A SUPERAÇÃO DA
FOME COMO
DESAFIO TEOLÓGICO
v. 40, n. 134, Jan./Jun./2023
ISSN on-line: 2763-5201
EQUIPE EDITORIAL
Diretoria do Itepa
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Dr. Pe. Dirceu Dalla Rosa - Administrador – Tesoureiro
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Editor chefe
Dr. Pe. Clair Favreto - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Comissão editorial
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Ms. Selina Maria Dal Moro - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Dr. Pe. Rogério Luiz Zanini - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
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Conselho Editorial
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Dr. Edivaldo José Bortoleto - Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
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Dr. Leandro Luis Bedin Fontana - Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt, Alemanha)
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Dr. Pe. Leo Konzen - Instituto Missioneiro de Teologia - IMT
Dr. Pe. Ivanir Antonio Rampon - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
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Editoração
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T314
Revista Teopráxis, vol.1, n.1(1984-) / Instituto de Teologia e Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v.40
- n°134, Jan.-Jun./2023. Semestral.
ISSN:1677-860X versão impressa (descontinuada)
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Periódicos I. Instituto de Teologia e Pastoral-ITEPA
SUMÁRIO
Editorial: A superação da fome como desao teológico......................................................4
Neri José Mezadri e Ari Antônio dos Reis
ENTREVISTA
Entrevista com Dom Guilherme Antônio Werlang............................................................. 7
Neri José Mezadri, Ari Antonio dos Reis, Júlio Cesar Sardá e Gustavo Borges de Souza
ARTIGOS
A campanha da fraternidade e a conversão da igreja...........................................................11
The fraternity campaign and the conversion of the church
Jose Adalberto Vanzella
A fome é sinal de contradição num tempo de abundância................................................23
Hunger is a sign of contradiction in a time of abundance
Neri José Mezadri
Fome e produção de alimentos no Brasil face às exigências do
direito à alimentação...........................................................................................................................40
Hunger and food production in Brazil in the face of the demands of the right to food
Guilherme C. Delgado
A imigração e a fome: aspectos do vivido por
venezuelanos/as em PacaraimaRR...........................................................................................50
“The lunch box that saves” Immigration and hunger: aspects of life experience for
Venezuelans in Pacaraima - RR
João Carlos Tedesco
Peregrinos de um mundo novo: reexões vocacionais a partir de
Dom Helder Camara............................................................................................................................ 62
Pilgrims of a new world: vocational reflections inspired by Dom Helder Camara
Ivanir Antonio Rampon, Eberson Fontana e Lenice Rebelato
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desaos atuais....................................... 77
Education for sharing and solidarity: Current challenges
Lourdes de Fátima Paschoaletto Possani
A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reexão socioteológica........90
The mission of the Church in Brazil to the peripheries: a sociotheological reflection
Ari Antônio dos Reis e Anderson Pereira
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
EDITORIAL
A superação da fome como
desao teológico
Neri José Mezadri*
Ari Antônio dos Reis**
Está chegando em suas mãos a Revista Teopraxis, primeira
edição de 2023. Esta edição lança um olhar teológico para uma
realidade preocupante no Brasil e no mundo, a fome de milhões de
pessoas. Alguns dados de alcance mundial têm chamado atenção para
o aumento da fome no mundo. Cerca de 828 milhões de pessoas
passam fome, segundo relatório da Organização das Nações Unidas
ONU que compilou dos dados até 2021. Esta realidade também está
presente no Brasil, que voltou a constar no mapa da fome depois de
alguns anos em processo de superação. Atualmente 21 milhões de
brasileiros não conseguem se alimentar diariamente e 70,3 milhões
vivem situação de insegurança alimentar. Por insegurança alimentar
compreende-se a não possibilidade de alimentar-se de forma
adequada por certo período de tempo. Na forma grave traduz-se em
fazer apenas uma refeição ao dia ou ficar o período inteiro ou mais sem
se alimentar. Pode acontecer que a família dormir sem se alimentar
e não tenha certeza se no dia seguinte conseguirá se alimentar. É uma
realidade não desejada para a humanidade e exige superação.
Alguns processos sociais e opções governamentais provocaram
tal retrocesso. No território nacional, três em cada dez famílias,
enfrentam algum nível de falta de alimentos ou passam fome. Em se
tratando de insegurança alimentar, cerca de 125,2 milhões de pessoas
padecem em algum nível, seja ele grave, moderada ou leve.
Diante do quadro preocupante, a Igreja no Brasil propôs para o
ano de 2023 a reflexão sobre o tema da fome na Campanha da
Fraternidade, acolhendo desta forma o mandato de Jesus aos
discípulos: “dai-lhes vos mesmos de comer” (Mt 14, 16). As palavras
do Nazareno, dirigidas aos discípulos indicam que eles também eram
responsáveis por aquelas pessoas necessitadas e famintas. Hoje é
atitude profética lembrar que a fome o é problema do faminto, é
problema da humanidade e é mister trazer para a responsabilidade de
cada cidadão e para cada pessoa de fé o mandato de Jesus.
A reflexão teológica acontece, entre outros caminhos, no olhar
a partir do mistério revelado e na análise da realidade que a cerca. A
realidade da fome provoca a Teologia. A Revista Teopráxis objetiva, em
sintonia com este debate, refletir o tema. A Teologia tem uma palavra
a dizer sobre a realidade da fome e esta palavra embasada na Palavra
de Deus e na Tradição.
Os dados da realidade dão a dimensão das escolhas políticas e
econômicas, expressando a racionalidade predominante no contexto
contemporâneo, bem como da subjetividade que toma conta de
corações e mentes que se transformam em modo de vida. Faz-se
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 4-6, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.197
* Doutor em Educação, atuando como
orientador educacional no Centro de Ensino
Médio Integrado UPF, professor e
coordenador pedagógico na Itepa Faculdades.
E-mail: nerijm76@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9511-7011
** Mestre em Teologia Pastoral pela PUC/
SP. Professor da área de Teologia Pastoral e
Teologia da Revelação e professor do Curso
de Bacharelado em Teologia da Itepa
Faculdades de Passo Fundo - RS
Email: reis.abt@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-2096-6193
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mister revelar que sem mexer na racionalidade e na subjetividade capturada por ela, não se
muda a estrutura de concentração de renda e riqueza e não se muda a lógica de apostar em
commodities em detrimento de investir em alimentos. A dor de quem sente fome ganha
conotações distintas e tem um alcance diferente pelo efeito devastador que produz em
termos de perspectiva de futuro físico e psíquico. Além da abordagem analítica, os artigos
apontam uma perspectiva propositiva e que visa dialogar com tantas pessoas que vivem
em situação de miséria.
Esta edição da Revista Teopráxis contém sete artigos e uma entrevista, que visam
fazer um diagnóstico da realidade da fome e de suas principais causas, além de apontar
perspectivas que visam solucionar o problema, apontando para a complementariedade
entre a ação imediata e urgente de atender às necessidades emergenciais e a transformação
das estruturas que causam concentração na mão de poucos e deixam muitos em situação de
miséria e fome. Os artigos buscam sustentação teórica em uma área ampla no campo das
ciências humanas e sociais, mas convergem no enfoque teológico fundamentando a
abordagem na cristã e nos princípios da defesa da vida e da dignidade humana. Quem
professa a cristã-católica tem como consequência, ato contínuo da profissão de fé, a vida
digna, não no sentido da exclusividade, mas de convocação e associação para combater
toda forma de vulnerabilidade humana.
A revista abre com uma entrevista de Dom Guilherme Antonio Werlang, bispo de
Lages SC que por anos coordenou a Comissão Especial para a Superação da Fome e da
Miséria da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Na sequência, segue o artigo de José
Adalberto Vanzella que discorre sobre a proposta da Campanha da Fraternidade na
perspectiva de provocar conversão, pessoal, pastoral e eclesial, destacando a Igreja como
sujeito por excelência dessa conversão. O autor explicita os principais modelos eclesiais e
as posturas associadas na comparação com a proposta indicada pelo Concílio Vaticano II,
apontando para a função da Campanha da Fraternidade no caminho da conversão. A
tarefa
da Campanha da Fraternidade dialoga, no texto, com a análise dos modelos eclesiais e
de
onde se extrai consequências para a conversão pastoral, considerando a realidade da fome.
Os três artigos que seguem explicitam a realidade da fome como desafio posto ao
fazer teológico. O primeiro deles parte de um diagnóstico amplo, intitulado “Num tempo
de abundância, a fome é sinal de contradição”, de autoria de Neri José Mezadri. O texto
apresenta dados alarmantes sobre a fome como um problema mundial como resultado de
um modelo político econômico centrado na lógica do mercado e na racionalidade
concorrencial. Esta racionalidade acaba por legitimar a desigualdade e a concentração,
atribuindo aos famintos a responsabilidade sobre a fome, além de capturar a subjetividade
e direcionar a energia vital para buscas meramente individuais. A transformação da
realidade parte da consciência dessa realidade e se sustenta na que empenha o
compromisso fraterno com uma sociedade em que caibam todos. O segundo texto de
diagnóstico é de autoria de Guilherme Delgado. Com o título, “Fome e produção de
alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação”, o texto reflete o
rompimento ético entre a produção de alimentos e o direito à alimentação dos brasileiros,
anomalia fruto dos processos de ocupação agrária dos últimos cinquenta anos. O artigo “A
marmita que salva” discute o problema da fome e da migração, a partir da realidade dos
venezuelanos que ingressam no Brasil através do estado de Roraima. O texto é de autoria
do professor e escritor João Carlos Tedesco que revela o significado do atendimento
imediato das necessidades primárias da fome em meio a um contexto carregado de
contradições, em que sofrimento e esperança ganham conotações radicais e distintas.
MEZADRI, Neri José; REIS, Ari Antônio dos
Editorial: A superão da fome como desafio teológico
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 4-6, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Na sequência são apresentados três artigos com enfoques específicos em diálogo com
a temática da fome sob a abordagem teológica. Ivanir Antonio Rampon, Eberson Fantana
e Lenice Rebelato, no artigo intitulado “Peregrinos de um mundo novo: reflexões
vocacionais a partir de Dom Helder Camara”, discorrem sobre a espiritualidade helderiana
com sua marca profunda na opção pelos pobres e as consequências para os vocacionados
dos tempos atuais. O compromisso vivido intensamente por Dom Helder na oração,
expressa a dinâmica da como doação da vida em razão de causas radicais. A superação
das diferentes formas de egoísmo e o enfrentamento das cruzes é um apelo forte a quem
assume a vocação com dedicação substancial.
O campo educacional e a missão de educar para a solidariedade é o tema central do
artigo de Lourdes de Fátima Paschoaleto Possani. Sob o título “Educar para a partilha e a
solidariedade: desafios atuais”, o texto apresenta uma perspectiva de educação libertadora
como caminho para avançar na direção da defesa da vida, da liberdade e da autonomia dos
sujeitos. A abordagem considera a realidade educacional em termos amplos, não reduzido
à análise de processos formais. A educação para a solidariedade implica considerar
temáticas sensíveis no contexto atual como a sustentabilidade, a luta por direitos e o
compromisso social.
Fecha a revista o artigo de autoria de Ari Antonio dos Reis e Anderson Pereira,
intitulado, “A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteológica”.
O texto reflete sobre os processos de urbanização e a configuração das periferias a partir de
compreensões sociológicas e geográficas e o desafio cada vez maior e mais urgente da ação
evangelizadora em meio a esta realidade.
A periferia é uma construção social e o lugar por excelência da vulnerabilidade e da
fome, porém não de desesperança. A Igreja não pode negligenciar a periferia como lugar
eclesial e teológico.
Desejamos uma ótima leitura. Que esta edição da Revista Teopráxis possa ajudar a
compreender a realidade da fome fortemente interpeladora da fé cristã.
MEZADRI, Neri José; REIS, Ari Antônio dos
Editorial: A superão da fome como desafio teológico
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 4-6, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
ENTREVISTA
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
ENTREVISTA COM DOM
GUILHERME ANTÔNIO WERLANG
Neri José Mezadri*
Ari Antonio dos Reis**
Júlio Cesar Sardá***
Gustavo Borges de Souza****
Fazer o que Jesus mandou, evangelizar, é dar vida bonita e
plena para todos, é dar alimento, educação e moradia. Além de ter
alimento, educação e moradia a pessoa humana tem direito de ser
feliz. Essa condição, por sua vez, reforça o sentimento de filiação
divina. Quando as pessoas estavam com fome e os discípulos queriam
dispersá-las para que fossem ao povoado em busca de alimento, Jesus
os provoca para que deem de comer. Isso inspira a educação para a
partilha como elemento transformador da realidade atual.
A evangelização, portanto, não está dissociada da vida. Quem
necessita de roupa e comida não é suficiente enviar em paz, sem
satisfazer as necessidades de nada adianta. Desta maneira, além de
campanhas e ações para satisfazer as necessidades das pessoas,
preocupar-se com políticas públicas que atendam às demandas da
população pobre e faminta não está fora de contexto para pessoas de
e de Igreja, não significa meter-se em política. Deus é libertador
dos oprimidos e atuar em seu nome é buscar alternativas para que as
pessoas tenham vida plena e sejam felizes.
No primeiro número da Revista Teopráxis de 2023
apresentamos a entrevista com Dom Guilherme Werlang, bispo
diocesano de Lages/SC, coordenada pelos professores Neri Mezadri e
Ari A. dos Reis e intermediada pelos acadêmicos do Curso de
Bacharelado em Teologia, Júlio Cesar Sardá e Gustavo Borges de
Souza. Dom Guilherme é um dos bispos que se empenhou no
trabalho de coleta de alimentos e na articulação de combate à fome
no Brasil na virada do século. Motivados pelo documento: Exigências
Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, número 69,
inspiração ainda de Dom Luciano Mendes de Almeida e
especialmente de Dom Mauro Morelli, realizou-se um trabalho
valioso e que depois contou com apoio de programas
governamentais. Infelizmente, uma realidade que retorno com força
no contexto atual e que motiva a realização da Campanha da
Fraternidade de 2023.
Para Dom Guilherme, os alimentos que compõem a cesta
básica não deveriam estar submetidos à lei do mercado, pois
alimento saudável e nutricional equilibrado é direito humano.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 7-10, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.147
* Doutor em Educação, atuando como
orientador educacional no Centro de Ensino
Médio Integrado UPF, professor e
coordenador pedagógico na Itepa Faculdades.
E-mail: nerijm76@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9511-7011
** Mestre em Teologia Pastoral pela PUC/
SP. Professor da área de Teologia Pastoral e
Teologia da Revelação e Coordenador do
Curso de Bacharelado em Teologia da Itepa
Faculdades de Passo Fundo - RS.
E-mail: reis.abt@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-2096-6193
* Acadêmico do curso de bacharelato em
teologia da Faculdade de Teologia e Ciências
Humanas – Itepa Faculdades.
E-mail: juliosardacesar@gmail.com
https://orcid.org/0009-0005-3144-1962
* Acadêmico do curso de bacharelato em
teologia da Faculdade de Teologia e Ciências
Humanas – Itepa Faculdades.
E-mail: gustavoseminarista@gmail.com
https://orcid.org/0009-0007-4603-255X
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Comida e bebida são direito humano e dom de Deus e não poderiam ter acesso restrito a
quem tem dinheiro para comprar. Nesse sentido, é uma grata satisfação podermos oferecer
aos leitores essa bela entrevista.
1 Em 2002 assumiste a presidência da Comissão Episcopal Pastoral para a
Superação da Fome e da Miséria. Como estava a situação naquele início de século e
como o senhor a vê hoje?
Na assembleia geral da CNBB nós aprovamos o documento das exigências éticas e
evangélicas da superação da fome e da miséria do Brasil, então a fome estava assim
supergrande, eram milhares e milhares e milhões de brasileiros passando fome todos os
dias, então aquilo foi inspiração ainda de Dom Luciano Mendes de Almeida e
especialmente Dom Mauro Morelli que fizeram uma proposta para CNBB, de um
documento, que foi aprovado por unanimidade. Não teve nenhum bispo do Brasil que foi
contra esse documento. Esse documento tem como nome: Exigências Evangélicas e Éticas de
Superação da Miséria e da Fome, número 69. Nós éramos acusados, enquanto Igreja que se
mete nas questões políticas sociais e nós mostrávamos que isso, possui sua raiz no
evangelho. Os apóstolos queriam ao final da tarde que Jesus mandasse a multidão embora
para que eles fossem aos povoados comprar coisas para comer, Jesus, contudo não as
despede. Nós afirmamos que a comida e a água, são direitos humanos é dom de Deus e é
direito humano. Por isso, a alimentação a “cesta básica” não poderia seguir a lógica
mercantilista da oferta e da procura. Quando por alguma razão, um determinado produto
que é escasso, aumenta se demasiadamente o preço, quando a inflação cresce quem mais
sofre é o povo pobre, porque o salário fica achatado e os mantimentos sobem. O direito ao
alimento saudável e nutricional equilibrado é um direito que Deus deu à humanidade e
não a quem tem dinheiro para poder comprar. O alimento não pode ser mercadoria de
especulação. Na época, 1999, eu tive a graça de trabalhar com a Comissão Pastoral da Terra
do Centro Oeste e logo em seguida na elaboração deste documento em uma Comissão
Extraordinária Especial. Com Dom Luciano, que estava na presidência da CNBB,
conseguimos implantar isso em praticamente todo o Brasil. Então foram escolhidos cinco
bispos pela CNBB para implementar isso a nível de Brasil. Eu fiquei mais responsável pela
grande região do Centro Oeste brasileiro. Dom Luciano Mendes Almeida assumia a Minas
Gerais, mas viajava pelo Brasil inteiro. Dom Mauro Morelli contribuía no Rio de Janeiro e
se fazia grandes convênios inclusive com o governo e prefeituras municipais,
especialmente Minas Gerais. Dom Protógenes Luft de Barra do Garças no Mato Grosso
contribuía muito assim como Dom Francisco Biazin, que estava mais no Nordeste e depois
foi para o Rio de Janeiro. Nas dioceses, em alguns lugares faziam refeitórios, oferecendo
uma refeição por um real. Eu trabalhava muito com empresários que poderiam ceder as
sobras do supermercado para fazer mutirões em vez de ir fora. Em Santa Catarina eu sei
que a diocese de Joinville foi uma das dioceses que investiu muito nesse processo quando,
Dom Orlando era bispo de Joinville. Depois de anos com o “bolsa família” e o “fome zero”,
o governo Lula colocou a superação da fome da miséria como programa de governo.
Quando ele foi eleito nós tínhamos o nosso trabalho em andamento então ele procurou
CNBB para fazer algumas parcerias, sem nada de partido, mas para juntar forças. Ele
colocou por parte do governo um ministro que é de Minas Gerais, Patrus Ananias. Ele era
um católico da ordem terceira e fazíamos muitos convênios entre a nossa superação a as
exigências éticas evangélicas. Aquilo que o primeiro governo do mandato do Lula era que
toda família pudesse ter aos menos três refeições por dia. Depois de alguns anos o Brasil
foi tirado da situação de um país de fome mundial, foram mais de 30 milhões de brasileiros
MEZADRI, Neri José; REIS, Ari Antonio dos; SARDÁ,lio Cesar; SOUZA, Gustavo Borges de
Entrevista com Dom Guilherme Antônio Werlang
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 7-10, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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tirados da fome e da extrema miséria. Infelizmente por várias razões, e aqui essas razões
são múltiplas o para apontar todas, agora por questões de opção política e de opções
econômicas dos governos, infelizmente nos últimos anos com outras crises também
externas e internas a fome voltou a crescer. É triste em um país que é o terceiro maior
produtor de grãos de cereais do mundo ter tanto para exportar e faltar na mesa dos
brasileiros. Existe alguma coisa errada na política e no sistema econômico brasileiro.
Então, não é possível num país desses ter hoje novamente acima de 30 milhões de
brasileiros na fome. Penso que hoje nós, Igreja Católica, precisamos partir da nossa
novamente. Fazer o que Jesus mandou, pois evangelizar é dar vida bonita e plena para
todos, é dar alimento, educação e moradia, que constituem um direito fundamental, sem as
quais a pessoa não consegue ser feliz e não consegue se sentir filho e filha de Deus.
Precisamos investir hoje muito teologicamente e as Faculdades de Teologia, especialmente
teologia para os leigos e teologia seminarística, que pensa em formação de padres ou então
escolas diaconais. É preciso criar consciência crítica de que nós temos que investir mais em
políticas públicas.
2 Qual é a relação entre o combate fome e os princípios da Doutrina Social da Igreja?
A Doutrina social da Igreja na forma como nós a temos surge com o Leão XIII e o
início da industrialização surge o proletariado e havia nos lugares no início de 1516,
com 17 horas de carga horária diária e salários baixíssimos porque a partir desse
movimento, sugue o sistema capitalista que vai surgir da Revolução Industrial e todos os
desdobramentos posteriores. A pobreza e a miséria tomam conta então e a Doutrina Social
da Igreja que surge com Leão XIII como resposta eclesial a esta situação e depois tem
muitos outros documentos dos Papas posteriores. É indispensável saber destes
documentos e isso tem que estar na ponta da língua não de um bispo ou de um padre,
mas de todo aquele que se diz cristão aquele que segue Jesus Cristo. A primeira bem-
aventurança de Jesus Cristo no Evangelho de Mateus capítulo 5 e no Evangelho de Lucas
capítulo 6 é: Bem-aventurados os pobres de espírito”. Quando Mateus escreve bem-
aventurados os pobres no espírito ele está se referindo ao Espírito Santo e bem-
aventurados os pobres no espírito não é ser pobre de espírito que muita gente não foi. Ser
pobre de espírito não é ser analfabeto. Lucas é mais direto. Para os pobres serem bem-
aventurados, eles precisam ter os direitos à saúde e à moradia. Esses direitos fundamentais
do ser humano e devem ser garantidos por políticas públicas. Então combater a fome para
Igreja ultrapassa o acesso à comida. nós temos este ano no grito excluídos “fome de
quê? fome e sede de quê?”, baseado no texto da Campanha da Fraternidade 2023. A fome
ultrapassa carência de comida de alimento. São diversas formas de necessidade que fazem
com que o povo brasileiro esteja sofrendo. A Doutrina Social da Igreja precisa ser matéria
obrigatória em qualquer Curso de Teologia e de Ciências Religiosas para os cristãos,
porque sem isso nós não vamos conseguir cumprir o mandamento de Deus, do amor ao
próximo. Como são Thiago escreve: “Se um irmão ou uma irmã estiverem necessitados de
roupa e passando privação do alimento de cada dia. e qualquer dentre vós lhes disser: ‘Ide em paz,
aquecei-vos e comei até satisfazer-vos’, porém sem lhe dar alguma ajuda concreta, de que adianta
isso?” (Tiago 2,14-16).
3 A Campanha da Fraternidade conseguiu sensibilizar a população para a
realidade da fome?
Em partes sim, eu penso que a Campanha da Fraternidade em muitas paróquias ou
até infelizmente em algumas dioceses não é assumida e em alguns lugares é assumida
MEZADRI, Neri José; REIS, Ari Antonio dos; SARDÁ,lio Cesar; SOUZA, Gustavo Borges de
Entrevista com Dom Guilherme Antônio Werlang
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 7-10, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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durante a Quaresma. Não acho que deva ser assumida apenas durante a quaresma, mas os
planos pastorais devem assumir sempre a temática da Campanha da Fraternidade para o
ano todo. A ação pastoral da Igreja da paróquia; da pequena comunidade, deve estar
sempre incluído aquilo que está sendo trabalhado pelas campanhas da fraternidade.
Penso que um fato que aconteceu no ano passado, pode demostrar o quão grave a
questão da fome se apresenta em nosso país. No estado do Mato Grosso, teve fila em
supermercado onde o dono do supermercado estava oferecendo os ossos da carne
desossada para vender e em vez de jogar fora ou fazer farinha. Ele começou a distribuir
ossos para que os pobres pudessem fazer sopa. Isso clama aos céus. Penso que deve se
aplicar a passagem que Deus disse a Moisés, EU ouvi o grito como o gemido quem sobe do
povo eu vi aflição do meu povo e eu desci para libertar (Ex 3,7). Eu penso que quando
Deus disse assim que Ele viu, ouviu o grito desceu para libertar eu acho que Moisés ficou
aliviado graças a Deus eu estou fora dessa. Só que Moisés não esperava que Deus
continuasse falando e Deus disse: vai eu te envio ao faraó eu vim para libertar Israel da
escravidão, vai e diga que eu te mandei. Eu não consigo entender como alguém em
consciência, possa ser contra uma autêntica e verdadeira Teologia de Libertação. Nós
entendemos que Deus é um Deus libertador dos oprimidos. Para nós entendemos que
Jesus Cristo fez tudo no sentido de inserir eles, de libertar eles do peso da Tora da lei
judaica e do Império Romano. A Campanha da Fraternidade cada ano nos ajuda a
compreendermos melhor essa questão e ela não pode ser apenas durante a Quaresma, tem
que ser extensiva e bebida ao longo do ano.
4 Durante a Campanha da Fraternidade viu-se a apresentação de muitas
iniciativas boas para o enfrentamento da fome. O que poderia ser feito a partir das
comunidades eclesiais missionárias?
Eu acredito muito nessas iniciativas simples talvez a mais importante seria voltar a
termos que em casa não jogar nada fora e se controle o desperdício. Educar a criancinha
pequena depois da adolescência a saber dividir. Infelizmente com o sistema de hoje, as
famílias têm no ximo um ou dois filhos. Então a criancinha pequenininha cresce
imaginando que tudo é dela: “é meu, é meu”; e o pai ou a mãe para não dar briga vão e
compram mais para o outro também. Pode ser desde uma barra de chocolate, uma bola,
um brinquedo qualquer uma boneca, ou seja, o que for, “tudo é meu, meu, meu”. Então
eu acho que assim que nós temos que mudar a educação desde criança. Voltar a ter uma
educação para a solidariedade. Nada é meu, tudo é nosso. Temos que voltar a conjugar o
verbo de novo mais no plural do que no singular. Eu acho que as maiores iniciativas
passam por uma educação que possa realmente, ensinar a partilha. Era uma vez assim
vamos lembrar disso hoje. Para não brigar o pai ou a mãe prefere trabalhar não sei quantas
horas extras para poder comprá-lo tudo em 2; se tem 2 filhos tem que ter 2 celulares, etc.
Exigir na medida em que nós crescemos os jovens depois dos adultos aplicar isso nós
temos consciência de que Deus disse que a terra é de todos, somos peregrinos nela. Então
educar a criança para que ela possa também levar e repartir alguma coisa para outras
crianças pobres. Por exemplo, na época de Natal ou no aniversário, a criança pode pedir, se
eu ganhar um presente eu quero dois.
Para levar na periferia eu quero entregar isso
para uma outra criança, porque a outra criança tem o mesmo direito que eu tenho. Mais
do que um prato de comida, mais do que um troco de esquina em semáforo é necessário
nós tomarmos
a iniciativa ir aos pobres, não esperar que os povos venham a nós. A
caridade cristã é nós irmos aeles. Vendo por então eu acho o mundo vai ser melhor
com toda a certeza.
MEZADRI, Neri José; REIS, Ari Antonio dos; SARDÁ,lio Cesar; SOUZA, Gustavo Borges de
Entrevista com Dom Guilherme Antônio Werlang
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 7-10, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
A CAMPANHA DA FRATERNIDADE E
A CONVERSÃO DA IGREJA
THE FRATERNITY CAMPAIGN AND
THE CONVERSION OF THE CHURCH
Jose Adalberto Vanzella*
Resumo: A Campanha da Fraternidade, enquanto campanha quaresmal,
deve favorecer a conversão nos âmbitos pessoal, eclesial e social. Por isso, é
importante a análise da conversão pastoral da Igreja a partir dela. Para que a
conversão pastoral aconteça, é necessário assumir o seu processo, assim
como a compreensão e aceitação da doutrina do Concílio Ecumênico
Vaticano II. A Campanha da Fraternidade de 2023 nos oferece muitos
elementos que favorecem a conversão pastoral.
Palavras-Chave: Igreja. Campanha da Fraternidade. Conversão pastoral.
Abstract: The Fraternity Campaign, as a Lenten campaign, must favor
conversion in the personal, ecclesial and social spheres. Therefore, it is
important the analysis of pastoral conversion of the Church from it. In
order to pastoral conversion happens, it is necessary to assume its process,
as well as the understanding and acceptance of the doctrine of the Second
Vatican Ecumenical Council. The 2023 Fraternity Campaign oers us
many elements that favor pastoral conversion.
Keywords: Church. Fraternity Campaign. Pastoral conversion.
INTRODUÇÃO
O Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2023, na sua
apresentação, nos afirma o seguinte:
“E o Brasil sente fome. Milhões de brasileiros e
brasileiras experimentam a triste e humilhante situação
de não poder se alimentar nem dar aos seus filhos e
filhas o alimento indispensável a cada dia. Por isso, a
CNBB apresenta, pela terceira vez, o tema da fome para
a Campanha da Fraternidade (1975, 1985 e 2023)”
1
.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 11-22, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.169
* Doutor em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro -
PUC-Rio (agosto/2009). Mestre em Teologia
pelo Centro Universitário Assunção,
UNIFAI, (São Paulo). Licenciado em
Filosofia e Pedagogia respectivamente pelo
Centro Universitário Salesiano de Lorena -
UNISAL e pela Universidade de Taubaté -
UNITAU.
E-mail: adalbertovanzella@gmail.com
https://orcid.org/0009-0005-4367-2207
Recebido em 05/05/2023
Aprovado em 25/07/2023
1 CNBB, Campanha da Fraternidade 2023: Texto-Base: Fraternidade e Fome, p.7. Doravante
Texto-Base CF 2023.
12
Diante disso, perguntamos: por que estamos na terceira edição deste tema? A
resposta é simples: porque o problema da fome não foi superado. Mas então perguntamos:
por que o problema da fome não foi superado? Claro que as respostas são muitas, mas vou
me ater apenas a uma: porque a Igreja não se converteu.
A partir dessa resposta, apresentamos a questão que irá ser trabalhada neste texto:
qual a importância da Campanha da Fraternidade para que aconteça a conversão na Igreja?
1 A PROPOSTA DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE
A Campanha da Fraternidade tem como objetivos permanentes:
1 Despertar o espírito comunitário e cristão no povo de Deus,
comprometendo, em particular, os cristãos na busca do bem comum;
2 Educar para a vida em fraternidade, a partir da justiça e do amor, exigência
central do Evangelho;
3 Renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação da Igreja na
evangelização
2
, na promoção humana, em vista de uma sociedade justa e
solidária (todos devem evangelizar e todos devem sustentar a ação
evangelizadora e libertadora da Igreja)
3
.
A primeira fase da Campanha da Fraternidade será voltada para a renovação da
Igreja e do cristão, seguindo as propostas do Plano de Emergência e do Plano de Pastoral
de Conjunto, abrangendo as Campanhas que aconteceram entre 1964 e 1972. Nesta fase,
destacamos dois momentos: um primeiro, no qual aconteceram duas campanhas, 1964 e
1965, na qual a preocupação foi a renovação da Igreja e a segunda foi a renovação do
cristão, abrangendo as demais campanhas do período.
Este é um período de aprendizado e de grande crescimento da Campanha da
Fraternidade, tanto em termos quantitativos como em termos qualitativos.
O Concílio Vaticano II estava em andamento, porém a cada dia ficava mais clara a
proposta de Igreja que seria aprovada no Documento Lumen Gentium. Os bispos brasileiros
tinham a grande preocupação de fazer com que a proposta conciliar fosse compreendida e
assumida por todos os membros da Igreja no Brasil, de modo que a renovação da Igreja fosse
possível, realizando também uma das metas do Plano de Emergência. A realização da
Campanha da Fraternidade não apenas com a finalidade da coleta solidária, mas também
com um conteúdo evangelizador, apresentava-se como um novo instrumento para que esses
propósitos viessem a se concretizar. Assim, a preocupação foi que a Campanha da
Fraternidade abordasse os dois elementos fundamentais dessa renovação: o primeiro seria, a
partir do modelo de Igreja comunhão, despertar nos fiéis a consciência de pertença à Igreja a
partir da graça batismal; e o segundo seria voltado para a realidade paroquial, pois nela a
dimensão eclesial da acontece, que a paróquia é a referência eclesial para todos os fiéis,
visto que é nela que participam dos sacramentos e dela recebem os serviços prestados pela
Igreja. As organizações da Igreja que vão além da realidade comunitária e paroquial, como as
dioceses, as províncias eclesiásticas, as conferências episcopais regionais, nacionais e
continentais e os organismos da Igreja Universal são estranhos à maioria do nosso povo.
Esses objetivos de renovação da Igreja e do cristão se expressam nas Campanhas da
Fraternidade entre 1964 e 1972.
2 Somente quando a 35ª Assembleia Geral da CNBB, que aconteceu em 1997 em Itaici, aprovou a criação da Campanha
para a Evangelização a ser realizada no tempo do Advento com uma coleta específica para a evangelização é que os
recursos da Campanha da Fraternidade deixaram de custear a ação evangelizadora da Igreja no Brasil e passaram a
constituir os Fundos Nacional e Diocesano de Solidariedade, destinando recursos apenas para a ação social.
3 Cf. CNBB, Texto-Base CF 2023, p.36-37.
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No período compreendido entre 1973 e 1984, a Campanha da Fraternidade assume
as decisões das Conferências Episcopais de Medellín e Puebla, voltando-se para a realidade
social do povo, a denúncia do pecado social e a promoção da justiça. Neste mesmo período,
a Campanha se organiza, adotando o método Ver-Julgar-Agir e o Texto-base.
A partir de 1985, tem início o processo de redemocratização do Brasil, com o fim do
Regime Militar. Com isso, a Campanha da Fraternidade passa a abordar os principais
problemas que estão presentes na sociedade brasileira e que necessitam de superação,
como fome, saúde, educação, mundo do trabalho, etc., com o objetivo de contribuir com a
compreensão dos problemas, a reflexão aprofundada sobre os mesmos e busca de
caminhos para a sua superação.
A ação evangelizadora e pastoral tem um fundamento teológico que precisa ser
explicitado, uma vez que está alicerçada sobre ele. No caso da Campanha da Fraternidade,
o não conhecimento dos seus fundamentos teológicos tem causado graves problemas como
a desvinculação entre o tema e a motivação, a abordagem dos problemas unicamente a
partir de causas imanentes, sociais ou naturais, a não vinculação entre a mesma e o tempo
quaresmal. Esses problemas acabam por produzir respostas momentâneas da sociedade,
mas não frutos que permaneçam, porque não houve de fato conversão e, principalmente, a
falta de uma unidade eclesiológica que garanta e sustente a unidade do seu agir, assim
como o envolvimento de todos neste empreendimento, desde a sua concepção a cada
edição até a garantida da sua continuidade. Isso mostra para nós a importância da
compreensão eclesiológica da Campanha da Fraternidade.
2 A ECLESIOLOGIA DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE
A Eclesiologia é a reflexão sobre a Igreja e sua ação. A Campanha da Fraternidade é
uma ação da Igreja no Brasil, de modo que é objeto da Eclesiologia. A reflexão
eclesiológica tem, entre outras finalidades, uma prática: ajudar a Igreja a ser fiel na sua
missão. Como a Campanha da Fraternidade tem grande importância para a realização da
missão da Igreja no Brasil, a reflexão eclesiológica sobre ela representa uma contribuição
para que esta Igreja possa ser cada dia mais fiel a Deus no exercício da sua missão.
Para que haja melhor compreensão da importância da leitura da Campanha da
Fraternidade à luz da Eclesiologia, tomo, a título de introdução, a sequência da profissão
de segundo o símbolo apostólico, a partir da Igreja: “(Creio) na Santa Igreja católica, na
comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne” (CIg 95).
A profissão de nos traz a Igreja após a profissão de Trinitária, o que nos mostra
ao mesmo tempo uma dependência teológica e um vínculo entre a Trindade e a Igreja que
precisa ser sempre melhor compreendido. Porém, é interessante perceber que logo depois
da profissão de na Igreja, vem a profissão na comunhão dos santos, na remissão dos
pecados e na ressurreição da carne. Este fato demonstra a missão de todos os batizados a
partir da na Igreja: gerar comunhão e conversão para tornar possível a vida nova. A
Campanha da Fraternidade torna-se um caminho para que todos possam assumir a
própria responsabilidade diante do batismo.
Enquanto tem por objetivo a fraternidade, quer que todos vivam como membros da
mesma família que tem um Pai que está nos céus, sendo solidários uns com os outros e
construindo juntos um projeto comum, de modo que se torna caminho de comunhão.
Enquanto é uma campanha quaresmal, que privilegia a oração, o jejum e a esmola,
tendo como horizonte o mistério pascal, traz elementos para que todos possam viver a
espiritualidade deste tempo santo, buscando a conversão e a configuração a Cristo, que
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vem pela remissão dos pecados e abre espaço para que “a vida divina possa crescer cada dia,
não obstante o mal que nos cerca”
4
. Assim, a Campanha da Fraternidade é um meio
concreto proposto pela Igreja no Brasil para que todos possam viver melhor a dimensão
eclesial da própria fé.
O Concílio Vaticano II adotou o caráter pastoral, procurando adaptar-se às novas
exigências do tempo presente (SC 1). Para isso, substitui o modelo de sociedade perfeita
pelo modelo de povo de Deus, expresso de modo especial na Lumen Gentium que,
curiosamente, não cita a experiência do povo de Israel na sua caminhada entre o Egito e a
Terra Prometida. O modelo de Igreja povo de Deus vai se impor e abrir caminho para uma
eclesiologia de comunhão.
A comunhão na Igreja é o grande sinal para que o mundo creia (cf. Jo 17,20-23). Por
isso, um dos principais desafios para a atuação da Igreja no Brasil é tornar-se escola de
comunhão (DGAE 2003-2006, 18), tendo a Trindade como modelo e paradigma. A
Campanha da Fraternidade é um instrumento de grande valia para que a Igreja no Brasil
responda à altura a esse desafio, de modo que é necessária uma reflexão sobre a Campanha
da Fraternidade tendo como fundamento teórico a eclesiologia a partir da Trindade.
A Igreja é obra da Santíssima Trindade. Ela é desejada pelo Pai, criatura do Filho,
sempre de novo vivificada pelo Espírito Santo. A Igreja deve ser, na história, a
manifestação da vida trinitária. Deve ser uma epifania do Deus uno e trino.
A Lumen Gentium afirma que a Igreja é na história o sacramento da “intima união
com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1). Como continuadora da missão
de Cristo, celebra a eucaristia, sacramento da nova e eterna aliança na qual acontece essa
íntima união com Deus. A partir da comunhão com Deus, vem a decorrência da
necessidade da comunhão entre as pessoas porque para que todos estejam em comunhão
com Deus, devemos necessariamente estar em comunhão entre nós. Esta comunhão
acontece em Cristo, pois “todos os homens são chamados a esta união com Cristo, que é a
luz do mundo, do qual procedemos, por quem vivemos e para quem tendemos” (LG 3)
5
.
O Espírito Santo é o grande dom pascal. Pentecostes é a realização da promessa feita
por Jesus de não nos deixar órfãos, mas enviar o Paráclito. A presença do Espírito Santo
possibilita a comunhão entre o povo de Deus e a Trindade, sendo que a comunhão eclesial
deve, no Espírito e através do Filho, voltar ao Pai, até o dia em que tudo seja submetido ao
Filho e esse ao Pai tudo confie. Na Igreja acontece esta comunhão na sua fase histórica,
tendo como meta a própria Trindade
6
. A Igreja, inter temporaruma para a Trindade na
invocação, no louvor e no serviço, sob o peso das contradições do presente e enriquecida
pelo júbilo da promessa (LG VII)
7
.
A Igreja estruturada a partir da comunhão trinitária deverá manter a originalidade e
a riqueza dos dons do Espírito, superando pela comunhão as tensões ministeriais diversas,
em fecundo acolhimento recíproco das pessoas e das comunidades, na unidade da fé, da
esperança e do amor. (cf. LG II-VI)
8
.
A Igreja é sacramento da comunhão de todos com Deus. É sacramento de comunhão
de todos com o Pai enquanto povo de Deus; é sacramento de comunhão de todos com o
4 Rito para o Batismo de crianças, aprovado pela Sagrada Congregação para o Culto divino em 13 de maio de 1970.
Invocação para a renovação das promessas do batismo, n.56. Este rito não está mais em uso e esta invocação foi
alterada no novo rito, sendo que a frase citada foi suprimida.
5 Cf. B. FORTE, B. A Igreja Ícone da Trindade, p.20.
6 Cf. B. FORTE, B. A Igreja Ícone da Trindade, p.21.
7 Cf. B. FORTE, B. A Igreja Ícone da Trindade, p.23.
8 Cf. B. FORTE, B. A Igreja Ícone da Trindade, p.36.
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Filho enquanto Corpo Místico de Cristo; é sacramento da comunhão de todos com o
Espírito Santo enquanto templo vivo do divino Hóspede.
A identidade eclesial encontra-se na relação entre as pessoas, sendo que
isoladamente ninguém é Igreja. Por isso, a promoção da comunhão deve ser um princípio
educativo da ação da Igreja. Ela deve ser escola de comunhão, criando ao mesmo tempo
instrumentos exteriores que viabilizem a educação para a comunhão e, ao mesmo tempo,
despertando nas pessoas uma disposição interior para a vida comunitária.
A Campanha da Fraternidade tem uma tarefa de grande importância a partir dessa
exigência da Igreja de ser ícone da Trindade. O primeiro objetivo permanente da
Campanha da Fraternidade é despertar o espírito comunitário e cristão no povo de Deus,
comprometendo, em particular, os cristãos na busca do bem comum. A Campanha da
Fraternidade tem um importante papel de formação da consciência para a vida
comunitária. Esta formação supõe uma fundamentação dogmática que deve unir
cristologia, eclesiologia e antropologia
9
.
A eclesiologia a partir da Trindade, ou seja, a eclesiologia de comunhão favorece esta
formação porque, partindo da comunidade perfeita, estabelece os princípios para a vida
comunitária. A Campanha da Fraternidade realizada a partir da eclesiologia de comunhão
é um instrumento valioso para a formação da consciência comunitária porque envolve as
pessoas na vida da Igreja desde o processo da escolha do tema até as ações que marcam a
continuidade da campanha. Neste processo, temos o planejamento participativo da campanha,
a corresponsabilidade na sua execução, a participação de todos no processo de avaliação e a
inserção da Campanha no processo de planejamento pastoral da Paróquia e da Diocese.
A missão dada por Jesus é fazer discípulos seus todos os povos (Cf. Mt 28,16-20). A
comunidade cristã vai ter uma missão desde o seu início: o anúncio do querigma,
entendido como palavra de Deus proclamada com o objetivo de pôr a humanidade numa
justa relação com Deus através da em Cristo (EO 20). Esta é a missão permanente da
Igreja até o final dos tempos: anunciar a morte e a ressurreição de Jesus e o perdão dos
pecados por meio do batismo
10
.
3 MODELOS DE IGREJA
Os modelos foram usados em larga escala para a demonstração de conceitos no
pensamento científico em geral e podem ser de grande valia para a teologia enquanto
podem sintetizar conhecimentos ou explicitar aquilo que somos inclinados a crer
11
.
Também são utilizados como que materialização dos enunciados com os objetivos de
figurar uma realidade e orientar para a realidade para facilitar uma experimentação
12
.
A teologia trabalha o mistério religioso, que é para as pessoas menos acessível do
que o universo científico, e por isso, a nossa linguagem deve ser entendida como modelo,
ou seja, como aproximação do mistério que é objeto do nosso estudo
13
. Por fazer referência
ao mistério, os modelos sempre fazem referência a um dado revelado como, por exemplo,
a vinha, o templo ou o reino. Ele está ligado à experiência primária da vida da Igreja e
9 A Igreja na América Latina procurou para fundamentar a Pastoral de Conjunto a partir da cristologia, da eclesiologia
e da antropologia. Um exemplo é a verdade sobre Jesus Cristo, a Igreja e o homem, presente de forma especial no
Documento da Conferência de Puebla. No Brasil, este princípio está presente no Objetivo Geral das Diretrizes
Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil 1983/1984, Doc. 28 da CNBB.
10 Cf. V. CODINA, Para compreender a eclesiologia a partir da América Latina, p.42.
11 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.23.
12 Cf. B.P. BUCKER, O feminino da Igreja e o conflito, p.59.
13 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.22.
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significa uma representação objetiva do ser da Igreja, enriquecendo o diálogo entre ciência
e fé e orientando os comportamentos na Igreja
14
.
3.1 O modelo instituição
Para cumprir a sua missão, a Igreja necessita de uma estrutura organizacional a
partir da qual a Igreja realiza as suas três funções: ensina, santifica e governa
15
. Assim, a
partir da instituição, a Igreja acolhe em seu seio as pessoas em vista da sua salvação,
contribuindo para o feliz destino eterno dos homens. Aos que não pertencem formalmente
à instituição, ou seja, aos que não foram batizados, a Igreja vai ao seu encontro por meio
do trabalho missionário, pois assim pode trazê-los ao seio da instituição e salvá-los
16
.
3.2 Modelo comunhão mística
Um dos elementos essenciais da Igreja é a vida comunitária, que de certa forma está
expressa no modelo anterior. O modelo comunhão mística procura destacar o elemento
que é peculiar na Igreja, que o é o institucional, mas a dimensão vertical da vida
comunitária, a vida que vem de Cristo encarnado e que é comunicada a todos pela ação do
Espírito Santo e é manifesta na imagem do Corpo de cristo
17
. Este modelo volta-se para o
mistério da vida interior da Igreja, que é a caridade, dom e presença do Espírito Santo
18
.
3.3 Modelo sacramento
Todos os sacramentos são sacramentos da Igreja e a tornam sacramento. A liturgia
é o ápice para o qual se orienta toda a atividade da Igreja e a fonte de todo o seu poder.
Por isso, existe uma conexão entre a Igreja como sacramento primordial e os sete
sacramentos rituais que exprimem a sacramentalidade da Igreja como um todo, como um
sinal eficaz da graça salvífica, pois a graça de Cristo está presente
19
e se manifesta na
prática eclesial, beneficiando todos aqueles que são capazes de vincular a vida à fé,
intensificando a resposta das pessoas à graça de Cristo, pois podem vincular a instituição
visível com a comunhão de graça.
3.4 Modelo arauto
Neste modelo querigmático, radicalmente centralizado em Jesus Cristo e nas
Sagradas Escrituras, a Palavra é o elemento principal e o sacramento é o elemento
secundário, pois a Igreja recebe uma mensagem oficial e tem a responsabilidade de
transmiti-la
20
.
Igreja e Palavra são duas realidades inseparáveis, pois a Palavra congrega o povo de
Deus, o povo dos que creem, dos que respondem positivamente ao Evangelho, fonte da
sua unidade garantida pela presença do próprio Cristo no meio dos que se reúnem em
seu nome
21
.
14 Cf. B.P. BUCKER, O feminino da Igreja e o conflito, p.60-64.
15 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.37.
16 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.42.
17 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.52.
18 Cf. B.P. BUCKER, O feminino da Igreja e o conflito, p.67.
19 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.75-76.
20 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.83-84.
21 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.86-92.
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3.5 Modelo serva
Este modelo é muito sensível às mudanças históricas e às relações da Igreja com o
mundo
22
. Nele, a Igreja reconhece a autonomia da cultura e das ciências e estabelece
relações com ambas, respeitando suas realizações, tornando-se mais eficaz no anúncio do
Evangelho e compartilhando os mesmos interesses da humanidade, considerando-se parte
da família humana. Assim, a Igreja entra em diálogo com o mundo, agindo da mesma
forma que Cristo, que o veio para ser servido, mas para servir, fomentando a
fraternidade entre as pessoas
23
.
A Campanha da Fraternidade, enquanto acontece na América Latina, sofre
influência de todos os modelos eclesiais, porém são mais marcantes as influências dos
modelos instituição, seja no primeiro período da Campanha, seja a partir da participação
institucional tanto na elaboração da Campanha como na sua realização, principalmente
enquanto delimita o seu âmbito de atuação como, por exemplo, a Campanha da
Fraternidade de 2008, com o tema “Fraternidade e defesa da vida”, que tinha como
objetivo geral: Levar a Igreja e a sociedade a defender e a promover a vida humana, desde a sua
concepção até a sua morte natural, compreendida como dom de Deus e corresponsabilidade de todos,
na busca de sua plenificação, a partir da beleza e do sentido da vida em todas as circunstâncias, e
do compromisso ético do amor fraterno
24
, no entanto fixou sua atenção quase que
exclusivamente na questão do aborto.
Também aparece o modelo serva quando a Igreja, atenta aos apelos de Medellín e
Puebla, volta-se para os graves problemas de injustiça social da América Latina e busca a
sua superação, principalmente a partir de 1978, quando adota o método Ver-Julgar-Agir.
Neste período também percebemos a presença do modelo comunhão, expresso de modo
especial na Campanha de 1976: “Caminhar Juntos”.
Os que adotam os modelos de Igreja como Povo de Deus e Igreja Serva representam
a força que faz com que a Campanha da Fraternidade continue acontecendo, antes de tudo
porque são capazes de ver a importância da atuação da Igreja no mundo, assim como a sua
dimensão secular, e também são capazes de relacionar a com a vida a partir da lógica da
Encarnação e das exigências da caridade, que deve manifestar-se em gestos de
solidariedade e na ação sociotransformadora.
4 A CONVERSÃO PASTORAL
O termo conversão pastoral apareceu pela primeira vez no Documento de Santo
Domingo:
A Nova Evangelização exige a conversão pastoral da Igreja. Tal conversão deve
ser coerente com o Concílio. Ela abrange tudo e a todos: na consciência, na
práxis pessoal e comunitária, nas relações de igualdade e autoridade; com
estruturas e dinamismos que façam presente, cada vez com mais clareza, a Igreja
enquanto sinal eficaz, sacramento de salvação universal
25
.
Se a conversão deve ser coerente com o Concílio, a eclesiologia conciliar deve ser
assumida por ela. Isso significa que precisamos superar as visões pastorais pré-conciliares e
anti-conciliares que estão presentes na Igreja, assim como superar o modelo de pastoral de
22 Cf. B.P. BUCKER, O feminino da Igreja e o conflito, p.74.
23 Cf. A. DULLES, A Igreja e seus modelos, p.100-101.
24 CNBB, Texto-base CF 2008, n.13.
25 CELAM, Santo Domingo Conclusões, n.30.
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conservação. A “pastoral de conservação” é uma expressão que está presente no
Documento de Medellín:
Até agora a Igreja contou principalmente com uma pastoral de conservação,
baseada numa sacramentalização com pouca ênfase numa prévia evangelização.
Pastoral apta, sem dúvida, para uma época em que as estruturas sociais
coincidiam com as estruturas religiosas, em que os métodos de comunicação
dos valores (família, escola etc.) estavam impregnados de valores cristãos e onde
a fé se transmitia quase pela própria força da tradição.
Hoje, entretanto, as próprias transformações do continente exigem uma revisão
dessa pastoral, a fim de que se adapte à diversidade e pluralidade culturais do
povo latino-americano
26
.
Nesta conversão, é importante estarmos atentos às questões sociais, de modo
especial àquelas que causam sofrimento e exclusão social. Assim afirma do documento de
Aparecida:
... a Igreja está convocada a ser ‘advogada da justiça e defensora dos pobres’
diante das ‘intoleráveis desigualdades sociais e econômicas’, que ‘clamam ao
céu’. Temos muito que oferecer, visto que ‘não dúvida de que a Doutrina
Social da Igreja é capaz de despertar esperança em meio às situações mais
difíceis, porque se não esperança para os pobres, não haverá para ninguém,
nem sequer para os chamados ricos’ (DAp 395).
Isso significa que para que haja verdadeira conversão pastoral, precisamos abrir os
nossos olhos para a realidade que nos cerca, combater a injustiça social e lutar para
transformar a cidade atual em Cidade santa (DAP 516), numa renovação autêntica que
“exige conversão de pessoas e estruturas, tendo em vista que individualidade e coletividade
constituem dois aspectos de uma realidade única que é a vida humana. Converter significa
optar por uma nova direção e, a partir dessa, refazer os objetivos e as estratégias de ação e,
em muitos casos, o próprio modo de ser
27
.
Devemos escolher a direção do pobre e nos converter para ele. Devemos olhar a
realidade da pobreza e agir a partir dela:
A imensa maioria dos católicos de nosso continente vivem sob o flagelo da
pobreza. Esta tem diversas expressões: econômica, física, espiritual, moral, etc.
Se Jesus veio para que todos tenhamos vida em abundância, a paróquia tem a
maravilhosa ocasião de responder às grandes necessidades de nossos povos.
Para isso tem que seguir o caminho de Jesus e chegar a ser a boa samaritana
como Ele. Cada paróquia deve chegar a concretizar em sinais solidários seu
compromisso social nos diversos meios em que ela se move, com toda “a
imaginação da caridade”. Não pode ser alheia aos grandes sofrimentos que vive
a maioria de nossa gente e que com muita frequência são pobrezas escondidas.
Toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do
ser humano e por todas suas necessidades concretas, para que todos alcancem a
plenitude que Jesus Cristo oferece (DAp 176).
Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade oferece uma fonte inesgotável de meios
para a conversão pastoral da Igreja, principalmente porque a cada ano nos faz olhar para
uma necessidade concreta de conversão não só pessoal e social, mas também pastoral.
26 CELAM, Documento de Medellín n.6,1.
27 J.D. PASSOS, Conversão pastoral: desafios de renovação da Igreja.
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5 AS PROPOSTAS DA CF 2023 PARA A CONVERSÃO PASTORAL
Todos os anos, a Campanha da Fraternidade se apresenta com uma proposta de
conversão tanto em âmbito pessoal como comunitário e social a partir de uma situação de
pecado presente em nossas vidas e, este ano, somos chamados a viver esta experiência a
partir do problema da fome. Assim ela nos diz no número 1 do Texto-base:
A QUARESMA é o Tempo favorável para a conversão. Contudo embora a
conversão seja um movimento inicialmente pessoal e interior (RH 20),' ela não
pode ser apenas uma atitude individual uma vez que a vontade de Deus, desde a
criação, se manifesta projeto de vida a um povo eleito, nutrido, formado e
enviado pelo próprio Deus. Na Nova Aliança, este povo somos nós, a Igreja,
chamada a ser sacramento de salvação integral para o mundo (cf. LG 48) E a
nossa conversão quaresmal deve desenvolver-se como realmente vontade de
Deus de modo pessoal, comunitário-eclesial e também social.
Portanto, a conversão implica em mudança de vida em todas as suas dimensões,
afinal de contas, não se trata de uma conversão a partir de elementos da nossa vida, mas
existencial. Assim como Jesus disse que veio ao mundo para que todos nós tivéssemos vida
em abundância (cf. Jo 10,10), a conversão deve atingir todos os âmbitos da nossa vida.
Portanto, atinge também a dimensão comunitária eclesial. Trata-se, na verdade, de uma
mudança de mentalidade que cause uma mudança em nosso agir e em todas as nossas
relações, uma conversão da mente, da vontade e do coração que nos torne livres e solidários
28
.
É por isso que a Campanha da Fraternidade de 2023 nos apresenta como objetivo
geral “SENSIBILIZAR a sociedade e a Igreja para enfrentarem o flagelo da fome, sofrido
por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem esta
realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo” e como o quarto objetivo específico:
“APROFUNDAR o conhecimento e a compreensão das exigências evangélicas e éticas de
superação da miséria e da fome”, e nos oferece como fonte de reflexão a Doutrina Social da
Igreja
29
, pois “o amor tem diante de si um vasto campo de trabalho, e a Igreja, nesse
campo, quer estar presente também com a sua doutrina social, que diz respeito ao homem
todo e se volve a todos os homens”
30
.
A Doutrina Social da Igreja não pode ficar apenas no âmbito da teoria, mas deve se
transformar em ações concretas de evangelização e de transformação social através da
atuação das Pastorais Sociais
A Igreja, com sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar essas pessoas
excluídas nas respectivas esferas. Nessa tarefa e com criatividade pastoral,
devem-se elaborar ões concretas e que tenham incidência nos Estados para a
aprovação de políticas sociais e econômicas e atendam às várias necessidades da
população e que conduzam para n desenvolvimento sustentável. Com ajuda de
diferentes instâncias e um organizações, a Igreja pode fazer permanente leitura
cristã e aproximação pastoral à realidade de nosso continente, aproveitando o
rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja (DAp 402-403)
31
.
A Igreja é serva e, como tal, está a serviço da humanidade em vista da superação dos
seus problemas à luz do Evangelho fazendo da história caminho para o Reino definitivo.
Nos diz o Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2023:
28 Cf. CNBB, Texto-base CF 2023 n.170.
29 Cf. CNBB, Texto-base CF 2023 n.7.
30 Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, Compêndio de Doutrina Social da Igreja, n.5.
31 CNBB, Texto-base CF 2023 n.163
VANELLA, Jose Adalberto
A campanha da fraternidade e a conversão da igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 11-22, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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A Palavra divina ilumina a existência humana e leva a consciências a reverem
em profundidade a própria vida" (VD, n.99) Diante de questões tão dilacerantes
como as que se percebem quando o quadro da fome é apresentado, apenas a
Palavra de Deus tem poder transformador de iluminar tantas sombras e indicar
caminhos de esperança. Assim, diante do tema escolhido para a Campanha da
Fraternidade 2023, a Igreja no Brasil também se coloca a serviço do Evangelho
ao deixar que ele ilumine a reflexão e a ação, ouvindo mais uma vez as respostas
que o Senhor dera a gerações antigas e que ainda não foram devidamente
ouvidas e incorporadas à prática cotidiana por muitos de nós
32
.
A primeira grande missão da Igreja é profética, fazendo com que a Palavra de Deus
produza eco nos dias de hoje diante do problema da fome e “aplicar duras palavras, quase
insuportáveis, à situação dos nossos contemporâneos que morrem de fome não é um
exagero injusto ou agressivo: estas palavras demonstram uma prioridade e desejam
sensibilizar a nossa consciência”
33
. Afinal,
O papel da Igreja é profético. Cabe-nos defender os interesses de Deus, que são
os interesses do pobre, do faminto. A fome ofende a Deus. A solução são
políticas públicas eficazes. Não basta a solidariedade. "Se eu tenho fome, o
problema é meu. Se meu irmão tem fome, o problema é nosso", dizia o servo de
Deus, Dom Helder Câmara
34
.
Não podemos nos esquecer da importância da Eucaristia quando falamos a respeito
da fome. Basta para isso nos lembrar que as Campanhas da Fraternidade sobre a fome
estão ligadas à Eucaristia.
Pela terceira vez, a fome é tratada pela Igreja no Brasil na Campanha da
Fraternidade. A primeira foi em 1975, com o tema "Fraternidade é repartir" e o
lema "Repartir o pão", no clima do Ano Eucarístico que precedeu o Congresso
Eucarístico Nacional de Manaus, com os mesmos tema e lema e desejava
intensificar a vivência da Eucaristia em nosso povo. A segunda foi em 1985,
outro Ano Eucarístico, desta vez em preparação para o Congresso Eucarístico
de Aparecida, com o lema "Pão para quem tem fome". Agora, em 2023, logo
depois do 18º Congresso Eucarístico Nacional, realizado em Recife, de 11 a 15 de
novembro de 2022, sob o tema "Pão em todas as mesas", a Igreja no Brasil
enfrenta pela terceira vez o flagelo da fome, com um lema que é uma ordem de
Jesus aos seus discípulos: "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mt 14,16). É
vocação, graça e missão da Igreja obedecer e cumprir a ordem de Jesus
35
.
Precisamos formar a consciência dos fiéis a respeito das relações entre a Eucaristia e
a responsabilidade social, pois “Hoje, a Igreja precisa relembrar às comunidades
contemporâneas que a celebração da Eucaristia não nos faz uma comunidade de eleitos,
separados do restante do mundo, premiados com uma realidade sublime, mas nos
transforma em pessoas incumbidas da missão dada por Jesus: ‘Dai-lhes s mesmos de
comer!’ (Mt 14,16)
36
.
A Eucaristia não pode ser apenas celebrada, deve ser vivida, deve fazer crescer em
nós o amor por nossos irmãos e irmãs e nos levar a assumir nossos compromissos em
relação a eles. Precisamos ser proféticos diante disso, pois a Campanha da Fraternidade
nos adverte sobre isso.
32 CNBB, Texto-base CF 2023 n.114.
33 Cf. CNBB, Texto-base CF 2023 n.86.
34 CNBB, Texto-base CF 2023 n.113.
35 CNBB, Texto-base CF 2023 n.12.
36 CNBB, Texto-base CF 2023 n.146.
VANELLA, Jose Adalberto
A campanha da fraternidade e a conversão da igreja
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São João Crisóstomo, na sabedoria de quem escuta a Palavra de Deus e entende
a coerência à qual ela convida, chamava a atenção: ‘Muitos cristãos saem da
igreja e contemplam fileiras de pobres que formam como muralhas em ambos
os lados e passam longe, sem se comover, como se vissem colunas e não corpos
humanos. Apertam o passo como se vissem estátuas sem alma em lugar de
homens que respiram. E, depois de tamanha desumanidade, se atrevem a levantar
as mãos ao céu e pedir a Deus misericórdia e perdão pelos seus pecados’
37
.
Vivência da Eucaristia, profetismo e pastorais sociais são algumas das respostas que
a Igreja deve dar ao apelo de conversão pastoral que são feitos pela Campanha da
Fraternidade de 2023.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Campanha da Fraternidade pode ser vista a partir de diversas óticas, sendo que
todas possuem sua legitimidade e, consequentemente, a sua razão de ser. Aqui o interesse
foi a sua relação com a conversão pastoral.
O trabalho iniciou-se com uma exposição sobre as propostas da Campanha da
Fraternidade deste ano, que este é o contexto no qual nos encontramos e que se torna
parâmetro para a análise da questão da conversão pastoral.
Em seguida, foram mostrados alguns pressupostos para a conversão pastoral com
destaque para a Eclesiologia. Isto se deve ao fato de que o sujeito da ação pastoral e
evangelizadora é a Igreja e não faz sentido conhecermos uma ação sem o conhecimento de seu
sujeito. Como a conversão pastoral está diretamente ligada ao Concílio Ecumênico Vaticano
II, foram necessárias algumas abordagens da eclesiologia conciliar para que pudéssemos
conhecer melhor a Igreja que realiza a Campanha da Fraternidade. Também foram
apresentados alguns aspectos históricos da Campanha da Fraternidade que nos possibilitaram
perceber como esta eclesiologia está presente nos diversos períodos da Campanha.
O tema da conversão pastoral aparece em seguida, a fim de que ficassem claras
algumas de suas exigências, principalmente dentro do contexto da Campanha da
Fraternidade e, assim, fosse possível a realização do diálogo entre a Campanha da
Fraternidade e a conversão pastoral.
Diante disso, podemos ver que dentro do tempo quaresmal, a Campanha da
Fraternidade responde às exigências da conversão pastoral e nos apresenta propostas
concretas para que ela aconteça. A partir disso, é necessário deixar claro o fato de que na
verdade realiza a Campanha da Fraternidade quem assume a eclesiologia do Concílio
Vaticano II e assume os modelos de Igreja de comunhão mística e serva.
Como nos últimos anos estamos presenciando um crescimento de diversas correntes
que se colocam contra a doutrina conciliar por motivos de fundamentalismos, relativismos
e arraigamento em um passado que não existe mais e nem tem razão de ser e se prendem a
enunciados dogmáticos descontextualizados. Essas correntes não aceitam a Campanha da
Fraternidade por motivos óbvios.
Mas a Igreja, fiel ao mandato que lhe foi dado pelo seu Divino Mestre e fiel à ação do
Espírito Santo que a conduz pelos caminhos da história, continua firme na sua disposição
de realizar a Campanha da Fraternidade, assumindo assim as exigências do Mistério da
Encarnação do Verbo e da virtude teologal da Caridade, lutando em prol da construção de
um mundo novo, mais justo, humano, fraterno e cristão, promovendo a Campanha da
Fraternidade como uma proposta para que o tempo santo da Quaresma seja melhor
37 CNBB, Texto-base CF 2023 n.148.
VANELLA, Jose Adalberto
A campanha da fraternidade e a conversão da igreja
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 11-22, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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vivido, a conversão aconteça nos âmbitos pessoal, eclesial e social e possamos, no dizer de
São Paulo VI, construir a civilização do amor.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
BUCKER, Barbara Pataro. O feminino da Igreja e o conflito. Petrópolis: Vozes, 1995.
CELAM. Conclusões da Conferência de Medellín – 1968. São Paulo: Paulinas, 3.ed. 2010.
CELAM. Santo Domingo Conclusões. São Paulo: Loyola, 11.ed., 1997.
CELAM. Documento de Aparecida. Brasília: Ed. CNBB, 2007.
CNBB. Campanha da Fraternidade 2023: Texto-Base: Fraternidade e Fome. Brasília: Ed. CNBB, 2022.
CNBB. Campanha da Fraternidade 2008: Texto-Base: Fraternidade e Defesa da vida. Brasília: Ed.
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CNBB. Campanha da Fraternidade. São Paulo: Paulinas, 1983. (Estudos da CNBB n.35).
CNBB. Catecismo da Igreja Católica. 9.ed, São Paulo: Loyola, 2009.
CODINA, Víctor. Para compreender a eclesiologia a partir da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1993.
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DULLES, Avery. A Igreja e seus modelos. São Paulo: Paulinas, 1978.
FORTE, Bruno. A Igreja Ícone da Trindade. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2005.
PASSOS, João Décio. Conversão pastoral: desafios de renovação da Igreja. Disponível em: https://
www.vidapastoral.com.br/artigos/eclesiologia/conversao-pastoral-desafios-de-renovacao-da-
igreja/. Acesso em 05/04/2023.
PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”, Compêndio de Doutrina Social da Igreja. São Paulo:
Paulinas, 2005.
VANELLA, Jose Adalberto
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A FOME É SINAL DE CONTRADIÇÃO
NUM TEMPO DE ABUNDÂNCIA
HUNGER IS A SIGN OF
CONTRADICTION IN A
TIME OF ABUNDANCE
Neri José Mezadri*
Resumo: Num contexto de alta produtividade é alarmante a situação em
que vivem milhões de pessoas. Um dado aterrador é que a fome no mundo
mata mais que os conflitos e o terrorismo. Por isso, ela é a maior das
violências. O objetivo do texto é explicitar a realidade dramática da fome e
apresentar indícios do porquê os dados alarmantes não superam os
interesses privatistas. A pesquisa é de caráter bibliográfico e faz um
diagnóstico da realidade global, buscando apontar alternativas. Enquanto
em torno de 9,8% das pessoas no mundo sofrem com a forme, ao menos
29% da população mundial vive em situação de insegurança alimentar. O
problema é estrutural e esancorado na lógica concorrencial e no cálculo
do interesse pessoal. Mudar esta realidade implica esforço conjunto e
muita disposição. Os indícios da racionalidade que orienta o modo de vida
predominante no contexto atual tornam exíguos os sinais de mudança no
curto prazo.
Palavras-chave: Fome. Insegurança. Desigualdade. Mercado. Solidariedade.
Abstract: In a context of high productivity, the situation that millions of
people are living in is alarming. One terrifying fact is that hunger in the
world causes more deaths than conflicts and terrorism, making it the most
significant form of violence. The purpose of this text is to expose the
dramatic reality of hunger and provide evidence as to why these alarming
figures do not outweigh private interests. The research is based on
bibliographic sources and diagnoses the global reality, seeking to propose
alternatives. While approximately 9.8% of the world's population suers
from hunger, at least 29% of the global population lives in a state of food
insecurity. The problem is structural and rooted in competitive logic and
self-interest calculations. Changing this reality requires joint eort and
strong determination. The indications of the rationality guiding the
prevailing way of life in the current context make the prospects of short-
term change minimal.
Keywords: Hunger. Insecurity. Inequality. Market. Solidarity.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 23-39, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.168
* Doutor em Educação, atuando como
orientador educacional no Centro de Ensino
Médio Integrado UPF, professor e
coordenador pedagógico na Itepa Faculdades.
E-mail: nerijm76@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9511-7011
Recebido em 06/04/2022
Aprovado em 09/06/2023
24
1 INTRODUÇÃO
A fome é um problema que afeta diariamente milhões de pessoas de várias idades
mundo afora. E quem enfrenta essa realidade dramática, além da dor gerada pela própria
fome, sofre com inúmeras consequências causadas pela desnutrição e se sente atingido em
sua dignidade. O fato social da existência da fome deve ser tratado como um escândalo
inaceitável. Enquanto existir fome no mundo estamos atestando que o projeto de
sociedade, por mais que haja avanços extraordinários em diversas áreas, é fracassado. Do
ponto de vista espiritual e teológico, o projeto humano, criado à imagem e semelhança de
Deus, e o projeto de vida compartilhada e fraterna está distante de ser concretizado. A
de Jesus do Filho encarnado no Deus Criador, Libertador e Salvador, é incompatível
com a existência de pessoas sem acesso aos bens básicos à sobrevivência, e a alimentação é
o mais básico para manter o curso da vida. Independentemente de qualquer outra
realidade, a condição de “semelhante” deve nos mover a um compromisso incansável para
garantir alimentação a todos os seres humanos. Seja através da motivação ética ou política,
seja em função e motivados pela fé, como é o caso dos cristãos, trata-se de um
compromisso em defesa da vida e da dignidade das pessoas. A Campanha da Fraternidade
de 2023 provoca a pensar e a assumir atitudes pessoais em compromisso com a
transformação de toda realidade injusta, que produz desigualdade, miséria e fome.
Entender melhor esse contexto de disparidades é um passo importante, e muito a
ser compreendido para se chegar a um diagnóstico acerca da realidade onde se produz
como nunca e em que muitas pessoas passam fome. É preciso atentar também para o fato
de um problema como esse, de tamanha gravidade, não ser transformado em compromisso
e muito menos obsessão nossa para ser resolvido. Significa que a racionalidade que
predomina no meio social, e toma conta da nossa mente e do nosso coração, o está
fundada na solidariedade e na fraternidade, mas no egoísmo e na satisfação dos próprios
desejos, extensiva, no máximo, “aos seus”. Nossa subjetividade focada nos afazeres
cotidianos e nas metas pessoais, estudo, trabalho, com a própria sobrevivência e conforto
nos torna indiferentes ao outro. Essa subjetividade é produzida num contexto que desperta
para a satisfação de nossos próprios interesses. Isso tem relação com o sistema econômico
produtivo (ou improdutivo) e com as decisões políticas, quer fortaleçam a mesma lógica e
racionalidade baseada no lucro e nos interesses privados em detrimento dos vínculos
sociais e coletivos. Dito de outra maneira, a fome é produzida socioeconomicamente e
sustentada política e culturalmente à medida que legitimamos um modelo de sociedade e
agimos pessoalmente para manter de essa lógica. Consciente ou inconscientemente, de
forma deliberada ou não, acabamos tendencialmente aceitando e, muitas vezes,
reproduzindo senão reforçando através de nossas atitudes individuais, portanto, ficando
indiferentes com quem o tem o que comer. Mudar isso não é fácil porque as estruturas
de poder e o intercâmbio econômico e político, alteram-se em redes “autossustentáveis”.
Mudar essa realidade exige atuação em vários níveis e articulação em diversas frentes,
tendo o conhecimento acerca das implicações econômicas e políticas como aliado.
Tomamos, como objeto nesse artigo, a realidade da fome em nível mundial, tendo
como pano de fundo alguns dados de uma situação que era trágica e se agravou com a
pandemia. O objetivo é contextualizar ao ximo esses dados para que se tenha a
dimensão de duas perspectivas que precisam ser marcadas: a) a fome (e a pobreza, a
miséria de um modo geral) é consequência da concentração de renda e riqueza, o mera
consequência de decisões individuais; b) não solução para a fome sem mudanças
econômicas estruturais e, portanto, sem mexer em questões fundamentais do modelo de
desenvolvimento econômico. Um sistema que coloque o lucro acima das pessoas não pode
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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ser aceito como solução para os problemas da humanidade. A solução exige seriedade,
competência e criatividade na questão econômica e compromisso político com a
transformação da realidade. Não se pode projetar a utopia de uma sociedade para todos,
promovendo o ódio a grupos e pessoas e fazendo predominar estruturas de morte.
Noutra direção e de modo complementar faz-se mister atuar para transformar a
subjetividade e a racionalidade predominantes, a fim de viabilizar utopias ou sonhos coletivos. A
materialidade da vida, sustentada pela economia de mercado, produz uma racionalidade coletiva
que captura a subjetividade das pessoas, condicionando os sonhos para os quais vale a pena
dispensar energia. Ocorre que a utopia de uma sociedade onde caibam todos não se fortalece
num contexto reduzido à competição, à concorrência, marcas da subjetividade neoliberal
fundada na “governança de si”. É o cultivo de um espírito fraterno e o incentivo a práticas
cooperativas e comunitárias que podem produzir uma nova estrutura e seu “espelhamento” em
termos de utopia. Não significa que o existam iniciativas e práticas baseadas em perspectivas
de solidariedade. Numa sociedade complexa, de múltiplas preocupações, ocupações e exigências,
e em que somos dependentes da renda do trabalho, é difícil manter níveis de tranquilidade para
desacelerar e cultivar o espírito coletivo. Essa dependência da lógica trabalhista atual é produto,
em grande parte, da corrosão progressiva dos direitos e da diminuição proporcional do poder de
compra do salário. Desse modo, é fundamental associar as condições materiais, ou seja, a
reestruturação de práticas econômicas menos agressivas e competitivas ao cultivo de outro
modo de vida, desacelerado e do cuidado de si e do outro.
A intenção é deixar claro que não existe solução milagrosa ou simples, além de
explicitar que não se pode fugir de questões políticas e/ou econômicas para evitar a todo
custo a polêmica. Neste sentido, precisamos olhar para o sistema econômico e político por
seus efeitos prejudiciais ou benéficos para o conjunto da sociedade, sem nos ater a
contornos ideológicos. As grandes transformações tecnológicas e nos processos produtivos
conduzidas por uma determinada racionalidade apresentam inúmeros desdobramentos
que buscamos desvendar. Assim, além de apresentar dados acerca da fome, assinalamos
traços da realidade socioeconômica e política, com as implicações para a produção agrícola
e seus desdobramentos da fome no mundo. O texto está organizado em dois grandes
tópicos principais: a) dados da realidade da fome no mundo; b) principais causas da fome.
Faz-se também alguns indicativos em busca de saídas ao problema.
2 A FOME NO MUNDO A PARTIR DE ALGUNS DADOS
Quando se fala em fome, a dor que ela causa não pode ser traduzida em números, é
experimentada cotidianamente e produz efeitos devastadores para o desenvolvimento do
ser humano, atingindo e aniquilando a vida física, chegando, em muitos casos, à morte. A
coleta de algumas informações tem o objetivo de dar uma dimensão do problema e o
trabalho que precisa ser feito para sonhar com um mundo sem fome. Tarefa que,
infelizmente, parece bem distante. Vamos ordenar alguns números, com a intenção de
identificar tendências, o que revela um ambiente dramático porque a situação piorou nos
últimos anos. Estima-se que, em 2019, 821 milhões de pessoas sofriam de insegurança
alimentar no mundo, 149 milhões das quais estavam em situação de crise de fome ou pior
1
.
Dados mais recentes, do relatório do índice Global da Fome (IGF)
2
, apresentados em
outubro de 2022, indicam que o problema da fome em geral atinge quase 830 milhões de
1 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 1.
2 O relatório foi organizado pela organização não governamental da Alemanha Welthungerhilfe (ajuda mundial para a
fome) em 13 de outubro de 2022. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/
2022/10/13/fome-atinge-quase-830-milhoes-em-todo-o-mundo.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em: 30 mar. 2023.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
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pessoas no mundo todo. Para o relatório do IGF, os famintos no mundo aumentaram de
811 milhões para 828 milhões entre 2021 e 2022
3
. Em termos percentuais, segundo dados da
ONU mais de 11% da população mundial foi atingida por insegurança alimentar grave entre os
anos de 2020 e 2022. Ao todo, somando insegurança alimentar grave e moderada, chegamos
ao percentual assustador de 29,5% da população, totalizando 2,3 bilhões de pessoas
4
.
A fome é definida pela Organização das Nações Unidas (ONU), como “privação de
comida” ou “má alimentação crônica”, responsável por causar sensação desconfortável ou
dolorosa energia insuficiente. A insegurança alimentar grave indica situações de fome
durante o ano, indicando que as pessoas desse grupo “experimentaram fome e, no extremo,
ficaram sem comida por um dia ou mais”. a insegurança alimentar moderada aponta a
“falta de acesso consistente” aos alimentos, indicando que as pessoas desse grupo “enfrentam
incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e foram forçadas a reduzir, algumas vezes
durante o ano, a qualidade e/ou quantidade de alimentos que consomem por falta de dinheiro
ou outros recursos”
5
. O mais grave é a tendência crescente dos últimos anos, indicando
que,
além de não atingir as metas de acabar com a fome no mundo até 2030, manter números
alarmantes. Em se tratando de fome, uma pessoa nessas condições seria suficiente para
definir uma situação inaceitável, contudo os números não carregam o drama da realidade e
acabamos anestesiamos pela rotina e naturalizando o drama vivido por muitos.
2.1 A crise expressa a realidade conjuntural de um problema estrutural
Em situações de crise, independente na natureza dela, econômica, política, militar,
sanitária ou climática a tendência é que os primeiros a serem atingidos sejam os grupos
sociais mais vulneráveis, seja em termos de saúde ou pela condição socioeconômica. As
pessoas submetidas a condições de desemprego, subemprego ou instabilidade financeira
tendem a sofrer consequências mais severas. Não foi diferente com a pandemia, embora
um nível de sofrimento colocou-nos na mesma condição. As pessoas que não tinham
renda fixa e/ou eram atendidas por alguns programas sociais foram as primeiras a se
depararem com o drama da fome, algumas delas enfrentavam ou haviam enfrentado
situações semelhantes em outros momentos. “As mulheres e crianças são
desproporcionalmente afetadas em períodos de crises econômicas e insegurança
alimentar”
6
. Outro grupo bastante impactado é o das comunidades indígenas,
principalmente seus idosos e crianças pequenas
7
. Esta desigualdade estrutural que tem
repercussões distintas pelas circunstâncias regionais, tem consequências mais ou menos
proporcionais aos dramas já experimentados cotidianamente.
Nas 10 regiões (ou países) com a maior incidência de fome extrema a crise se acirrou
em decorrência da pandemia. São elas: Iêmen, República Democrática do Congo,
Afeganistão, Venezuela, região do Sahel da África Ocidental, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul,
Síria e Haiti. Juntos, esses países e regiões abrigavam 65% das pessoas em situação de crise
de fome em todo o mundo
8
. Países com renda média como Índia, África do Sul e Brasil
estão experimentando níveis de fome crescentes à medida que milhões de pessoas que
estavam conseguindo se alimentar razoavelmente a duras penas foram empurradas para
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
3 UOL, Fome atinge quase 830 milhões em todo o mundo, 2022.
4 Brasil tem mais de 21 milhões de pessoas que não m o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança
alimentar, diz ONU, G1, 2023.
5 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países,
Exame, 2022, p. 4.
6 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 6.
7 Ibid., p. 21.
8 Ibid., p. 2.
27
uma situação de fome pela pandemia
9
. O relatório “expõe um sistema alimentar que tem
mantido milhões de pessoas em situação de fome em um planeta que produz alimentos
mais que suficiente para todos”
10
.
No Reino Unido, “nas primeiras semanas de lockdown no país, cerca de 7,7 milhões de
adultos foram obrigados a reduzir o tamanho das suas refeições ou pular refeições, e até 3,7
milhões de adultos precisaram recorrer à comida de caridade ou a um banco de alimentos”
11
. Segundo estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de “305
milhões de empregos em período integral foram perdidos devido à pandemia, afetando
principalmente mulheres e jovens. Essa perda de empregos pode empurrar até meio bilhão
de pessoas para a pobreza”
12
. Onde impera concentração e desigualdade extremas, a ponta
mais frágil, as camadas populares, submetidas à instabilidade e baixo retorno financeiro,
são as primeiras a sentir os efeitos de qualquer tipo de crise, seja ela climática ou sanitária.
Em todo o mundo, 61% das pessoas trabalham na economia informal. Quarenta
por cento o mulheres e muitos são jovens na verdade, três quartos dos
jovens adultos ganham a vida no setor informal. Esses trabalhadores, que
incluem ajudantes domésticos, vendedores ambulantes, motoristas de entrega e
assalariados diários em canteiros de obras, foram particularmente afetados pela
pandemia, que não têm segurança no emprego e acesso aos benefícios do
emprego formal, como o do seguro-desemprego
13
.
Outra realidade de muitas famílias pobres e que tem gerado sofrimento é a queda nos
fluxos de remessas, o dinheiro que trabalhadores migrantes enviam para as suas famílias do
exterior, consequência do aumento no desemprego. “As remessas globais totalizaram US$ 554
bilhões em 2019 e são uma tábua de salvação para milhões de famílias que vivem em situação de
pobreza”
14
. A estimativa do Banco Mundial é de que pandemia implique numa redução de 20%
nas remessas para países de baixa e média renda, o que equivale a um montante de US$ 100
bilhões
15
. As mulheres são as mais afetadas, seguidas pelos trabalhadores informais e pequenos
produtores rurais, atingidos pelas consequências econômicas da pandemia
16
. As mulheres sofreram
ainda mais com a sobrecarga de trabalho não remunerado, aumentando de forma dramática
no
período da pandemia por conta da doença e do fechamento de escolas
17
. “Uma pesquisa
realizada em assentamentos informais em Nairóbi, por exemplo, revelou que 42% das mulheres
não estavam encontrando trabalho remunerado por conta do aumento da sua carga de trabalho
com cuidados e atividades domésticas provocado pela pandemia e pela resposta a ela”
18
.
A produção de alimentos é uma realidade multifacetada e que também teve múltiplas
implicações e o envolvimento de diferentes sujeitos em interação por distintas
perspectivas ou interesses. Durante a pandemia a alteração de preços parece ter dificultado
o acesso. Por um lado, o índice de preços dos alimentos da ONU para a Alimentação e
Agricultura (FAO), que acompanha o preço médio pago por supermercados e outros
varejistas por uma cesta de produtos básicos, caiu. Por outro lado, os preços ao
consumidor subiram a patamares considerados acima do razoável em muitos países em
decorrência de rupturas nas cadeias locais de produção e abastecimento, da inflação, de
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
9 Ibid.
10 Ibid.
11 Ibid.
12 Ibid., p. 5.
13 Ibid.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 Ibid., p. 6.
17 Ibid., p. 7.
18 Ibid.
28
corridas às compras
19
, entre outros fatores. “Nos Estados Unidos, por exemplo, os preços
ao consumidor dos gêneros alimentícios aumentaram 2,6% em média, mas a renda agrícola
caiu”
20
. A tendência de queda nos rendimentos dos pequenos produtores teve destaque em
países como Uganda, Hong Kong, Nepal, Guatemala e Zâmbia, em decorrência dos
impactos das restrições impostas a viagens em resposta à pandemia do COVID-19.
Pequenos agricultores de Zâmbia disseram que não estavam conseguindo
vender seus produtos devido ao fechamento dos mercados locais ou porque
estavam preocupados com a possibilidade de contraírem o rus. Os que
estavam conseguindo comercializar seus produtos afirmaram que estavam
recebendo menos que o normal por eles. No Nepal, intermediários que
compram legumes e hortaliças em chácaras para comercializá-los em mercados
locais não têm podido fazer isso, privando muitos agricultores de uma fonte
vital de renda. Em Uganda, as medidas de lockdown coincidiram com a estação
da semeadura. Medidas como o distanciamento social e o fechamento de
mercados comunitários não permitiram que agricultores comprassem sementes
ou atrasaram o plantio. Areo Joyce, um pequeno agricultor, disse o seguinte à
Oxfam: “Não é permitido trabalhar com o grupo completo. Trinta pessoas não
podem trabalhar ao mesmo tempo na mesma horta. Isso atrasou o plantio”
21
.
Da agricultura à ajuda humanitária, vai ficando claro que a situação dramática da fome está
ligada a um modelo econômico e a uma estrutura que mantém e usa-se de crises reais ou
provocadas para ampliar as desigualdades. O que é aparentemente contingente, também reflete o
que é prioridade, como é o caso de países que passavam por situações dramáticas e dependiam
da ajuda humanitária. “O Afeganistão - país que vem enfrentando a pior crise humanitária do
mundo - recebeu apenas 6% do total de US$ 60 milhões necessários para financiar seus
programas de segurança alimentar em resposta à COVID-19”
22
. É importante reforçar que a
desigualdade o é provocada, senão exacerbada pela pandemia, pois experimentamos tempos
de extrema desigualdade. “Enquanto quase metade da humanidade sobrevive a duras penas com
menos de US$ 5,50 por dia, os 2.200 bilionários do mundo detêm uma riqueza maior que a de 4,6
bilhões de pessoas juntas”
23
. A consequência em termos de alimentação é que, enquanto as
famílias ricas gastam uma parcela pequena de sua renda com comida, os mais pobres
comprometem 50% da renda com alimentação, estando mais suscetíveis às oscilações de preço
24
.
2.2 O vírus da crise sanitária e o “vírusda fome
A expressão de uma mulher afegã entrevistada pela Oxfam
25
expressa com transparência
cristalina o desespero de quem não tem escolha: “A pobreza é outra doença, tão perigosa quanto
esse vírus e, se as pessoas continuarem a ficar em casa dessa maneira, muitas famílias poderão
morrer de fome”. O drama é de quem conhece a dor da fome pela experiência, de quem sente em
seu corpo a gravidade da situação. Mais de um terço da população do Afeganistão,
aproximadamente 11,3 milhões de pessoas, vive em situação de insegurança alimentar, entre elas
quase quatro milhões a um passo de passar fome, quase 41% das crianças tiveram seu
desenvolvimento prejudicado pela desnutrição
26
. Toda vez que a falta de horizonte ou perspectiva
é posta diante das pessoas que não vislumbram saída, submissão a condições ainda mais
degradantes. É o que ocorre, por exemplo, em situações de precarização das condições de
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
19 Ibid., p. 8.
20 Ibid.
21 Ibid., p. 8–9.
22 Ibid., p. 9.
23 Ibid., p. 12.
24 Ibid.
25 Ibid., p. 16.
26 Ibid.
29
trabalho, em que as pessoas são submetidas a situações análogas à escravidão. O que é terrível de
admitir para a condição humana é que na outra ponta está o aumento da margem de lucros.
Talvez todos tenham sentido a sensação de vazio no estômago, o que pode ser
comum, antes de se alimentar, ou em algum dia em que precisou retardar uma refeição por
diferentes motivos. O drama é sentir com frequência esta sensação e permanecer com ela,
sem a certeza de poder se alimentar. “A energia proveniente dos alimentos em forma de
calorias é a carga de que o corpo precisa para manter suas sustentação e saúde. E para
saciar a necessidade de alimento do corpo, é preciso atenção a duas medidas: quantidade e
qualidade de comida”
27
. Quanto à quantidade de calorias necessárias é fácil identificar, no
mínimo igual às gastas para realizar as atividades rotineiras, o que, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), equivale a 2.500 por pessoa por dia
28
; no que diz respeito à
qualidade, indica-se ingerir 6 classes de nutrientes para o bom funcionamento do
organismo: carboidratos, gorduras, proteínas, vitaminas, minerais e água
29
.
O “vírus da fome” tende a matar de forma lenta, passando da sensação angustiante
nos primeiros três dias sem comida, para o consumo das reservas ao décimo dia, desde
que beber água, para o consumo das proteínas e a consequente atrofia muscular entre os 10
e 15 dias. A partir de 20 dias sem se alimentar o corpo desenvolve uma espécie de
canibalismo interno, passando a consumir as próprias proteínas, tecidos e órgãos para
suprir a necessidade de energia, durante a 60 dias, em completa debilitação física e
mental
30
. Os efeitos da fome sobre o corpo são muito importantes e apresentam sequelas ao
desenvolvimento saudável, o que leva a imaginar o que produz sobre o desenvolvimento
infantil, tanto em termos mentais/intelectuais quanto físicos. Um cérebro saudável gasta
20% da energia oriunda da alimentação
31
, impedindo a concentração das crianças famintas,
quando conseguem estar na escola. Os efeitos da fome e da desnutrição se estendem para o
coração, que encolhe e diminui a capacidade de bombear o sangue de forma adequada, e
para os demais órgãos vitais que deixam de filtrar toxinas e enfraquecem o sistema
imunológico, além de atingir pele e ossos em seu desenvolvimento saudável
32
.
E o “vírus da fome” parece estar longe de ser controlado. “A fomeaumentou em todo
o mundo nos últimos dois anos, e a situação não está perto de melhorar, aponta novo
relatório de braços de agricultura, alimentação se saúde da Organização das Nações
Unidas”
33
. Para o presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, Gilbert
Houngbo, “são números deprimentes para a humanidade. Continuamos nos afastando da
nossa meta de acabar com a fome até 2030”
34
. O atual modelo de desenvolvimento
condiciona a produção agrícola à planta industrial, ao uso de insumos químicos e não
voltada para a segurança alimentar e o alívio da pobreza de milhões de pessoas. “Se o
combate à fome era um desafio antes, a situação se intensificou com questões como o
aumento da cotação de grãos e outros itens essenciais no mercado internacional, além dos
gargalos na cadeia de suprimentos que têm gerado inflação em todo o mundo”
35
.
A marca da desigualdade coloca em situações dramáticas sujeitos que atuam em duas
pontas distintas do sistema de produção de alimentos: os que o vítimas da fome e
pequenos agricultores. Os agricultores produzem mais de 70% dos alimentos consumidos
por pessoas que vivem na Ásia e na África subsaariana, além de mais de 1,7 bilhão de
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
27 GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 14.
28 Ibid., p. 14–15.
29 Ibid., p. 15.
30 Ibid., p. 19.
31 Ibid., p. 21.
32 Ibid.
33 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 1.
34 Ibid.
35 Ibid.
30
pessoas que trabalham em outras regiões, apesar disso estão com dificuldades de suprir suas
próprias necessidades alimentícias
36
. Entre as principais causas estão o baixo investimento na
agricultura, infraestrutura, acesso a informações e tecnologias, importantes para acessar
mercados, aumentar a produtividade e se adaptar ao clima hostil. Exemplo disso é que, entre
2014 e 2018, apenas oito países africanos gastaram 10% ou mais do orçamento governamental
com agricultura. Pequenos agricultores também são frequentemente forçados a concorrer
com produtores rurais de países ricos que recebem subsídios de seus governos
37
.
Os conflitos armados e as guerras, independentemente se são locais ou de grandes
proporções e das motivações, e a pobreza estrutural de algumas regiões são potenciais
contagiosos deste vírus. Se os conflitos estão entre as principais causas da escassez de
alimentos, o é de surpreender que 8 dos 10 países e regiões com a maior incidência de
fome extrema estejam sendo afetados por níveis elevados de violência e insegurança
38
.
Segundo dados de 2019, 60% das 821 milhões de pessoas em situação de insegurança
alimentar e cerca de 80% das crianças com desenvolvimento comprometido pela
desnutrição do mundo viviam em países afetados por conflitos
39
. “Devastado por mais de
cinco anos de guerra, o Iêmen
40
está passando pela pior crise humanitária e de segurança
alimentar do mundo. Dois terços da sua população - 20 milhões de pessoas - estão passando
fome e quase 1,5 milhão de famílias dependem de ajuda alimentar para sobreviver”
41
.
Quando se soma aos conflitos outras situações como as crises climáticas, a situação
fica difícil de ser contornada. É o caso do Sudão do Sul, onde o alerta da ONU é de que 5,5
milhões de pessoas são atingidas pela fome, consequência das secas e inundações periódicas
que destroem lavouras e matam rebanhos
42
. “Mais recentemente, enxames de gafanhotos
do deserto têm devorado plantações e pastagens e temores de que esses enxames - que
podem conter centenas de bilhões de gafanhotos - aumentem ainda mais”
43
. Na região do
Sahel da África Ocidental, composta por Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia, Níger,
Nigéria e Senegal, ainda fica em evidência a falta de apoio governamental, gerando a crise
de fome que mais cresce no mundo
44
. “Entre março e maio de 2020, estima-se que 13,4
milhões de pessoas estavam precisando de assistência alimentar imediata na região, em
decorrência de conflitos, das mudanças climáticas e da falta de apoio a pequenos
produtores rurais e de medidas para promover uma distribuição igualitária da riqueza
45
. A
violência forçou 4,3 milhões de pessoas a abandonarem seus lares, deixando 24 milhões de
pessoas carentes de assistência humanitária urgente, metade das quais crianças
46
. “A
insegurança também afetou a capacidade das pessoas de cultivar lavouras e criar gado,
especialmente no Chade, Burkina Faso e região norte do Senegal”
47
.
A América Latina, que havia avançado neste tema, está longe de resolver o
problema. O Brasil é um exemplo de movimentos significativos para acabar com a fome e
que passa por uma queda brusca nos últimos anos. “O Brasil voltou a ter prevalência de
subalimentação de 2,6% no biênio 2018-2020, e o número subiu para 4,1% da população no
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
36 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 10.
37 Ibid.
38 Ibid., p. 13.
39 Ibid.
40 Localizado no Oriente Médio, a República Democrática do men, faz divisa, ao norte, com a Arábia Saudita. É um
território montanhoso e uma região fértil, tendo entre as marcas culturais a forte tradição islâmica. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/geografia/iemen.htm> Acesso 31 mar./2013.
41 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 14.
42 Ibid., p. 17.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 18.
45 Ibid.
46 Ibid.
47 Ibid.
31
biênio 2019-2021 [...]. O número atual no Brasil é o pior desde o período 2008-2010”
48
. A
Venezuela, a Argentina e a Colômbia, por exemplo, também apresentaram dificuldades na
resolução de problemas da pobreza, com graves situações de fome da população. Após uma
crise econômica de grandes proporções e duradoura, a Venezuela estava mal preparada
para enfrentar a pandemia. “Mesmo antes da eclosão da pandemia, mais da metade das
pessoas em situação de fome na América Latina viviam na Venezuela”
49
. No ano de 2019,
“9,3 milhões de pessoas o estavam se alimentando adequadamente no país devido ao
desemprego em massa, à queda de renda, a um acesso muito limitado à ajuda humanitária
e à hiperinflação, entre outros fatores”
50
.
Em termos gerais, não é difícil de identificar a dramaticidade da realidade.
Em 35 países, a situação da fome foi classificada como grave. Em nove, como muito
grave. As maiores taxas estão no sul da Ásia e na África subsaariana. O Iêmen é
atualmente a nação com o pior desempenho, com uma pontuação de 45,1 sendo
que, quanto mais próximo de zero, melhor a situação da fome no país. República
Centro-Africana, Madagascar, República Democrática do Congo e Chade
completam a lista com as piores estatísticas. “Como mostra o IGF 2022, a situação
global da fome é sombria. A sobreposição de crises que o mundo enfrenta revela as
falhas dos sistemas alimentares, dos globais aos locais, e reforça a vulnerabilidade
das populações de todo o mundo em relação à fome”, escreve a ONG
51
.
Num contexto em que aproximadamente 29% da população mundial apresenta um
grau ao menos moderado de insegurança alimentar, o que equivale a 2,3 bilhões de pessoas, é
fácil identificar um retrocesso aos patamares de 2015, quando foi lançado o objetivo de acabar
com a fome e a insegurança alimentar a2030. “Segundo os especialistas, ‘sem uma mudança
significativa’ a situação deve se agravar em 2023, e, neste momento, o projeções de que
o mundo alcance um nível baixo de fome até 2030, conforme previsto na chamada Agenda
2030, traçada pela ONU e composta por objetivos de desenvolvimento sustentável”
52
.
3 AS PRINCIPAIS CAUSAS DA FOME NO MUNDO
Uma análise mais ampla deve ultrapassar a linha das causas diretas que podem estar
vinculados a fenômenos naturais/climáticos como secas e/ou políticos, como guerras e outras
decisões governamentais de grande impacto à população
53
, sem tirar a importância destas.
Faz-se necessário reforçar que não se restringem às decisões pessoais cotidianas, porque não
são elas as causas principais da pobreza, da miséria e da insegurança alimentar de milhares de
famílias. Ao lado das decisões e da materialidade dos fatos, constitui-se uma racionalidade
predominante, transformada em modo de vida competitivo, adequado às regras (escritas ou
não) de funcionamento da economia. Nesse campo, estão as causas mais profundas e as
relações mais complexas para compreender a desigualdade e a fome como consequência
permanente, com certas “sazonalidades” e/ou realidades mais conjunturais. Merecem atenção
o modelo de desenvolvimento econômico e modo de produção “pós-industrial” e a quase
consequente agricultura de exportação ou de commodities, com distintos impactos sobre a
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
48 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 3.
49 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 20.
50 Ibid.
51 UOL, Fome atinge quase 830 milhões em todo o mundo, p. 2.
52 Ibid., p. 3.
53
Que as decisões políticas têm consequências, tanto por ações e talvez mais visivelmente por omissão ao não buscar
alternativas a problemas estruturais e/ou conjunturais como programas sociais e/ou a oferta de postos de trabalho é algo
razoavelmente conhecido. Embora controversa, historicamente ficou conhecida a iniciativa desenvolvida por Mao Tsé-
tung, na China, entre 1958 e 1961, que teria imposto o deslocamento de trabalhadores da agricultura para outros setores e a
mudanças nas técnicas agrárias que se mostraram ineficientes, gerando drástica queda na produção de alimentos e milhões
de mortos. (GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 11.)
32
população. As consequências mais diretas são o encarecimento do alimento, com a
dificuldade de acesso para as camadas populares, e o consumo de industrializados, às vezes
composto secundário do grão, produzido a poucos quilômetro
s de onde será consumido.
Embora fenômenos naturais como secas prolongadas produzam efeitos em si
mesmas, não podendo em tese ser evitados, eles não estão desconectados das regras de
funcionamento da economia. A questão crucial do atual problema da fome no mundo está
intrinsecamente ligada ao modelo de desenvolvimento econômico concentrador e que
premia de maneira desigual riquezas e bens, entre eles os fundamentais para garantir saúde
e qualidade de vida. Isso revela que não se trata da incapacidade de produzir o suficiente,
ou como se aventou em tempos passados, de que teríamos problema de desabastecimento
por conta do crescimento populacional desproporcional à produção. O problema é de
acesso e distribuição e/ou dos objetivos que orientam a produção não atenderem à
demanda por alimentação. A lógica da economia do mercado produtivo e do sistema
financeiro coloca em rotas desconexas pobres, miseráveis e famintos e produções recordes
de alimentos e produtos agrícolas, sejam de origem vegetal ou animal.
O sistema econômico, o processo produtivo e a teoria econômica mostraram
preocupação com o crescimento econômico e com a ampliação da riqueza ou mesmo em
aumentar o consumo, porém a redução da pobreza ou o atendimento aos excluídos não tem
recebido a mesma atenção
54
. Para Jung Mo Sung
55
, a mudança de foco da necessidade para o
desejo é expressão de uma transformação profunda no modo de agir, além de expressar o
predomínio da lógica do mercado sobre as noções cristãs, focadas no atendimento às
necessidades básicas. “Quando se pensa em partir dos desejos o limites, se busca o
ilimitado. E quando se deseja o ilimitado nunca sobra nada para partilhar; sempre falta.
Portanto, não se aceita um diálogo sobre redistribuição de renda e riquezas”
56
. À medida em
que se avança do critério da necessidade para o limite a busca pessoal e o parâmetro do que
pode ser considerado justo ou ético perde o sentido, abrindo espaço para o acúmulo
ilimitado de bens. O resultado não é apenas o crescimento ilimitado da desigualdade, mas
também sua legitimação social, sendo apontado inclusive como fruto do mérito pessoal.
Temos consciência de que a fome é um problema histórico, portanto, crônico da
humanidade. O Guia “A fome no mundo”
57
, que resgata os períodos e regiões em que a
fome assolou de maneira mais acentuada, faz menção inicial ao Império Romano, ano 476
a.C. Os fenômenos naturais e os conflitos o como que os traços conjunturais,
responsáveis por expressar que grupos sociais estavam em situação de miséria e fome em
cada período histórico. Isso dependia das medidas políticas e até da transformação da fome
em estratégia para enfraquecer e/ou tornar vulnerável o inimigo de guerra. Em outras
palavras, o efeito humano, com benefícios políticos e econômicos para um grupo em
detrimento de outro sempre está presente, seja por omissão e/ou decisão deliberada. No
contexto atual, de economia globalizada faz-se necessário um diagnóstico detalhado para
perceber as sutilezas e relações indiretas das políticas de financeirização da economia e das
ações das grandes corporações, com impactos gigantescos sobre as economias dos países.
Uma passada rápida pelo tema da agricultura revela como o modelo de
desenvolvimento econômico se articula e, de alguma maneira, condiciona seu
funcionamento. É visível o incentivo ao agronegócio, através de linhas de crédito e de
práticas permissivas quanto à utilização de defensivos agrícolas ou mesmo práticas que
permitem avançar para cima de regiões de matas, como no caso da Amazônia. O agronegócio
é poderoso e tem tido muita força política para fazer atender suas demandas,
avançando para
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
54 SUNG, Jung Mo, Desejo, Mercado e Religião, p. 54.
55 Ibid., p. 55–56.
56 Ibid., p. 57.
57 GUIA A FOME NO MUNDO, Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta, p. 10–13.
33
a concentração de terras e dispersando mão de obra, pessoas que vão disputar os escassos e
precários empregos, com a utilização de grandes máquinas e alta tecnologia. “Poderosos
comerciantes de produtos agrícolas, empresas de alimentos e bebidas e supermercados que
dominam o setor de alimentação conseguem ditar o preço e os termos do comércio de
alimentos”
58
. O poder de barganha e pressão exercido pelas grandes corporações que
atuam na comercialização de commodities produz redução de custos e maximização de
lucros, submetendo produtores e trabalhadores a salários de pobreza e forçando-os a
arcarem com os riscos da produção.
Por outro lado, “milhões de pequenos agricultores e trabalhadores estão lutando para
sobreviver”
59
. O fato de boa parte dos agricultores ficar à margem de políticas
governamentais tem grande impacto na insegurança alimentar da população, especialmente,
porque produzem grande parte de frutas, legumes e verduras e por isso podem ser
considerados a espinha dorsal na produção de alimentos
60
. A relevância das mulheres neste
campo também merece atenção. Segundo estimativa da ONU para Alimentação e
Agricultura (FAO), se “as mulheres tivessem o mesmo acesso a recursos produtivos que os
homens, elas poderiam aumentar a produção em suas propriedades rurais em até 30% -
reduzindo o número de pessoas que passam fome no mundo em até 17%”
61
.
3.1 A economia que serve aos donos do dinheiro
As mutações recentes da economia globalizada têm efeito imediato e prolongado na
reestruturação do mercado produtivo. O predomínio nos últimos 40 anos das políticas
econômicas neoliberais, marcado pela lógica privatista, que defende a diminuição dos
custos sociais do Estado e a desregulação da economia porque fundamentada na ideologia
de que os capitalistas dinamizam e aquecem as transações econômicas. É como se o Estado
fosse concebido como inibidor das iniciativas individuais e, além de não estimular o
desenvolvimento econômico, sua atuação seria responsável por criar barreiras à
concorrência privada, motor do desenvolvimento. Na prática, exige-se que o Estado atue
segundo critérios privatistas, fazendo crer que a liberdade absoluta ao mercado cria
mecanismos em que todas as pessoas sejam beneficiadas. A desigualdade é, para estes,
consequência natural e regra justa, beneficiando trabalhadores e espertos, e punindo
preguiçosos, inconsequentes e aqueles que não conhecem as leis do mercado.
O neoliberalismo é uma etapa específica do capitalismo, que tem em sua natureza a
lógica intrínseca do lucro por parte de quem investe. Embora cada país tenha construído
uma experiência a seu modo, algumas experiências históricas tiveram impacto grandiosos
para que a mentalidade e a materialidade do Estado de bem-estar, fundamental na
reconstrução do s-guerra, fosse transformado em Estado (e ampliado para um modo de
vida) neoliberal. A Inglaterra de Margaret Thatcher e os Estados Unidos de Ronald
Reagan foram decisivos à medida que tiveram força política e usaram truculência policial
para impor derrotas à organização sindical e às conquistas trabalhistas, liberando o
mercado para uma nova fase de ampliação dos lucros. Aliás, essa realidade revela o quanto
o “fim do Estado” o é propriamente um desejo dos capitalistas neoliberais, ao menos a
que organizem seus exércitos de seguranças particulares.
É preciso olhar para os efeitos econômicos das políticas neoliberais para além da
ideologia que sustenta a noção de que seria a única fórmula capaz de gerar aquecimento
econômico. “Efeitos redistributivos e uma desigualdade social crescente têm sido de fato
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58 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 11.
59 Ibid.
60 RIVEIRA, Carolina, Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e outros países, p. 4.
61 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 6.
34
uma característica tão persistente do neoliberalismo que podem ser considerados estruturais
em relação ao projeto como um todo”
62
. A noção de restruturação do poder de classe e os
dados imediatos de concentração de renda ficam em evidência. “O 0,1% mais rico dos Estados
Unidos aumentou sua parcela da renda nacional de 2% em 1978 para mais de 6% por volta de
1999, enquanto a proporção entre a compensação mediana dos trabalhadores e o salário de
CEOs passou de apenas 30 para 1 em 1970 a quase 500 para 1 por volta de 2000”
63
. A Grã-
Bretanha, Rússia e também a China gerou, com a adoção de práticas do livre mercado, surtos
extraordinários de concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica
64
. A concentração
da riqueza, associada a medidas de aceleração e ampliação de serviços financeiras, fim a sociedade
de subsistência e ao alto uso de tecnologia e mudança na matriz produtiva, flexibilização
das leis
trabalhistas e a considerável precarização do mercado de trabalho tornam uma parcela
importante da população sujeita à renda insuficiente ou inexistente. A fome é a realidade
trágica da outra ponta da riqueza, das fusões e reestruturações das grandes corporações, das
transações financeiras isentas de impostos e dos altos salários por empregos escassos.
Nesta fase, o capitalismo de mercado interfere profundamente nas bases do modelo
de produção, amplia de maneira drástica a margem de lucratividade e as possibilidades de
investimento, com centralidade no “mercado especulativo” e profundos condicionamentos
no funcionamento da economia global. E isso tem consequências no aumento da fome no
mundo? Em seu conjunto, considerando a reorganização das empresas, as fusões e a
constituição de grandes corporações com predomínio de dividendos oriundos de ações e a
definição da produção vinda do consumo e pelo retorno financeiro gerado, a economia gira
a partir de novas bases, com interferência no mundo do trabalho e por consequência na
rentabilidade das camadas populares. Dois pontos o fundamentais neste campo e se ligam
direta e indiretamente à dificuldade de acesso à alimentação suficiente e adequa à parcela
significativa da população: a) aumenta significativamente a margem de lucratividade do
investimento especulativo, com a ampliação dos serviços bancários; b) a agricultura,
principalmente o agronegócio, detentor de áreas de terra muito grandes e em crescimento
(inclusive na Amazônia), centra sua produção em commodities e não em alimentos.
Essa lógica de funcionamento da economia gera vínculo entre a produção primária e o
serviço financeiro, pelo caminho do dinheiro, além de, em termos gerais, gerar concentração,
de capital, riqueza, propriedade e poder, financeirização e controle absurdo das grandes
corporações sobre a política. O princípio de sustentação é: “grande demais para quebrar!”
65
Em
economias em que muitas corporações têm orçamentos superiores e de muitos países, o risco
apresentado à economia com a quebra de uma grande corporação não quer ser assumido por
nenhum governo. Em economia de escala e em que o mercado regula a produção, produz-se o
que gera alta margem de lucro. Alguns dados acerca do funcionamento da economia são bem
relevantes para compreendermos a atual tendência ao investimento em serviços da dívida,
títulos, ações e outras modalidades no campo dos ofícios bancários ampliados. O primeiro
dado diz respeito ao avanço da economia num ritmo aproximado de 1,5% a 2% ao ano
66
, o que
expressa uma lógica desproporcional de ganhos e perdas.
A remuneração do trabalho, no entanto, não tem acompanhado os progressos
tecnológicos, como a robotização e outras tecnologias, que estão revolucionando
os processos produtivos. A quase totalidade do aumento de riqueza adicional
produzida vai para os 10% mais ricos e, em particular, para o 1% superior. Esta
renda nas mãos dos mais ricos, a partir de certo nível, não
tem como se
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
62 HARVEY, David, O neoliberalismo: História e implicações, p. 26.
63 Ibid.
64 Ibid.
65 Confira os acontecimentos recentes do Credit Suisse e os detalhes da “compra do banco”.
66 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 139.
35
transformar em consumo, e passa a ser aplicada em diversos produtos financeiros,
cuja rentabilidade está na ordem de 5% para aplicações médias, subindo para 10%
para aplicações de grande vulto com gestores financeiros profissionais
67 68
.
Chamamos a atenção para o ponto da disponibilidade de valores que não podem ser
transformados em consumo e lembramos do episódio recente dos jogadores brasileiros que se
alimentaram de “carne banhada a ouro”
69
, fato que gerou repercussão. O escândalo não se deu
por conta da existência, por óbvio não os únicos consumidores de tal especiaria e de tantos
outros bens duráveis e não duráveis altamente sofisticados. Pode ir fundo na imaginação em
todas as áreas possíveis de consumo. Pois bem, valores não podem ser transformados em
consumo porque o nível da produção de bens de consumo não acompanha. É o que o
raciocínio lógico faz pensar. Não havendo consumo possível, transforma-se em novo
investimento com rentabilidade superior, consideravelmente superior, ao da “economia real”.
Parece interessante saltarmos direto deste ponto, sem pontos de contato na vida real, à
incapacidade de acessar os bens básicos, a alimentação cotidiana, o arroz, o feijão, sem a carne
(mesmo aquela sem o ouro e às vezes o osso). Essa é a imagem que queremos expressar em
palavras ao leitor para traduzir o nível da desigualdade, a intensidade da barriga que dói por
fome, porque está vazia de tudo, com a abundância de não ter onde “gastar o dinheiro”.
Uma questão importante a considerar neste contexto de sensibilização é que toda boa
ação e mudança de atitude pessoal é fundamental. Mas é preciso, além da emoção que tende a
ser temporária, o compromisso político e o controle estatal – só o Estado pode, se é que ainda
pode, desde que seus representantes governamentais queiram e saibam como fazer para
mudar esta lógica. É precisamente neste ponto que se entende o porquê e de qual intervenção
estatal os defensores do capitalismo neoliberal tinham ojeriza. Não parece possível resolver
problemas de tamanha magnitude, embora expressos simbolicamente através de pessoas
reais, sem discutir a economia global. E não se trata de desprezar soluções locais,
comunitárias, antes pelo contrário, é ali onde ocorrem o reconhecimento pessoal e o resgate
da dignidade, da identidade, algo que nenhuma medida governamental alcança. É que a
realidade que salta aos olhos é reveladora. “Com o rendimento sobre o capital ultrapassando
fortemente os avanços da própria economia, na realidade, gera-se um processo cumulativo de
enriquecimento proporcionalmente maior dos que já são mais ricos”
70
.
Para citar um outro ponto fundamental em termos econômicos e que tende a
ampliar as desigualdades, ao menos no modo como está organizada a carga tributária
brasileira. O tributo sobre o capital põe a carga em quem tem patrimônio elevado,
enquanto o imposto sobre o consumo torna proporcionalmente oneroso para quem já tem
baixa renda. Os paraísos fiscais são a ponta mais visível desse iceberg e porto seguro para
quem quer manter grandes fortunas sem passar pelo fisco. Ao entendermos que o
problema está relacionado ao acesso e distribuição dos bens e riquezas produzidos pela
sociedade, não podemos ignorar esse debate, uma vez que na outra ponta de quem tem
dificuldade de consumir por dispor de muito dinheiro está a precariedade, a instabilidade,
a insegurança, o desemprego, a pobreza, a miséria e a fome, como expressam os dados.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
67 Vale a pena dar atenção ao debate em terno dos juros que se estabelece no contexto brasileiro do início deste ano e
buscar os desdobramentos sobre ganhos e perdas, beneficiados e prejudicados, dos juros altos.
68 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 139–140.
69 A notícia que virou polêmica ocorreu no Catar, em novembro de 2022, quando alguns jogadores e ex-jogadores da
seleção foram a um restaurante em que essa carne fazia parte do cardápio. Disponível em: <https://www.uol.com.br/
esporte/futebol/copa-do-mundo/2022/11/30/jogadores-na-copa-aproveitam-folgas-para-experimentar-carne-
folheada-a-ouro.htm> Acesso em 23 mar./2023.
70 DOWBOR, Ladislau, A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro
da democracia e destruição do planeta, p. 140.
36
3.2 A racionalidade que sustenta a desigualdade e a fome
A racionalidade reforçada pela materialidade dos fatos é a concorrencial ou de
desempenho. “O homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na
competição mundial”
71
. Grifo dos autores). Primeiro se constitui um modelo bem específico
de funcionamento da empresa e depois a empresa passa a ser as referências para tudo, desde
as relações pessoais, o Estado, transformando a lei do mercado em lei universal. Trata-se de
uma nova articulação ente os valores hedonistas do consumo e os valores ascéticos do
trabalho. A corrosão progressiva dos direitos e a diminuição do poder de compra dos
trabalhadores, com consequente dependência dos empregadores, somadas às exigências
impostas pela dinâmica dos “sujeitos empreendedores” condiciona a que “se adaptem
subjetivamente às condições cada vez mais duras que eles mesmos produziram”
72
. A empresa
passa a ser um espaço de competição, apresentando-se como lugar de inovação, mudança,
adaptação às variações da demanda do mercado e busca de excelência
73
. Subjetivamente,
torna-se um “especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo,
empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo
para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição”
74
. O processo é tão profundo que “a
responsabilidade do indivíduo pela valorização do seu trabalho no mercado tornou-se um
princípio absoluto”
75
. A governança neoliberal de si mesmo “consiste em fabricar para si
mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce,
paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados”
76
. Em outras
palavras: “A fonte da eficácia está no indivíduo: ela não pode mais vir de uma autoridade
externa. É necessário fazer um trabalho intrapsíquico para procurar a motivação profunda”
77
.
Essa mentalidade toma conta de corações e mentes, e se transforma em regra ou
modo de vida. O mecanismo funciona a partir do cálculo do interesse pessoal, em que cada
um foca exclusivamente nos benefícios pessoais possíveis. Ocorre que numa realidade de
recursos escassos ou limitados a concentração gera como consequência a falta em outra
ponta, não sendo se sustentando a noção de que todos ganham. Mesmo a atuação do
Estado fica sujeito a questionamentos. A venda da dívida pública que permite a alta
lucratividade para alguns não diminui o poder de investimento em setores cruciais como
saúde e educação? Esta é uma prática sustentável a longo prazo? A estratégia de não
perceber o efeito direto, uma possível precariedade no serviço público e que atinge a
camadas populares, faz crer que todos ganham e que se trata de uma solução louvável.
Quando, na verdade, trata-se de uma racionalidade amarrada via sistema econômico,
criando condicionamentos, capturando a subjetividade e sustentada ideologicamente.
no mundo em que mandam os mercados da riqueza, os vencedores e perdedores se
dividem em duas categorias sociais: os que, ao acumular capital nanceiro, gozam
de “tempo livre” e do “consumo de luxo”; os que se tornam dependentes crônicos
da obsessão consumista e do endividamento estão permanentemente ameaçados
pelo desemprego, e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela
sobrevivência. Esses controles suaves e despóticos foram se apoderando das
mentes e das almas e apresentados como a prova da soberania do indivíduo
78
.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
71 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, p. 322.
72 Ibid., p. 329.
73 Ibid., p. 330.
74 Ibid., p. 330–331.
75 Ibid., p. 335.
76 Ibid., p. 344–345.
77 Ibid., p. 345.
78 BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel, A escassez na abundância capitalista, p. 94.
37
Se a materialidade sustenta a subjetividade, esta é transformada em racionalidade
coletiva que ratifica o funcionamento do modelo, criando uma circularidade importante
para a manutenção do atual estágio das coisas. A captura da política se dá de forma direta a
partir da atuação de representantes nas instâncias legislativo e executiva e através da
pressão ideológica de representantes no mundo acadêmico e midiático. Não se trata de
conspiração, mas de sustentação ideológico originada na formação acadêmica e no
financiamento direto ou indireto. Quem ousa questionar no campo político, sabendo que a
profecia pode custar não apenas as próximas eleições, mas o aniquilamento de reputações.
Neste sentido, é fundamental a criação e fortalecimento de espaços alternativos para a
formação crítica. É preciso reconhecer que o momento histórico é de crise de utopias e
criatividade, o que fragiliza as poucas iniciativas que se alimentam da cooperação e do
espírito de solidariedade. Quem acredita não pode desistir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fizemos, neste texto, um diagnóstico das principais causas, em abordagem ampla, da
fome no mundo, tema indissociável do debate acerca das regras que regem a economia. À
medida que submetemos o funcionamento da sociedade às regras do mercado financeiro
temos que estar conscientes de que avançamos na direção da concentração de poder e
riqueza, aprofundando a desigualdade, portanto, a miséria e a fome. As guerras, na quase
totalidade produzidas pelo interesse financeiro, e as crises climáticas estão entre causas
importantes, sem esquecer do modelo econômico que pune os vulneráveis. A
racionalidade baseada no cálculo do interesse pessoal não produz condições favoráveis
para o fim da fome e nem se quer colocar esta possibilidade em pauta. Aliás, do ponto de
vista lógico e a partir do que apontam os indícios e sinais mais visíveis caminhamos na
direção contrária ao da solução da fome. Não estamos suficientemente empenhados,
enquanto humanidade, nem se quer aceitando, muito menos desejando, uma sociedade
para todos. Seria o caso de abandonar a esperança e as utopias de dias melhores? Aos
cristãos implicaria abandonar a fé no Deus da promessa, que caminha e faz História.
Um sistema que permitiu que as 8 maiores empresas de alimentos e bebidas do
mundo desembolsassem mais de US$ 18 bilhões para os seus acionistas desde o
início de 2020, no mesmo momento em que a crise do COVID-19 se espalhava
pelo mundo. Esse valor equivale a mais de 10 vezes o volume de recursos para
assistência alimentar e agrícola solicitado no apelo da ONU por ajuda
humanitária diante da COVID-19
79
.
“A fome é um lembrete de que a humanidade é responsável por suas próprias
necessidades. Coloca diante de nossos olhos tanto a nossa condição de viventes mortais
quanto a nossa responsabilidade para com as necessidades de cada um”
80 81
. A fome é
urgente e quem a sente não está preocupado em saber por que ela existe. A fome é para ser
saciada. cabe elogio e incentivo a iniciativas, campanhas de doação de alimentos, que
visam atender o problema imediato. O trabalho incansável desenvolvido sob a liderança de
padre Júlio Lancelotti na Pastoral do Povo de Rua, em o Paulo, em nível eclesial, e o
Programa Fome Zero, em nível governamental, estão entre as iniciativas louváveis.
Infelizmente, enquanto sociedade, estamos tendo dificuldade de atender a urgência e ainda
avançando na direção da ampliação do fosso que separa quem tem acesso de quem depende
da “caridade” de outros. Enquanto para alguns, acabar com a fome é questão ética ou
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
79 OXFAM, O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, p. 2.
80 A frase é de Alexandre Soljenitsyne em artigo do Instituto Humanitas Unisinos.
81 FRÉDÉRIC, Boyer, O inferno é a fome, p. 2.
38
compromisso político, os cristãos são movidos pela fé e pela esperança a atuarem na defesa
da vida. A fome deve gerar desconforto e nos incomodar porque são nossos semelhantes
que estão à beira do caminho, clamando por socorro.
Acabar com a fome no mundo não pode se reduzir a campanhas esporádicas ou
permanentes. É preciso avançar no resgate da dignidade a partir da oportunidade de
trabalho e da conquista do “pão de cada dia”. É possível pensar, depois de tantos avanços
tecnológicos e de tamanha reestruturação produtiva, numa sociedade com trabalho para
todos? Quem não tem trabalho não merece comer? A terceira grande revolução,
tecnológica e/ou informacional, traz à tona alta produtividade com dispensa de mão de
obra. É urgente e decisivo para garantir condições mínimas de vida avançar na
implementação de uma renda básica universal. Discuta-se as bases, as fontes de recursos e
a maneira de gerenciar, não se adie a medida, sob pena do caos social. É papel dos Estados-
nação e sustenta-se na noção mínima de coletividade e interdependência.
Mesmo sabendo da complexidade do problema temos que invocar a esperança. A
crença nas pequenas alternativas e na capacidade de buscar saídas a partir dos pequenos
grupos, das iniciativas comunitárias, de trocas, de compartilhamento e de pequenos gestos
de solidariedade produz novidade e revigora a esperança. Ao lado dessas iniciativas, a
esperança na transformação da realidade e na superação do problema precisa levar à
criatividade e ao compromisso político com mudanças estruturais. Devemos cultivar o
espírito de mansidão e promover a paz, ao mesmo tempo em que o momento exige certa
ira. Quando se trata de situações de injustiça, produtoras de miséria e fome, a indignação e
a ira devem tomar nosso ser, denunciando práticas e atitudes incoerentes com o espírito
do Evangelho. Como afirma Aldir Blanc, “A fome tem que ter raiva para interromper”
82
.
Se não solução para a fome sem mexer na economia, precisamos entender e fazer
pressão para que ela não seja reduzida a mecanismo de concentração, em que grandes
corporações ganham cifras exorbitantes às custas da miséria de muitos. Todavia, é preciso
ter clareza de que as pessoas resistem a abandonar seus “impérios” e o engajamento implica
tocar a subjetividade. Assim como a adesão às políticas neoliberais tocaram à
subjetividade, a mudança necessita de pontos de contato, de valores que toquem as pessoas.
Enquanto diagnóstico, o engajamento com aderência atual é o da ultradireita política
somada ao conservadorismo de costumes. Não parece que d surgir compromisso
obsessivo pela justiça social. Sejamos criativos, porque sem adesão pessoal e sem a
capacidade de produzir sentidos e significados subjetivos nenhuma causa, por mais nobre
ou urgente que seja, produz adesão por si só.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. A escassez na abundância capitalista. São Paulo:
Contracorrente, 2019.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Trad. Mariana Eschalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
FRÉDÉRIC, Boyer. O inferno é a fome. Trad. de Luisa Rabolini. 2022. Disponível em: <https://
www.ihu.unisinos.br/624743-o-inferno-e-a-fome>. Acesso em: 20dez.2022.
GUIA A FOME NO MUNDO. Causas, consequências e soluções para um mal que assola o planeta. São
Paulo: On Line, 2016.
HARVEY, David. O neoliberalismo: História e implicações. 5a E. São Paulo: Loyola, 2014.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
82 VANNUCHI, Camilo; CAMARGO, Simone de, Fome: como enfrentar a maior das violências, p. 7.
39
LADISLAU, Dowbor. A era do capital improdutivo: A nova arquitetura do poder, sob dominação
financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. 2a Ed. São Paulo: Autonomia
Literária, 2018.
OXFAM. O Vírus da fome: Como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto.
[s.l.]: OXFAM, 2020. Disponível em: <www.oxfambrasil.org.br>. Acesso em: 20dez.2022.
RIVEIRA, Carolina. Fome dispara no mundo e ONU aponta soluções; veja destaques do Brasil e
outros países. Exame, 2022. Disponível em: <https://exame.com/mundo/fome-brasil-mundo-2022/
>. Acesso em: 18dez.2022.
SUNG, Jung Mo. Desejo, Mercado e Religião. 4a Ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
UOL. Fome atinge quase 830 milhões em todo o mundo. 2022. Disponível em: <https://
noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2022/10/13/fome-atinge-quase-830-milhoes-
em-todo-o-mundo.htm>. Acesso em: 18mar.2022.
VANNUCHI, Camilo; CAMARGO, Simone de. Fome: como enfrentar a maior das violências. São
Paulo: Discurso Direto, 2022.
Brasil tem mais de 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em
insegurança alimentar, diz ONU. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/
noticia/2023/07/12/brasil-tem-101-milhoes-de-brasileiros-passando-fome-e-703-milhoes-em-
inseguranca-alimentar-aponta-onu.ghtml>. Acesso em: 31jul.2023.
MEZADRI, Neri José
A fome é sinal de contradição num tempo de abunncia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 23-39, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
FOME E PRODUÇÃO DE
ALIMENTOS NO BRASIL FACE ÀS
EXIGÊNCIAS DO DIREITO À
ALIMENTAÇÃO
HUNGER AND FOOD
PRODUCTION IN BRAZIL IN THE
FACE OF THE DEMANDS OF THE
RIGHT TO FOOD
Guilherme C. Delgado*
Resumo: Este artigo analisa um paradoxo empírico: de um lado a
superprodução de alimento- ‘commodities’, e de outro, o alto nível da
fome detectado em inquérito domiciliar sobre a segurança alimentar.
Neste contexto é necessário apelar às políticas sociais e econômicas, tendo
em vista obter a diversificação da produção de alimentos e também
elevação da renda disponível às famílias pobres, condições que são
imprescindíveis para essas pessoas acessarem aos alimentos em tais
condições. Mas a concepção de economia política do sistema de
agronegócio e outros arranjos de economia neoliberal hegemônicos
bloqueiam ações de política pública nessa direção comum segurança
alimentar e Estado do Bem-estar Social. Essas objeções são o principal
problema político a enfrentar, que é necessário em um novo arranjo de
economia política para a questão em foco.
Palavras-Chave: Fome. Produção de Alimentos no Brasil. Economia
neoliberal. Direito à Alimentação.
Abstract: This paper analyse an empirical paradox: overproduction of
commodities- food-grain and feed-grain for export in Brazil and a high
level of hunger detected in a national inquire of food security. In this
condition, It’s necessary to appell to social and economic policies in order
to generate diversification of food production and income diponible for
poor peoples. These policies are essentials conditions for poor peoples
acesss foods on food security situation.But conceptions of political
ecoonomy of agrobussiness system and anothers arrangements of
neoliberal economics has blocked actions in direction of food security and
Social State.These objections are the main policy problem, that is
necessary to face in a new political approach of this question.
Keywords: Hunger. Food Production in Brazil. Neoliberal Economy.
Right to Food.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 40-49, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.185
* Doutor em Economia pela Universidade de
Campinas-SP (1984), pesquisador do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) em Brasília por mais de 30 anos, ora
aposentado, com áreas de concentração em
agricultura e políticas sociais; e atualmente
participa da direção colegiada da Associação
Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.
E-mail: guilhermecostadelgado@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5846-1753
Recebido em 12/05/2023
Aprovado em 15/08/2023
41
INTRODUÇÃO
O artigo se inicia pela enunciação empírica de um paradoxo ou enigma a decifrar: a
superprodução de alimentos à escala global, com origem no Brasil; com paralelo
recrudescimento da ‘Insegurança Alimentar Grave (fome) e Moderada...’ em 30,7 % dos
domicílios nacionais pesquisados em ‘Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar...’,
realizado entre 2021/2022.
Por sua vez, o paradoxo contém algumas pistas a decifrar. A superprodução é de
alimentos ‘commodities’, ou seja, de mercadorias mundiais produzidas explicitamente para
gerar resultado comercial excedentário no comércio exterior. Isto se realiza como meta de
política econômica, conduzida a qualquer custo’, visto que o país passou a depender
essencialmente do setor primário para exportar.
Por outro lado, o “Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar...” está apurando
situações de estado de necessidade alimentar das famílias, medidas de conformidade com
acesso e ingestão regular dos alimentos nos domicílios.
As duas classes de fenômenos produção mercantil e atendimento de necessidades
básicas alimentares- seguem lógicas distintas-, como se analisa na seção 2. Paira entre elas
uma situação de estado de necessidade não atendida pelos mercados, precisamente por
estar fora do seu raio de operação; mas que é critério indispensável ao funcionamento de
uma economia humana, fundada em exigências éticas universais.
Pelo exposto precedentemente pode aduzir a hipótese de que a existência do
paradoxo empírico, no caso brasileiro, não é casual ou circunstancial. Isto porque houve
construção ideológica de uma economia política, que se promove como autossuficiente e
independente de critérios de economia humana para funcionar. Isto tem consequências
para explicação do fenômeno que ora se investiga: causa da fome em presença da
superprodução de alimentos, sob regulação mercantil estrita.
Mas a abordagem ou solução do enigma não se resolve nos domínios da própria
economia de mercado; requer interpretação ética sobre o abandono dos critérios de
economia humana –atendimentos de necessidades de subsistência, proteção contra riscos
incapacitantes ao trabalho humano e desenvolvimento ou reabilitação de capacidades
humanas-, que de longa data são referencial do chamado Estado Social. Mas também
relativo abandono da política social de Estado e concentração exclusiva da política agrícola
ao espaço das ‘commodities’, orientações de política públicas que para se legitimarem,
apelam ostensivamente à mitologia de uma economia política autossuficiente, com
características típicas da idolatria e do fetiche.
Propomos na seção 3 ‘Produção do mito e da idolatria...’ o levantamento de uma
classe de fenômenos no contexto temático sob exame, que nos leva a enveredar pelos
domínios da Teologia, tendo em vista compreender e também denunciar a utilização do
mito e da idolatria na situação sob análise. Isto porque, consequências a certa anestesia
ética da opinião pública, como também de inversão de significados ético teológicos
fundamentais de economia humana, que bloqueiam políticas públicas indispensáveis à
construção da segurança alimentar.
Por último, na Seção 4 o texto enuncia critérios e condições concretas aplicáveis à
política agrícola e política social aqui no Brasil-, que o necessários à efetivação do
princípio da segurança alimentar, de sorte a regular a economia de mercado à finalidade
abandonada, da universalização do direito à alimentação prevista na Constituição Federal
(Art. 6 – Caput).
DELGADO, Guilherme C.
Fome e prodão de alimentos no Brasil face às exigências do direito à alimentação
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 40-49, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
42
Atender exigências éticas, como as que ora se colocam, não se resolve pelo apelo a
princípios mágicos da ‘mão invisível dos mercados’ ou de ideologias contemporâneas da
superprodução de mercadorias mundiais, cujo determinante ético particular e exclusivo
o individualismo utilitário, não se compraz com as exigências éticas universais do direito
humano à alimentação ou com direitos sociais universais.
1 PARADOXO DA SUPERPRODUÇÃO FACE À CARÊNCIA EXTREMA DOS ALIMENTOS NOS
DOMICÍLIOS
No período de 1996/2020 o Produto Interno Bruto da Agropecuária brasileira
cresceu em termos reais 3,5% ao ano em média anual, resultado que é de quase o dobro do
desempenho do PIB geral da economia no mesmo período, que é de 1,9% a.a.
Dados imediatos (2021) e projeções até 2030 do Ministério da Agricultura
1
apresentam verdadeiro ‘espetáculo do crescimento’ da produção de cereais e carnes
2
, com
acréscimos projetados de 71,6 milhões de toneladas de grãos até 2030 e 7,0 milhões de
toneladas de carnes entre 2021/31. Essa empiria, descrita em documento oficial como ‘Projeções
do Agronegócio - de Longo Prazo...’ está na linha de convergência do sistema de economia
política hegemônico, no sentido de credenciá-lo e especializá-lo cada vez mais à condição
de campeão mundial ao fornecimento de alimentos -‘commodities’
3
à escala planetária.
Por outro lado, ao consultar o “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia COVID 19 no Brasil”
4
(deparamo-nos com uma situação alimentar
e nutricional interna, de cerca de 30,7% dos domicílios brasileiros pesquisados em situação
de ‘insegurança alimentar moderada e grave (fome)’, situação que era ruim antes da
Pandemia e com esta se agravou, a ponto de trazer o País de volta ao “Mapa da Fome”,
segundo os indicadores da FAO/ONU.
Os dados de produção agrícola citados (MAPA) e do ‘Inquérito Nacional sobre
Segurança Alimentar...’ (PENSAN) revelam um paradoxo empírico com características de
enigma a decifrar: produção de carnes em crescimento contínuo e firme, perante uma
situação constatada de agravamento da fome e da ‘insegurança alimentar moderada’
5
.
Os dois fenômenos referidos refletem dinâmicas distintas, mas com alguma
correlação. O primeiro, está diretamente associado à vinculação da produção de
‘mercadorias mundiais’ brasileiras destinadas à exportação, que se orientam por margens
de lucratividade planejadas, ora pelos preços externos dessas ‘commodities’, ora pelos
incentivos fiscais, financeiros e cambiais explicitamente dirigidos à geração de saldos
comerciais externos. o segundo fenômeno apontado, reflete uma situação de
necessidade humana, sem contrapartida da possessão de renda e riqueza susceptível de
incluir essas pessoas no mercado comprador de alimentos.
1 MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO, Projeções do Agronegócio - Brasil 2020/2021 a
2030/2031.
2 Segundo o Ministério da Agricultura (in “Projeções do Agronegócio...”, op. cit) a produção de grãos entre 2021 e
2031 crescerá de 262,0 milhões de toneladas para 331,0 milhões. No mesmo período a produção de carnes é estimada
a crescer de 27,0 para 34,0 milhões de toneladas.
3 A noção cnica de “commodities” é a seguinte: mercadorias mundiais tipificadas e armazenáveis, negociadas em
Bolsas Internacionais de Mercadorias à vista e nos mercados futuros de forma regular.
4 Conferir nota 5.
5 O “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar...” apura a situação alimentar e nutricional das famílias
pesquisadas (amostra nacional de 12.745 domicílios em 26 Estados mais o DF) com base em quatro critérios de
segurança alimentar: 1) - Segurança Alimentar: com acesso regular aos alimentos em quantidades e qualidades
adequadas; 2 - Insegurança Alimentar Leve: quando incerteza futura em relação ao acesso regular aos alimentos; 3
- Insegurança Alimentar Moderada: quando redução quantitativa resultante da falta de alimentos; Insegurança
Alimentar Grave: quando há falta de alimentos pela falta de dinheiro para comprá-los.
DELGADO, Guilherme C.
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A dinâmica dos mercados de commodities’, sob a regência de um pacto de economia
política do chamado agronegócio, especializa o sistema econômico na exportação de
mercadorias mundiais (‘commodities’) agrícolas e minerais, com consequências externas e
internas muito distantes do desenvolvimento social e ecológico, resvalando adicionalmente
à pressão inflacionária sobre os alimentos, que é também componente do tema sob análise.
Por seu turno, nos últimos sete anos ocorrem coetaneamente vários processos
socioeconômicos e políticos concorrentes para elevação da desigualdade social
crescimento negativo da economia (PIB ‘per capita’ negativo), relativa desmontagem das
políticas sociais de Estado, estagnação ou queda na produção de não ‘commodities’,
pressões inflacionárias sobre a cesta básica salarial etc.; que no seu conjunto contribuem à
insegurança alimentar, seja pelo lado da produção, seja pelo lado da desigualdade de renda
monetária disponível às famílias.
A situação revelada de insegurança alimentar, como de tantas outras necessidades
humanas desatendidas no espaço específico dos mercados, aponta para falhas endógenas de
um sistema, que deixado a funcionar de forma autossuficiente pela chamada ‘mão invisível’
dos mercados, reproduz dicotomias e paradoxos como o que ora estamos examinando.
2
PRODUÇÃO ECONÔMICA X ATENDIMENTO DE NECESSIDADES BÁSICAS: EXIGÊNCIAS
ÉTICAS
Ao contrário do pensamento ao estilo senso comum, o sistema econômico de
mercado não se destina endogenamente a atender necessidades básicas da população
alimento, teto, agasalho, saúde etc.; mas a produzir mercadorias que possam ser
demandadas pelos consumidores portadores de renda e riqueza monetária. Para estes, o
sistema está construído na perspectiva de oferecer bens e serviços que atendam desejos e
preferências de consumo, enquanto que necessidades básicas desacompanhadas dos
requisitos mercantis descritos, entram em uma zona anômala do sistema de mercado o
estado de necessidade.
Por sua vez, as necessidades humanas de provisão de bens e serviços de subsistência
são tão antigas como a própria humanidade, assim como as situações das carências
desatendidas. Os textos mais antigos da Bíblia, a exemplo de Ex. 22,20-26, atribuem ao
imigrante, aos órfãos e às viúvas e aos pobres em geral preferências explícitas reveladas
por Deus aos profetas de Israel, no sentido da prioridade ao atendimento de necessidades
básicas de subsistência.
Essa tradição é completamente confirmada em todos os Evangelhos, que
efetivamente erigem os fundamentos éticos da economia humana em inúmeras passagens,
a exemplo, que seria ocioso repetir, não fora a necessidade de ilustrar para ligar com que se
prática nos tempos modernos.
O Sermão das Bem-aventuranças (Mt 5,1-11 e Lc 6,20-27) e o discurso articulado na
Sinagoga de Naza(Lc 4,16-27), citando o Profeta Isaias e destacando a prioridade pelos
pobres, oprimidos e incapacitados.
A tradição judaico-cristã é recuperada na modernidade em três eixos de uma
economia humana que convém destacar, porque exercem papéis completamente distintos
em relação à economia de mercado convencional: 1) atendimento de necessidades básicas
de subsistência; 2) proteção social contra riscos incapacitantes ao trabalho; 3)
desenvolvimento e reabilitação de capacidades humanas
6
.
6 Para uma abordagem de fundamentação ética da Economia Humana, ver Delgado, Guilherme C. (2021) Cap 5
“Fundamentos da Economia Humana – Ética e Política”, op. Cit, p. 93-111.
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Essa economia humana a que estamos fazendo referência é o espaço socioeconômico
onde se exercitam os direitos sociais, incluindo o direito à alimentação, os direitos
trabalhistas e previdenciários, o direito à saúde e à assistência social, tendo em cada país
um perfil peculiar; que, infelizmente, nos últimos tempos tem sofrido restrições de toda
ordem, em nome da restauração dos princípios neoliberais da economia de mercado.
Não vou por ora entrar em considerações específicas sobre política social
relacionada ao chamado Estado do Bem-estar concretamente operante no Brasil, para não
misturar os níveis de argumentação – pragmático e conceitual. Pois o que importa na linha
de argumentação conceitual a destacar, são os critérios de economia humana fundados em
princípios de direito social universal, como condição necessária à provisão de necessidades
básicas, sem o que situações de fome e insegurança alimentar recrudesceriam em toda
parte onde a economia de mercado autossuficiente fosse predominante.
Ademais, a própria ideia de uma economia autossuficiente ou para usar a expressão
utilizada pelo próprio sistema – autorregulada –, é em si um absurdo ético; e para utilizar a
linguagem teológica apelo à idolatria econômica. Esta tem no princípio do
individualismo utilitário associado ao progresso técnico de caráter competitivo, espécie de
pedra angular do comportamento dos agentes econômicos, tudo o mais lhes ficando
externo do ponto de vista ético-econômico.
Por sua vez, atender necessidades de subsistência, como também às situações
incapacitantes ao trabalho, sejam estas provocadas pelo próprio funcionamento do
sistema, como é o caso do desemprego involuntário, como também às muitas situações de
incapacitação ao trabalho ‘naturais’ do ponto de vista demográfico idade avançada,
acidente de trabalho, doença, invalidez permanente etc.; são condições imprescindíveis ao
atendimento de necessidades humanas, sob regência de critérios ético e teológicos universais.
Esses critérios estão em uma espécie de DNA da cultura humana da comunidade
primitiva
à civilização industrial dos tempos atuais, com exceção daqueles que elegeram a idolatria
econômica da autossuficiência dos mercados como paradigma a seguir.
3 PRODUÇÃO DO MITO E DA IDOLATRIA DE UMA ECONOMIA (AGRÍCOLA)
AUTOSSUFICIENTE
A ideia de uma economia especializada nas exportações agrícolas e minerais
protagonizando o conjunto do sistema econômico, suficiente para alimentar 800 milhões de
consumidores no mundo e garantir pelo seu saldo de mercadorias exportadas o decantado
‘equilíbrio das contas externas’, tem sido utilizada como expressão senha de um sistema
erigido há pouco mais de duas décadas – a autodenominada economia do agronegócio
7
.
Dispondo de aparato publicitário massivo, esse sistema difunde mensagens
aparentemente técnicas, como estas acima citadas, que como já vimos, compõem o
paradoxo explorado inicialmente; e no mínimo servem para deixar o público
conformado com a senha do “equilíbrio das contas externas”, que tampouco se sustenta,
como ainda veremos adiante.
Por sua vez, o gigantesco aparato publicitário do sistema difunde também muitos
anos mensagens publicitárias em horário nobre de TV, que pela repetição sistemática
reivindicam foros de verdade inconteste “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é tudo”. A
própria mensagem e sua repetição sistemática assumem características típicas de difusão
do mito, com apelos subliminares de sentido demiúrgico à totalidade, à ubiquidade e
certa insinuação de potência e onisciência extraordinárias associadas a entidade “Agro”.
7
Para uma análise contextualizada da Economia do Agronegócio no Brasil, ver – Delgado, Guilherme C. (2012) – op. cit.
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A construção do mito relativamente ao sistema que se autopromove contém
objetivos mais profundos que da mera propaganda comercial. Pretende-se ocupar o
imaginário coletivo não propriamente com informação sobre o sistema de economia
política, mas à percepção de um ídolo a cultivar. E, neste ponto, explicitamente,
precisamos nos deslocar por necessidade analítica, da abordagem da Economia Política
para outra abordagem fundamentada nos domínios da Teologia.
Antes da explicação teológica, convém caracterizar esse sistema que se autopromove - o
denominado ‘Agro’-, como uma construção de economia política datada - (anos 2000) - ,
voltado às exportações primárias, dotado de numerosa bancada parlamentar (Frente
Parlamentar da Agropecuária), detentor de aparato acadêmico próprio (Instituto PENSA e rede
de apoiadores). Conta também com potente estrutura de comunicação midiática já referida e
principalmente apoio ostensiva de finanças públicas à meta da exportação de “commodities’ ao
longo de seis mandatos presidenciais sucessivos (FHC II, Lula I, Lula II, Dilma I, Dilma II,
Temer e Bolsonaro), que vem se caracterizando ao longo do tempo na linha da especialização
primário exportadora, conduzida com absoluta prioridade pela política econômica.
Vou me valer de excelente contribuição à abordagem teológica do tema em pauta - a
idolatria econômica -, de uma coletânea de biblistas e cientistas sociais, que ainda nos
primórdios da Teologia da Libertação (anos 80 do século passado) trataram de questões
conexas que dão título ao próprio livroLa Lucha de los dioses – los ídolos de la opressión y La
búsqueda del Dios Liberador
8
.
Referida abordagem teológica faz o esclarecimento e decodificação de justificativas
econômicas misturadas a idolatrias teológicas nos seguintes termos, que os declara em
trecho de sua introdução que escolhi para citar, cuja tradução livre segue abaixo:
O problema central hoje na América Latina (...) é a idolatria como culto aos
deuses falsos do sistema de opressão. Mais trágico do que o ateísmo é a e a
esperança nos deuses falsos do sistema. Todo sistema de opressão se caracteriza
precisamente pela criação de deuses e geração de ídolos sacralizadores da
opressão e da antivida. Finalmente, cabe destacar a grande importância da
presente discussão em nosso continente latino-americano com seu passado de
dominação política e religiosa e seu presente de repressão e miséria. Cremos que
o problema dos ídolos da opressão e a busca do Deus Libertador adquire hoje
uma nova dimensão, tanto na tarefa evangelizadora, como na tarefa política. A
teologia da libertação encontra aqui um dos seus desafios mais fecundos.
Associada a esta síntese geral expressa na introdução da coletânea, o próprio
organizador e autor de um dos ensaios – Pablo Richard- conclui ensaio específico: ‘Nuestra
Lucha es contra lós ídolos’
9
que a realidade econômica e política do capitalismo na
América Latina tem característica distintiva do profundo apelo idolátrico em suas
prioridades às ações humanas nas esferas econômica, cultural, social, política e religiosa. E
isto se faz de forma tácita ou ostensiva em estado de confronta à no Deus da vida e da
plena libertação humana. Daí que não podemos ficar neutros nesta sociedade, sob pena do
abandona às exigências éticas da nos nossos discernimentos pragmáticos em economia
política, como também de caráter pastoral-evangelizador.
Observe o leitor, que o sistema de agronegócio pela eficácia com que cumpre sua
meta econômica de elevado custo social - a exportação máxima e crescente de ‘commodities’
-, algo de que se jacta em fazê-lo e se projeta assim continuá-lo (Ver Projeções do
Agronegócio até 2031, cf. nota nº 2); coloca-se na linha de uma economia política
autossuficiente, que dispensa os critérios de economia humana referidos na seção 2. Mas é
8 Ver Richard, Pablo (Org. – 1980) – op. cit.
9 Ver Richard Pablo – Capítulo 1, p.31-32
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principalmente no processo de legitimação política para obter hegemonia que o sistema
apela à mistificação, de caráter demiúrgico, escondendo do debate blico as enormes
distorções em segurança alimentar, desigualdade social e contaminação ecológica que
promove como ‘externalidades’. Ademais, há indicadores claros de aumento da dependência
externo na ‘Conta Corrente com Exterior
10
na última década, ao contrário da propaganda
do ‘equilíbrio externo’ esgrimida no repertório de ‘marketing’ da entidade “Agro”.
Em relação ao tema específico da segurança alimentar, como já vimos, o sistema se
confronta com as faces oprimidas dos domicílios brasileiros identificados no ‘Inquérito
Nacional sobre Segurança Alimentar...’, como incluídos na situação de fome explícita
ou moderada.
Precisamos explorar de forma mais específica as relações dessa prioridade ao sistema
para exportar ‘commodities’-alimento, a qualquer custo, e suas consequências sobre a
alimentação suficiente e saudável às pessoas mais pobres, que o referido ‘Inquérito
Nacional...’ quantifica em 31% dos domicílios brasileiros.
4 PROVISÃO DE ALIMENTOS NO BRASIL: COMO FUNCIONA UM SISTEMA DE MERCADO
AUTOSSUFICIENTE
Os inquéritos domiciliares que apuram a provisão e o consumo de alimentos das
famílias medem a suficiência e adequação dos alimentos consumidos disponíveis face às
necessidades alimentares dos diversos membros, classificando, como referido na nota n. 5,
os diversos graus de suficiência e insegurança alimentar discutidos. Mas para apurar
sobre as causas da insegurança alimentar e de como enfrentar o problema detectado, é
preciso recorrer ao mecanismo da formação de preços dos alimentos que comparecem às
diversas cestas básicas alimentares, que estão sendo investigadas nesses domicílios.
Por razões de economia política interna, a política oficial do Brasil pouco mais de
duas décadas, persegue a valorização dos preços externos dos chamados alimentos
‘commodities (‘feed-grainssoja, milho e farelos para ração animal e food-grainsgrãos
para consumo humano direto, dentre os quais o trigo é o principal). Ademais a exportação
das carnes e dos produtos lácteos armazenáveis entram também nesse rol de valorização
para exportação.
Por sua vez, os produtos “não commodities” arroz, feijão, mandioca, frutas e
verduras, que por diversas razões não se classificam como ‘mercadorias mundiais,’ seguem
outro padrão de regulação de política agrícola e comercial, que no geral deixa-os à margem
dos mecanismos de valorização operados pela política econômica, tais como crédito
subvencionado, subvenções tributárias, preços de garantia e estímulos cambiais. Essa
política diferencial funciona como sinalização clara à sustentação de margem de
lucratividade protegida às ‘commodities’, enquanto as o ‘commodities’ disputam espaço
nos mercados em condições mais adversas. Sob tais condições, cedem espaços territoriais
mais férteis e mais próximos aos centros consumidores ao grupo de produtos valorizados
pela política econômica, de claro viés exportador.
Em tais condições, não é de se estranhar a pressão sobre os preços dos alimentos da
cesta básica, seja pela valorização externa nos períodos de pico das ‘commodities’; seja pela
escassez conjuntural das não ‘commodities’. O período 2020-2022 é típico de uma elevação
10 A ‘Conta Corrente com o Exterior” brasileira, que expressa a totalidade do movimento comercial de mercadorias e
serviços no tempo, apresenta-se sistematicamente deficitária desde o triênio 2008/2010 até o presente, não obstante
revele saldo comercial positivo na exportação de ‘commodities agrícolas e minerais. Mas este saldo mostra-se
completamente insuficiente para suprir os elevados ‘deficits’, principalmente da Indústria e dos Serviços. Para uma
análise histórica do período 1995/2021 – ver Delgado, Guilherme C. (2022), op. cit.
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conjugada dos dois conjuntos de preços: do preço das ‘mercadorias mundiais ‘pelo efeito da
desvalorização cambial
11
e dos preços de produtos típicos do mercado interno, que crescem
ainda mais que a inflação geral.
Como o sistema econômico está estruturado para gerar resultados comerciais
exportadores pelo setor primário, a política de valorização interna de ‘commodities’ segue
seu curso e o sistema “Agro” idem. Mesmo revelando disfunções à provisão necessária de
alimentos às chamadas cestas básicas salariais, que a esta altura já estão bem diagnosticadas.
Por outro lado, transparece evidente quando se utilizam critérios de economia
humana para avaliar as políticas públicas brasileiras, a necessidade de adoção de princípios
de segurança alimentar aplicáveis às políticas - agrícola e política social -, tendo em vista
atender à função de provisão de bens alimentares necessários e rendimentos compatíveis
às famílias para adquiri-los; para o que são necessárias mudanças significativas, que
precisamos enunciar.
A política agrícola brasileira precisaria mudar no sentido de que se lhe
reintroduzissem objetivos de regulação do abastecimento da economia interna, no sentido
da provisão dos alimentos das várias cestas básicas salariais brasileiras, a salvo das pressões
inflacionárias que as acometem sistematicamente no quadro regulatório atual. Neste
sentido, é provável que se tenha de retornar à formação de estoques públicos de alimentos
não perecíveis e de fomento a estruturas produtivas normalmente vinculadas à produção
diversificada de alimentos, com especial ênfase à agroecologia, e recuperação com base em
fomento produtivo diferencial à multiforme agricultura familiar brasileira.
Por sua vez, o sistema de produção de ‘commodities-alimento’ precisa se adequar,
pela política agrícola do Plano-Safra e de outras políticas públicas, ao atendimento das
exigências contemporâneas de sustentabilidade ecológica, mediante utilização de critérios
de zoneamento agro-hidro-ecológicos, que lhes confiram prêmios e sanções de acordo
com indicadores de desempenho. Isto viria em substituição aos critérios de valorização
irrestrita atualmente vigentes às ‘commodities’, que servem de estímulo econômico
indireto à maximização da emissão de dióxido de carbono e à degradação hídrica.
Por sua vez, a segurança alimentar é princípio orientador também de política social,
visto que é a partir desta que as famílias mais pobres podem recorrer a rendimentos
monetários extramercado - aposentadorias, pensões, ‘bolsa-família’, ‘salário-mínimo’ e
subvenções alimentares específicas -, compatíveis com a concretização do direito humano
à alimentação previsto na própria Constituição Federal (Art. 6º- Caput).
Em síntese, o que se está enunciando nesta seção são as condições de transição das
políticas agrícola e social vigentes a princípios de segurança alimentar e sustentabilidade
ecológica, algo que muda qualitativamente o padrão de regulação de economia política ora
vigente, sob hegemonia do sistema do agronegócio. E isto tem por pressuposto oferecer
respostas de políticas públicas à insegurança alimentar principalmente, sem deixar de fora
objetivos conexos de sustentabilidade ecológica, que não sendo objeto específico deste
texto, são componentes indispensáveis de uma perspectiva de ecologia integral. Isto
porque o debate político contemporâneo da segurança alimentar está intrinsecamente
integrado à transição ecológica no desenvolvimento rural, por razões que reservamos aos
comentários das “Considerações Finais”.
11 A taxa cambial do real em relação ao dólar entre 2019 e 2022 desvalorizou-se substancialmente, variando de 3,79 no
início do período (mês de julho) para 5,16 no mês de julho de 2022, patamar aproximadamente seguido nos anos de
2020 e 2021.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O grande paradoxo de um País que se jacta de alimentar 800 milhões de
consumidores no mundo com suas exportações de cereais e carnes; mas revela ao mesmo
tempo 30,7% de domicílios em situação de insegurança alimentar grave ou moderada’,
como revelamos documentalmente neste texto; não é situação fortuita, casual ou isolada.
Essa situação paradoxal reflete opções e movimentos invertidos na concepção e
gestão da economia política, marcados por relativo abandono de critérios de economia
humana aplicáveis às políticas agrícola e social. Isto se pela inversão ética em apostar
todas as fichas nos princípios da autossuficiência econômica, aplicáveis em especial à
economia primário-exportadora, balizada por uma meta macroeconômica dos elevados e
exclusivos resultados exportadores em ‘commodities’, a qualquer custo.
Por sua vez, uma inversão radical de critérios éticos vigentes mais de duas
décadas, dificilmente poderia se realizar em ambiente de certa normalidade ao pleno
funcionamento de instituições democráticas; tendo em vista a provável ocorrência de
pressões sociais em sentido contrário.
É preciso atentar para o fato de que o reconhecimento da fome e da miséria como
situações eticamente inaceitáveis não são algo normal ao funcionamento do sistema
econômico de mercado, que pela sua pretensão aética, desconhece famintos e outros
despossuídos de meios de subsistência, relegando-os à condição externa à economia.
Por sua vez, ao se (re)construir no Brasil um polo exportador global de cereais e
carnes, associado a aparato de propaganda e ‘marketingde um mito com características de
idolatria econômica, anestesiou-se de certa forma a opinião pública para as várias
consequências adversas daí decorrentes: inflação de alimentos, aumento da desigualdade
social, dilapidação ambiental e agora explicitamente revelado, o reingresso do Brasil no
‘mapa da fome mundial’.
A transição de uma economia dominantemente voltada às exportações ao estilo
“Agro”, para um modelo de economia política balizada por critérios de economia humana,
que atendam necessidades de segurança alimentar interna; contém vários ingredientes de
reestruturação. Alguns foram abandonados pelo modelo hegemônico e outros lhes são
absolutamente extrínsecos, por princípio.
No primeiro caso, temos notoriamente a questão da regulação do abastecimento
interno de produtos da cesta básica alimentar, que praticamente desapareceu das
formulações de política agrícola, sob pressão da prioridade macroeconômica da
maximização do resultado exportador em ‘commodities’, a qualquer custo. O reingresso da
inflação de alimentos em tais condições não é resultado.
Por seu turno, uma transição de regulação econômica nos moldes ora sob conjectura
haveria que abarcar também critérios de transição ecológica, que são absolutamente
externos à produção mercantil estrita. E por esta condição converteram o espaço rural
brasileiro no principal foco de emissão de dióxido de carbono na atmosfera e o Brasil no 6º
maior poluidor mundial do efeito estufa (Cf. Relatório do IPCC à 27ª Conferência do
Clima – Cairo 2022).
Segurança Alimentar e Economia Ecológica são ingredientes gêmeos de uma
concepção de ecologia integral aplicável ao desenvolvimento rural, plenamente
consistentes com os Ensinamentos da Encíclica Laudato Si (2015)
12
do Papa Francisco, que
nos são úteis às mudanças necessárias de políticas públicas no Brasil.
12 Ver em especial o Capítulo V da Carta Encíclica Laudato Sì – “Algumas Linhas de Orientação e Ação”, op. cit.
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Finalmente, é preciso alertar para o fato de que políticas públicas em processo de
transição requerem alguns condicionantes para se somente se concretizarem. Um destes
condicionantes é, no Estado Democrático, a conquista de mentes e corações paro os novos
termos do pacto político que se pretende estabelecer em substituição à velha ordem. Nesse
contexto é plenamente legítima a pressão sobre Poderes de Estado para reversão do atual
quadro hegemônico, fortemente condicionado por valores de idolatria econômica. E a
mesmo por esta condição, o papel das Igrejas é muito importante e legítimo, para
esclarecer e motivar Poderes de Estado a realizarem mudanças no espaço regulatório de
políticas públicas notoriamente vinculado ao direito à vida digna. Diga-se de passagem o
discurso da segurança alimentar e da transição ecológica explicitamente se inclui na
agenda do Presidente eleito declarado por ocasião da Cop. 27, no Cairo; mas internamente
as pressões em contrário provavelmente ainda persistirão no novo governo em razão dos
interesses particulares contrariados.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
DELGADO, Guilherme C. Do ‘Capital Financeiro na Agricultura’ à Economia do Agronegócio: mudanças
cíclicas em meio século (1965/2012). Porto Alegre: UFRGS Editora, 2012.
DELGADO, Guilherme C. Rumo ao mundo de Francisco: economia, humanismo e ecologia em tempos de
crise. Brasília: AFPEA, 2021.
DELGADO, Guilherme. “Mudanças Cíclicas do Espaço Rural Brasileiro e Perspectivas de Futuro”
in Barros, Geraldo S. e Navarro, Zander (Orgs) Brasil Rural Contemporâneo: Interpretações
(Capítulo 4). São Paulo: Ed. Baraúna, 2022.
MAPA - Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio – Projeções de
Longo Prazo: Brasil 2020/2021 a 2030/2031. Brasília: Sec. de Política Agrícola (SPA/MAPA), 2022
(disponível na internet).
PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica ‘Laudato Sì’ - Sobre o Cuidado da Casa Comum. Brasília: Ed.
CNBB, 2015.
Rede PENSAN. 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia COVID-19
no Brasil. São Paulo: Rede PENSAN, 2022.
RICHARD, Pablo (Org.). La lucha de lós dioses - los ídolos de La opressión y La búsqueda del Dios
liberador. San José - Costa Rica: Departamento de Investigación Ecumênica, 1980.
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
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A IMIGRAÇÃO E A FOME
aspectos do vivido por
venezuelanos/as em Pacaraima RR
IMMIGRATION AND HUNGER
aspects of life experience for
Venezuelans in Pacaraima - RR
João Carlos Tedesco*
“A marmita que salva”
Resumo: O texto analisa, de uma forma sintética, alguns dos aspectos
presentes no cenário migratório atual; enfatiza a correlação da imigração
com a questão da fome. O cenário de análise empírica é a cidade de
Pacaraima na fronteira com a Venezuela, no estado de Roraima. A análise
conclui demonstrando que a Operação Acolhida do governo brasileiro, em
conjunto com várias entidades, é de extrema importância para amenizar o
sofrimento, permitir alguma esperança de vida melhor no Brasil, bem
como resolver o problema premente e vital da fome para grande parte dos
milhares de imigrantes venezuelanos.
Palavras-chave: Imigração venezuelana. Operação Acolhida. Roraima. Fome
.
Abstract: The text analyzes, in a synthetic way, some of the aspects
present in the current migration scenario; it emphasizes the correlation of
immigration with the issue of hunger. The setting for the empirical
analysis is the city of Pacaraima, on the border with Venezuela, in the state
of Roraima. The analysis concludes by demonstrating that the Brazilian
government's Operação Acolhida, in conjunction with various entities, is
extremely important in alleviating suering, allowing some hope of a
better life in Brazil, as well as solving the pressing and vital problem of
hunger for a large part of the thousands of Venezuelan immigrants.
Key-words: Venezuelan immigration. Operação Acolhida. Roraima. Hunger
.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 50-61, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.140
* Doutor em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (1998),
pós-doutor e professor visitante (2009, 2014
e 2018) na Universidade de Verona Itália e
pós-doutor (2011) na Universidade de Milão
(Itália). Professor titular na Universidade de
Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS, Brasil.
E-mail: jctedesco@upf.br
https://orcid.org/0000-0002-8935-5697
Recebido em 01/12/2022
Aprovado em 16/06/2023
51
INTRODUÇÃO
A partir do início do século XXI, os deslocamentos populacionais assumiram
algumas configurações distintas dos fenômenos anteriores. Países em desenvolvimento
também estão absorvendo contingentes migratórios internacionais, fato esse que não é
mais exclusividade de países ricos, com grande concentração de capitais. A imigração Sul-
Sul Global revela esse dinamismo mais intenso e, de certa forma, diferenciador dos
últimos anos. Imigrantes de algumas regiões da África, em particular, a subsaariana, do
continente asiático e latino-americano vêm imprimindo trajetórias pouco dinâmicas até
então, as quais se direcionam também para o Brasil. O caso de venezuelanos para o Brasil,
Argentina e Colômbia é expressivo disso.
As migrações internacionais recentes para o Brasil vêm se tornando pauta de muitas
manchetes midiáticas (jornais e televisão), polêmicas, discussões acadêmicas, jurídicas e
políticas; demandaram nova legislação a partir de 2017, com muitos avanços, mas
extremamente criticada pelos analistas dos direitos humanos e dos direitos dos imigrantes
em particular, em razão dos cortes governamentais em relação ao texto original aprovado
na casa legislativa, seus constantes aditivos e normativas, configuração de imigrantes em
situação de refúgio, sendo esses, em alguns casos, com intensa ideologização e politização,
em particular, venezuelanos, manifestações sociais em torno de múltiplas questões.
um caminho civilizatório amplo para ser percorrido no sentido de entender,
hospedar e conviver harmonicamente com a imigração e os imigrantes na sociedade atual,
no Brasil em particular. Imigrantes ainda são vistos desde os tempos dos regimes coloniais
como “raças submetidas” (Arendt, 1963), sujeitadas, inferiorizadas, sem direito à
mobilidade social, principalmente no que tange ao horizonte laboral, como invasores e,
por isso, devem ser coibidos pelos estados-nacionais, estigmatizados pela mídia, negados e
discriminados por grupos neofacistas e de extrema direita em várias partes do mundo.
A realidade migratória atual vem demonstrando que imigrantes e imigrantes;
os que conseguem com mais facilidade entrar nos países, os que entram, mas não
podem retornar, pois o como voltar ou levar os filhos porque não possuem o visto.
Devemos considerar que os imigrantes são sujeitos que transitam em múltiplos territórios
e, por isso, conectam-se e se articulam por rias redes em fronteiras também diversas
(religiosas, linguísticas, culturais, geográficas e políticas), porém, sempre em correlação
com a esfera do trabalho. Desse modo, eles diversificam seus pertencimentos, suas relações
com os espaços e com as esferas que se retroalimentam. Entendida assim, a imigração é
também circulação, ou seja, processo que se em interligação do aqui e do acolá, rede de
relações possibilitadas por estratégias (retornos, trânsitos, relações mais fortes ou não num
determinado lugar, identificação linguística e/ou religiosa com determinados grupos,
Dito isso de uma forma genérica, nosso artigo objetiva analisar alguns dos processos
que reconfiguram a imigração internacional contemporânea, com centralidade para
venezuelanos no Brasil. É um texto sintético, escrito a partir de uma experiência de
pesquisa e de trabalho desenvolvida em Roraima, mais precisamente, nas cidades de
Pacaraima e Boa Vista, durante todo o mês de novembro de 2022. Estivemos nesses
espaços para auxiliar em atividades burocráticas e assistenciais, bem como buscar entender
alguns dos processos que envolvem as ações do estado e de várias entidades junto aos
imigrantes venezuelanos que se inserem no Brasil por aquela fronteira.
Em termos metodológicos, buscamos entrevistar imigrantes venezuelanos sem
nenhum recorte ou particularidade de sexo, idade, profissão, etc. Nossos contatos
permitiam um diálogo mais aberto, com indagações em torno de aspectos da vida deles
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antes de emigrar, a decisão de sair, os meios para chegar até a fronteira, a existência ou
não de redes e que tipos de vínculos, os processos efetivados no interior das políticas
governamentais brasileiras, as idealizações, bem como aspectos da situação econômica e
política de seu país.
Para efeito de um texto sintético
1
que nos foi solicitado e que correlacionasse o tema
da imigração com a fome, buscamos, ainda que de uma forma genérica, pontuar alguns
elementos nesse sentido. Desse modo, estruturamos o presente texto, primeiramente,
abordando alguns elementos genéricos do atual quadro migratório e, posteriormente,
daremos ênfase a alguns aspectos da realidade vivida por imigrantes venezuelanos e que
configuram um quadro de desespero e de fome vivido no país de origem e, de algumas
esperanças em sua inserção no horizonte laboral no Brasil.
1 PARA MUITOS, UM MUNDO DE POUCAS ALTERNATIVAS...
Tive fome e me deste de comer (Mt 25,35-45).
Tenho a convicção de que não há uma correlação mais adequada para a imigração do
que fome; ou, então, uma alternativa de esperança para amenizar esta que esteja tão em
evidência quanto aquela. É claro que nem toda a imigração é fruto da fome, da falta de
condições financeiras e de sobrevivência material. outros horizontes e causalidades que
produzem as saídas de pessoas de um lugar para outro, em particular, para o que nos
interessa que é de um país para outro. Mas, não temos dúvida em afirmar que a dimensão
econômica, ou seja, a falta de trabalho/emprego, o salário baixo, as secas, as enchentes,
como a do Paquistão nos meses de agosto e setembro, a impossibilidade de sustentar a
família, de colocar alimento à mesa, impulsionam grandes contingentes de pessoas a
saírem e tentarem uma vida melhor em algum espaço/país que o seja o seu de
nascimento ou o que se encontram no momento.
A imigração sempre existiu; é parte constitutiva da História e, não temos dúvida que
sempre se fará presente, inclusive com tendência de se ampliar em razão do aumento da
pobreza do mundo ocasionado pelas formas predadoras de produção, que excluem,
exploram, substituem força de trabalho e concentram capitais e riquezas em poucos
espaços mundiais, do aumento da automação, das tecnologias substitutivas da presença
humana no campo produtivo, seja esse no espaço urbano e/ou rural/agrícola.
Nunca esquecendo também o aquecimento global cada vez mais intenso, que,
produz catástrofes ambientais de grandes proporções, salinização de solos, principalmente
na África Ocidental, secas cada vez mais intensas, concentração de população em grandes
centros urbanos, bem como o aumento da população (chegando em 8 bilhões, ou, talvez,
até mais, segundo alguns estudiosos do tema) (Giudici; Wihtol de Wenden, 2020).
Tudo isso acaba produzindo mais e mais pobreza, mais e mais fome e, mais e mais
estratégias de saídas como desespero para sobreviver e/ou não mais do que continuar a
viver, ter algum tipo de abrigo, sustentar a família, lutar por um prato de comida
(Bauman, 2017).
1
Uma análise mais ampla essendo desenvolvida e será objeto de um livro com previsão de término em meados
de 2023.
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Pensar que isso possa se reverter de imediato, se é que existam ainda condições e
interesses nesse sentido, é pura ingenuidade. Parece que o mundo não caminha para essa
estrada. Ao contrário, vimos todos os dias derrubadas de florestas que ainda existem (vide
o caso brasileiro), exploração sem medida de recursos naturais não renováveis, sede
egoísta e irracional de lucros imediatos, guerras civis, guerras armamentistas, muros e
mais muros, fronteiras cada vez mais fechadas, dentre uma longa lista de processos que
não nos deixam animados.
Não para imaginar que a natureza vegetal e animal possa se renovar
imediatamente, muito menos processos de desenvolvimento sustentável, equitativo e
solidário sejam passíveis de produzirem efeitos de uma forma imediata no mundo. Além
de que precisaríamos de um amplo conjunto de pré-requisitos para viabilizar isso e, ao que
parece, experiências nesse sentido evidenciam-se em conta-gotas, num ritmo muitíssimo
menor do que as destruições. São décadas de alerta sobre a irreversibilidade do
aquecimento global, das catástrofes, dos custos de vidas humanas (Pandemia do Covid
19), dos custos para reconstruir os estragos e as consequências, das perdas de milhares de
vida. Parece que tudo isso não encontra eco em sociedades maiores, em governos que têm
poder mundial, empresários, cientistas, agricultores, dentre outros (Macedo, 2019).
Mas, o que isso tem a ver com a fome e a imigração? Tudo. É a sua face visível; aliás,
é tudo isso somado e, tão evidente, que acaba tirando a comida do prato de milhões e
milhões mundo afora. Além disso, com o aumento da pobreza, das contradições sociais,
intensificam-se as conflitualidades. As relações sociais se tornam sempre mais tensas,
desesperadoras, violentas, de exclusão, de disputas não éticas e muito menos que revelam a
humanidade dos humanos, e, com isso, a vida se coloca em perigo (Lemke, 2017). A fuga
desesperadora de intensos contingentes, em boa parte dos continentes, é expressão clara
disso tudo; é a sua contradição, sua negativização.
Migrantes, de vários países, tentando atravessar uma das pontas do muro que separa oxico dos Estados Unidos, em Tijuana.
Foto:Atlas/Vídeo. Ancia Getty Images. David Mcnew. Fonte: https://elpais.com/internacional/2018/04/29/mexico/
1525033999_476242.html. Acesso em 12 de novembro de 2022.
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O mundo não pode mais fechar os olhos para essa realidade que expressa sua
contradição. Não mais como viver isolado e muito menos virar o rosto para essa face
contraditória e perigosa do mundo atual. Especialistas enfatizam que regiões ricas estão
ficando sempre mais ricas e as empobrecidas se ampliando em quantidade e intensidade,
ou seja, em outras palavras, o fosso que separa enriquecidos e empobrecidos está cada vez
maior (Bauman, 2017). Parece que a sede capitalista para o lucro e à acumulação de capitais
produzem um imaginário escatológico de que os fins dos tempos estão próximos, logo,
precisamos nos proteger acumulando riquezas como tábua de salvação e/ou protelação
frente ao seu próprio fim.
O capitalismo desenvolve o imaginário do dinheiro, do lucro, da acumulação, da
mercadoria como representação do bem-viver, mas ele não pode e nem deve distribuir
tudo isso para todos; logo, não indo ao encontro de todos, os excluídos ou incluídos
marginalmente vão ao seu encontro. Por isso, países que concentram mais a riqueza,
uma maior presença de imigrantes.
Ao que nos parece, o desenvolvimento do subdesenvolvimento, bem como, nações e
regiões desenvolvidas o são na proporção em que provocam subdesenvolvimento em
outras. Essa é a lógica perversa que perdura.
2 UM MUNDO EM MOVIMENTO...
Alguém já disse que “tudo é ilusão, menos a fome”
O mundo continua sendo cada vez mais migrante (Ambrosini, 2020). As tecnologias
de comunicação e informação, as quais permitem conhecimentos sobre o que se passa no
mundo também fornecem meios para a mobilidade populacional; porém, mesmo com esse
recurso, os imigrantes continuam a sofrer bloqueios, dificuldades, contraposições,
restrições de mobilidade e muros físicos e de outras dimensões; ou seja, não basta conhecer
mais, ter mais informações, ser atraído pelas propagandas de agências de viagens e
imagens do mundo enriquecido e de vida melhor se a dinâmica política, a concepção de
Uma inédita caravana de quase 20 mil migrantes partindo do sul do xico para tentar entrar nos Estados Unidos, em 6 de junho de
2022. Niem-Migrão, 21/06/2022. Fonte:https://www.eldiario.es/desalambre/inedita-caravana-15-000-migrantes-parte-sur-mexico-
eeuu_1_9058514.html. Acesso em 14 de novembro de 2022.
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fronteira nacional, de nacionalismo étnico e racializado impedem passagens aos mais
empobrecidos do mundo.
Dados mais recentes informam que em torno de 4% da população mundial como
migrantes internacionais, ou seja, mais ou menos 290 milhões. Uma entre 30 pessoas vive
fora de seu país (Acnur, 2022). As mulheres representam quase 50% dos imigrantes
internacionais, fato esse que marca e diferencia o cenário atual de outros tempos da
dinâmica migratória. Ser forçado a deixar tudo para trás e tentar a vida em outro lugar,
este é o dilema enfrentado pelo número recorde de 82,4 milhões de pessoas, de acordo com
dados do relatório Tendências Globais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (Acnur), divulgado em junho deste ano (2022). O contingente de refugiados
entre os imigrantes vem aumentando sempre mais.
A América Latina vem se revelando nas últimas décadas uma ampla região de
migrantes. Segundo dados da OIM, em 2021, mais de 4% da população são migrantes. A
fome, a turbulência política, a pobreza, governos insanos, desastres ambientais, embargos
econômicos, somados às políticas imperialistas e/ou neocoloniais de algumas nações
centrais, vêm produzindo e ampliando essa realidade de êxodo. Países como o México, o
Haiti, o Peru, a Venezuela, inclusive o Brasil, revelam isso (Idos, 2022). Países desse
continente convivem numa situação aparentemente ambígua: possuem um índice elevado
de emigrantes (o Brasil, segundo dados do Ministério de Relações Exteriores, por volta de
4 milhões), e, também, são receptores, como é o caso do Brasil e da Colômbia em relação
aos venezuelanos, ou, então, vários outros, como é o caso da Argentina, Chile, República
Dominicana, México e mesmo o Brasil que recebem também de vários outros continentes.
A crise no Haiti, na Síria, na Ucrânia, no Afeganistão, na Venezuela, dentre outros, nos
últimos anos, ampliou esse contingente.
3 A FOME E O REFÚGIO, OU O REFÚGIO DA FOME...
O direito à alimentação é expressivo de um dos direitos humanos, pois, revela defesa
da vida; está no rol dos direitos fundamentais da pessoa humana e, por isso, abarca uma
dimensão transnacional e transfronteiriça. No entanto, isso não é levado em conta por
governos, pela lógica econômica e de mercado, muito menos por sociedades enriquecidas.
Muitos alimentos estão servindo para os biocombustíveis e para outros fins e, não para a
alimentação humana (Dupas, 2005).
Imigrão de venezuelanos em Pacaraima. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/
foto/2018-08/venezuelanos-saem-de-pacaraima-em-busca-de-abrigo-em-boa-vista-1582311558-8
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Todos sabemos que, com as tecnologias e as pesquisas científicas, a produção de
alimentos no globo vem aumentando. É por isso e para isso que elas existem e se
intensificam cada vez mais. Porém, então, por que a fome vem se ampliando? Alguma
coisa não fecha nessa equação. Aumenta a oferta de alimentos e a fome aumenta! O
problema nisso tudo está nas dinâmicas de poder, na distribuição, no uso dessa fonte
de vida para outros fins, no desperdício, no consumo exagerado de muitos, nas estratégias
de dominação econômica e política e na produção da dependência, na guerra pelos grãos
que faz com que muitas regiões do mundo tenham de trocar suas riquezas naturais (ouro,
madeira e outros minérios) por comida. Os alimentos, como qualquer outro recurso, são
mercadorias, fazem parte de uma geopolítica de lucro e poder e, o de defesa e
preservação da vida.
Dados recentes informam que mais de 2 bilhões de pessoas vivendo em situação
de insegurança alimentar no mundo, ou seja, não ganham recursos financeiros suficientes
para matar a fome de sua família e/ou para nutrirem-se com o mínimo necessário para
uma vida minimamente saudável. A maioria desse contingente, em termos porcentuais,
está na África, com 20% de atingidos; Ásia com 11,7% e América Latina e Caribe com 6,6%
(Idos 2022). Para muitas destas regiões, principalmente de países da África e da Ásia,
grandes contingentes não idealizam muito mais ao sair do seu país do que ter a
possibilidade de comer; submetem-se a trajetórias perigosas, ultrajantes, constrangedoras
de intensa exploração e violência em rios âmbitos, seja em selvas como no Panamá para
chegar aos EUA, em mares, como o Mediterrâneo entre norte da África e Sul da Europa,
os perigos, altos custos financeiros e as prisões nos muros da fronteira entre México e
EUA, nas intensas distâncias, realizadas com longas caminhadas e enfrentando perigos
como as vividas por senegaleses, bengalis, haitianos e venezuelanos para atingir o norte do
Brasil, dentre centenas de outras experiências atuais que expressam desesperos em busca
de pão, trabalho e abrigo (Baeninger; Vedovato; Nandy, 2020). Muitos morrem ao
atravessar, o fazem tentando defender e reproduzir sua própria vida. Se conseguem
atingir o destino, comumente são tratados como “ilegais”, portanto, como contraventores
e, por isso, serão criminalizados. Além da fome que os vitimou, agora o são pelo estado-
nação, pelas legislações de países e da cultura social produzida nos espaços de destino.
Realidades contrastantes: imigrantes hondurenhos na região de fronteira com a Guatemala.
Foto: WFP/Julian Frank. ONU-NEWS, em 14/06/2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/06/179235. Acesso
em 10 de novembro de 2022.
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4 VENEZUELANOS EM PACARAIMA: A MARMITA SALVADORA...
A realidade vivida por venezuelanos no estado de Roraima é por demais
conhecida, em particular, na cidade de Pacaraima e na capital Boa Vista.
2
Já são quase cinco
anos que esse processo vem se desenvolvendo. Dia-após-dia levas imensas de pessoas
atravessam a fronteira e buscam inserir-se no Brasil. Em alguns períodos, histórico de
entradas diárias de mais de mil pessoas. No período que estivemos presente nela
(novembro de 2022), a média diária de chegada, segundo o comando do Pelotão do
Exército de Fronteira presente, girava entre 300 a 400 pessoas. É uma realidade
migratória jamais vivida pelo país em termos de intensidade num tempo tão curto e num
estado com condições limitadas como é o de Roraima.
Dados do Acnur (ONU) informam que são mais de sete milhões de venezuelanos que
buscaram aentão as portas de saída do país. Destes, quase dois milhões foram para a
Colômbia; no Brasil, se aproximam de um milhão; para os Estados Unidos, o número
também é elevado, além de outros países que os estão acolhendo e abrindo suas fronteiras.
É importante enfatizar que os dados são muito imprecisos, pois muitos não são
registrados, entram por caminhos alternativos, migram e vão para casa de familiares,
parentes, amigos e conhecidos; outros entram, solicitam as políticas de Acolhida
Humanitária, e, após, um tempo retornam. Portanto, entradas, retornos e reemigrações
são comuns; é parte da dinâmica e, os dados estatísticos, além de comumente falhos, não
abarcam essas estratégias e racionalidades próprias dos imigrantes.
As causas desse processo migratório específico são complexas e diversas; difícil
explicá-las minimamente aqui num espaço tão curto; mas, podem ser resumidas com
maior expressão pelo âmbito econômico e político. Embargos econômicos promovidos
pelos Estados Unidos, reeleição de Maduro, constituição de governo paralelo pelo auto
denominado presidente Guaidó, em boa parte, com financiamento americano no período
do governo Trump, quebra de contratos de compra e refinamento de petróleo venezuelano
pelos EUA, estratégia do governo de militarizar o país para sufocar a oposição,
enfraquecimento desta com consequente represália aos seus apoiadores pelo governo do
presidente Maduro, boicote de saída de produtos provocado por grandes redes de atacadistas
com a intenção de aumentar o preço dos seus produtos, dentre outros processos.
As consequências de tudo isso, além de outras, podemos elencar, a redução do
emprego, a intensa dependência do país em relação ao petróleo e, este, atrelado a um
país (os EUA), o intenso aviltamento do salário dos trabalhadores, conflitos sociais,
intenso controle social pelo estado, fome e miséria, além, é evidente, as portas de saídas.
Somado a isso tudo, houve o uso político dessa realidade de crise e migração por governos
como o do Brasil e dos Estados Unidos, principalmente a partir de 2018 com políticas de
Acolhida Humanitária
3
e concessão de refúgio a um grupo seletivo (somente aos
venezuelanos, como foi o caso brasileiro) e midiatizado como forma de contraposição e
crítica ao governo Maduro e aos que, em algum período anterior ao conflito social e
político, haviam produzido ações econômicas conjuntas.
A face mais drástica disso tudo se revelou, e continua, para o caso brasileiro, no
estado de Roraima com o total descontrole social e político entre 2018 a 2020, em algumas
2 O espaço reduzido e as informações que dispomos até então não nos permitem ter um amplo processo que se
desenvolveu nesses mais de quatro anos dessa realidade no referido estado e, particularmente, na cidade de
Pacaraima. Situação essa que foi amplamente retratada pela mídia nacional.
3 No Brasil foi denominada de Operação Acolhida. Criada em março de 2018, ela objetiva o atendimento humanitário
a refugiados e imigrantes venezuelanos em Roraima em razão da crise política, econômica e social de seu país. Exerce
ações de ordenamento de fronteira, fornece espaços para o abrigamento e interiorização de imigrantes. As atividades
exercidas nesses três âmbitos são muitas e estão em parcerias com órgãos de apoio internacional e com as
instituições religiosas, do terceiro setor, dentre outras, as quais possuem um amplo horizonte assistencial.
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cidades, em particular, na porta de saída venezuelana que é Pacaraima. A presença efetiva e
ampliada do Exército Brasileiro, dos órgãos ligados à ONU (Acnur, OIM, Unicef), bem
como a Cruz Vermelha, mas, acima de tudo de instituições religiosas, em especial, da Igreja
Católica e de outras entidades da sociedade civil, vêm dando um certo ordenamento, uma
tentativa de gestão do processo, principalmente com obras assistenciais (abrigos para
mães, serviço da Caritas com abrigos, entrega de marmitas, assessorias, cursos de
artesanato, dentre várias atividades de auxílio, assistência, apoio, orientação etc.).
Porém, a problemática é tanta, os limites da mesma forma em razão da quantidade
de imigrantes, da realidade jamais vivida no local e por todo o país, o desespero e
desamparo de milhares de pessoas que, no início do processo não tinham para onde ir,
abrigar-se e o que comer. Fome, noites no relento e na chuva, oposição de boa parte da
população local, destino incerto (a única certeza é que estavam fora de seu país), sem
trabalho, sem domínio da língua, dentre uma série de outros processos, marcaram a vida
deles e vêm ainda, num grau menor, constituindo-se nesse cenário.
Segundo informações colhidas no local, há maior número de venezuelanos na cidade
do que de nativos
4
ainda que, por ser uma cidade de fronteira, essas mobilidades
populacionais entre os municípios acontecem de uma forma muito comum. Porém, o
processo é tão intenso que sua gestão se tornou complexa e de difícil resolução. A língua
que mais se ouve na rua é o espanhol. O comércio da cidade ganhou um amplo
incremento; muitos negócios e serviços constituíram-se ou intensificaram-se pela
presença de dezenas de milhares de venezuelanos. O espaço curto o nos permite
descrever algumas destas dinâmicas.
Padaria gerenciada pelas irmãs da Congregação deo José. Para além de sua dimeno comercial, ela presta um amplo serviço
assistencial aos imigrantes venezuelanos. Fonte: acervo de pesquisa de campo.
4 Segundo o IBGE, em 2021, a população de Pacaraima girava em torno de 19 mil habitantes. Ver https://
pt.wikipedia.org/wiki/Pacaraima. Acesso em 16/11/2022.
5 Ação desenvolvida pelo Governo Federal, através de seus órgãos responsáveis em Pacaraima e Boa Vista, a qual
objetiva facilitar a realocação voluntária de imigrantes venezuelanos pelo interior do país em busca de um espaço
laboral e de integração local.
É visível a soma de esforços das entidades civis, militares, religiosas e humanitárias
(ONU, Cruz Vermelha). As ações de interiorização
5
de levas de imigrantes para várias
partes do país onde houver demanda para trabalhadores viabilizam deslocamentos
cotidianos, em geral, de ônibus até Boa Vista e, após, dependendo da região do país, de
avião, com passagem paga pelo governo brasileiro e por entidades humanitárias.
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Porém, as demandas ou os receptores não são muitos em nível de país. A grande
maioria fica em espera por esse espaço de trabalho, fato esse que, somado às entradas
diárias, produz um imenso contingente represado de imigrantes que, segundo
informações de um coronel da Operação Acolhida em Boa Vista, nesse momento, está em
torno de 8 mil venezuelanos. Muitos dos imigrantes permanecem em barracas do Exército
ou em abrigos organizados pela Igreja Católica e/ou outras entidades.
É nesse cenário que a alimentação é fundamental. São distribuídas diariamente
milhares de marmitas. Muitos migram para Pacaraima e Boa Vista em razão delas, pois,
em geral, contemplam basicamente as três refeições diárias. Isso faz parte da política da
Acolhida Humanitária do Governo Federal. Entrevistamos vários imigrantes que nos
disseram que as marmitas “nos salvam. Elas matam o que está nos matando, a fome”.
Abrigos, proteção às noites de temperatura mais baixa, locais para se lavar, para a higiene
e necessidades fisiológicas, fora dos espaços institucionais da Operação Acolhida, são
incipientes, por isso muito estão ainda tendo o espaço da rua como proteção; mas, sem a
marmita, eles morreriam de fome, pois o alternativa, não trabalho na cidade de
Pacaraima para todo o contingente de imigrantes, muito menos em Boa Vista.
Alguns autóctones que dialogamos de uma forma informal, em geral, empresários
lojistas, donos de restaurantes que almoçávamos, foram unânimes em afirmar que “essas
marmitas atraem mais imigrantes ainda, pois, muitos deles têm cama, mesa e banho
gratuito. [...]. Numa penúria como eles dizem que vivem lá, ter tudo isso, não tem quem
não venha, até porque se quiser voltar, o caminho de volta está livre”.
muitas controvérsias, oposição, resistência de membros da sociedade local em
razão de que partes da cidade “viraram dormitório; onde você andar por está tomado de
gente dormindo, de dia e de noite, em frente às lojas, por tudo. Eu queria que tivesse visto
anos atrás, a cidade era um dormitório só. Agora está bem menos. [...], mas ainda é
prato e plástico das marmitas no chão, não jogam nada no lixo. A cidade não é deles, não
é!” No entanto, alguns dos que conversamos afirmaram que o comércio ficou intensamente
mais dinâmico com a presença deles; reconhecem que as próprias marmitas empregam
muita gente, enfim, que a economia da cidade teve um salto imenso nos últimos quatro
anos em razão dos imigrantes venezuelanos, além de que, o são eles que jogam os
pratos e plásticos no chão.
Imigrantes venezuelanos em rua de Pacaraima. Foto: Caíque Rodrigues/G1 RR. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/
noticia/2021/08/29/nao-temos-um-real-sequer-temos-fome-venezuelanos-que-tentam-vida-melhor-no-brasil-sofrem-para-encontrar-o-
que-comer.ghtml
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Um entrevistado disse que “agora a situação está bem melhor, tem as marmitas. Mas,
por meses, no início aqui quem comia alguma coisa era pão e mortadela, ou pão puro, a
família inteira. E quem conseguia isso podia se contar feliz. [...]. Havia muita fome aqui,
muita fome; era gente, mães e crianças chorando de fome”. Todos os entrevistados
disseram que a falta de comida era o que mais os deixavam preocupados, “não ter o que dar
para os filhos comer”. Um deles nos disse que passou 13 dias comendo pão e mortadela.
Imigrantes, ao entrar no Brasil, fazem uma verdadeira maratona de atendimentos,
várias filas para realizar as ações exigidas pela Operação Acolhida. De uma forma sintética,
primeiramente, eles vão à Polícia Federal para registro, após, para o setor de teste de
Covid-19 e recebem vacinas previstas no calendário nacional de imunização. Após esse
processo, há o encaminhamento para a emissão de documento (permissos) que os autorizam
a entrar no país; posteriormente, a retirada do CPF. Finda essa parte, a elaboração e
expedição dos protocolos de seu pedido específico, ou seja, de refúgio ou de autorização de
residência temporária, dentre outros procedimentos.
Essas exigências podem levar o dia todo ou a mais em razão do número de
chegadas e dos documentos disponíveis pelos imigrantes. Para o pernoite, em Pacaraima,
os imigrantes são separados por sexo, dentre outras seleções e requisitos. Segundo
informação do Coronel responsável pela Operação, em diálogo conosco, não espaços
para todos. muitas entradas e saídas. Conforme as saídas vão acontecendo
(interiorização pelo país), vão abrindo-se espaços para novas entradas. Os fluxos são
contínuos. Nem todos os imigrantes desejam ir para os alojamentos, preferem outros
espaços, ou a própria rua, ou alugam pequenos cômodos para permanecer
temporariamente. Nos alojamentos do Exército, acomodações para dormir,
alimentação, água, banheiros, assistência em saúde, segurança, dentre outros serviços.
Tendas do Acnur/ONU em Boa Vista (RR) para abrigar venezuelanos. Foto: Marcelo Camargo/Ancia Brasil. Ramana Rech Duarte
- MigraMundo Equipe, em 14 de dezembro de 2020. Dsipovel em: https://www.camara.leg.br/noticias/920703-comissao-vai-debater-
operacao-de-acolhimento-de-imigrantes-venezuelanos
ENFIM...
Sem poder avançar muito em razão do espaço restrito, o que posso dizer é que é uma
realidade-em-ato, está acontecendo, revela-se ímpar na região e, em boa parte da história
do país. Muitas das precariedades vividas por imigrantes no início da imigração não se
fazem mais presentes em razão da Operação Acolhida e da intensa participação de
instituições religiosas, em especial da Igreja Católica, do município de Pacaraima e da
Diocese de Boa Vista e de outras entidades ligadas à ONU; porém, a dinâmica é intensa.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 50-61, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
TEDESCO, João Carlos
A imigrão e a fome: aspectos do vivido por venezuelanos/as em Pacaraima RR
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Não se sabe quando isso tudo vai terminar e, muito menos se todos os problemas
estão resolvidos. Cada dia é um dia segundo o comando do Exército presente em
Pacaraima. O sonho dos imigrantes é a busca de uma vida melhor. Entendemos que se faz
necessário estudos localizados onde estão os imigrantes interiorizados para saber se
realmente isso vem acontecendo.
É imperativo que a sociedade brasileira tenha consciência do período vivido no país
de origem desses imigrantes, que esteja aberta para a aceitação, hospitalidade e auxílio.
Tem-se a consciência de que não se está resolvendo a questão pelas suas causas, nem cabe
isso aos brasileiros, mas, se pode amenizar e/ou evitar o mal da fome. Para muitos
imigrantes, a marmita salvadora de hoje é sua idealização principalmente para seus filhos
pequenos, pois lhe permitem simplesmente continuar a viver e a sonhar.
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 50-61, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
TEDESCO, João Carlos
A imigrão e a fome: aspectos do vivido por venezuelanos/as em Pacaraima RR
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
PEREGRINOS DE UM
MUNDO NOVO
reexões vocacionais a partir de Dom
Helder Camara
PILGRIMS OF A NEW WORLD
vocational reections inspired
by Dom Helder Camara
Ivanir Antonio Rampon*
Eberson Fontana**
Lenice Rebelato***
Resumo: O presente artigo discorre sobre a vocação de Dom Helder
Camara, importante bispo brasileiro, lembrado pela sua opção pelos
pobres. O itinerário seguido perpassa o despertar vocacional, os anos de
seminário, o amadurecimento e a compreensão de vocação segundo a
espiritualidade helderiana. Sob a inspiração da obra O deserto é fértil,
desenvolve sua tese central ao aprofundar o conceito de minorias
abraãmicas, de onde é possível entrever intuições para os vocacionados do
tempo presente. Dom Helder apresenta um caminho para a doação total da
vida através da superação do egoísmo, o enfrentamento das cruzes e a
identificação das grandes causas pelas quais vale a pena dedicar a vida.
Palavras-chave: Dom Helder Camara. Vocação. Chamado. Opção pelos
Pobres. Minorias abraâmicas.
Abstract: The present article talks about the vocation of Dom Helder
Camara, an important brazilian bishop, remembered for his option for the
poor. The itinerary runs through the vocational awakening, years in the
seminary, maturance and vocational awareness according to the herderian
spirituality. Under the inspiration of the work The desert is fertile,
develops his main thesis deepening the concept of abrahamic minorities,
where it is possible to glimpse intuitions for the vocations of the present
time. Dom Helder shows a way to the total life donation through the
overcoming of selfishness, the facing of the crosses and the identification
of the great causes of which are worth dedicatinglife.
Keywords: Dom Helder Camara. Vocation. Call. Option for the poor.
Abrahamic minorities.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 62-76, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.177
* Possui graduação em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo (1996),
graduação em Teologia pela Itepa Faculdades
(2000), mestrado em Teologia pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia (2004),
doutorado em Teologia Espiritual pela
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma
(2011).
E-mail: iarampon@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-2882-440X
** Presbítero da Arquidiocese de Passo
Fundo, bacharel em Filosofia pelo Instituto
Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), de
Passo Fundo/RS. Graduado em Teologia e
pós-graduado em Espiritualidade pela Itepa
Faculdades, de Passo Fundo/RS.
E-mail: ebersonfontana@yahoo.com.br
https://orcid.org/0009-0007-7184-7160
*** Religiosa da Congregação das Irmãs de
Notre Dame, Licenciada em História pela
Universidade de Passo Fundo (UPF)/RS.
Pós-graduada em Metodologia de Ensino
Religioso pela Universidade de Passo Fundo
(UPF)/RS. Pós-graduada em Espiritualidade
pela Itepa Faculdades, de Passo Fundo/RS.
E-mail: lenice@notredame.org.br
https://orcid.org/0009-0001-5958-7825
Recebido em 12/05/2023
Aprovado em 03/08/2023
63
INTRODUÇÃO
Quem foi Dom Helder Camara? Uma pessoa simples, mas ao mesmo tempo especial,
que deixou marcas com seu jeito único de ser, com sua visão ampla, profética, abrindo
portas para o aggiornamento da Igreja. Sua vida foi notadamente carismática, um amante
de Jesus Cristo, da vida e dos pobres. Como “bispo das favelas” sua vocação foi vivida
intensamente, merecendo reconhecimento internacional por defender os Direitos
Humanos. Com seu espírito de simplicidade e de sorriso fácil, cativava desde pessoas
humildes e simples até nomes renomados.
Falar sobre um vocacionado não se restringe a citar os grandes feitos dignos de uma
boa biografia jornalística: é, sobretudo, apontar para a profundidade de uma vida repleta
de sentido e bem vivida. Por isso, a profundidade de sua vida e a forma como Helder
respondeu ao chamado de Deus, o processo de cultivo e crescimento dentro do seminário,
a formação permanente e as conversões enquanto padre e bispo e a própria atenção à
dimensão vocacional permitem amplas contribuições que lançam luzes ao tempo presente.
O despertar vocacional, a resposta ao chamado divino, é o primeiro passo de uma
longa jornada. Por isso, cabe olhar com atenção para o jovem Helder, o que será realizado
na sequência...
1 O DESPERTAR VOCACIONAL
Dom Helder Pessoa Camara nasceu em Fortaleza/CE no dia 7 de fevereiro de 1909 e
faleceu em 27 de agosto de 1999. Filho de João Eduardo Torres Camara Filho e Adelaide
Pessoa Camara, tinha 13 irmãos. Helder era o décimo primeiro filho. Na sua ampla
biografia, consta a defesa dos direitos humanos e diversos prêmios, entre eles, o Prêmio
Martin Luther King, nos Estados Unidos, quatro indicações ao Nobel da Paz e o Prêmio
Popular da Paz, na Noruega.
A infância de Helder Camara foi marcada pela religiosidade, no Nordeste das
procissões, da devoção aos santos, à Virgem Maria, do profundo respeito pela pessoa do
padre e inúmeras outras expressões de fé. Na família, enquanto o pai João Eduardo era
adepto dos ideais maçônicos e, ao mesmo tempo, do catolicismo, a mãe expressava sua
devoção através das imagens e uma participação mais efetiva na Igreja. Na vida dela
prevalecia uma consciente, própria de uma professora com ideais pedagógicos e
antropológicos à frente de seu tempo.
Alguns episódios da adolescência de Helder ajudam a aprofundar a imagem de Deus
e da pessoa humana predominante no seio familiar. Segundo Ivanir Rampon, a mãe não
expressava uma leitura diabólica da sexualidade, algo presente na religiosidade popular do
século XX: “ensinava que todo corpo humano fora criado por Deus pois alguns diziam
que certas partes foram criadas pelo diabo. Também dizia que, se existe o mal no mundo, é
sobretudo, por causa da fragilidade humana”
1
. Esta visão sobre Deus repercutia na relação
com os filhos, com uma presença de ternura e de liberdade, própria de quem tem uma
relação próxima com o Deus de Jesus Cristo. Uma relação assim é fundamental para o
ambiente de discernimento vocacional. Este ambiente explica o motivo pelo qual Helder
gostava de brincar de rezar missas e de acompanhar celebrações, aproximando-se dos
padres e de Deus.
Se é possível identificar na presença da mãe Adelaide um acompanhamento
progressivo no amadurecimento vocacional de seu filho, uma frase ouvida do seu pai,
1 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.30.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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diante da manifestação do desejo de ser padre, foi marcante na vida de Helder Camara. Ao
perceber que o filho perseverava na convicção em ser padre, seu pai expressou o que
significava ser padre para ele: “Você sabia que para uma pessoa ser padre, ela não pode ser
egoísta, o pode pensar em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são
duas coisas que não combinam”
2
. Diante da provocação inesperada, a resposta foi convicta:
“Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”
3
. A clareza da resposta lhe
rendeu a bênção de seu pai. Ao mesmo tempo, pode ser vista como uma resposta ao
chamado de Deus e ao clamor do seu povo. Ao longo da vida, essa resposta se tornou
concreta naquele que foi um dos mais eloquentes porta-voz do Deus - amor no século XX.
Outro elemento significativo para um despertar vocacional foi a relação com a
realidade que o cercava. A família tinha boa inserção social e o jovem Helder tomou o
caminho da vida presbiteral consciente dos desafios que se apresentavam. Merece destaque
sua participação na Conferência Vicentina e na política. A motivação fundante da vocação
e suas raízes são significativas para a caminhada vocacional. Neste contexto, o jovem
discerniu a vocação e expressou o desejo de ser padre.
No período do despertar vocacional do menino Helder também aparece a figura de
José. Este era o nome de um dos seus irmãos falecidos e, por conta disso, quase foi o nome
dado a Helder. O nome, contudo, o foi esquecido e sua e o utilizava para revelar seu
apoio e presença em momentos extremos de dificuldade ou de grande alegria diante do
filho Helder. Ainda jovem, ele nomeou seu anjo da guarda de José e com ele dialogou por
toda a vida com grande devoção. No despertar vocacional, José foi, de certo modo, para
Helder o que o anjo Gabriel representou para Maria. Sua presença constante em
momentos de crise ajudou a superar o medo. Mais tarde, suas vigílias são marcadas pelas
“meditações do Pe. José”, codinome utilizado em momentos fortes, que expressam
principalmente a dimensão mística helderiana, onde prevalece a “vitória da Graça”
4
.
1.1 Anos no Seminário
Após o despertar vocacional, aos 14 anos, o jovem entrou no Seminário São José da
Prainha, em Fortaleza/CE. A bagagem de estudos existente em sua família fez com que no
Seminário se destacasse nos estudos, mas também se destacava a paixão vocacional.
Evidenciava-se sua profundidade espiritual na forma de viver e na beleza expressa na vida,
na arte, na poesia.
Diversos episódios do tempo de seminário chamam atenção. Seu hábito de escrever
meditações desconcertou seu reitor, que, ao confundi-las com poemas, temia pela perda da
vocação. O então seminarista, contudo, mesmo seguindo o pedido do reitor de deixar de
lado a “poesia”, manifestava a consciência de que a criatividade e a imaginação são dons
divinos e, portanto, aproximam as pessoas de Deus.
O encontro com o Pe. Cícero, quando o seminarista foi enviado à sua paróquia para
obter assinaturas do jornal da diocese, tem contornos especiais. Apesar de ser difamado
naquele meio de comunicação, o Pe. Cícero deu uma lição de humildade, revelando que
“[...] no coração de um cristão, e sobretudo de um padre, não cabe uma gota de ódio”
5
. A
proximidade do padre interiorano com o povo simples não passou despercebida pelo
jovem seminarista. O testemunho ficou marcado em sua memória e viria a ser uma das
tônicas de sua própria vida.
2 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.31.
3 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.31.
4 Cf. Circular 175 de 23/24-3-65.
5 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.36.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
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Nos seus 22 anos de idade, Helder foi ordenado presbítero. Isto foi possível com a
autorização especial da Santa Sé, pois não tinha a idade mínima de 24 anos. Foiordenado
bispo, aos 43 anos de idade, no dia20 de abrilde 1952.
Prestes a realizar seu sonho de infância e juventude, o então seminarista Helder
passou por uma crise vocacional, pois surgiu a ideia de contribuir para a Igreja como um
leigo, à semelhança de Jackson de Figueredo e Alceu Amoroso Lima, importantes
intelectuais da época. O Papa Francisco, em fala sobre o Pacto Educativo Global, reflete
sobre o aspecto positivo e necessário das crises:
Nós devemos aprender e ajudar para que os outros aprendam a viver as crises,
porque as crises são uma oportunidade para crescer. As crises são gerenciadas e
devemos evitar que elas se transformem em conflito. As crises tiram você da
zona de conforto, te fazem crescer; o conflito te fecha, é uma alternativa; uma
alternativa sem solução, sem resolução. Educar para as crises. Isso é muito
importante. Deste modo ela pode se tornar um kairós as crises –, são um
momento oportuno que nos provoca a trilhar novos caminhos
6
.
A crise do seminarista Helder foi superada com orações, conversas com sua mãe e o
Pe. Tobias, reitor do seminário. A partir disso, ele decidiu-se pelo caminho sacerdotal. Dali
surgiu a clareza da necessidade de transformar a própria vida em oração, aprofundando a
espiritualidade e vivência presbiteral. Desta decisão nasceram as vigílias.
O seguimento a Jesus Cristo exige a conversão da mente, do coração e vai se
expressando nas ações. Olhando para a vida de Dom Helder, percebe-se o
desenvolvimento da atitude de humildade e obediência que o levou a um processo de
conversão. Aos poucos foi vivendo mais a opção pelos pobres, em sintonia com o
Evangelho, aproximando-se de Deus e respondendo aos apelos da realidade.
2 O DEUS QUE CHAMA, CAPACITA E ENVIA EM MISSÃO
Falar sobre a compreensão de vocação de Dom Helder e sobre o seu processo
vocacional pessoal leva ao aprofundamento da mística que guiou este percurso. Ele praticou
seu lema episcopal, “Em tuas os”, através de espiritualidade filial que foi progredindo
ao
longo da vida e gerando opções concretas, de acordo vontade de Deus. Ele expressou,
através de seus escritos e do testemunho de vida, “conhecimento de Deus” (Os 6,6), de seu
rosto: Deus lhe esteve presente desde o ventre materno, no núcleo familiar, até as décadas
de difamação e silêncio. Muitas vezes, imaginava e sonhava, com o face a face no céu…
2.1 O Deus presente nos mocambos, nas crianças abandonadas e nos
famintos
O amor e opção pelos pobres e a sensibilidade para com as injustiças sociais são
critérios fundamentais para ser discípulo de Jesus, e mais ainda para a descoberta de uma
vocação específica. A vida dos pobres está no cerne da missão assumida por Jesus (cf. Lc
4,18). O Papa Francisco afirma que a proximidade com as periferias e com a pessoa do
pobre são irrenunciáveis para ser cristão. No âmbito vocacional, “O empenho social e o
contato direto com os pobres continuam a ser uma oportunidade fundamental para
descobrir ou aprofundar a fé e para discernir a própria vocação” (CV 170).
Helder aprendeu desde cedo o valor supremo da vida e da dignidade humana. Ainda
assim, a clareza da opção pelos pobres e o enfrentamento das injustiças sociais se deu com
6 PAPA FRANCISCO, Encontro com os participantes do Congresso “Linhas de desenvolvimento do Pacto Educativo Global”.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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o amadurecimento progressivo de sua fé. A vocação não aparece como um dado pronto e
preestabelecido e precisa ser cultivada e amadurecida com a ação da Graça de Deus e um
olhar sensível para com a realidade do povo. É possível lançar estes dois olhares sobre o
amadurecimento da opção vocacional de Helder, em relação a um projeto que contempla a
transformação social.
Um olhar para a ação de Deus e as opções decorrentes em Dom Helder contempla
um longo caminho. Em sua maturidade espiritual era conhecido com títulos como o de
“bispo das favelas”. Sua atividade intensa junto aos mais pobres, em várias frentes, pode
esconder de um olhar superficial, focado em suas obras, que o ponto de partida foi sua
relação mística com Deus. Seu “pecado de juventude”
7
, foi a militância junto ao
integralismo, movido por um desejo de defender a instituição e os valores tradicionais.
Mais tarde, com uma capacidade invejável de organização e liderança, dedicou forças em
grandes eventos, como o Congresso Eucarístico Internacional de 1955, vendo-o como uma
oportunidade de dar projeção para a Igreja. Após o grande sucesso do evento, foi
interpelado pelo cardeal Gerlier: “Por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este
seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”
8
A resposta a esta
provocação foi rápida, mas foi se consolidando e amadurecendo nas vigílias, na oração e
no aprofundamento. Este foi o ponto de inflexão de sua vida. O processo de configuração a
Jesus Cristo, Bom Pastor, foi despertando a consciência de que, em meio à realidade sub-
humana dos pobres da época, projetos estavam em jogo. Optar pelo projeto de Jesus gera
uma de olhos abertos: “ouço falar, sem tremer, em Bom pastor. Ele existe. Moramos
juntos. Vivemos juntos. Meu trabalho é levá-lo para o meio dos homens”
9
.
O segundo olhar que contribuiu para o amadurecimento e cultivo vocacional foi a
proximidade com a realidade concreta do povo. Não foi um passo separado da fé, mas uma
opção amadurecida concomitantemente. No período em que esteve no Rio de Janeiro, e
depois de forma mais intensa com o seu povo de Olinda e Recife, destaca-se uma
proximidade de quem conhece os pobres pelo nome. A predisposição em estar com os
últimos está presente no seu discurso de tomada de posse em sua diocese: “no Nordeste,
Cristo se chama Zé, Antônio, Severino...”
10
. O Palácio de Manguinhos e, mais tarde, a
Igreja das Fronteiras se converteram na casa dos pobres. Além de ir diretamente às
periferias, os pobres vinham até ele: “Há sempre mais de 200 pessoas, à tarde, desejosas de
falar com o Dom”
11
.
Esta postura de Dom Helder, buscando a Deus e indo na direção dos irmãos
necessitados, a exemplo do Bom Pastor, se consolida como um programa de vida e de
cultivo da vocação nos tempos atuais através do ministério do Papa Francisco. Este foi um
dos seus primeiros pedidos ao assumir o pontificado: “Como eu gostaria de ter uma Igreja
pobre para os pobres”
12
. A opção helderiana pelos pobres cativava pessoas como padre
Henrique, posteriormente martirizado, em vista da sua opção pelos pobres e como forma
de atingir e enfraquecer o ímpeto profético de Dom Helder.
A prática de Dom Helder junto aos excluídos foi muito intensa. Sua proximidade
com os habitantes dos mocambos revela a atitude de alguém que tocou na carne dos
pobres: mulheres excluídas, desempregados, crianças desnutridas... Suas posturas e
7 Expressão usada por Dom Helder em diálogo com Tapia de Renedo. Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho
espiritual de Dom Helder Camara, p.51.
8 Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.105.
9 Circular 181 de 20/21-4-1965.
10 Dom Helder CAMARA apud Ivanir Antonio Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.149.
11 Circular 55 de 15/16-7-64.
12 PAPA FRANCISCO, Audiência com a imprensa, 16 de março de 2013.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
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67
iniciativas geraram um verdadeiro “arrastão profético”, engajando muitas pessoas na
mesma luta. A convergência de pessoas nesta opção espiritual foi decisiva para a Igreja
brasileira e latino-americana, especialmente em Medellín e Puebla. Por tudo isso, assim
como acontecia entre os primeiros cristãos, uma vocação vivida com intensidade e com o
horizonte do Evangelho se torna a melhor animação vocacional!
2.2 Companheiro de vigília, do silêncio, das grandes decisões e que gosta de
brincar
A prática das vigílias foi uma opção firmada por Helder pouco antes da sua
ordenação presbiteral para que não fosse “engolido pelo mundo”, evitando um ativismo no
qual ele poderia se perder nas grandes causas e projetos e deixar de lado o cultivo
espiritual. Este espaço de estudo, oração, contemplação e planejamento, em meio às
madrugadas, se tornou decisivo para a sua espiritualidade.
A vigília helderiana é única e original. Embora possa ser comparada com a prática de
oração de outros grandes místicos cristãos, sua forma de rezar e de preparar-se para os
próximos passos de sua missão ganhou traços próprios. Uma dinâmica de oração e de
discernimento faz toda a diferença no cultivo vocacional. Neste aspecto, o ritmo orante de
Dom Helder é marcado pela regularidade. As horas de vigília, a começar pelas duas da
manhã, revelam que a oração não era um peso para ele, mas “uma conversa de camaradas
que não deve ter formalismos nem cerimônias um com o outro”
13
. A expressão faz lembrar
da oração de Jesus, que dialogava por longos períodos, ainda de madrugada, com o Abba-Pai
para discernir sua vontade e orientar a vivência do seu projeto de vida. O Papa Francisco
aponta para uma relação de liberdade com Deus como espaço fecundo para o
discernimento e cultivo vocacional:
Na sua Palavra, encontramos muitas expressões do seu amor. É como se Ele
estivesse procurando maneiras diferentes de manifestá-lo para ver se, com
alguma dessas palavras, pode chegar ao teu coração. Por exemplo, às vezes
apresenta-Se como aqueles pais carinhosos que brincam com seus filhos:
“Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que
levantam uma criancinha contra o seu rosto” (Os 11, 4) (CV 114).
Nas madrugadas de vigília, Dom Helder se sentia tão à vontade com Deus e com seus
amigos espirituais, como João XXIII, Paulo VI e São Francisco, que conseguia romper a
formalidade do “tu”, tornando-se quase um “eu”. É a configuração plena! Em suas palavras,
“Deus se cansa de parecer importante e sério o dia inteiro. São tão poucos os que sabem
como Ele é criança e gosta de brincar”
14
.
3 COMPREENSÃO HELDERIANA DE VOCAÇÃO
Dom Helder foi um animador vocacional em sua maneira de viver e de amadurecer
a visão sobre o sentido da vida e da missão. Sua compreensão sobre vocação pode ser vista
sob duas perspectivas: a vocação universal à doação, que compreende a humanidade
inteira, e as vocações específicas dentro da Igreja. Em ambos os casos, é preciso trilhar um
caminho tão ousado como apaixonante. Na medida em que se penetra no pensamento
helderiano sobre esse tema, em tempos de Papa Francisco, é visível a proximidade e os
paralelos entre os apontamentos de Dom Helder e do Sumo Pontífice.
13 POTRICK apud Ivanir Rampon, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.306.
14 Circular 182 de 24/25-4-1965.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
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Nos pontos a seguir, busca-se delinear a compreensão helderiana sobre vocação. Em
vista da vastidão de sua vida e obra, o foco é o livro “O deserto é fértil”, um roteiro de vida
para as minorias abraâmicas. O livro é uma obra de espiritualidade que provém da
meditação da própria espiritualidade helderiana, somado a contribuições de outros
integrantes das minorias.
3.1 Vocacionado a doar-se por inteiro
Diversas mudanças, que vieram para ficar ao longo da história da Igreja, partiram do
clamor do povo. Quando os seus pastores são capazes de interpretar sua realidade e
anseios, surgem novidades apaixonantes. Movido por sua esperança em um mundo novo e
proximidade com o Deus Libertador, Dom Helder acreditava na irrupção de profundas
transformações na Igreja e na sociedade. A libertação dos oprimidos e a construção de um
mundo novo têm o seu ponto de partida nas pessoas de boa vontade, que desejam dedicar
sua vida para o bem do próximo.
Dom Helder denomina estas pessoas de minorias abraâmicas. Trata-se de um
conceito inédito e original que une pessoas de diferentes religiões e etnias pelo mundo.
Estas pessoas, espalhadas por todos os lugares, têm em comum o espírito de irmãos e de
transformação frente às injustiças da sociedade. São pessoas que não se fecham em seu
pequeno mundo, nos pequenos problemas ou nos problemas das instituições a que
pertencem. Estas pessoas vão além, se juntando em vista de uma transformação profunda
do mundo e das grandes causas para a humanidade.
Uma das novidades do conceito cunhado por Dom Helder é sua capacidade de
pensar uma mudança eclesial e social a partir de uma mística que une as pessoas de boa
vontade em grandes causas em prol da humanidade. Para quem orienta sua vida dentro da
lógica individualista ou prefere a comodidade da vida dos grandes centros e das áreas
nobres este chamado se torna inaudível. Porém,
Quem vive nas áreas onde milhões de criaturas humanas vivem de modo
subumano, praticamente em condições de escravidão, se não tiver surdez de alma,
ouvirá o clamor dos oprimidos [...] É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado
de Deus [...]. Difícil é não parar em atitudes emotivas de compaixão e pesar
15
.
Os integrantes desse grupo, de diferentes religiões, línguas e povos, motivados pela
sua sensibilidade diante das injustiças e dos problemas que atingem as mais diferentes
realidades, são chamados a pensar a humanidade inteira: “Onde, em que lugar do mundo,
não injustiças, contrastes, divisões? Onde as injustiças não funcionam como violência-
mãe de todas as violências?”
16
Deste passo surgem as causas importantes na construção de
um mundo de mais justiça e fraternidade.
As minorias abraâmicas o vocacionadas a revolucionar a abordagem dos temas
cruciais para a humanidade. Preparam dias melhores ao se contrapor à violência armada
através da não-violência ativa. Para isso, sabem ser necessário muito mais que pequenas
intervenções ou reformas em sociedades apegadas às armas como recurso para
perpetuar as injustiças.
Em sua mensagem por ocasião do 56º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, o
Papa Francisco destacou esse elemento. Suas palavras recordam que a promessa de um
mundo novo, para acontecer, exige que o vocacionado assuma os riscos da missão. Deus
não chama para coisas banais, mas para feitos desafiadores. Em suas palavras:
15 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.24-25.
16 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p. .
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Aceitar a chamada do Senhor quer dizer deixar-se envolver totalmente e “correr
o risco” de enfrentar um desafio inédito; é preciso deixar tudo o que nos impede
de fazer uma escolha definitiva; é preciso audácia para descobrir o projeto que
Deus tem para nós. Devemos confiar na promessa do Senhor
17
.
O enfrentamento das estruturas e posturas injustas, em todos os lugares do mundo é
muito mais que exercício de uma visão política ou uma bandeira de um grupo religioso.
No pensamento helderiano, trata-se de uma vocação mais ampla: doar-se!
Para Dom Helder, um dos espaços capazes de dar força e concretude a essas minorias
são as Comunidades Eclesiais de Base. Ali, as pessoas que sonham com a transformação da
Igreja e do mundo descobrem forças para tensionar com as estruturas de injustiça e passam
a tecer relações baseadas na solidariedade, na justiça e no amor. Dom Helder expressa este
horizonte: “As minorias abraâmicas sentem, pressentem que o segredo para a mudança da
igreja está em Comunidade de Base, que tentam concretizar os grandes textos e as belas
conclusões do Vaticano II”
18
.
O crescimento da consciência libertadora também carrega o potencial da
transformação das estruturas eclesiais através do diálogo e da vivência humilde de um
novo jeito de ser Igreja. Essas mudanças acontecem em esferas paroquiais, diocesanas, nas
conferências episcopais e precisam chegar a Roma: “Quem conhece a Cúria Romana sabe
que existe, dentro dela, uma esplêndida minoria abraãmica. [...] Falta apenas quem se
decida a articular a minoria, sem o mais leve espírito de grupo fechado ou de complô”
19
.
3.2 As cruzes na vida dos vocacionados
Os vocacionados que abraçarem a grande causa da libertação dos oprimidos e a
dinâmica do Reino de Deus não podem se iludir: haverá cruzes e desertos em sua jornada
transformadora. Os poderosos, quando veem ameaçados os seus projetos, fazem de tudo
para conter a mudança. Algumas vezes poderão até ajudar os pobres, mas não aceitam que
se pergunte sobre a origem da injustiça. Por isso, somente unidas, as minorias poderão
manter a esperança e prosseguir seu caminho na construção de novos céus e nova terra.
O chamado de Deus e os dons concedidos a cada vocacionado são diferentes. Nas
palavras do Dom, “Deus parece injusto, mas não é. Pede mais de quem recebe mais”
20
. Esta
conclusão emergente de um olhar para a vocação de Abraão não visa uma postura de
superioridade, mas simplesmente uma oportunidade de servir mais intensamente. Dom
Helder sabia por experiência pessoal que Deus “Prova-os através de sacrifícios terríveis. Mas
sustenta-os, encoraja-os. Dá-lhes a missão arriscada e bela de ser instrumentos de chamadas
divinas”
21
. As vocações específicas dentro da Igreja podem ser vistas sob esta ótica. O chamado
considera a particularidade das vocações específicas. Todas elas, porém, são orientadas
para
um horizonte maior: a construção do Reino de Deus e a sua justiça (cf. Mt 6,33).
A consciência da cruz diante das opções evangélicas, como é o caso da opção pelos
pobres, permite abraçar as opções decisivas para a vida. Sem elas a vida é tomada pelo
marasmo. O Papa Francisco expressa a mesma compreensão ao alertar os jovens e
vocacionados para não confundirem a felicidade com o sofá, ou seja, com uma vida de
17 PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
18 Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.149.
19 Dom Helder CAMARA, o artesão da paz, p.150.
20 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.
21 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.14.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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comodidades, onde as opções mais importantes costumam ser postergadas indefinidamente.
“Abraão recebeu muito? Respondeu muito. Respondeu ao máximo. Serviu”
22
.
Ontem e hoje, Deus tem esperança, chama pessoas de boa vontade e sustenta os seus
na luta por justiça, por direitos, por projetos alternativos. A consciência helderiana de que
o grupo abraâmico é fundamental para um mundo novo, faz indagar sobre o perfil e os
espaços onde se investe na animação vocacional. A presença nos círculos onde estão sendo
discutidas as questões que mexem com a vida das pessoas e a organização de grupos de
vanguarda no que é crucial para a humanidade, se torna um terreno fecundo para o
surgimento de todas as vocações. Contudo, não basta esperar a colheita! É preciso realizar
o processo, organizar e dar oportunidade, ouvir os clamores dos pobres e ter a consciência
de que os vocacionados que despertam para este horizonte precisam pensar grande, ao
invés de serem reprodutores das estruturas existentes. É preciso estar nas periferias. O
processo de conversão passa pela formação e pelo cultivo de estruturas “evangelizadas”,
onde os pobres e excluídos têm protagonismo. É preciso abrir os olhos dos que se sentem
chamados, a fim de perceberem o que Deus deseja de suas vidas.
Um dos limites constatados por Dom Helder nestas minorias é sua dificuldade em se
unirem. Os perseguidores sabem disso e seguidamente ridicularizam quem deseja
trabalhar por um mundo mais justo, como forma de desencorajar e afastar os demais.
Também trabalham para descaracterizar sua mística. Dom Helder foi muitas vezes
chamado de comunista, agitador, bispo vermelho, de forma preconceituosa e rasa, para dar
a entender que sua opção pelos pobres era somente um projeto político ao invés de
expressão da espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo.
Acompanhar os vocacionados, mostrando as cruzes que decorrem das opções do
Evangelho, é uma tarefa que exige o testemunho. Jesus desejava discípulos com uma clara
opção pelo Reino de Deus e sua justiça e não escondia as consequências. No Evangelho de
Lucas, por exemplo, antes de chegar a Jerusalém, Jesus realiza três anúncios da paixão para
despertar a consciência das implicações do seguimento. Também a Pastoral Vocacional se
torna um espaço de anúncio integral da vocação: a vocação presbiteral, por exemplo, não
se reduz ao serviço do altar ou ao aspecto da imagem do “ser padre”. Pior ainda é
clericalizar as demais vocações! Como assinala o Concílio Vaticano II: “As alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo” (GS 1).
3.3 A superação do egoísmo e a dilatação da vida
Arranca-me, Senhor dos falsos centros. Livra-me, sobretudo, de colocar em
mim mesmo meu próprio centro... Como não compreender, uma vez por todas,
que fora de Ti tudo e todos somos excêntricos?
23
Ontem e hoje, é comum a sociedade e até mesmo pessoas religiosas identificarem os
grandes males da sociedade. No tempo de Dom Helder isso também era comum.
Costumava-se demonizar o comunismo, o ateísmo, modernismo, entre outros. Dom
Helder foi construindo outro olhar. Ao partir dos dons recebidos de Deus e da vocação a
que cada um é chamado, em especial a de pertencer às minorias abraâmicas, sua conclusão
é que teremos paz - tanto em âmbito pessoal quanto comunitário - quando os dons forem
colocados a serviço. A felicidade não se apresenta como um ativismo desenfreado, antes
22 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.15.
23 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.11.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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como consciência de uma missão recebida de Deus e realizada por inteiro. Um dos vazios
dos vocacionados - tanto durante o amadurecimento e a formação, quanto depois de
assumirem sua vocação - é a crise da missão. É comum que ela apareça com mais força
quando a vocação não foi vivida por inteiro, com a devida intensidade e o contato com as
grandes causas de libertação da vida do povo.
Ao fazer leitura semelhante sobre a vida, Dom Helder situou uma fonte diferente da
maioria das pessoas do seu tempo para o mal que aflige o mundo e as pessoas. A batalha
decisiva para um mundo novo deve ser travada contra o egoísmo! Nas palavras do Dom:
É importante alertar contra a tentação do egoísmo. De vez em quando o
desânimo sopra. Rebenta, forte a impressão de que não adianta querer pensar
nos outros. Parece que a saída única é desistir de idealismos, ser prático, cuidar
de si e apenas de si. A experiência demonstra que o egoísmo é fonte segura de
infelicidade pessoal e de infelicidade em torno de si. O fundamental é firmar-se
na opção de alargar pensamento e coração
24
.
Quem se entrega ao egoísmo, acaba por dar voltas em torno de si mesmo. Mesmo
pensando ser grande, com essa postura revela a insignificância de sua existência e a
estreiteza de um horizonte de vida. Mais uma vez salta aos olhos a semelhança com o
pensamento do Papa Francisco que, ao falar sobre as vocações específicas e a resposta ao
chamado divino, compreende que a vocação dilata a vida, expande os horizontes para além
do próprio “eu”. Segundo a Evangelli Gaudium, a autorreferencialidade expressa o fechamento
na relação com Deus e com as pessoas (EG 8). A Igreja em saída é uma Igreja que, ao invés
de olhar para os próprios problemas ou se vangloriar de insígnias, vestes ou obras
suntuosas do passado, se conta que tem uma missão para realizar, a qual acontece na
medida em que vai ao encontro das pessoas nas periferias existenciais e sociais.
A tendência humana ao fechamento e egoísmo se manifesta nos dias de hoje em suas
diversas formas. A Encíclica Fratelli Tutti discorre sobre essa realidade:
Mas a história sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos que
se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados,
ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo
e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e
de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses
nacionais. Isto lembra-nos que cada geração deve fazer suas as lutas e as
conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o
caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam
duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia (FT 11).
Vocação e egoísmo não combinam. Padre e egoísmo não combinam. Religioso(a) e
egoísmo não combinam. Vocações leigas, matrimônio e egoísmo não combinam. Vocação
e doação total da vida combinam!
3.4 A voz de Deus nos oprimidos
Uma experiência bíblica fundante que permitiu conhecer mais a fundo quem é Deus
e iniciar uma jornada milenar segundo os seus desígnios pode ser localizada no Êxodo.
Naquela ocasião, diante de tamanha injustiça e opressão por conta do sistema piramidal
egípcio, Javé disse: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu
clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-
lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa,
24 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.20.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7-8). Desde então, passando pelos profetas e chegando à
proclamação do Reino de Deus e a sua justiça pela boca de Jesus, está claro que Deus, além
de estar ao lado dos pobres, tem neles a sua voz e seu rosto.
Dom Helder foi ainda mais longe ao recordar que mesmo Abraão escutava Deus no
seu povo. Ao olhar para a realidade brasileira do seu tempo, nas inúmeras periferias em
que esteve e suscitou processos para uma vida mais digna, como o Banco da Providência
25
,
o Dom dos Pobres ouviu novamente aquela mesma voz: “Quem vive em áreas onde
milhões de criaturas humanas vivem de modo subumano, praticamente em condições de
escravidão, se o tiver surdez de alma, ouvirá o clamor dos oprimidos. E o clamor dos
oprimidos é a voz de Deus”
26
.
Segundo o relato de alguns santos e místicos, ao longo da história cristã, escutar a
voz de Deus nem sempre é fácil. Tantos testemunham processos de décadas para poderem
afirmar terem ouvido essa voz. Para Dom Helder, diante do grito dos pobres, escancarado
em tantas favelas e periferias, “É fácil, relativamente fácil, escutar o chamado de Deus
através dos acontecimentos do nosso tempo e do nosso meio. Difícil é não parar em
atitudes emotivas de compaixão e de pesar. Dificílimo é arrancar-nos do comodismo
[...]”
27
. O pobre se torna lugar místico e teológico no encontro com Deus. Mais uma vez, o
Papa Francisco manifesta sua sintonia espiritual com as palavras de Dom Helder, ao dizer
que a busca por uma vida cômoda e o aburguesamento do coração paralisam a vida dos
vocacionados. Por outro lado, o contato com a carne de Cristo na pessoa dos pobres,
abandonados, doentes e marginalizados possibilita a superação da passividade
28
.
3.5 Uma causa para dedicar a vida
Por fim, um último conselho aos vocacionados extraído da obra helderiana seria
possível ir muito além é o de não buscar apenas um cargo, posição, estado de vida ou se
ver contente a fazer parte de uma instituição ainda que as instituições sejam necessárias.
É preciso ter uma causa pela qual vale a pena dedicar a vida! reside o segredo para ser
eternamente jovem. De fato, ao longo de sua vida, Dom Helder se deparou com pessoas
assim, como é o caso do Papa João XXIII, que debilitado no corpo, teve uma mente
jovem para convocar o Concílio Vaticano II e o aggiornamento da Igreja.
Contudo, o Dom não parou por aí, que existem “causas e causas”. quem
dedique a vida a causas mesquinhas, marcadas pelo individualismo e o egoísmo. Gastar a
vida em torno de armas, do ódio e da violência certamente não compensa. Existem
questões, diante das quais a vida se torna plena de sentido. Dom Helder lembra do
movimento abolicionista brasileiro:
[...] é fácil entender a vibração dos jovens que corriam, alegremente, riscos,
ajudando escravos a escapar para a liberdade e promovendo todo um belo
movimento de opinião pública para derrubar a estrutura da escravidão. Poetas,
jornalistas, tribunos, sacerdotes [...] fraternizavam na luta sagrada de querer
livres todos os filhos de Deus!
29
A busca pela independência de todos os povos, através dos movimentos
anticolonialistas aparece como exemplo, entre tantas outras causas significativas em favor
25 Iniciativa encabeçada por Dom Helder, o banco foi fundado em 1959 com o objetivo de auxiliar os mais necessitados.
26 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.23.
27 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.25.
28
Cf. PAPA FRANCISCO, Missa de canonização de Laura Montoya e María Guadalupe García Zavala, 12 de maio de 2013.
29 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.38.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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de um mundo livre. Viver uma vocação “de sacristiasabendo da existência da causa do
século é uma tolice. A causa para a qual toda e qualquer vocação precisa estar orientada é
“[...] completar a libertação dos escravos sem nome e que são, hoje, dois terços da
Humanidade; completar a independência política dos países que conquistaram a própria
soberania, encorajando-os a obter a independência econômica [...]”
30
.
No tempo presente, este paradigma de reflexão possivelmente contemplaria
problemáticas como o decolonialismo e a questão ecológica. A escravidão contemporânea
é mais sutil e fica visível na dificuldade das sociedades pobres em se libertarem da
dependência do pensamento e culturas dos países ricos, propositalmente difundidas com a
finalidade de dominação. A urgência em abraçar a questão ecológica, por sua vez, coloca
em xeque o modelo de vida baseado no lucro e no consumo desenfreado e ameaça a
existência futura da humanidade.
Um olhar para o pensamento de Dom Helder deixa claro que vocações fechadas em
falsas seguranças, das mais diferentes naturezas, ou ingênuas em relação à realidade e ao
mundo em que vivem não tendem a perdurar ao se depararem com a realidade do povo. O
pior acontece quando travam os processos de libertação, por não desejarem assumir a
postura de Jesus e do Evangelho. Os peregrinos de um mundo novo enfrentarão desertos,
precisarão estar abertos ao diálogo, terão que sair de si, conjugando a com a vida. Mas
nada disso é em vão. Viver a vocação, responder a Deus por inteiro é apaixonante!
Não, não pares. É graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada
certa, manter o ritmo... Mas a graça das graças é o desistir. Podendo ou não podendo,
caindo, embora aos pedaços, chegar até o fim...
31
Assim como o grupo dos discípulos de Jesus era inicialmente pequeno, mas foi capaz
de dar passos na construção do Reino de Deus e sua justiça, é fato que, em meio à pressão
da sociedade atual, marcada pelo individualismo e a idolatria do dinheiro, também são
poucos os que despertam como peregrinos de um mundo novo. Porém, a atuação de
poetas, jornalistas, membros da Igreja com um olhar para os pobres, tem um potencial
transformador que não pode ser ignorado.
4 ASVOCAÇÕESDE D OM HELDER
Dom Helder viveu sua vocação de ministro ordenado de forma intensa. Seu carinho pelo
sacerdócio foi cultivado desde cedo. Este amor é visível na forma como o sacerdócio foi vivido
e aparece em algumas declarações, tais como: “se eu nascesse cem vezes, cem vezes eu
agradeceria a Deus a vocação para o sacerdócio”
32
e ainda, “a missa é o ponto alto do meu dia”
33
.
Ao longo da vida foram descobertas outras “vocações especiais” ou formas de
aprofundar o chamado recebido. Por rias vezes, o Dom expressou o fato de se sentir
chamado para fazer a diferença em frentes, como a vida profética, a promoção da paz, do
Concílio Vaticano II, em formar grupos e estar junto aos pobres.
O ato de estar ao lado dos pobres é uma “vocação especial” helderiana bastante
destacada. Depois da guinada em sua vida, motivada pela indagação do Cardeal Gerlier
“Por que, querido irmão Dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que
o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?”
34
, despontou mais esta vocação. A partir de então,
30 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.39.
31 Dom Helder CAMARA, O deserto é fértil, p.41.
32 Dom Helder Camara ser padre, Youtube.
33 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.328.
34 Apud Ivanir Antonio RAMPON, O caminho espiritual de Dom Helder Camara, p.105.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
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as periferias e as causas que afligiam a vida do povo passaram a ocupar lugar central em
sua vida e missão. Sua vocação aos pobres permitiu que o palácio episcopal se tornasse casa
dos pobres e de todo o povo. Do mesmo modo, a casa dos pobres se tornou também a sua
casa. Como Jesus, a Boa Notícia do Evangelho frutificou em meio aos pobres.
Dom Helder sentiu-se chamado a ser pregador do Concílio Vaticano II. Nos
bastidores do Concílio, realizou seu “apostolado oculto”, optando por não falar nas sessões
plenárias, mas fazendo um trabalho intenso na mobilização de teólogos, nas reuniões com
os bispos e articulações. O trabalho de Dom Helder contribuiu para a abertura da Igreja e a
consistência dos documentos. Mas foi vivendo e colocando em prática a nova imagem de
Igreja do Concílio que Dom Helder descobriu sua vocação complementar de pregador do
Vaticano II. Em meio aos desafios e retrocessos do tempo presente, urge a retomada desta
vocação helderiana.
A promoção da paz foi outra pauta à qual Dom Helder se sentiu chamado a assumir.
Em meio à década de 1960 e 1970, sua luta em favor dos direitos humanos e contra as
injustiças, durante a uma ditadura militar, ganhou repercussão mundial. Ao lado de
personalidades como Madre Teresa de Calcutá, proferiu inúmeras conferências,
denunciando a realidade brasileira e semeando caminhos novos, como o da não-violência
ativa. O reconhecimento pelo Nobel da Paz não veio por conta da articulação do
governo militar, que fez intensas campanhas internacionais de difamação do bispo
brasileiro, favorito ao prêmio em 1970 e 1971. Em 1972 a estratégia do governo ficou tão
explícita, que a comissão do Nobel preferiu não entregar o prêmio a ninguém.
A vocação para trabalhar em grupos também merece destaque. Não faltam exemplos
dessa atuação. A Família Mecejanense lhe deu sustentação e se tornou um elo de diálogo e
envolvimento nas grandes causas em que esteve envolvido. Seus registros das vigílias nas
madrugadas, partilhados com a família, sustentavam a opção e impulsionavam para a
missão. Seus amigos espirituais das vigílias são um grupo muito especial: João XXIII,
Paulo VI, São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo são alguns destes amigos
espirituais. Sua metodologia pastoral contemplava o envolvimento de muitas pessoas dos
meios eclesiais, sociais e culturais. E como não lembrar das pessoas que se aproximavam e
eram envolvidas graças às noitadas de literatura, artes, filosofia e teologia? A presença de
crianças, dos pobres e o diálogo com todas as pessoas revelam como Dom Helder fazia
questão de estar rodeado de gente e o fato de saber, como poucos, despertar e envolver
estas forças em torno de projetos. Ivanir Rampon destaca esta característica:
Desde o seminário, Helder tinha uma capacidade enorme de trabalhar em
equipe. Ele aglomerava, liderava, despertava para o bem, para a verdade, para o
belo, para a unidade. Com isso, Deus fez grandes maravilhas em sua vida e, por
meio dele, na vida da Igreja e do mundo. Esse seu modo de ser, essa sua
espiritualidade e mística foram extremamente importantes para que fundasse a
CNBB e o Celam, conduzisse o Congresso Eucarístico Internacional de 1955 e a
renovação da Ação Católica Brasileira e fosse um dos grandes articuladores dos
padres no Vaticano II.
[...]
O estilo helderiano de “governar” despertava para a “eclesiologia do povo de
Deus”, na qual o clero se sentiu presbítero, corresponsável com seu bispo pela
caminhada local, enquanto os leigos se organizavam em comunidades, em
pastorais, em associações, em movimentos e setores paroquiais e, em comunhão
com a hierarquia, assumiam suas responsabilidades na evangelização, dando
conscientemente sua indispensável contribuição para a construção do Reino de
Deus – Reino de paz, justiça e amor
35
.
35 Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom-helder-
um-testemunho-para-os-presbiteros/
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
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O grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara, ligado à
Itepa Faculdades, compartilha e busca viver estas vocações especiais helderianas. O ato de
formar grupo no cultivo de uma amizade espiritual permite assumir as opções de Jesus, em
especial a opção pelos pobres, em sintonia com o Concílio Vaticano II a Igreja latino-
americana e o pontificado do Papa Francisco
36
. O Grupo tem consciência que faz parte da
nossa comunidade espiritual, o querido Dom Helder Pessoa Camara!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A habilidade única conjugada com a espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo
permite entrever na vida de Dom Helder uma vocação marcada pelo cultivo, a busca e a
valorização dos dons recebidos no encontro com os pobres. Ao chamar os discípulos, Jesus
pediu uma entrega total. Com o vocacionado Helder, Deus colheu uma resposta
abundante, com uma vida doada em favor do seu Reino na Igreja e no mundo. Sua vida e
missão têm potencial para uma vivência vocacional fecunda.
Olhando para o Terceiro Ano Vocacional do Brasil e a necessidade de aprofundar a
reflexão vocacional, Dom Helder emerge como uma referência para uma autêntica
Animação Vocacional. Seu discernimento, cultivo da espiritualidade e opções de vida têm
muito a contribuir aos jovens e, em especial, aos que sentem o chamado ao presbiterato.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Raimundo Camamuru; OLIVEIRA, Lauro de [Org.]. Dom Helder: o artesão da paz.
Brasília: Edições do Senado Federal, Vol. 120.
CAMARA, Dom Helder. Circulares Interconciliares. III – de 11/11 de setembro a 7/8 de dezembro de
1965. Recife: Obras Completas de Dom Helder, 2009.
CAMARA, Dom Helder. Dom Helder Camara ser padre. Vídeo disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=91eOafZXi1g. Acesso em 12 de dezembro de 2022.
CAMARA, Dom Helder. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
PAPA FRANCISCO. Audiência com a imprensa. 16 de março de 2013. Disponível em: https://
memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-03-16/gostaria-de-ter-uma-igreja-pobre-e-para-
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PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Disponível em: https://www.vatican.va/content/
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Acesso em 02 de setembro de 2022.
PAPA FRANCISCO. Encontro com os participantes do Congresso “Linhas de desenvolvimento do Pacto
Educativo Global”. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-06/papa-
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%E2%80%9D. Acesso em 09 de setembro de 2022.
PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-
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PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelli Gaudium. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-
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RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
36 O Objetivo do Grupo de Espiritualidade e Estudo Re-Vivendo Dom Helder Camara é: “Estudar, meditar e rezar o
pensamento helderiano a fim de cultivar e difundir uma espiritualidade libertadora, a serviço da fermentação de uma
Igreja Pobre e Servidora e de uma sociedade justa, fraterna, pacífica e solidária”.
76
PAPA FRANCISCO. Mensagem do Papa para o 56° Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Disponível
em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-03/mensagem-papa-para-56-dia-mundial-
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PAPA FRANCISCO. Missa de canonização de Laura Montoya e María Guadalupe García Zavala, 12 de maio
de 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/
papa-francesco_20130512_omelia-canonizzazioni.html. Acesso em 11 de setembro de 2022.
RAMPON, Ivanir Antonio. Dom Helder: um testemunho para os presbíteros. Revista Vida Pastoral
novembro-dezembro de 2016. Disponível em: https://www.vidapastoral.com.br/artigos/dom-
helder-um-testemunho-para-os-presbiteros. Acesso em 13 de setembro de 2022.
RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Helder Camara. São Paulo: Paulinas, 2013.
RAMPON, Ivanir Antonio Rampon; FONTANA, Eberson; REBELATO, Lenice
Peregrinos de um mundo novo: reflexões vocacionais a partir de Dom Helder Camara
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 62-76, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
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EDUCAR PARA A PARTILHA
E PARA A SOLIDARIEDADE
Desaos atuais
EDUCATION FOR SHARING
AND SOLIDARITY
Current challenges
Lourdes de Fátima Paschoaletto Possani*
Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido
é ser opressor.
Paulo Freire
Com bênção e partilha, nunca estaremos sozinhos!
Papa Francisco
Resumo: Educar para a partilha e para a solidariedade exige repensar
conteúdos e metodologia, tanto na área social quanto religiosa. O artigo se
propõe a refletir sobre os desafios atuais de como fazer educação na
perspectiva libertadora, na contramão da educação tradicional. Propõe
também uma reflexão em torno do objeto partindo de uma posição
sociopolítica definida em favor da vida, da liberdade e da autonomia dos
sujeitos envolvidos nos processos educativos, formais e/ou informais.
Palavras-chave: Educação. Partilha. Solidariedade. Igreja. Sociedade.
Abstract: Educating for sharing and solidarity requires the reimagining of
content and methodology, both in the social and religious areas. The article
proposes to reflect on the current challenges of how to carry out education
from a liberating perspective, against the grain of traditional education. It
also proposes a reflection around the theme starting from a defined socio-
political position in favor of life, freedom and autonomy of the subjects
involved in educational processes, be it formal and/or informal.
Keywords: Education. Sharin. Solidarity. Church. Society.
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 77-89, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.143
* Mestra e doutora em Educação pela PUC-
SP. Supervisora Escolar aposentada na Rede
Municipal de Ensino de São Paulo (até 2012).
Diretora Regional de Educação / DRE São
Mateus (2013-2014) e Chefe da ATP/SME
(2015-2016). Atua como Coordenadora
Pedagógica no Centro Ecumênico de
Serviços à Evangelização e Educação Popular
CESEEP desde 2017. Docente universitária
(2004 a 2016). Autora de livros e artigos na
área de Educação de Jovens e Adultos,
Currículo, Avaliação e Educação Popular.
E-mail: lurdinhapp@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9896-4742
Recebido em 28/12/2022
Aprovado em 25/06/2023
78
INTRODUÇÃO
Temos enfrentado muitos desafios nos últimos tempos: guerras entre países, onde os
mais ricos destroem os mais pobres ou aqueles que têm em seu território os seus objetos
de desejo e de lucro. Também enfrentamos guerras que se expressam na violência contra as
mulheres, contra as pessoas negras e indígenas e por causa da escolha religiosa, pela
orientação sexual e por outras formas de ser e de viver que não sejam a hegemônica,
branca, hétero.
Vivemos também um momento de violência na política, não física, mas
psicológica, gerando medo e insegurança nas pessoas que pensam diferente de
determinado grupo. Vemos também, com tristeza, a destruição da natureza, do solo, das
águas e do ar com suas consequências para a sobrevivência da humanidade. Um exemplo
disso são os incêndios criminosos especialmente os ocorridos na Amazônia. No entanto,
pior do que tudo isso é a naturalização de toda essa violência e dessa forma de relação com
o meio ambiente.
O espancamento até a morte, no Rio de Janeiro (RJ), de Moïse Mugenvi Kabagamb,
um imigrante congolês negro; o assassinato, com requintes de crueldade da adolescente de
14 anos, Daiane Girá Sales, da Reserva indígena Kaingang de Redentora (RS); os
espancamentos e os assassinatos de pessoas LGBTQIA+ não geram comoção nacional,
pois, de alguma forma, no senso comum encontra-se uma explicação “natural” ou fatalista
para os mesmos.
Mais do que a violência cometida contra as pessoas e com o meio ambiente, choca-
nos a reação das pessoas diante desses fatos. Reação silenciosa e omissa ou de cumplicidade
com a opressão e a violência como se estas fossem “naturais”. E choca-nos ainda mais por
sabermos que grande parte das pessoas que reagem dessa forma, ou seja, apoiando a
violência, passaram pelo menos oito anos na escola formal e que, muitas delas, passaram
por algum tipo de educação religiosa, em toda sua diversidade de modelos educativos
(catequese, escola dominical e outras).
A educação que recebemos ao longo da vida nos ensina a ver o mundo sob este
prisma; um currículo escolar e religioso oculto que: a) prioriza o individualismo e a
competição e não a partilha e a solidariedade entre pessoas; b) promove uma relação
predatória com o meio ambiente e não de cuidado e de manejo sustentável.
Na contramão desta forma de educar, encontramos boas experiências educativas
com foco na ação colaborativa e na promoção do bem-estar comunitário, com destaque
para a participação popular na tomada das decisões e nas ações para a melhoria de vida de
pessoas e grupos empobrecidos e vulnerabilizados. Com esses grupos há, ainda, muito para
se aprender, tanto em relação aos conteúdos, como à sua metodologia e quanto ao seu
modo de viver e de resistir à violência e à miséria.
Neste texto, partimos do pressuposto freiriano de que a Educação muda pessoas e
pessoas mudam o mundo e que a educação não é algo estático, mas sim um artefato cultural
que muda de acordo com o tempo histórico e com os grupos que têm o poder de decidir
sobre o que é preciso que se aprenda para manter o mundo como está ou para mudá-lo.
1 PARTILHA, EDUCAÇÃO E SOLIDARIEDADE
Trazemos aqui um breve descritivo sobre partilha, educação e solidariedade com o
intuito de compreender a posição assumida nesse texto.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
79
1.1 Partilha
Partilha é uma palavra que tem sentidos diversos, a depender de seu contexto.
Assumimos aqui a partilha como conceito e prática de troca, de doação, de generosidade,
de bem querer às pessoas, a quem é o nosso próximo, estando ou não fisicamente
próximo de nós.
Este termo é bastante utilizado no meio religioso, mas também pode ser encontrado
em espaços sociais e políticos, quando o público que ali vive e trabalha o mundo como
um espaço para todas as pessoas viverem em harmonia entre si e com a natureza.
Por detrás da palavra e do conceito de partilha existem pressupostos que nos fazem
compreender por que a palavra pode ser considerada polissêmica e que a sua utilização não
é ingênua e, tampouco, neutra. Veremos aqui alguns deles que são base para a atuação
social e outros, para a atuação pastoral. No entanto, ambos têm aspectos em comum e,
quase sempre, quem os toma para si em sua atuação profissional, social ou religiosa o
fazem em qualquer espaço onde vive, ou seja, na família, com amigos, no trabalho, na
militância política e na ação pastoral e comunitária.
1.2 Educação
Educação também é um termo que tem seu significado alterado de acordo com o
tempo e de acordo com quem tem o poder em determinado momento histórico. A
educação é uma construção humana. A educação tem uma história ao longo do tempo da
humanidade e, com a evolução da sociedade, saiu do espaço familiar e foi para outros
espaços como as escolas, as igrejas etc.
A educação aqui é entendida no seu termo mais amplo e não se limita ao campo
escolar. Somos educados e educamos em todos os espaços sociais, começando pela família e
seu entorno, pela escola, pela religião, pela vida social e pelo trabalho.
As mídias também exercem uma função educativa muito grande – para o bem e para
o mal. Desde a invenção do rádio, passando pela TV a chegar aos meios digitais. Os
meios de comunicação têm intencionalidade educativa, em termos distintos das formas
convencionais de educar, pois podem ser tanto reprodutores dos modelos formais de
educação (religiosa e social), como podem se valer de outras formas, mais sutis e até mais
fortes de influenciar pessoas e grupos na direção de um determinado modo de pensar e de
agir no mundo.
Plataformas digitais, como o “antigo” Orkut, passando pelo Facebook e chegando ao
Instagram e Twitter, entre outros, invadiram os celulares da maioria da população,
trazendo consequências visíveis para o modo de formar pessoas para viverem em
sociedade. Lembramos que estas plataformas, de uso aparentemente gratuito, não são
apenas formas de se vender produtos e serviços, mas principalmente de aprofundar um
modelo de vida individualista e criar um campo aberto para receber, de forma subjetiva,
mensagens de ódio e de incitação à violência. Elas são, também, instrumentos de uma
nova forma de educar as pessoas. É claro que esta forma de educação/comunicação
também traz benefícios ao conectar pessoas e grupos, com possibilidade de expansão de
ideias e de projetos de um novo modo de vida, baseado na solidariedade e na partilha. No
entanto, uma vez mais, como dito anteriormente, parece prevalecer o modo de pensar de
quem tem o poder no momento, ou seja, de quem tem o controle político, econômico e
financeiro no mundo.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
80
1.3 Solidariedade
Solidariedade é uma palavra de origem francesa, solidarité, que remete, do ponto de
vista social, para responsabilidades recíprocas entre pessoas e grupos. Não significa apenas
reconhecer a situação vulnerável de uma pessoa ou de um grupo social, mas consiste,
especialmente, no ato de ajudar essas pessoas.
Assim podemos dizer que a solidariedade traz em si o mesmo fundamento da
partilha, mas avança para além dela, pois exige altruísmo por parte de quem a expressa em
ações. Solidarizar-se não é apenas partilhar, trocar, mas fazer o bem sem esperar a volta, a
não ser o prazer de servir. E este fazer solidário, pela alegria de servir também tem suporte
no evangelho, quando Jesus escolhe o amor como o maior mandamento.
2 PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO E A DINÂMICA DA PARTILHA
Há princípios que regem a forma como se faz educação, sobretudo quando pensamos
na sua articulação com a partilha. Consideremos aqui alguns desses princípios tanto no
âmbito da Igreja, como no da sociedade:
2.1 Na Igreja
Na tradição cristã encontramos princípios baseados nos preceitos do Evangelho,
destacando alguns mais presentes nas diversas formas de educação religiosa:
a) O amor é o maior mandamento. “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração,
de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e com todas as suas forças. Ame seu
próximo como a si mesmo. Não mandamento maior do que este.” (Mc 12,30-31). Amar
assim implica amar a outra pessoa como a s mesmos, o que exige escuta, acolhimento,
perdão e compaixão pelo próximo.
b) A partilha une as pessoas em comunhão e, no Evangelho, vemos a radicalidade dessa
realidade: “A multidão dos que acreditavam era um coração e uma alma. Ninguém
dizia que eram seus os bens que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum.” (At
4,32) “De fato, entre eles não havia nenhum necessitado, pois aqueles que possuíam terras
ou casas, as vendiam e levavam o valor das vendas aos pés dos apóstolos. Então se
distribuía a cada um segundo a sua necessidade.” (At 4,34)
c) Somos filhos e filhas de Deus e, por isso, somos todos iguais perante Ele. Toda pessoa
humana tem o mesmo valor diante de Deus - com diferenças de cor da pele, de cultura, de
religião, de orientação sexual, de saberes/conhecimento etc. Deus criou a humanidade e a
natureza para que vivessem em comunhão e a está a sua beleza: “é neste entrelaçamento
da comunhão universal que se integra cada grupo humano, e aí encontra a sua beleza” (FT
149). Para a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Educação
é conduzir e acompanhar a pessoa para sair do não saber, rumo à consciência de
si mesma e do mundo em vive. É tornar a pessoa consciente, para que se torne
sempre mais sujeito de seus sentimentos, pensamentos e ações. Isso tanto para
crianças como para adultos, uma vez que a própria vida se encarrega de nos
trazer oportunidades de aprendizagem em qualquer etapa
1
.
O eixo da definição proposta pelo texto-base da CF 2022 é o indivíduo que deve ser
conduzido no processo de conhecimento. No entanto, podemos pensar a educação como
um processo em que o aprendiz é sujeito do processo de sua construção do conhecimento.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
1 CNBB, Campanha da Fraternidade 2022 - Texto-Base, p. 17.
81
Com isso, podemos perceber que a educação tem uma função social: possibilitar que as
pessoas possam decodificar (decifrar), interferir e transformar a realidade.
Assim, podemos dizer que o processo educativo vai muito além da aquisição de
conhecimento. Ele é um processo que permite à pessoa ser sujeito do processo educativo e
ser sujeito de transformação da realidade.
Essa compreensão da educação - como um instrumento de decodificação, de
intervenção e de transformação - é necessária para compreendermos o seu potencial de
transformação e as suas implicações em toda a vida da pessoa, da comunidade e da sociedade.
Para Mandela, “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem
aprender a odiar, elas podem aprender a amar.” Ele diz também que “A educação é a arma
mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”
2
.
Se cremos nisso, não como dissociar a educação de sua responsabilidade de
transformar o mundo num espaço digno para todas as pessoas viverem. E aqui incluímos a
educação religiosa que deve estar a serviço da construção do Reino de Deus: “Busquem
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33). Ressaltamos que a educação religiosa,
expressa na catequese oferecida pela Igreja, pode ocorrer também em espaços formais de
educação, como as escolas confessionais.
2.2 Na sociedade
A citação de Mandela, referida aqui, nos aponta caminhos para a educação, seja
formal ou informal. Chamamos de educação formal aquela oferecida pelo Estado
3
, nas
escolas públicas, ou por ele acompanhada, nos sistemas privados de ensino.
Educação informal é aquela oferecida fora desses dois espaços, e desenvolvida pelas
organizações civis, pelas famílias ou grupos de interesse em comum. Ocorre especialmente
associadas a atividades culturais, lúdicas e são promovidas, muitas vezes, também pela Igreja.
Embora se diga que a educação formal ocorra sem planejamento, esta afirmação vale apenas
para a educação que ocorre espontaneamente, pois a educação informal, dotada de
intencionalidade, também prevê planejamento e, certamente, posição sociopolítica clara em
favor de mudanças sociais com os sujeitos envolvidos nesse processo educativo, que
falamos de grupos sociais menos favorecidos economicamente. A educação informal
também pode ser entendida como aquela que supre uma deficiência de oferta do Estado,
como a alfabetização de jovens e adultos e a educação e cuidado com a infância até os 4 anos.
Em tese, a educação informal deveria ser realizada num formato mais livre do que o
da educação formal, com currículos menos rígidos e construídos juntos com o público
envolvido e a partir das suas necessidades, na perspectiva de oferta de uma educação que
promova a transformação social.
3 EDUCAÇÃO LIBERTADORA X EDUCAÇÃO BANCÁRIA
Tratamos aqui da educação oferecida pela sociedade em um determinado tempo da
história e com recorte para um tipo específico de educação: a educação libertadora. Este
modelo de educação se contrapõe ao modelo tradicional ou conservador.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
2 Trecho do discurso proferido no lançamento do Mindset Network, em 16 de julho de 2003. Lighting your way to a
better future. Planetarium. University of the Witwatersrand, Johannesburg, South Africa.
3 O Estado tem o dever de oferecer a educação básica gratuita desde os 4 até os 16 anos. A alteração foi feita na LDB (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) por meio da Lei 12.796, de 4 de abril de 2013. Essa regulamentação
oficializa a mudança feita na Constituição por meio da Emenda Constitucional nº 59, em 2009.
82
3.1 Educação libertadora
A educação libertadora tem princípios que dão base para uma nova forma de
educação, que seja para a liberdade, para a emancipação e crescimento dos sujeitos
envolvidos.
a) Somos, todos dotados de saberes e temos o mesmo valor. Temos diferentes saberes, mas
não valorados hierarquicamente: “Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença
nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”
4
.
b) Somos seres relacionais. Somos seres coletivos e nos formamos na relação com as
outras pessoas e grupos sociais. Todos ensinamos e aprendemos algo com as outras
pessoas, especialmente nas relações que estabelecemos com elas. Para Paulo Freire,
“ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si,
mediatizados pelo mundo”
5
.
c) Mudar é difícil, mas é possível. Esta afirmação é de Paulo Freire e nos reafirma o
princípio da esperança do verbo esperançar. Uma esperança que nos move à ação por
mudanças sociais e na relação humana com a natureza. Mudar exige compreensão da
realidade, coragem para a ação sociopolítica e amorosidade na relação educacional que as
ações promovidas provocam para além do individual, rumo à coletividade.
Contardo Calligaris
6
nos alerta também para a necessidade de mudança em nós
mesmo e para mudar o mundo: “Caso você pretenda mudar o mundo, lembre-se de que,
provavelmente, você não está à altura do mundo mudado segundo seu desejo. (...) Quem
quer mudar as coisas facilmente esquece de contar-se entre os itens a serem mudados.”
Na perspectiva da educação libertadora, não somos “nós” os únicos a educar os
outros. Se somos seres relacionais e nossa relação é horizontal, cremos que não mudamos
os outros sem que estejamos incluídos na mudança para o bem comum.
3.2 Educação bancária
O conceito de educação bancária, ou a concepção bancária de educação, foi
desenvolvido por Paulo Freire, sobretudo no livro Pedagogia do Oprimido, como contraponto
à educação libertadora por ele proposta em seus escritos e em sua prática como educador.
Este modelo tem como base princípios antagônicos ao modelo de educação
libertadora e tem características bem distintas:
a) Currículo
Formação com conteúdo compartimentado e com a intenção de domesticar a
consciência das pessoas. Esse modelo defende uma falsa neutralidade no currículo e na
metodologia, visando disciplinar corpos e mentes para um referido modelo social desejado
pela classe dominante.
b) Relação professor x aluno
A relação professor x aluno neste modelo é vertical e antidialógica. Esse modelo
propõe os conteúdos como verdades absolutas. Na educação libertadora falamos em
educador x educandos. Além disso, esse modelo de relação se contrapõe ao modelo
horizontal e dialógico nas relações, encontrado na educação libertadora.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
4 SANTOS, Boaventura de Sousa, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural, p. 56.
5 FREIRE, Paulo, Pedagogia do oprimido, p. 68.
6 MARSIGLIA, Ivan, Contardo Calligaris, Trip, 2009.
83
c) Conhecimento
Na educação tradicional, a aprendizagem dos alunos é baseada na memorização e na
repetição. Não espaço para a criação e invenção próprias da educação libertadora. Todo
o conhecimento vem pronto e os aprendizes o considerados como desprovidos de
saberes. Em síntese, a ênfase é na transmissão e não na construção do conhecimento.
“ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou
construção”
7
.
d) Realidade
A realidade é vista como estática e mistificada, fragmentada e compartimentada.
Nesse modelo não possibilidade de transformação a partir dos sujeitos, como propõe a
educação libertadora. Como nos diz Paulo Freire: “reconhecer que a História é tempo de
possibilidade e não de determinismo” (FREIRE, 2004, p.19).
4 EDUCAÇÃO E AS ESCOLHAS POLÍTICAS
Diante de escolhas curriculares ou educativas, podemos assumir posições
contraditórias, realizando tarefas em favor ou contra mudanças na sociedade: “Uns da
manutenção das estruturas e, outros, da mudança”
8
.
A Educação sempre teve e continua, nessa contraditoriedade, com a possibilidade de
dois caminhos seguir:
4.1 Manter a sociedade como está
Manter a sociedade como está é manter a desigualdade social, a violência, o racismo,
o patriarcalismo e a intolerância com o/a diferente.
Para manter a sociedade como está, é preciso pensar em estratégias de dominação de
modo que se torne imperceptível a dominação. Uma das estratégias mais eficientes para
manter tudo como está, é a naturalizar as desigualdades sociais e os mecanismos de
dominação.
Para isso, utilizam-se de dois importantes espaços educativos e ideológicos:
a) O Estado
Com a escola formal, o Estado oferece um currículo - supostamente neutro que
prepara pessoas para um modo determinado de vida, onde os oprimidos devem aceitar,
como natural, a sua condição e opressão.
A educação é pensada, desde séculos, para doutrinar corpos e mentes segundo um
modelo social onde haja opressores e oprimidos, ricos e pobres, pretos e brancos
(separados, se possível), homens e mulheres (com domínio do primeiro grupo sobre o
segundo) e assim por diante.
Além da educação formal, as mídias desempenham papel importante na manutenção
da realidade, pois quase sempre os donos dos meios de comunicação estão diretamente
ligados a quem tem o poder econômico e político. Nesse contexto, inclui-se as mídias
digitais, que avançaram velozmente neste início de século XXI.
A maior prova do sucesso desse modelo educacional é quando o oprimido repete
o discurso do opressor contra si mesmo. E essa reação é também consequência da
educação que recebe.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
7 FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p. 22.
8 FREIRE, Paulo, Pedagogia do oprimido, p. 93.
84
Lembremos que, muitos de nós, atuamos como educadores e gestores em escolas
públicas ou privadas. Muito de nós atuamos hoje no ensino superior e formamos
formadores/as. Daí a grande responsabilidade de formar pessoas para mudar o mundo, para
transformar a realidade de opressão e exclusão em que vive grande parte da humanidade.
A participação na construção e recriação de currículos, para além de sua execução,
deve ter base nos princípios de emancipação, de liberdade e de participação.
b) A Igreja
Na história ocidental, a Igreja Católica, por muitos séculos, esteve ligada ao poder e
compactuou com a violência dos colonizadores contra os povos originários da Américas
e da África.
A catequese foi a base para a aceitação da ideia de que esses povos eram inferiores
diante dos invasores que tomaram seus territórios em busca da riqueza, espoliando os
minérios e as reservas naturais. Esta extração predatória continua até os nossos dias, com
mais ferocidade, a partir das novas tecnologias e os mais afetados continuam sendo os
povos originários e tradicionais.
Vale lembrar que o genocídio contra os povos originários se deu, em grande parte,
com a ajuda dos missionários que vieram nos mesmos navios dos colonizadores, e que
catequizavam e subordinavam, adestrando corpos e mentes para um novo modo de vida,
muito distinto daquele vivido por esses povos antes da invasão dos europeus.
Aqui faz-se necessário pensar em qual currículo ou quais conteúdos e metodologias
são utilizados na formação religiosa, seja das pessoas leigas ou dos agentes religiosos. Tal
como na educação formal, na educação religiosa também um currículo intencional, não
doutrinário, mas também social, que forma pessoas pra serem lideranças a serviço de
suas comunidades, paróquias e dioceses.
A formação de padres e religiosos incide diretamente na sua ação pastoral e guia sua
missão como evangelizador e como agentes religiosos. Eles exercem, mesmo que não o
saibam ou não admitam, um importante papel político diante da possibilidade de
mudanças sociais. Sua posição frente aos problemas do mundo vai dizer sobre sua
fidelidade ao Evangelho, sua opção pelos pobres (empobrecidos) e sua generosidade em
acolher a diversidade.
A opção preferencial pelos pobres feita pela Igreja em Medellin e Puebla e a retomada
nos textos do Papa Francisco é algo que precisa estar em nossa área de atuação como
formadores se quisermos ser coerentes com o nosso discurso de partilha e solidariedade.
Não podemos, no entanto, nos esquecer que muitos agentes religiosos estão na
contramão da longa caminhada da Igreja latino-americana e dos posicionamentos do Papa
Francisco. Isso se dá porque muitos desses agentes são movidos por diferentes compreensões
do Evangelho e da missão da Igreja e do próprio sentido da educação libertadora.
4.2 Transformar a sociedade
Transformar a sociedade que oprime é desejo de quem é dominado e não de quem
está no poder. Paulo Freire diz que a luta tem “de partir, porém, dos ‘condenados da terra’,
dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles, realmente se solidarizem”
9
.
E ele pergunta:
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
9 Ibid., p. 31.
85
Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o
significado terrível e uma sociedade opressora? quem sentirá, melhor do que
eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a
necessidade de libertação? Libertação a que não chegarão por acaso, mas pela
práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de
lutar por ela
10.
podemos falar em mudanças a partir do olhar que percebe a sua necessidade e
percebe a necessidade de mudanças quem traz consigo uma visão de mundo que defende a
justiça, a solidariedade e a igualdade de todas as pessoas.
Se concordamos com Paulo Freire, devemos ter clareza de que, embora tenhamos
nós, educadores e formadores objetivos e certezas comuns, nosso papel e nossos desafios
são distintos daqueles que movem os oprimidos por mudança. Daí a importância do
discernimento de nosso papel nas lutas sociais e pastorais.
Os educadores formais e informais são seres políticos, mesmo que não o saibam
ou não admitam. Além disso, os educadores quando negam seu papel político e falam em
neutralidade nas ações, é porque assumiram o modo conservador de educar, ou seja, de
manter a realidade como está.
5 DESAFIOS ATUAIS
A dura realidade bate à nossa porta: o aumento do número de pessoas
desempregadas, de pessoas sem terra, sem teto e em situação de rua
11
.
Perdemos quase 700 mil
12
pessoas pelo contágio do COVID-19, o que deixa uma
multidão de famílias chorando a morte de pais, mães, filhos, parentes e amigos. É grande
também o número de pessoas que sobreviveram ao vírus, mas que ficaram com sequelas na
saúde e necessitam e ajuda médica (física e/ou psicológica).
No Brasil, a escola envolve, de alguma forma, 72 milhões de brasileiros e seus
familiares: 48 milhões no ensino infantil e fundamental, 16 no médio e 8 no superior. O
fechamento das escolas durante a pandemia e a troca das aulas presenciais pelo ensino a
distância, durante pandemia, excluiu milhões de crianças e jovens, sobretudo da zona rural
e de regiões sem acesso à internet. Perderam-se dois anos de estudos e sabemos que não
basta retornar às aulas e tentar recuperar o tempo perdido com o mesmo currículo e
metodologia de antes da pandemia. O mundo não é mais o mesmo depois da pandemia. A
escola não poderá ser mais a mesma, tampouco o currículo escolar.
A pandemia afetou também as Igrejas. Com as medidas de isolamento social
esvaziaram-se as igrejas e foi preciso se reinventar para fazer chegar, de alguma forma, a
mensagem do Evangelho na casa das pessoas. O rádio, a TV e as mídias digitais foram
usadas para a comunicação com os fiéis. Mas, tal como as escolas, enfrentou-se o desafio
para alcançar aqueles que não têm acesso a uma boa conexão com a internet. A volta ao
formato presencial das atividades religiosas e pastorais se coloca como um grande desafio
depois de quase três anos isolados. Isso afeta a mensagem religiosa transmitida e,
sobretudo, a educação na catequese.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
10 Ibid.
11 Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da UFMG, São Paulo
tinha 75,8 mil famílias em situação de rua cadastradas para receber benefícios sociais do governo federal em 2019.
Esse número subiu para 85,9 mil em setembro de 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/
2022/10/13/numero-de-moradores-em-situacao-de-rua-registrados-no-cadunico-sobe-13percent-no-estado-de-sp-
entre-2019-e-2022-diz-estudo-da-ufmg.ghtml
12 Desde o início da pandemia pelo COVID-19 até o momento, incluindo o contágio por novas cepas do vírus, tivemos
693 mil mortes no Brasil.
86
A experiência de uma pandemia dessa magnitude não pode passar despercebida e
sem análise de suas causas e consequências, como não se pode deixar de pensar na criação
de estratégias e materiais que unam a alegria do encontro presencial com os benefícios que
comunicação digital oferece.
6 CAMINHOS POSSÍVEIS
Colocando-nos como seres políticos num processo educacional, social e/ou
religioso, com responsabilidade de educar para um mundo mais justo e solidário, com
relações amorosas e generosas entre pessoas e com a natureza, apontamos, dentro dos
limites deste texto, alguns caminhos que nos inspirem a trilhar junto com outras pessoas e
grupos, na perspectiva da partilha, no seu sentido também social e/ou religioso.
6.1 Formação
É preciso que realizemos, dentro do modelo de educação libertadora, a formação de
pessoas sobre:
a) a realidade em que vivemos – para compreender os mecanismos de dominação;
b) os direitos das pessoas – para saber o que de fato queremos mudar / conquistar;
c) a importância e necessidade de conhecer estratégias de luta para se efetuar mudanças
(pessoais e coletivas);
d) a importância de se educar para a fraternidade, para a solidariedade, para a partilha
com projetos de vida e de sociedade que considerem as pessoas como sujeitos de direitos.
6.2 Participação nas lutas em favor da vida
No âmbito das lutas em favor da vida, podemos apontar os seguintes caminhos:
a) No campo social/educacional
No âmbito social o podemos ficar de fora do movimento que exige do Estado a
garantia de que a escola seja um lugar de oferta de educação blica e gratuita. É preciso
que lutemos pela criação e cumprimento de leis que garantam o direito à educação pública
de qualidade para todas as pessoas e que participemos e/ou apoiemos as lutas sociais por
direitos dos trabalhadores da educação. A luta política é, em si, também um ato educativo e
os educadores nela envolvidos trazem para o âmbito da escola sua experiência de luta e de
participação, como classe social e, portanto, como forma crítica de fazer (e não de ver e
dizer) o mundo.
Um dos maiores desafios e onde a nossa luta deve ser maior, é a mudança de
concepção de educação. Sair de um modelo individualista e excludente para outro,
participativo e emancipador.
b) No campo religioso
No campo religioso também precisamos participar de mudanças que sejam
necessárias nas comunidades, a partir das pessoas que ali vivem e convivem. A Igreja
também é um lugar de educação pública, com liberdade religiosa, conforme reza a
Constituição federal, promulgada em 1988.
É preciso que as mensagens da Igreja afirmem o direito à VIDA, em sua plenitude e
em todos os momentos e etapas geracionais para todas as pessoas. É preciso também que as
lideranças religiosas defendam uma educação baseada nos princípios da dignida
de humana.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
87
No caso da Igreja Católica, a educação deve ter como base o Evangelho de Jesus Cristo
e, portanto, com base nos princípios do amor, da fraternidade, da garantia de vida plena
para todas as pessoas, independentemente de sexo, religião, etnia e orientação sexual.
Um dos maiores desafios nesse campo é a mudança de concepção de e de
espiritualidade: mudança de um modelo de e de espiritualidade apenas individual para
uma que nos move a ir ao encontro do outro, educando para a justiça, para a
solidariedade, para a partilha.
Com todos os desafios que se se apresentam para a vida dos mais pobres, as pastorais
e movimentos sociais têm o compromisso de participar dos processos de mudança, seja a
partir das ações diretas, quando é o caso, mas também a partir da formação de pessoas para
realizarem este trabalho.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: EDUCAR PARA A PARTILHA E PARA A SOLIDARIEDADE
A proposição de uma educação que torne as pessoas mais solidárias e justas, inclui
alguns aspectos importantes que vão nortear o trabalho dos educadores.
Cremos que a escolha do caminho da educação libertadora é o que é capaz de tornar
as pessoas esperançosas e com o coração aberto para olhar o outro como ser humano igual
a si, apesar de toda e qualquer diferença, e de forma generosa para acolher e estar
disponível para partilhar o pão e o conhecimento.
Do ponto de vista coletivo, esta escolha implica na união com outras pessoas e grupos,
que se respeitem e se reconheçam como sujeitos de direitos e relacionais, na perspectiva
dialógica de construção de saberes e conquista de vida digna para todas as pessoas.
Mudanças estruturais exigem um nível de organização e articulação entre grupos
sociais e religiosos numa perspectiva maior do que o trabalho que se realiza
individualmente ou em pequenos grupos.
No entanto, é preciso sempre começar de algum ponto para que haja intersecção mais
à frente. E é preciso que compreendamos o contexto geral e de onde desenvolvemos o
nosso trabalho, sabendo que: a) Não neutralidade da educação é preciso “escolher o
lado”, posicionar-se a favor do quê e de quem e contra o quê e contra quem lutamos; b) Não
há mudança sem a participação dos sujeitos envolvidos naquilo que se pretende mudar.
Com esta certeza, propomos que, nas ações formativas para a partilha e para a
solidariedade, tomemos em conta algumas orientações e que estas estejam em
consonância com os princípios da Educação libertadora:
a) Educar para a liberdade: com autonomia e de forma a oferecer às pessoas
instrumentos para fazerem escolhas em suas vidas. Sair dos modelos educacionais fechados
e abrir-se para modelos mais abertos que considerem o ser humano como sujeito de
aprendizagens: “gostaria, uma vez mais, de deixar bem expresso o quanto aposto na
liberdade, o quanto me parece fundamental que ela se exercite tomando decisões”
13
.
b) Educar para um mundo de direitos garantidos: água, alimento, moradia, saúde,
transporte, lazer etc. Não possibilidade de mudança sem garantir direitos para todas as
pessoas: “A educação em direitos humanos requer a historicidade das lutas sociais, a
adoção de conteúdos que auxiliem na compreensão da realidade e a transversalidade dos
seus conteúdos e processos metodológicos, que contribuam com a mudança de cultura e
de hábitos”
14
.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
13 FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p. 105.
14
MONTEIRO, Aída; PINI, Francisca Rodrigues, A educação em direitos humanos e a função da Rede Brasileira de
Educação em Direitos Humanos, in: BEOZZO, José Oscar (Org.), Educar para a um mundo social e racialmente justo, p. 203.
88
c) Educar para a solidariedade: em contraposição à hegemonia de uma educação para a
individualidade, a competição e aos modos mercadológicos impostos pela grande mídia.
experiências positivas com quem podemos aprender. Experiência de partilha na
sociedade, nas igrejas e movimentos e também na educação formal e informal: “Uma das
características presentes em muitas das redes atuais é geração e vínculos de solidariedade
entre pessoas, grupos e instituições que participam das mesmas”
15
.
d) Educar para o respeito ao diferente, às diferenças: reconhecer horizontalmente todas
as pessoas com etnia, religião, gênero e orientação sexual diferente das nossas. Vivemos
momentos de explicitação de horrores em relação às diferenças e temos a responsabilidade
de mudar essa realidade: “a prática preconceituosa de raça, classe, de gênero, ofende a
substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia
16
.
e) Educar para a sustentabilidade: não para dissociar humanidade e natureza. Existem
experiências de sustentabilidade, com preservação da natureza (no campo) e de formas de
tratar os resíduos sólidos (na cidade) de modo a o destruir e não poluir o planeta.
Precisamos fazer conhecer cada uma dessas experiências: “na cultura indígena de alguns
povos da América do Sul, todos os seres, materiais ou não, dotados ou não de vida, precisam
ser respeitados, preservados ou conservados, como requisito ao próprio existir humano
17
.
f) Educar para o compromisso social: o nascemos para comer, beber, trabalhar
para o sustento... precisamos avançar no compromisso com as lutas sociais. Não podemos
estar fora das lutas em favor de mudanças para melhorar a situação dos empobrecidos e
vulnerabilizados: “há coletivos sociais que se propõem a fazer educação para uma sociedade
justa, aprendendo com as lutas populares”
18
;
g) Educar para ser feliz: devemos buscar as condições para que todas as pessoas sejam
felizes, mas sabendo que a nossa felicidade não pode ser apenas individual e deve incluir
projetos coletivos de felicidade para todos: “a vida que vale a pena viver e que nos estimula a
degustá-la não se resume a uma simples luta contra a morte, mas é busca de um prazer
comum, e alegria duradoura, o deleite profundo, o gozo gratuito, a felicidade que contagia!
19
).
h) Coerência entre discurso e prática: cabe destacar que o educador deverá ter sempre
coerência entre seu discurso e sua prática. Este é um exercício exigente para cada pessoa
que se propõe a educar na perspectiva libertadora. Ser parte do processo educativo como
alguém capaz de ensinar e de aprender ao mesmo tempo: “às vezes, mal se imagina o que
pode passar a representar na vida de um aluno, um simples gesto do professor”
20
.
Finalizando esta reflexão, cabe lembrar que a nossa participação no trabalho de
mudança a partir da educação é fundamental e que não haverá mudança social sem a nossa
presença e a dos sujeitos envolvidos em cada luta por mudanças.
Para termos o mundo mais justo e humano que queremos, eduquemos sempre para a
partilha e para a solidariedade!
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
POSSANI, Lourdes de tima Paschoaletto
Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
15 POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto; SANCHEZ, Wagner Lopes, Formação ecumênica e popular em rede:
projetos e vínculos solidários, in: POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto; SANCHEZ, Wagner Lopes (Orgs.),
Formação ecumênica e popular e feita em mutirão: Curso de Verão 25 anos, p. 447–448.
16 FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p. 37.
17 ROCHA, André, Educação ambiental e trabalho: água, agroecologia e tecnologias sociais, in: BEOZZO, José Oscar
(Org.), Educar para a um mundo social e racialmente justo, p. 116.
18 ARROYO, Miguel González, Resistências por vida justa: matrizes de formação humana, in: BEOZZO, José Oscar
(Org.), Educar para a um mundo social e racialmente justo, p. 17.
19 MADURO, Otto, Mapas para a festa: Reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento, p. 31.
20 FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p. 42.
89
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
ARROYO, Miguel González. Resistências por vida justa: matrizes de formação humana. In: BEOZZO,
José Oscar (Org.). Educar para a um mundo social e racialmente justo. São Paulo: Paulus, 2022.
CNBB. Campanha da Fraternidade 2022 - Texto-Base. Brasília: Edições Cnbb, 2021.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30a Ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2004.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MADURO, Otto. Mapas para a festa: Reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento.
Petrópolis: Vozes, 1994.
MARSIGLIA, IVAN. Contardo Calligaris. Trip, 2009. Disponível em: <https://
revistatrip.uol.com.br/trip/contardo-calligaris>. Acesso em: 17out.2022.
MONTEIRO, Aída; PINI, Francisca Rodrigues. A educação em direitos humanos e a função da
Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. In: BEOZZO, José Oscar (Org.). Educar para a
um mundo social e racialmente justo. São Paulo: Paulus, 2022.
POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto; SANCHEZ, Wagner Lopes. Formação ecumênica e
popular em rede: projetos e vínculos solidários. In: POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto;
SANCHEZ, Wagner Lopes (Orgs.). Formação ecumênica e popular e feita em mutirão: Curso de Verão
25 anos. São Paulo: Paulus, 2011.
ROCHA, André. Educação ambiental e trabalho: água, agroecologia e tecnologias sociais. In:
BEOZZO, José Oscar (Org.). Educar para a um mundo social e racialmente justo. São Paulo: Paulus, 2022.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 77-89, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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Educar para a partilha e para a solidariedade: Desafios atuais
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
A MISSÃO DA IGREJA NO BRASIL
JUNTO ÀS PERIFERIAS
uma reexão socioteológica
THE MISSION OF THE CHURCH IN
BRAZIL TO THE PERIPHERIES
a sociotheological reection
Ari Antônio dos Reis*
Anderson Pereira**
Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a missão da Igreja Católica
Romana junto às periferias e a necessidade da presença da Igreja nesses
locais. Nesse sentido, faz-se mister pensarmos uma metodologia pastoral
em consonância a uma Igreja que deve sair para as periferias, a fim de
reafirmar a sua missão evangelizadora. O processo geral de urbanização
influenciou o surgimento das periferias e a configuração social que esses
lugares foram assumindo com o passar do tempo. Este artigo expõe e
desenvolve esta temática a partir de embasamentos sociológicos e
geográficos sobre o tema da periferia, pautado em especialistas sobre o
assunto, como, por exemplo, o geógrafo Milton Santos e também a partir
das propostas teológicas e pastorais do Papa Francisco. Os temas principais
desenvolvidos neste artigo são: 1) Esclarecimentos conceitual e
etimológico do termo periferia; 2) A construção social das periferias; 3) A
periferia como lugar de ausências e presenças; 4) Por uma Igreja em saída
para as periferias. O presente texto parte de uma metodologia de estudo
que tem como principal fonte a análise bibliográfica, de natureza
hermenêutico-interpretativa, método bastante usual no campo teológico.
Constatar-se-á que, atualmente, com crescimento exponencial de regiões
periféricas, a Igreja não pode negligenciar esses espaços como “novos
areópagos”, isto é, lugares eclesiais, sociais e históricos privilegiados para o
anúncio do Evangelho.
Palavras-chave: Pastoral. Igreja. Periferia. Evangelização.
Abstract: This article aims to address the mission of the Roman Catholic
Church in the peripheries and the need for the Church's presence in these
places. In this sense, it is necessary to think about a pastoral methodology
in line with a Church that must go out to the peripheries in order to
rearm its evangelizing mission. The general process of urbanization has
influenced the emergence of the peripheries and the social configuration
that these places have assumed over time. This article exposes and
develops this theme based on sociological and geographical foundations
about the theme of the periphery, based on specialists on the subject, such
as the geographer Milton Santos, and also based on the theological and
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 90-106, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI
:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i134.127
* Mestre em Teologia Pastoral pela PUC/SP.
Professor da área de Teologia Pastoral e
Teologia da Revelação e professor do Curso
de Bacharelado em Teologia da Itepa
Faculdades de Passo Fundo - RS.
E-mail: reis.abt@gmail.com
https://orcid.org/0009-0000-2096-6193
* Mestrando em Teologia Dogmática pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP). Especialista em Sagradas
Escrituras pela Faculdade Claretiana e
Especialista em Ciências da Religião pela
Faculdade UnyLeya.
E-mail: pereira-anderson1@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9557-6026
Recebido em 05/10/2022
Aprovado em 01/02/2023
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
pastoral proposals of Pope Francis. The main themes developed in this
article are: 1) Conceptual and etymological clarifications of the term
periphery; 2) The social construction of the peripheries; 3) The periphery
as a place of absences and presences; 4) For a Church going forth to the
peripheries. The present text is based on a study methodology that has as
its main source the bibliographical analysis, of hermeneutic-interpretative
nature, a very usual method in the theological field. It will be noted that
today, with the exponential growth of peripheral regions, the Church
cannot neglect these spaces as “new areopaguses”, that is, privileged
ecclesial, social and historical places for the proclamation of the Gospel.
Keywords: Pastoral. Church. Periphery. Evangelization.
INTRODUÇÃO
A ação evangelizadora da Igreja do Brasil é enriquecida através
de experiências eclesiais múltiplas, que variam nas distintas regiões
do País. A própria Constituição Pastoral Gaudium et Spes tratou de
orientar a inculturação e a atenção aos “sinais dos tempos”, a partir
de cada realidade (GS 4). Ou seja, é necessário adaptar a linguagem e
ação pastoral às realidades locais. Por exemplo, a experiência
pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte na década de 1970/1980,
diante da alteração do cenário urbano, exigiu determinada
reorganização da ação pastoral. Certamente, a experiência da
Arquidiocese de São Paulo, com Dom Paulo Evaristo Arns (1921-
2016), na chamada “operação periferia”
1
, também na mesma década,
foi semelhante em alguns aspectos, mas muita distinta em outros.
Neste sentido, é impossível generalizar a experiência
missionária da Igreja Católica Romana do Brasil nas periferias das
grandes cidades. Nenhuma experiência eclesial é homogênea, assim
como não são homogêneas as periferias do Brasil. Assim, de modo
algum neste texto pretendemos generalizações, mas procuramos
relacionar alguns aspectos comuns a todas essas múltiplas realidades,
levando sempre em consideração suas especificidades, que são
impossíveis enumerá-las por completo.
O presente texto está dividido em quatro partes distintas e
interligadas. A primeira seção apresenta alguns esclarecimentos
conceitual e etimológico acerca do termo periferia. Em seguida, são
apresentadas algumas notas sobre o surgimento das periferias no
contexto de expansão das cidades, a fim de evidenciar as condições
espaciais e sociais a que estão submetidos os indivíduos que ocupam
estes espaços e questionar a complexidade que marca a vivência
nestes territórios.
O texto continua seu percurso refletindo sobre a compreensão
dos processos de construção da realidade periférica em suas
“ausências e presenças”. Em nosso entender, ausências pela
v. 40, n. 134, Passo Fundo,
p. 90-106, Jan./Jun./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
1 Sobre a operação periferia cf. OLIVEIRA, Cláudio de. Operação periferia: um estudo sobre
a operação periferia na Arquidiocese de São Paulo (1970-1980), perspectivas para a missão na
cidade. Dissertação de Mestrado; São Paulo: PFTNSA, 2008. Disponível em: http://
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=
116772.
92
negligência dos poderes públicos no atendimento às populações de periferia. Presenças,
pela coragem e criatividade das pessoas que se articulam em vista de melhores condições
de vida, fenômeno nem sempre acolhido nos tratados sobre o tema. Este binômio
ausências e presenças é um modo de análise apresentado por nós neste texto. Considera-
se ainda o significado e a relevância da realidade das periferias, as suas características e,
especialmente, a leitura de um espaço que, apesar das dificuldades, é também o lugar da
resistência e do fomento de diferentes formas alternativas de sobrevivência.
Por fim, o texto reflete sobre a necessidade da Igreja de estar em constante saída
missionária para descobrir a sua essência evangelizadora, como tem assegurado o Papa
Francisco, interpelando por uma “Igreja em saída”. Para tanto, propomos uma
metodologia do fazer pastoral, enumerando elementos que julgamos indispensáveis para
uma Pastoral Urbana com foco nas periferias das grandes cidades.
Sem desconsiderar milhares de homens e mulheres que moram nos centros urbanos
como também destinatários da missão evangelizadora da Igreja, optou-se por olhar com
especial atenção a população da periferia
2
. Como o assunto é de grande complexidade e
amplitude, além de exigir domínio sociológico e geográfico sobre o tema da periferia, é
preciso levar em consideração as limitações acerca desta reflexão. Não exploramos
minuciosamente o assunto, tampouco encerramos a questão, todavia lançamos um olhar
provocativo sobre esta realidade.
1 A PERIFERIA COMO CONCEITO
Em princípio, é interessante pensar na etimologia do termo periferia
3
. Dentre os
primeiros significados trazidos pelo dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, estão
aqueles que o relacionam com a geometria: “linha que determina o contorno de uma figura
curvilínea” e “linha que delimita qualquer corpo ou superfície
4
”. O conceito refere-se
àquilo que rodeia um determinado centro, como uma zona, um contorno ou um perímetro.
Periferia define-se como o arredor de algo tido como central e mais importante.
A partir
dessa conceituação, pode-se questionar: por definição, a periferia demarca uma linha que
divide as pessoas? O que há para além dessa linha? É possível transpô-la?
O referido dicionário traz outro significado revelador para análise, indicando o
sentido figurado em que a palavra pode ser empregada: “a parte não essencial ou
fundamental de um assunto em questão”
5
. Costuma-se dizer que, quando um assunto não
foi tratado de modo profundo ou não é interessante, trata-se de algo “periférico”. Portanto,
em sentido pejorativo, o que há para além dessa “linha” são as coisas “menos importantes”.
Ademais, este uso pejorativo na verdade expressa o modo como o poder blico
enxerga os bairros periféricos dentro da cidade, que, conforme também se verifica a partir
2 A abordagem sobre a cidade é sempre ampla porque uma cidade de porte grande ou médio tem várias áreas de
referência e influência e é passível de diversas formas de abordagem. No caso da missão evangelizadora é também
necessário precisar os interlocutores privilegiados em um projeto específico.
3 De acordo com a definição de Allan Johnson, a periferia urbana é definida nestes termos: “Descrita pela primeira vez
nos Estados Unidos em fins da década de 1980, a periferia urbana é um SUBÚRBIO que deixou para trás o padrão
histórico de servir principalmente como comunidade-dormitório de indivíduos que trabalham numa cidade. A
periferia urbana dispõe agora de uma base comercial e manufatureira própria não raro sob a forma de sede de
grandes empresas que concorre com o CENTRO URBANO, abandonado por muitas empresas, e frequentemente
acelera sua decadência. As periferias urbanas são completas: possuem parques industriais e prédios comerciais,
shopping centers e grandes hotéis e restaurantes”. In: JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da
linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p.301.
4 Periferia In: DICIONÁRIO Michaelis de ngua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso
em: 18/jun./2022.
5 DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em: 18/jun./
2022.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Antônio dos; PEREIRA, Anderson
A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
93
do verbete, é a “região distante do centro urbano, com pouca ou nenhuma estrutura e
serviços urbanos, onde vive a população de baixa renda”
6
. Em uma abordagem sociológica
urbana, indica o local onde moram os pobres afastados da cidade. Pode-se afirmar que:
O conceito de periferia foi forjado de uma leitura da cidade surgida de um
desenvolvimento urbano que se deu a partir dos anos 1980. Esse modelo de
desenvolvimento privou as faixas de menor renda de condições básicas de
urbanidade e de inserção efetiva à cidade. Essa talvez seja sua principal
característica, migrada de uma ideia geográfica, dos loteamentos distantes do
centro. Mas é preciso lembrar que a periferia é marcada muito mais pela
precariedade e pela falta de assistência e de recursos do que pela localização.
Hoje condomínios de alta renda em áreas periféricas que, claro, não podem
ser considerados da mesma forma que seu entorno, assim como periferias
em áreas nobres da cidade
7
.
De acordo com o autor Álvaro Domingues, enquanto agregado social, a periferia
define-se, “não pela densidade ou pela intensidade do inter-relacionamento interno ao
nível local, mas sim pela dependência, pela subalternidade face às áreas centrais e aos locais
de destino dos habitantes-pendulares”
8
. Tradicionalmente, o termo periferia tem sido
utilizado para designar uma área fora da cidade com características urbanas, construída
com uma lógica diferente daquela estabelecida séculos. A cidade concentra vários focos
de interesses, relações e núcleos diferenciados que permitem perceber a diversidade dentro
de um espaço geográfico não muito extenso. Uma cidade tem os espaços centrais
considerados núcleos de poder e, supostamente, dinamizadores da vida urbana. Comporta
também as regiões de periferia.
Em uma perspectiva geográfica, compreende-se a periferia como local afastado do
centro da cidade. Tal afastamento implica consequências em várias dimensões. Na
perspectiva sociológica são, geralmente, espaços marcados por grandes dificuldades,
justamente pelo afastamento do centro de influência e dos espaços de tomada de decisão.
Além de dificuldades como falta de digno acesso às condições mínimas de sobrevivência dos
moradores, inserção no mercado formal de trabalho e precário acesso às políticas públicas
9
.
A periferia é entendida não como locus da segregação imposta às classes pobres, mas
também da autossegregação de classes abastadas em fuga do núcleo metropolitano. De acordo
com essa concepção, “as periferias brasileiras estariam cada vez menos vinculadas a um
conteúdo específico de classe, existindo uma periferia pobre’ e cada vez mais, uma nova
periferia rica’, constituída por condomínios fechados, que estaria transformando e dualizando
a periferia tradicional”
10
. A periferia, portanto, se caracteriza pelos diversos afastamentos do
centro da cidade, a saber: territoriais, raciais, sociais, econômicos, simbólicos, dentre outros.
É este grau de afastamento a um centro que traz a ideia de uma posição periférica
11
.
6 DICIONÁRIO Michaelis de Língua Portuguesa. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/> Acesso em: 18/jun./
2022.
7 SGARIONI, Mariana; TONON, Rafael. O que é periferia? Entrevista com Raquel Rolnik. Disponível em: <https://
raquelrolnik.wordpress.com/2010/06/14/o-que-e-periferia-entrevista-para-a-edicao-de-junho-da-revista-
continuum-itau-cultural/> Acesso em: 18/jun./2022.
8 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.5.
9 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p. 21.
10 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p. 30.
11 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.5.
12 SANTOS, Milton. O espaço dividido, os dois circuitos da economia urbana nos países desenvolvidos, p.229.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.134, p. 90-106, Jan./Jun./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
REIS, Ari Antônio dos; PEREIRA, Anderson
A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
94
Em termos geográficos, a periferia não será definida pela distância física entre
um polo e as zonas tributárias, mas antes em termos de acessibilidade. Esta
depende essencialmente da existência de vias de transporte e da possibilidade
efetiva de sua utilização pelos indivíduos, com o objetivo de satisfazer
necessidades reais ou sentidas como tais. Mas a incapacidade de acesso a bens e
serviços é, em si mesma, um dado suficiente para repelir o indivíduo e também,
afirma, a uma situação periférica
12
.
Desse modo, muitas vezes a periferia é vista como “o lugar da exclusão, da
marginalidade e da segregação sociais, da anomia, da ausência de uma noção de pertença a
um lugar, do déficit de cidadania, etc”
13
. Os espaços periféricos são construídos como
frutos de uma segregação produzida pelo capitalismo excludente. O que se vê nas periferias
são “aglomerados de casas autoconstruídas, localizadas em espaços distantes dos recursos
econômicos e das decisões políticas”
14
.
Concordamos que a cidade está cada vez mais em uma encruzilhada, fruto da sua
estruturação ao longo dos anos, respeitando a lógica capitalista que acentua o mercado em
detrimento da vida digna da população
15
. De um lado, os grandes condomínios fechados,
com excelente infraestrutura, localizados longe do centro urbano (em nosso entender,
“guetos de isolamento”). Do outro lado, a periferia compreendida como o lugar de
ausências ou carências. Neste caso, a periferia define-se como o lugar com grande déficit de
cidadania no que tange às necessidades básicas do ser humano
16
.
Agora, é fundamental temporalizar o processo pelo qual o processo de urbanização
foi produzido no Brasil, quais dinâmicas e agentes impulsionaram-na e a construíram,
com o intuito de circunscrever o surgimento das periferias no tempo e no espaço.
2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS PERIFERIAS NO BRASIL
As periferias no Brasil são resultado de um processo de construção social complexo e
influenciado por fatores políticos, econômicos e culturais. A partir da década de 1950,
houve um aumento da migração de pessoas das regiões rurais para as grandes cidades,
onde ocorreu a expansão da construção de conjuntos habitacionais para abrigar a
população em crescimento. Essas áreas, geralmente localizadas nas bordas das cidades, são
caracterizadas por falta de infraestrutura, serviços públicos insuficientes e elevados índices
de pobreza e violência
.
Em resumo, o processo de construção social das periferias no Brasil é resultado da
combinação de fatores históricos, econômicos e políticos, que levaram a uma concentração
de desvantagens sociais nas regiões periféricas das grandes cidades. Para entender a
construção social das periferias no Brasil precisa-se recorrer ao processo de urbanização
que abrange muitas dimensões da vida cotidiana e até extrapola o espaço geográfico de
uma cidade, assumindo-se como referência também do mundo rural.
13 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.7.
14 GUIMARÃES, Leandro da Silva. O modelo de urbanização brasileiro, notas gerais. GeoTextos, Salvador, vol.12, n.1,
julho 2016, p.20.
15 SEIXAS, João. A cidade na encruzilhada. Repensar a cidade e a sua política, p.49. A expressão “cidade na encruzilhada” é
estruturada por um modelo analítico composto por três eixos: a cidade como lugar de relação e das relações; a cidade
como espaço e território; a procura de perspectivas integradas e sistêmicas sobre a cidade.
16 DOMINGUES, Álvaro. (Sub)úrbios e (sub)urbanos - o mal-estar da periferia ou a mistificação dos conceitos? Revista
da Faculdade de Letras - Geografia. I Série, v. X/XI, Porto, 1994/5, p.7.
Revista Teopráxis,
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A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
95
Destaque-se que atualmente a cultura dominante é a cultura urbana e a
distinção rural-urbano tem realmente uma dimensão geográfica, pois,
sociologicamente, a cultura urbana se impôs como um rolo compressor
empurrando para a periferia a rural, e tornou-se de tal maneira hegemônica que
predomina uma única mensagem: a urbana. O efeito de demonstração exercido
através da mídia, a partir do controle absoluto do urbano, se tornou
absolutamente dominante
17
.
A urbanização é um fenômeno mundial irreversível. Foi constituída a partir da
Idade Moderna, nos séculos XVII e XVIII, com o deslocamento da importância econômica
das atividades agrícolas para as atividades industriais, passando antes pela atividade mercantil
(comércio). O geógrafo Milton Santos afirma que “o fenômeno da urbanização moderna
nos países industrializados acompanhou a Revolução Industrial”
18
. Antes da Revolução
Industrial (séc. XVIII), menos de 10% da população europeia vivia nas cidades. A necessidade
de mão-de-obra para a Indústria emergente provocou o deslocamento do homem
do campo
para as áreas urbanas. No Brasil, assim como na América Latina, se comparado com o
continente Europeu, o processo foi tardio (século XX), contudo mais intenso e profundo.
Assim como nas demais partes do mundo, a urbanização no Brasil também teve
seu período mais acelerado na segunda metade do século passado. Deve-se
destacar, contudo que entre 1940 e 1970 a população urbana mais do que
dobrou seu volume, e em apenas 40 anos (1940-1980) uma inversão da
situação: a taxa de população urbana que era de um terço passa a dois terços,
acontecendo o inverso com a população rural
19
.
A explosão da urbanização, intensa na segunda metade do século XX, implicou em
um redimensionamento das cidades. É o que afirma o texto a seguir:
Durante o século XX, a sociedade brasileira passou por três acelerados
processos de transformação que produziram as cidades atuais: a industrialização
da economia; a explosão demográfica decorrente da queda das taxas de
mortalidade e a urbanização da população, que migrou em massa do campo para
as cidades em busca de melhores oportunidades de vida
20
.
O processo de urbanização brasileiro deu-se, praticamente, no século XX. O Brasil
deixa o século XIX com aproximadamente 10% da população nas cidades
21
. Milton Santos
aponta que no Brasil as cidades cresceram como “flor exótica”, sendo sua evolução atrelada
aos fatores políticos e econômicos
22
. A partir dos anos de 1980, as periferias crescem mais
do que os núcleos ou municípios centrais nas metrópoles
23
. Hoje, nas grandes metrópoles,
as periferias crescem mais do que os bairros ricos (IBGE/2010).
A condição de morador do meio urbano exige uma renda e um local para se viver.
Conforme afirma o teólogo João Batista Libânio, quem vive na cidade necessita de
moradia: ter um barraco próprio, independente do mundo do trabalho, constitui fonte de
orgulho e de autonomia
24
. Contudo, esta é uma condição difícil pelo fato da cidade estar
imersa em uma rede ampla de interesses marcados pelas disputas de mercado, sobretudo o
imobiliário, o que afeta sobretudo os mais pobres.
17 ROSSATO, Ricardo. O Fenômeno da Urbanização: a passagem de Civilização. Palestra realizada no Congresso Teológico
da ITEPA Faculdades, 10 de maio de 2011, Passo Fundo (RS).
18 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p.15.
19 SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção, p.15.
20 CASA VOGUE. Como surgiram as favelas no Brasil. Disponível em: <https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/
noticia/2018/10/como-surgiram-favelas-no-brasil.html> Acesso em: 18/jun./2022.
21 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.30.
22 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.30.
23 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira, p.41.
24 LIBÂNIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, p.33.
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A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
96
Segundo Libânio, “a tendência é ir empurrando e escorraçando as classes mais
pobres para lugares de pior qualidade de vida e distantes, obrigando os trabalhadores a
submeter-se a longos itinerários em meios de transporte deficientes e penosos
25
”. O
território da cidade passou a ser também fruto da especulação capitalista. Mesmo sendo a
moradia um direito, pesa antes a dimensão mercadológica. Isto permitiu a precarização da
vida na cidade, começando pela moradia.
Neste contexto socioeconômico surgiram as cidades atuais e pessoas que não
tinham renda suficiente para pagar o aluguel de imóveis do mercado formal
registrados e licenciados trataram de produzir para si mesmas a habitação de
que necessitavam. Construíram suas casas em loteamentos irregulares,
comprando lotes sem registro de grileiros, ou ocupando terrenos inadequados
como planícies alagáveis e encostas íngremes, principalmente nas periferias da
cidade formal, em regiões desprovidas da infraestrutura e dos serviços
necessários para caracterizar uma cidade: ruas e calçadas, energia elétrica,
abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, varrição, policiamento,
transporte público, equipamentos de educação, saúde e lazer
26
.
Morar na cidade tem um custo alto devido à necessidade, além da moradia, de
alimentação, transporte, educação, entre outros. São condições de sobrevivência fundamentais.
Nos últimos dois anos, agravada pela pandemia da Covid 19, tem chamado atenção a
realidade de fome nas diferentes regiões do Brasil. Parece-nos que na cidade o problema é
mais grave, porque, diferente do meio rural onde se pode extrair o alimento a partir do
cultivo da terra, na cidade se adquire o alimento, quase sempre, mediante a compra dele.
Para o trabalhador, desempregado ou com baixa renda, os fatores de “peso no orçamento”,
tais como moradia, alimentação, vestuário,o somados, o que acarreta a dificuldade de viver
bem na cidade. Em suma, antes de priorizar o ser humano a cidade prioriza o mercado.
Assim foram se constituindo as periferias e favelas no Brasil. Aparentemente foram
os espaços sobrantes, sem valor de mercado pela ausência dos aparelhos urbanos
27
que
facilitariam a vida das pessoas. Essa lógica é tão perversa que, quando chegam os aparelhos
urbanos, os custos de vida no local inflacionam, impedindo uma parte das pessoas de
continuarem morando ali. Estas se deslocam para outros lugares, muitas vezes em
condições de vida tão adversas ou piores em relação ao lugar que viviam. A existência da
periferia, das favelas e dos cortiços tem a ver com um processo de urbanização acelerado,
normalmente visto como entrelaçado à modernização. Entretanto, o processo avançou
privilegiando o mercado e reforçando o histórico de desigualdade marcante no Brasil.
Segundo Ermínia Maricato, urbanização/modernização é apenas para alguns, assim como
a cidadania e o direito
28
.
3 A PERIFERIA COMO LUGAR D E AUSÊNCIAS E PRESENÇAS
Na literatura urbana, o uso do termo periferia foi identificado com o termo ausência,
pois se refere às condições urbanas de marginalidade, subequipamento e subnormalidade.
Neste sentido, o uso da palavra periferia não se apenas para designar os espaços externos
à cidade em termos de distância, mas é também utilizada para determinar aqueles espaços
com características de desordem, degradação e baixa qualidade de vida urbana.
25 LIBÂNIO J.B., As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé, p.34.
26 CASA VOGUE. Como surgiram as favelas no Brasil. Disponível em: <https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/
noticia/2018/10/como-surgiram-favelas-no-brasil.html> Acesso em: 18/jun./2022.
27 Por aparelhos urbanos compreende-se as condições de infraestrutura que favorecem a vida dos cidadãos nos locais
onde moram: acesso à educação, áreas de lazer, tratamento de saúde, transporte público.
28 Cf. MARICATO, Ermínia. Urbanização brasileira: conhecer para resolver a cidade ilegal. In: CASTRIOTA, Leonardo
Basci (org.). Urbanização Brasileira – Redescobertas, p.78-96.
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Contudo, um olhar menos profundo levaria a ver a periferia, pelas condições
históricas da sua constituição, como um lugar apenas de ausências ou carências. Existe
uma dialética que deve ser percebida nesse contexto. Na periferia, ausência e presença
andam juntas. A negligência dos poderes públicos em proporcionar condições de vida
digna aos habitantes da periferia, fator gerador das ausências ou carências, provoca outras
iniciativas. São as presenças que são erigidas como caminho de sobrevivência.
Esta “presença” consiste em busca de alternativas construídas individualmente ou
coletivamente, em vista da melhoria das condições de vida das pessoas. Ressaltamos que
esta percepção nem sempre é acolhida ou valorizada como alternativas viáveis, contudo
existem e têm se fortalecido. O Documento de Estudos 109, da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), publicado em 2016, intitulado o solo urbano e a urgência da paz,
reconhece estas iniciativas, sobretudo no tocante à conquista da moradia, fundamental
para que se viva com dignidade em território urbano
29
.
Estas iniciativas e outras de origem popular se traduzem em uma forma de
participação política. Estão em sintonia com a reflexão do teólogo José Comblin sobre a
autonomia e participação. No caso, estes valores experimentados pelas populações da
periferia. Assim afirma este autor: “A participação na vida pública deve ser feita, em
primeiro lugar, em escala mais baixa, a da unidade de vizinhança, depois a nível de bairro,
subindo assim progressivamente para a cidade”
30
.
A formação para o exercício de atividades cooperativas tem ampliado este potencial,
porque imprime outras possibilidades para esta parcela da população. Cita-se, por
exemplo, cooperativas de habitação, as articulações em vista do acesso ao trabalho, creches
comunitárias, entre outras. Assim, as ausências ou carências que tenderiam a tornar mais
difícil a vida das pessoas é respondida por algumas iniciativas, aqui denominadas
“presenças”, e se efetivam pela capacidade de articulação da população periférica.
A ideia de ausência sustentou a necessidade de ressignificá-la como presença. A esta
posição acrescenta-se outro fator: a importância do lugar, o valor do contexto, não para
descobrir a relação entre a situação e as construções de um determinado espaço, mas
também com o propósito de buscar a identidade perdida no rápido processo de expansão.
A periferia como forma de presença também é o lugar da resistência. Resistir é uma
característica necessária aos pobres. O caminho é resistir ou sucumbir à invisibilidade
social. É costume no Brasil olhar os pobres como problema de segurança pública, jamais
como sujeitos de direitos e interlocutores em políticas públicas, com objetivo de superação
da miséria e pobreza. Nestas condições, o ato de viver para os moradores da periferia é um
desafio constante e, para tanto, é necessário resistir às tantas situações de ameaça à vida,
caracterizadas como vulnerabilidade social, fruto da grande desigualdade social:
desemprego, fome, miséria, violência, tráfico de drogas etc.
A Teologia, com a responsabilidade de responder a essas questões, também interpela a
humanidade em outra direção. O Papa Francisco, neste sentido, abre uma porta para perceber
que também em meio aos pobres das periferias sujeitos e interlocutores da missão. Exemplo
foi o desafio lançado aos participantes dos movimentos populares na Bolívia, em 2015:
Que posso fazer eu, recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador,
frente a tantos problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão,
vendedor ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer
direitos laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que
dificilmente consigo resistir à propagação das grandes
corporações? Que posso
29 Cf. CNBB. O solo urbano e a urgência da paz, (Estudo 109).
30 COMBLIN, José. Teologia da cidade, p.184.
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A missão da Igreja no Brasil junto às periferias: uma reflexão socioteogica
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fazer eu, a partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da
minha favela, quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode
fazer aquele estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que
atravessa as favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase
sem nenhuma solução para os seus problemas? Podem fazer muito. Vós, os mais
humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me
a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na
vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca
diária dos três “T” entendido? (trabalho, teto, terra), e também na vossa
participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças
nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!
31
.
As resistências surgem com maior ou menor grau de articulação e
institucionalização. São iniciativas importantes porque tornam a vida na periferia menos
pesada e ameaçada. Por exemplo, no campo da segurança, o vizinho se torna guardião da
casa do outro vizinho diante da possibilidade de roubos. Se as pessoas abastadas e com boa
renda têm sistemas de segurança sofisticados, os vizinhos solidariamente assumem esta
responsabilidade. Também é comum o “emprestar algo”, seja alimento, utensílio doméstico ou
de higiene pessoal para o outro que no momento não tem, com a promessa da devolução.
A resistência está ligada à resiliência, que significa a capacidade constante de
adaptação e refazer-se diante de situações adversas. Na periferia, teima-se em viver e para
tanto resiste-se a cada dia como um curso d’água que não para no primeiro obstáculo, mas,
contornando-o ou enfrentando-o, continua seu caminho. Resistir e refazer-se é preciso.
Aprender a reinventar-se!
Ademais, não podemos deixar de recordar outra forma de presença daqueles que
moram nas periferias e em outros espaços alternativos: a festa. Às vezes, pessoas marcadas
pela racionalidade instrumental, não compreendem o sentido da festa. Ela é necessária aos
pobres como um pilar da resistência. Faz-se festa com muito e com o pouco (feijoada,
galinhada, carreteiro e outros pratos “menos nobres”). O importante é o encontro e a
confraternização. É o “banquete” necessário para sorrir, beber, conversar, dançar e confraternizar
com os irmãos. É um canal de resistência que também permite certa leveza à vida.
Jean Vanier, em seu livro Comunidade: lugar do perdão e da festa, afirma que é nas coisas
ordinárias no dia a dia que o extraordinário acontece, que o amor é revelado. Ele escreve:
“Cozinhar e lavar o chão pode tornar-se um modo de manifestar amor aos outros. Se olhar o
trabalho material mais humilde deste modo, tudo se tornará dom e meio de comunhão, tudo
se tornará festa, pois é uma festa poder dar
32
”. A festa acontece nas pequenas coisas.
Tomando a expressão de Jean Vanier, é preciso ver as comunidades cristãs em
periferia como um “lugar de perdão e festa”, sabendo que “a Eucaristia é a festa
comunitária por excelência, é a celebração, pois nos faz reviver o mistério de Jesus que
sua vida por nós
33
”, levando em conta que nem toda a periferia consideraria a Eucaristia
como “a festa por excelência”. A festa para celebrar a vida, a fé, as alegrias, esperanças,
acontecimentos e conquistas da comunidade e onde sabemos pedir perdão. Desse modo, “a
comunidade torna-se o lugar de libertação e do crescimento
34
”.
A periferia, enquanto lugar teológico de ausências e presenças, com suas resistências
e alternativas, deve ser encarada como espaço onde os pobres, interlocutores privilegiados
da ação evangelizadora, precisam ser vistos e reconhecidos como tais.
31 PAPA FRANCISCO. Participação ao II encontro mundial dos movimentos populares (5-13 de julho de 2015). Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-
movimenti-popolari.html>. Acesso em: 18/jun./2022.
32 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.345.
33 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.232.
34 VANIER, Jean. Comunidade lugar do perdão e da festa, p.45.
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4 POR UMA IGREJA E M SAÍDA PARA AS PERIFERIAS
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes brilhantemente assegurou: “as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles
que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo” (GS 1). Por sua vez, a reflexão dos Bispos na Conferência de Aparecida, em 2007, assevera
que “a vida nova de Jesus Cristo atinge o ser humano inteiro e desenvolve em plenitude a existência
humana ‘em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural’” (DAp 236).
De fato, “a Igreja existe para evangelizar” (EN 14). Sua missão é estar junto às pessoas.
A atividade evangelizadora não conhece fronteiras, tampouco limites espaciais. Uma Igreja
autorreferencial que se preocupa somente em salvaguardar a si mesma está longe de cumprir
sua missão. Hoje, com o crescimento de megalópoles habitacionais, evangelizar no mundo
urbano tornou-se um grande desafio. Uma Pastoral Urbana que foca somente no centro do
espaço urbano é limitada no seu processo evangelizador. É preciso ir além, até às periferias.
Em muitos causou impacto o pedido do Papa Francisco, explicitado na Exortação
Evangelii Gaudium, para que a Igreja saísse da comodidade para evangelizar. Disse:
“saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo!” (EG 49). O encontro da
Igreja com o povo da periferia é uma oferta e também a possibilidade do enriquecimento
da Igreja enquanto discípula de Jesus Cristo. O ato de sair implica em encontrar a sua
essência evangelizadora. Lembremos aqui o pedido feito pelo mestre Jesus aos discípulos
quando os enviou em missão a não levarem nada que possa retardar ou atrapalhar o que é
prioritário em seu serviço (cf. Mt 10,7-15).
As periferias, apesar dos muros visíveis e invisíveis, estão inseridas no meio urbano
e devem ser reconhecidas como um lugar de anúncio do Evangelho. A Igreja em saída,
proposta pelo Papa Francisco, tem sua razão de ser no Deus-Trindade, que é fonte de amor
sempre em saída de Si para o outro: “Na Palavra de Deus, aparece constantemente este
dinamismo de ‘saída’, que Deus quer provocar nos crentes [...]. Naquele ‘ide’ de Jesus, estão
presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e
hoje todos somos chamados a esta nova ‘saída’ missionária” (EG 20).
A “Igreja em saída” pode tomar rias direções. Entendemos que a periferia seja uma
delas e hoje, pelo número de pessoas que ali se abrigam, é um território importante na
missão evangelizadora da Igreja. No encontro com a população de periferia faz-se
necessário relativizar algumas realidades que poderiam atrapalhar a missão. Nesse sentido,
faz-se mister pensarmos uma metodologia pastoral em consonância a uma Igreja que deve
sair para as periferias, a fim de reafirmar a sua essência evangelizadora.
A respeito dos métodos da ação pastoral, Agenor Brighenti afirma:
O método, como pedagogia em contexto, para ser um instrumento útil, precisa
sempre ser recriado segundo as condições do meio em que vai ser utilizado.
Insistimos em que métodos não se transplantam, mas criam e recriam. Ao
transplantá-lo, pomos o processo em função dele. Ao recriá-lo, estamos pondo-
o a serviço da ação evangelizadora, que tem nas pessoas suas protagonistas.
Quando não retrabalhado, o método cai sobre a ação como uma camisa de
força, tolhendo a originalidade e a criatividade. Ao ser trabalhado, torna-se um
instrumento canalizador das aspirações de toda uma comunidade de fé
35
.
Desse modo, a ação pastoral da Igreja em contexto urbano deve ser entendida dentro
de sua perspectiva teológica e metodológica. Assim, o compromisso de saída para
evangelizar compreenderá alguns critérios:
35 BRIGHENTI, Agenor. Reconstruindo a esperança: como planejar a ação da Igreja em tempos de mudança, p.102.
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4.1 Conhecer a realidade da periferia
A realidade da periferia tem sido objeto de estudos das diferentes áreas do
conhecimento. Na perspectiva epistemológica é um tema relevante. É importante que a
Igreja se faça mais próxima desta realidade, inclusive dialogando com as diferentes áreas de
conhecimento que têm um compromisso ético de problematizar a periferia. Segundo
Tarcísio Loro, “do ponto de vista metodológico, o conhecimento da cidade não pode
dispensar o auxílio das ciências urbanas, antropológicas, sociológicas e teológicas, nem a
experiência acumulada do pastor junto ao povo”
36
. A proximidade com os pobres é salutar
para que a Igreja viva o seu compromisso evangelizador para com os mais necessitados.
Conhecer a realidade significa não somente adquirir conteúdo acadêmico. O
conhecimento deve ser basicamente vivencial. Proximidade desta realidade. Para tanto, é
necessário ali “armar a tenda ou o hospital de campanha”, no dizer do Papa Francisco, para
exercitar a troca de dons. Possivelmente o conhecimento da realidade da periferia vai
contribuir com a diminuição dos preconceitos ou leituras equivocadas, que normalmente
permeiam nossas concepções. É também a oportunidade de exercer com mais propriedade
o compromisso evangelizador a partir do compromisso de ser uma Igreja em saída (G 49).
É preciso gastar tempo:
A eficácia da pastoral urbana, necessária e urgente, não pode matar e sufocar a
graça de Deus, que vem e vai de graça. pode haver verdadeira revolução na
periferia, se houver contemplação, ação de graças, tempo “perdido” com os
outros em troca de nada, ou melhor, dado por amor aos outros. Temos que
aprender do povo, da religião popular, especialmente do povo negro, que não
há tempo se há festa
37
.
O Papa Francisco, no início de seu pontificado, se identificou como alguém “vindo
da periferia do mundo”. Isto é bastante significativo, pois se apresentar através da
expressão “periferia do mundo” ou “quase do fim do mundo”, mostra o deslocamento do
centro para a periferia, programa de seu ministério. Mostra alguém que conhece bem a
realidade da periferia. Em seu livro, com coautoria do rabino Abraham Skorka, intitulado
Sobre o céu e a terra, afirma: “No cristianismo, a atitude diante da pobreza e do pobre é,
essencialmente, de real compromisso. E acrescento algo mais: esse compromisso tem que
ser corpo a corpo
38
.
4.2 Fazer opção pela população da periferia
Optar significa escolher entre tantas possibilidades. É uma atitude de liberdade que se
traduz no compromisso pela escolha feita. A busca do conhecimento da realidade da periferia
já indica uma tendência, dentre outros possíveis caminhos. Trata-se de opção pelo fato de um
trabalho no meio urbano oferecer inúmeras possibilidades. Não se deve pensar como único
critério de trabalho da Pastoral Urbana marcar presença apenas no centro na cidade junto aos
abastados, negligenciando os excluídos da sociedade, que em sua maioria moram nas
periferias. É muito cômodo trabalhar apenas com os “incluídos”. Nesse contexto, Comblin
afirma que a Pastoral Urbana pode assumir uma postura passiva, se estabelecendo dentro das
estruturas pastorais já definidas e esperando que as pessoas venham ao seu encontro
39
.
36 LORO, Tarcísio Justino. Perspectivas para a pastoral urbana, p.112.
37 ALTEMEYER JR, Fernando. Pastoral da Periferia. Disponível em: <https://www.vidapastoral.com.br/artigos/temas-
pastorais/pastoral-da-periferia/>. Acesso em: 16/dez./2022.
38 BERGOGLIO, Jorge; SKORKA, Abraham. Sobre o céu e a terra, p.135.
39 COMBLIN, José. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização, p.18s.
Revista Teopráxis,
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No entanto, a fidelidade a Jesus Cristo implica em não olhar tanto para o centro, mas
para a margem, como afirmou o arcebispo de saudosa memória, Dom José Maria Pires:
“todavia, uma preocupação comum que parece emergir a cada passo da caminhada: é a
consciência de que a Igreja tem que anunciar um novo êxodo, uma saída do centro para as
margens e, por coerência, ela própria tem que fazer esse movimento”
40
. Tal opção
encontra referência na ação de Deus que ouviu o clamor do seu povo e desceu para libertá-
lo (cf. Ex 3,7) e em Jesus Cristo, aquele que não se apegou à condição divina, mas se fez
homem e servo para nos salvar (cf. Fl 2,6). Como afirma Leonardo Bo, as questões da
periferia “representavam e continuam representando ainda um imenso desafio à missão
evangelizadora das Igrejas”
41
.
A opção pela periferia como lugar do anúncio do Evangelho e do testemunho de
uma solidária ajuda a Igreja a dar concretude à opção preferencial pelos pobres,
intrínseca à cristã, segundo o Papa Bento XVI
42
. Esta opção, apesar de alguns reveses,
tem um vasto lastro de sustentação teórica, sobretudo na reflexão teológica latino-
americana e caribenha. Cabe ganhar corpo na ação eclesial fazendo verdadeiramente práxis.
4.3 Ver a periferia como lugar teológico e pastoral
O conhecimento da periferia, de acento metodológico, é sustentado pela
compreensão de que a periferia é um lugar teológico, o lugar da revelação de Deus. Deus,
que habita a cidade nas suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio às suas
dores e sofrimentos (DAp 513). A realidade urbana não está rompida com Deus. Ele está ali
disposto ao diálogo e a uma relação de amor. É necessário contemplar o Deus da vida no
meio urbano, como também na periferia, e não deixar de anunciar o Evangelho de Jesus
Cristo neste espaço de vida. É lugar teológico pela experiência de Deus que é possível ali
fazer. Certamente uma experiência transformadora e de forte acento na conversão.
OPapa Franciscodesde o primeiro momento como sucessor de Pedro, ressalta
a importância de irmos ao encontro das periferias físicas e existências, tal
missão é algo intrínseco ao cristianismo e como tal deve ser vivido. Por meio
doMistério da Encarnação, o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (cf. João
1,14) em uma realidade periférica, longe do luxo e da ostentação palaciana.
Transitar pelas periferias faz parte da tradição da Igreja desde as suas origens,
como verificamos nos tempos da igreja primitiva quando a sua sobrevivência
esteve ligada diretamente à clandestinidade, considerando a perseguição
estatalnos primeiros séculos da Igreja
43
.
É também lugar pastoral pelo compromisso de marcar presença solidária junto com a
população periférica, justamente aqueles muitas vezes invisíveis à sociedade, ou
considerados descartáveis em um mundo marcado pela espiritualidade neoliberal (EG 53).
Para Comblin, “em lugar de pensar na paróquia, de enxergar a paróquia, de buscar soluções
para a paróquia, é preciso conhecer, enxergar, estudar, penetrar a própria cidade e os seus
habitantes”
44
. É um processo árduo e difícil, que exigirá uma série de desconstruções
teóricas e práticas. Entretanto, é um processo necessário. Os templos asseados e bem
ventilados das áreas abastadas continuam exercendo grande atrativo. Gasta-se muita energia
40 PIRES, Dom José Maria. Do centro para a margem, p.11.
41 BOFF, Leonardo; BOFF, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação, p.113.
42 BENTO XVI, Papa. Discurso inaugural da Conferência de Aparecida.
43 INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Ir ao encontro das periferias, um desafio da Igreja na contemporaneidade.
Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/categorias/595478-ir-ao-encontro-das-periferias-um-desafio-da-
igreja-na-contemporaneidade>. Acesso em 17/dez./2022.
44 COMBLIN, José. Pastoral urbana: o dinamismo na evangelização, p.7.
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no sustento e cuidado desses espaços exercitando um modo de evangelização centrípeto
.
Gasta-se tempo e energia também em atividades que muito tempo deixaram de ser
evangelizadoras, mas de manutenção de um statu quo rompido com os valores do Reino.
Urge a ousadia de dar um passo a mais e buscar metodologias de proximidade
evangelizadora com as áreas periféricas. Como o centro das atividades é a Paróquia, é
possível que este processo extrapole o âmbito paroquial e exija uma articulação mais ampla
em termos de formação metodológica para marcar presença nos espaços de periferia sem
desconhecer que ali já existe muita ação articulada.
4.4Consciência do papel evangelizador
O foco da ação eclesial na periferia é evangelizar. “A Igreja existe para
evangelizar” (EN 14). Ao fazer isso sustentaa fidelidade a Jesus Cristo, tradição desde os
primeiros cristãos. Em resposta ao Sínodo para a Evangelização (1974), o Papa Paulo VI
publicou a Exortação Evangelii Nuntiandi, sobre a Evangelização no mundo
contemporâneo. Na introdução afirma: “O empenho em anunciar o Evangelho aos homens
do nosso tempo, animados pela esperança, mas ao mesmo tempo torturados muitas vezes
pelo medo e pela angústia, é sem dúvida alguma um serviço prestado à comunidade dos
cristãos, bem como a toda a humanidade” (EN 1).
Sintonizada com a opção fundante de estar na periferia, a tarefa primordial da Igreja
nesse lugar é anunciar o Evangelho, como afirma Paulo VI: “Evangelizar, para a Igreja, é
levar a Boa Nova a todas as parcelas da humanidade, em qualquer meio e latitude, e pelo
seu influxo transformá-las a partir de dentro e tornar nova a própria humanidade: ‘Eis que
faço novas todas as coisas’” (EN 18). É uma tarefa da qual a Igreja não pode abdicar e, ao
fazer isso, está dando para aquelas pessoas algo valioso, que é sua própria essência.
Responderá ao desafio de superar o abandono religioso, ao qual muitas vezes os pobres são
submetidos, como denuncia o Papa Francisco:
Dado que esta Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo
afirmar, com mágoa, que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de
cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à
fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua
amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta
dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial
pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa
privilegiada e prioritária (EG 200).
A tarefa da Igreja é também “fazer-se Boa Nova”, como fez Jesus diante dos pobres
da Palestina. Seus ensinamentos e atitudes causavam uma grata surpresa àquela gente
sofrida, a ponto de exclamarem: “Ele tem feito bem todas as coisas” (Mc 7,31), ou então,
“Deus visitou o seu povo” (Lc 6,15). A presença da Igreja na periferia, com o compromisso
evangelizador, pode ser uma “Boa Notícia” para aquela população, pelas consequências
dessa atitude certamente alvissareiras para eles e para a própria Igreja.
4.5 Assumir prioridades na missão evangelizadora
A Evangelização, a partir do que é a sua essência, abre para várias dimensões. Na
periferia convém ter o cuidado sobre o que é prioritário. Leva-se em conta o pedido de
Jesus aos discípulos, a simplicidade das pombas e prudência das serpentes (Mt 10,16). A
partir daí decorrem algumas atitudes, as quais descrevemos: pedagogia da presença;
capacidade de escuta mais do que explicitar pontos de vista; marcar presença nos
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momentos marcantes do lugar; inspirar confiança não para tirar proveito, mas
verdadeiramente para ajudar e ser referência do bem para os irmãos ali presentes.
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2019-2023)
assumiram como prioridade o desafio de “evangelizar no Brasil cada vez mais urbano, pelo
anúncio da Palavra de Deus, formando discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em
Comunidades Eclesiais Missionárias, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres,
cuidando da Casa Comum e testemunhando o Reino de Deus rumo à plenitude”
45.
A
prioridade, portanto, é evangelizar no Brasil cada vez mais urbano. Destarte, isto significa
que a Evangelização nas cidades deve assumir também como prioridade o cuidado com a
vida na periferia.
A Conferência de Aparecida (2007) recomendou uma nova pastoral urbana, que
ofereça atenção especial ao mundo do sofrimento urbano, sobretudo com os habitantes das
novas periferias. Recomendou, ainda, “viva presença da Igreja, por meio de novas
Paróquias e Capelas, Comunidades cristãs e Centros de Pastoral, nas novas concentrações
humanas que crescem aceleradamente nas periferias urbanas das grandes cidades, devido
às migrações internas e situações de exclusão”
46
.
4.6 Compreender que evangelizar é também servir
O Papa Francisco afirma que “Deus quer servir-se de nós para chegar cada vez mais
perto do seu povo amado” (EG 268). A missão evangelizadora tem profundamente uma
missão de diaconia, de serviço. O Pontífice, na Missa de envio da Jornada Mundial da
Juventude Rio-2013, resumiu em três palavras o método pastoral do verdadeiro discípulo
missionário: “ide, sem medo, para servir”. Afirma: “Para onde Jesus nos manda? Não
fronteiras, não limites: envia-nos para todas as pessoas. O Evangelho é para todos, e
não apenas para alguns. Não é apenas para aqueles que parecem a nós mais próximos, mais
abertos, mais acolhedores. É para todas as pessoas”
47
. Portanto, o ato de evangelizar
promove a cultura do encontro com todas as pessoas.
No segundo elemento, Papa Francisco afirma: “Não tenham medo! Quando vamos
anunciar Cristo, Ele mesmo vai à nossa frente e nos guia”
48
. Aqui reside a certeza de que o
Senhor vai à nossa frente e quando chegarmos lá, Ele estava presente no meio do povo,
em meio às suas dores e alegrias. Não devemos ter medo de percorrer todo tipo de
periferias, geográficas e existenciais. E continua em outro discurso:
Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo missionário não é uma
posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias...
incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No anúncio
evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente,
temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um “descentrado”: o
centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as
periferias existenciais
49
.
45 CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023.
46 DAp 517, letra J; K. O mero 518 do Documento oferece ricas pistas para os agentes de pastoral desenvolvam seu
trabalho perante os habitantes das periferias.
47 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude. Disponível em: <https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130728_celebrazione-xxviii-
gmg.html>. Acesso em 20/jun./2022.
48 Idem.
49 FRANCISCO, Papa. Discurso aos Bispos responsáveis do CELAM na Jornada Mundial da Juventude. Disponível em:
<https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130728_gmg-
celam-rio.html>. Acesso em 20/jun./2022.
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A respeito das periferias existenciais, o Papa Francisco afirma que, muitas vezes,
“estão frequentemente cheias de solidão, tristeza, feridas interiores e perda do gosto pela
vida”
50
. O Papa Francisco, desde a primeira hora de seu pontificado, seja pela escolha do
nome ou em seus discursos, ou ainda em sua primeira Exortação, deixou claro que
desejava “uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198). “Estes [pobres] têm muito para nos
ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG 198). E não tem
medo de afirmar: “A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente
evangelizar” (EG 174) pelos pobres.
Em relação ao terceiro elemento para servir, Francisco destacou: “evangelizar
significa testemunhar pessoalmente o amor de Deus, significa superar os nossos egoísmos,
significa servir, inclinando-nos para lavar os pés dos nossos irmãos, tal como fez Jesus”
51
. E
conclui: “Três palavras: Ide, sem medo, para servir. Seguindo estas três palavras, vocês
experimentarão que quem evangeliza é evangelizado, quem transmite a alegria da fé,
recebe mais alegria”
52
.
O Papa também convidou a decididamente pensar a pastoral a partir da periferia,
daqueles que estão mais afastados. Sobre esta necessidade de aproximar-se e apaixonar-se
pela missão nas periferias, Francisco pede: “É nas favelas, nas povoações pobres, nas vilas
onde é preciso ir buscar e servir a Cristo. Devemos ir a eles como o sacerdote se aproxima
do altar: com alegria
53
. Portanto, sem medo, é preciso ir até às periferias, onde as pessoas
“têm sede de Deus”, como ele afirmou. Como afirma Leonardo Bo, “é preferível um ateu
ético que um cristão indiferente diante do sofredores dasperiferias”
54.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, algumas considerações são necessárias. A ação missionária é o
paradigma de toda a obra da Igreja. Ela é o que guia a obra da Igreja. “Evangelizar é tornar
o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176). O impulso que leva à missão leva também
à prática da caridade. A Igreja é chamada a ser mais missionária, a cumprir o seu papel
missionário na sociedade. Nunca se ouviu falar tanto de missão como atualmente.
Devemos tornar isto uma realidade viva. A capacidade de estar com o povo, com todos,
escutando e partilhando a vida, deve ser luz para a missão.
Aquela que manifestamos deve refletir na vida: O Evangelho tem destinação
universal. A missão na periferia é descobrir o Deus que já estápresente. É preciso cuidar
também das fragilidades dos moradores das periferias: os sem abrigo, os fragilizados, os
dependentes de drogas, os refugiados, povos indígenas, idosos. Se a Igreja é católica, ali
será o lugar onde todos são acolhidos. É preciso cuidar também dos afastados, isto é,
cativar os grupos sociais dos quais muitas vezes a Igreja se afasta. É preciso que todos os
ambientes sejam evangelizados.
A cultura do encontro com a periferia é uma experiência que nos desinstala, que nos
transforma, que nos obriga muitas vezes a fazermos coisas que não queremos fazer, que
50 FRANCISCO, Papa. As periferias existenciais estão repletas de solidão. Disponível em: < https://pt.aleteia.org/
2021/10/14/papa-francisco-as-periferias-existenciais-estao-repletas-de-solidao/>. Acesso em 17/dez./2022.
51 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude.
52 FRANCISCO, Papa. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude.
53 FRANCISCO, Papa. Santa Missa com os Bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas. Disponível em:<https://
www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2013/documents/papa-francesco_20130727_gmg-omelia-rio-
clero.html>. Acesso em 20/jun./2022.
54 Segundo Bo, essa frase não é de autoria sua e foi repetida várias vezes pelo Papa Francisco. cf. BOFF, Leonardo.
Disponível em: <https://leonardobo.org/2021/07/30/e-preferivel-um-ateu-etico-que-um-cristao-indiferente-
diante-do-sofredores-das-periferias/>. Acesso em 17/dez./2022.
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nos tira de nossa zona de conforto. As periferias, na maioria das vezes, são marcadas por
situações de incertezas, de inseguranças, de angústias. Entretanto, as periferias não são
obstáculos para Deus, mas as transforma em lugares de anúncio do Evangelho. Todo
instrumento frágil torna-se eficaz nas os de Deus. Na fragilidade e “marginalidade” das
periferias Deus as transforma em espaços missionários, de alegria, de esperança em meio à
dor, de resistência em meio às dificuldades.
Passaram-se os séculos e a Igreja permanece desafiada a sair do lugar comum em
nome da causa do Evangelho. A itinerância de Jesus por toda a Palestina para anunciar o
Reino (Mt 4,23), visibilizado como sinal no ensino e cura, é grande referência eclesial. A
Igreja deve ser como um hospital de campanha, no dizer do Papa Francisco, andante para
sarar as feridas e curar as pessoas. É caminhante para fazer o bem. É uma Igreja em saída
para servir à humanidade. A saída para cuidar da humanidade ferida e machucada
permanece como grande desafio, mesmo que a tentação de ficar na sacristia ou dialogando
com “os de casa” seja constante.
Sobre a missão da Igreja junto às periferias, tenhamos presente a admoestação do
Papa Francisco: “saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Prefiro uma
Igreja acidentada e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). A população
que mora nas periferias se constitui hoje nos interlocutores necessários à Igreja, se ela
busca ser fiel ao mandato missionário deixado por Jesus Cristo.
O parágrafo 49 da Evangelii Gaudium sustenta esta preocupação: se alguma coisa nos
deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é o fato de haver tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma
comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
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