas, conforme & 3, a possibilidade
do “gratuito patrocínio ou redução das despesas”. a impressão que o Santo Padre quer
avivar e urgir ou potencializar uma possibilidade que existia, mas pouco explorada. É
preciso ter mais sensibilidade pastoral, facilitando ao máximo o acesso dos fiéis aos
serviços da Igreja.
No mais, embora a gratuidade esteja incluída nos critérios que conduziram a
reforma do processo de nulidade matrimonial, nem os cânones e nem os artigos do MIDI
ocupam-se diretamente com ela. Da mesma forma no CIC 83, em momento algum, a
gratuidade é colocada como direito absoluto das partes envolvidas no processo de nulidade
matrimonial. O cânon 1649, 1, que trata dessa questão como referido permaneceu
inalterado no MIDI.
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Com isso pode-se concluir, que antes e agora, após a Reforma de Francisco, a
questão da gratuidade permanece aberta. Cabe ao Bispo, como supervisor do tribunal,
fixar normas a respeito do gratuito patrocínio e das custas processuais. Mas, com o MIDI
uma ressalva: ao se tratar de causas matrimoniais, é preciso contar com o apoio da
Conferência Episcopal, a quem cabe cuidar para que, dentro do possível, os processos de
nulidade sejam gratuitos. Ainda que o Bispo tenha autoridade e seja responsável, a
Conferência Episcopal é chamada a assumir sua corresponsabilidade.
- Apelação à Apostólica. O Papa optou por manter o direito de se apelar ao
Tribunal ordinário da Apostólica, isto é, à Rota Romana, em respeito a um princípio
muito antigo, de modo a reforçar o vínculo entre a de Pedro e as Igrejas particulares,
mas tendo o cuidado, na disciplina desta apelação, de impedir qualquer tipo de abuso do
direito, que pudesse causar algum dano à salvação das almas. Nesse sentido, ele também
comunicou que a lei própria da Rota Romana seria, quanto antes, adequada às regras do
processo da reforma, dentro dos limites do possível e necessário. Hoje, essa adequação, em
verdade, aconteceu. Pois, no dia 7 de dezembro de 2015 o Pontífice publicou um
documento no qual ele disciplinou o direito de apelação à Rota Romana (Cf. RIBEIRO,
2016, p.43, nota 23).
Alguém poderia questionar o que ou como esse critério da apelação à Apostólica
pode favorecer a proximidade dos fiéis de dioceses não situadas em território europeu. Se,
entretanto, o Romano Pontífice mantém essa possibilidade de apelação, em nome da
unidade da Igreja, ele o faz com a devida adequação da própria Rota Romana, para torná-
la mais acessível e de acordo com a reforma, para quem necessitar e quiser exercitar o
direito de a ela recorrer.
- Previsões para as Igrejas Orientais. Aqui o Papa anuncia que, em virtude do
ordenamento eclesial e disciplinar das Igrejas Orientais, emanará, na mesma data, um
Motu próprio específico para reformar a disciplina dos processos matrimoniais no digo
dos Cânones das Igrejas Orientais. Portanto, este documento foi publicado junto com o
MIDI e se chama Mitis et Misericors Iesus (FRANCISCO, 2015b)
11
.
Por fim, feitas todas essas considerações, o Papa decreta e estabelece “que o Livro VII
do Código de Direito Canônico, Parte III, Título I, Capítulo I, sobre as causas para a
declaração de nulidade do matrimônio (cânones 1671-1691), a partir do dia 8 de Dezembro
de 2015, seja integralmente substituído” por um novo texto, fruto do trabalho da reforma,
e que agora é oficializado.
Certamente seria útil examinar detalhadamente todo o projeto da reforma,
verificando um a um os seus cânones, mas, pelo propósito deste artigo, focado no caráter
e nas considerações especificamente pastorais, pode-se dispensar essa tarefa. Fica,
portanto, dispensado o exame dos cânones propostos tanto pelo MIDI quanto pelo Mitis et
Misericors Iesus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As duas Cartas Apostólicas, aqui brevemente apresentadas e comentadas, ficam mais
claras se situadas no contexto mais amplo do pontificado do Papa Francisco. As falas do
Pontífice, suas escolhas e seus gestos são todos simbólicos, cheios de significado. A
começar pela própria escolha do nome “Francisco”, em deferência ao pobre de Assis:
11 Este Motu Proprio foi publicado pelas Edições CNBB juntamente com o MIDI na obra: FRANCISCO. Cartas
apostólicas em forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus e Mitis et Misericors Iesus sobre a reforma do processo
canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito Canônico e no Código dos Cânones das
Igrejas Orientais. Documentos Pontifícios 23. Brasília: Edições CNBB, 2015b.
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está manifesta uma compreensão de Igreja e um projeto de pontificado com opção pastoral
prioritária aos mais pobres. Em seguida, dia 8 de julho de 2013, o Pontífice visita a Ilha de
Lampedusa, visando despertar acolhida e hospitalidade por parte dos governos e da
opinião público diante da multidão de imigrantes desesperados e, muitas deles,
naufragados. Enfim, todos os seus gestos e seus documentos são um convite para o que ele
chama de “Igreja em saída”, de ir ao encontro de quem está à margem, seja da Igreja, seja
da própria sociedade.
Aqui, em relação a Amoris Laetitia e ao MIDI, o que impressionou e motivou o Papa
Francisco a escrever essas encíclicas foram a fragilidade e as deficiências de muitos fiéis na
vivência do sacramento do matrimônio. É destes que a Igreja precisa se aproximar e
tornar-lhes acessíveis os seus serviços. Requer-se uma pastoral de amor misericordioso,
superando uma “moral fria de escritório” e abrindo o coração “àqueles que vivem nas mais
variadas periferias existenciais”.
Amoris Laetitia, em verdade, apresenta primeiro, positivamente, a beleza e a alegria
do amor na família, como sugere o próprio título. O matrimônio é uma vocação - diz o
texto “sendo uma resposta ao chamado específico para viver o amor conjugal como sinal
imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja” (FRANCISCO, 2016, p.64, n.72). Ainda mais,
ele não só sinaliza, mas é o próprio Cristo que “vem ao encontro dos cônjuges cristãos pelo
sacramento do matrimônio” (FRANCISCO, 2016, p.65, n.73). Feliz de quem compreende
e, pela graça de Deus, consegue viver esse amor.
No capítulo IV da encíclica, o amor matrimonial é tratado e ilustrado a partir do
“hino ao amor” de São Paulo de 1Cor 13,4-7. São fragmentos de um discurso amoroso que
procura descrever o amor humano em termos bem concretos. Ou seja, bem consciente do
quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos, pois, “não se deve atirar para cima
de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união
que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica ‘um
processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de
Deus’” (FRANCISCO, 2016, p.102, n.122).
Percebe-se um senso da realidade. Sem deixar de perseguir e anunciar o ideal
matrimonial do Evangelho, o Papa sempre tem mostrado muita sensibilidade pastoral e
misericórdia diante da fragilidade humana, que para muitos dificulta a vivência deste ideal.
Foi sob esse aspecto que o presente artigo se ocupou com a Amoris Laetitia,
particularmente em seu capítulo VIII, que trata especificamente de “acompanhar, discernir
e integrar a fragilidade”.
Ao abordar o tema Amoris Laetitia a caminho do MIDI”, procurou-se mostrar que
tem preocupações e se levantam questões que estarão na origem e terão um
encaminhamento mais concreto na Reforma do encaminhamento das causas de processo
de nulidade matrimonial. Não dúvidas, que “o matrimônio cristão, reflexo da união
entre Cristo e sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher,
que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade [...]” (FRANCISCO,
2016, p.242, n.292). Há, entretanto, formas de união que contradizem radicalmente este
ideal, enquanto outras o realizam parcialmente. Aí, nessas situações, que o
correspondem à compreensão que a Igreja tem do matrimônio, ela, contudo, não deixa de
valorizar o que já existe de construtivo.
Essas situações, muitas vezes chamadas de “irregulares”, merecem uma atenção
especial e um olhar misericordioso por parte do Papa, e nortearam a discussão deste
artigo. Aos pastores, escreve o Pontífice, cabe discernir nas mais diversas situações, pois,
sua missão não é só promoção do matrimônio, mas também “o discernimento pastoral das
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situações de muitas pessoas que deixaram de viver esta realidade”. A tarefa é identificar
elementos que favoreçam a evangelização e o crescimento humano e espiritual e valorizar
sinais de amor, que de algum modo refletem o amor de Deus. Trata-se de acolhê-las e
acompanhá-las com paciência e delicadeza, como o fez Jesus em seu diálogo com a
samaritana (Cf. Jo 4,4ss).
Sob o tema “preocupação pastoral e pastoral judiciária no MIDI”, procurou-se
mostrar que o mesmo espírito e a motivação pastoral presentes em Amoris Laetitia
verificam-se também na elaboração da Carta Apostólica em forma de Motu Próprio sobre
a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código
de Direito Canônico. Francisco parte de Jesus, manso Juiz e Pastor de nossas almas, que se
constitui em fundamento de seu projeto reformista. Jesus confiou sua missão e seu poder
ao Apóstolo Pedro e seus Sucessores, cabendo hoje aos pastores da Igreja o direito e o dever
da obra da justiça e da verdade, sempre conduzidos por um olhar misericordioso. Pois, “a
misericórdia não exclui a justiça e a verdade”, mas é, antes de tudo, “a plenitude da justiça e
a manifestação mais luminosa da verdade de Deus” (FRANCISCO, 2016, p.263, n.311).
Nesse sentido, considerando o afastamento de muitos fiéis da estrutura judiciária,
Francisco incentiva a criação de uma pastoral judiciária, inserida na pastoral familiar,
reforçando a estreita relação entre direito e pastoral. Sua função seria como que o “braço
estendido” da “Igreja em saída”, que vai ao encontro dos que estão distantes, e facilita o
acesso à estrutura judiciária. Cabe-lhe uma orientação e uma investigação preliminar ao
processo judiciário, com procedimentos que ajudarão aos fiéis que eventualmente se
dirigirem ao tribunal eclesiástico, para que cheguem preparados, no sentido de buscar a
verdade sobre o seu matrimônio “e não, simplesmente, para obter a nulidade a todo custo,
querendo que prevaleça de modo unilateral a sua percepção subjetiva dos
fatos” (FRANCISCO, 2016, p.46).
Finalmente, ao analisar “justificativa e critérios da Reforma”, procurou-se mostrar
que um caminho lógico e uma coerência entre as iniciativas e as investigações
anteriores ao processo judiciário, indicadas pelo Papa Francisco, e a justificativa e os
critérios que conduziram a reforma por ele decretada. no Proêmio do MIDI ele esclarece
que não está em discussão a doutrina da indissolubilidade do matrimônio, e recordou que
a lei suprema na Igreja é sempre a salus animarum (=a salvação das almas, cf. cân. 1752). Ou
seja, todas as instituições eclesiásticas têm o sentido de comunicar a graça divina e
favorecer o bem dos fiéis.
Ora, como favorecer o bem dos fiéis se eles estão distantes? É isso que leva o Romano
Pontífice a optar pela reforma do processo canônico de nulidade matrimonial. O que alimenta
o impulso reformador é o enorme número de fiéis que muitas vezes se afastam das estruturas
jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral. A caridade e a misericórdia exigem
que a Igreja, como mãe, se aproxime dos filhos que se consideram separados.
Evidencia-se a sensibilidade pastoral do Romano Pontífice, que quer evitar uma
“elitização” da justiça na Igreja. Nesse sentido são também estabelecidos os critérios que
orientaram a reforma, todos eles visando favorecer mais a proximidade entre os fiéis e as
estruturas judiciárias da Igreja, seja valorizando a figura do Bispo diocesano como juiz
próprio, seja atribuindo a ele a responsabilidade pela organização de uma pastoral
judiciária, incentivando-o, também, a criar o próprio tribunal diocesano, embora sempre
respeitando as normas das estruturas judiciárias da Igreja.
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XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS. A vocação e a missão da
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RUEDELL, Aloísio
O cater pastoral da Carta Aposlica em forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, sobre a reforma [...]
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 88-105, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
PARECERISTAS AD HOC
NOMINATA DE PARECERISTAS AD HOC
DA REVISTA TEOPRÁXIS
Edições 134 e 135 de 2023
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.202
A Revista Teopráxis encaminha seus textos à pareceristas externos, selecionados por
especialidade ou afinidade à área temática específica do trabalho, e preserva o anonimato
dos autores e dos pareceristas através do modelo de dupla revisão às cegas (Double blind
peer review). Nesse sentido, na listagem a seguir apresentamos os autores que fizeram parte
das avaliações nas edições 134 e 135 do ano de 2023.
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Nominata dos pareceristas Ad Hoc da Revista Teopráxis: edões 134 e 135 de 2023
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 106-107, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.