METODOLOGIAS
TEOLÓGICO-
PASTORAIS
v. 39, n. 133, Jul./Dex./2022
ISSN on-line: 2763-5201
EQUIPE EDITORIAL
Diretoria do Itepa
Dr. Pe. Rogério Luiz Zanini - Diretor Executivo
Ms. Pe. Ivanir Antônio Rodighero - Vice-Diretor Executivo
Dr. Pe. Clair Favreto - Administrador – Tesoureiro
Ms. Pe. Jair Carlesso – Secretário
Editor chefe
Dr. Pe. Clair Favreto - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Comissão editorial
Ms. Pe. Ari Annio dos Reis - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Ms. Selina Maria Dal Moro - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Dr. Pe. Rogério Luiz Zanini - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Dr. Regiano Bregalda - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Conselho Editorial
Dr. Claudio Almir Dalbosco - Universidade de Passo Fundo - UPF
Dr. Edivaldo José Bortoleto - Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Dr. Frei Luis Carlos Susin - Ponticia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
Dr. Leandro Luis Bedin Fontana - Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt, Alemanha)
Dra. Maristela Dal Moro - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Dr. Pe. Leo Konzen - Instituto Missioneiro de Teologia - IMT
Dr. Pe. Ivanir Antonio Rampon - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Ms. Pe. Ivanir Antônio Rodighero - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Ms. Pe. Jair Carlesso - Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa
Revio de linguagem
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Editoração
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
Catalogação na fonte: Bibliotecária Valderes de Rezende - CRB 10/2588
T314
Revista Teopráxis, vol.1, n.1(1984-) / Instituto de Teologia e Pastoral. Passo Fundo: ITEPA, 1984 -v.39
- n°133, Jul.-Dez./2022. Semestral.
ISSN:1677-860X versão impressa (descontinuada)
ISSN:2763-5201 versão eletrônica
1.Teologia -Periódicos I. Instituto de Teologia e Pastoral-ITEPA
SUMÁRIO
Editorial...................................................................................................................................................... 4
Rogério L. Zanini
ENTREVISTA
Metodologia Pastoral: Entrevista com Agenor Brighenti..................................................6
ARTIGOS
Fraternidade e educação: A Campanha da Fraternidade numa abordagem
freiriana do método Ver-Julgar-Agir...........................................................................................10
Fraternity and Education: The Fraternity Campaign in a Freirean Approach to the
See-Judge-Act Method
Rogério L. Zanini e Humberto Maiztegui Gonçalves
Reexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação,
escuta e presença....................................................................................................................................19
Reflexions aboutthe Catechetical Methodology: a path of approximation, listening and presence
Maria Aparecida Barboza e Paulo Cesar Gil
Metodologia para uma leitura popular feminista da bíblia.............................................30
Methodology For a Popular Feminist Reading of the Bible
Mercedes de Budallés Diez
A teologia na prática de José Comblin: da escuta à escrita................................................ 41
The theology in José Comblin’s practice: from listening to writing
Lucy Terezinha Mariotti
Dom José Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reexão na
Diocese de Chapecó-SC........................................................................................................................50
Dom José Gomes and the popular methodology of Reflection Groups in the Diocese of Chape-SC
Tiago Arcego da Silva
A Metodologia Histórico-Evangelizadora..................................................................................61
The Historical-evangelizing Methodology
Ivanir Antonio Rodighero e Ivanir Antonio Rampon
Desaos da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no
contexto neoliberal.............................................................................................................................. 72
Challenges of Transformative Pastoral Care Based on Benincá Praxis in the Neoliberal Context
Altair Alberto Fávero e Antônio Pereira dos Santos
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrição a partir da Doutrina Social da
Igreja sobre as pastorais sociais...................................................................................................... 81
The Workers’ Pastoral in Brazil: A description from the Social Doctrine of the
Church in the Social Pastorals
Elvis Rezende Messias
RESENHA
Itepa Faculdades: 40 anos reetindo sobre EvangELLIzação:
A Itepa Faculdadese o protagonismo do Pe. Elli Benincá................................................... 96
Selina Maria Dal Moro
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
EDITORIAL
Rogério L. Zanini
Organizador
A Revista Teopráxis tem alegria de colocar à disposição dos
leitores seu Volume 39, número 133 de 2022. A temática versa sobre
metodologias teológico-pastorais e testemunhos metodológicos na
evangelização. Mais e mais se fortalece a consciência de que a
metodologia o é instrumento, ou técnica, mas se constitui em uma
espiritualidade. Assim descrevem os bispos nas Diretrizes Gerais da
Ação evangelizadora no Brasil 2019-2023: “em todas as propostas,
como pano de fundo, deve estar presente a ideia do processo como
método e como mística” (n. 204).
É no bojo desta consciência da importância da metodologia nos
processos de evangelização que se originam os artigos reunidos deste
dossiê. Por isso, o leitor terá alegria de apreciar uma entrevista com o
teólogo e pastoralista brasileiro Agenor Brighenti. A entrevista versa
sobre algumas questões pertinentes, em relação à metodologia e sua
relação com a espiritualidade que é a novidade proveniente do Papa
Francisco com o processo da sinodalidade, bem como os desafios para
a missão da Igreja no contexto marcado pelas involuções eclesiais, e
como a conjuntura atual está perpassada pelo negacionismo da
ciência sobre a fome de mais de trinta milhões de brasileiros que
delata o cinismo dos satisfeitos.
No dossiê dos textos, o leitor encontrará rios textos na
perspectiva metodológica. O Bispo da Igreja Episcopal Anglicana do
Brasil Humberto Maiztegui Gonçalves e o padre Rogério L. Zanini
assumem a tarefa de retomar o método ver, julgar e agir,
considerando sua abordagem no âmbito da campanha da fraternidade
sobre a educação. Segue, um artigo da Maria Aparecida Barboza
destacando a metodologia catequética no processo e sua importância
na Iniciação à Vida Cristã (IVC). A IVC é basilar para a renovação da
missão da Igreja, no que se refere à transmissão da às novas
gerações, tendo como base uma metodologia no horizonte da
Pedagogia da Presença que propõe itinerários e processos como
caminhos de aproximação, encontro com a Pessoa, com a Palavra de
Deus e com a Comunidade. Na mesma trilha, se encontra outro artigo
de autoria da biblista Mercedes de Budallés Diez, destacando a
importância da metodologia popular feminista da Bíblia. Uma
metodologia que considere a realidade de todos os interlocutores, não
somente os masculinos. Entrar no mundo bíblico com a leitura das
suspeitas e das intencionalidades presentes nas narrativas bíblicas é
fundamental. Por isso, a leitura feminista assume uma perspectiva
política, porque procura novas respostas visando justiça nas relações
de gênero, de raça, de classe, de geração e de religião.
Nos quatro artigos seguintes encontraremos reflexões
metodológicas alicerçadas no legado de três pessoas (in memoriam),
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 4-5, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.141
* Doutor e Mestre em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, PUCRS. Especialista em
Metodologia Pastoral pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões - URI. Graduado em Teologia pelo
Instituto de Teologia e Pastoral (Itepa) e em
História pela Universidade do Oeste de Santa
Catarina - UNOESC. Professor da Faculdade de
Teologia e Ciências Humanas de Passo Fundo.
E-mail: zaninipastoral@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8771-3799
5
Pe. José Comblin, Dom José Gomes e Pe. Elli Benin, que deixaram um legado da
importância da metodologia teológica. A reflexão primeira é da ir Lucy Terezinha
Mariotti que recorda a teologia na prática de José Comblin, com seu todo da escuta à
escrita. Para Mariotti esta reflexão de Comblin é muito necessária para perceber em seu
método como a teoria e prática estão interligadas, como duas faces da mesma moeda. A
escuta ativa com a caneta na mão fez deste teólogo um missionário aberto a encontrar e
conviver em novos espos, atento aos “sinais dos tempos” que inspiraram práticas ousadas
sempre ligado aos pobres. Urge refazer este caminho para a Igreja entrar na ciranda
missionária e profética como tem escrito e testemunhado Papa Francisco. O jovem Tiago
Arcego da Silva se encarrega do segundo artigo, no qual analisa a metodologia popular dos
grupos de reflexão na Diocese de Chapecó/SC, a partir do legado do Bispo Dom José Gomes.
Bispo inserido junto com o seu povo, buscou renovar a eclesiologia assumindo com inteireza
o Concílio Vaticano II (1962-1965), Medellín (1968) e a Teologia da Libertação. É um Bispo
de fronteira que abriu a Igreja para as realidades sociais como exigência do Evangelho,
protagonizando a conscientização das pessoas através da formão integral. Um dos
elementos nodais desta herança, está no seu trabalho inovador proveniente da metodologia
dos grupos de reflexão. Dimensão eclesial singular na formação e libertação das consciências
do povo do Oeste se Santa Catarina. Em seguida, um terceiro artigo, vem da colaboração do
professor Altair Fávero (UPF) e seu orientado de mestrado Antonio dos Santos: Caminhos e
desaos para uma pastoral transformadora num contexto de mudanças: indicativos a partir da práxis
benicaniana. A preocupação dos autores, é refletir o conceito de neoliberalismo, apontando
críticas ao novo modelo que afeta as relações sociais, imputando sobre os sujeitos, uma nova
forma de agir, que se configura na lógica mercantil e concorrencial. Ora, contra a razão
neoliberal e no intuito de abrir caminhos favoráveis de mudanças, apontam a pastoral
transformadora a partir da práxis benicaniana, que contribui sobremaneira para a
construção da coletividade, consciência de uma formação humanizadora e de práticas
solidárias, em vista da promoção do bem comum. O quarto e último artigo, é oriundo de
dois professores da Itepa Faculdades, Pe. Ivanir A. Rampon e Ivanir A. Rodighero.
Preocupam-se com a Metodologia Histórico-Evangelizadora (MHE), como marca que
vem acompanhando o fazer teológico desta instituição ao longo dos seus 40 anos de
existência. O constante desafio de refletir a dimensão eclesial, sem descuidar da vida das
comunidades com seu protagonismo e valores para o insumo teológico.
Como desafios pastorais, o presente número da revista, contempla um artigo de
Elvis Rezende Messias: Pastoral Operária no Brasil: Uma descrição a partir da Doutrina Social
da Igreja sobre as pastorais sociais. A reflexão tem por objetivo contribuir para que a pastoral
operária no Brasil seja mais conhecida e compreendida dentro do âmbito mais abrangente
do que hoje se chama de pastoral social. Temos que reconhecer os déficits de estudo desta
temática no contexto atual na vida eclesial. Momento em que aumenta a opressão e o
desmonte dos direitos dos trabalhadores/as. “Administrai a justiça e livrai o explorado da
mão do opressor” (Jr 21,12).
Fecha esta revista uma bela resenha do livro, recentemente, lançado pela Itepa
Faculdades: Itepa Faculdades: 40 anos reetindo sobre EvangELLização, organizados pelos
professores da Itepa Faculdades, Pe. Ivanir A. Rodighero e Selina Maria Dal Moro.
Segundo Moro, esta resenha tem por objetivo oferecer aos leitores da revista Teopráxis
indicativos sobre a história da Itepa Faculdades e sobre o protagonismo do professor e
primeiro diretor desta casa de formação teológico-pastoral, o Pe. Elli Benincá.
Fazemos votos de que todos e todas apreciem as diferentes reflexões e consigam
impulsionar sempre mais a vida e a missão da Igreja. Boa leitura.
ZANINI, Rogério L.
Editorial
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 4-5, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
ENTREVISTA
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
METODOLOGIA PASTORAL
Entrevista com Agenor Brighenti*
A pastoral o que pensaré o título de uma das obras escritas
pelo teólogo e pastoralista brasileiro Agenor Brighenti. Essa concepção
está em consonância com a ideia de que a pastoral configura a razão de
ser da Igreja, uma vez que ela existe para ser continuadora da missão de
Jesus e seu Reino. A pastoral enquanto desencadeamento da prática de
Jesus ocupa lugar fundamental na vida eclesial e este é um dos motivos
que nos conduziu a refletir essa temática nesta edição da revista.
A Revista Teopráxis, ao longo de sua trajetória, ocupou-se em
fazer ecoar a reflexão teológica a partir da realidade, visto
compreender que boas teorias são gestadas no seio da vida eclesial. É
nessa perspectiva que os temas sobre Metodologia Pastoral e processos
de evangelização recebem um destaque especial nesta edição.
É um prazer para nós podermos estabelecer essa interlocução
mais direta a partir de questões articuladas ao dossiê da revista e às
pesquisas desenvolvidas por Brighenti. Por isso, as questões
colocadas ao autor versam sobre a metodologia, a espiritualidade, a
sinodalidade novidade proposta por Francisco, os desafios para a
missão da Igreja no contexto marcado pelas involuções eclesiais, a
conjuntura atual perpassada pelo negacionismo da ciência, a fome
que assola mais de trinta milhões de brasileiros etc.
1 Quais os principais elementos da metodologia participativa?
Qual o modelo eclesial que esta metodologia combate?
Método não é apenas uma técnica. Dele fazem parte conteúdo e
tamm o sujeito. No âmbito da ação pastoral, a metodologia precisa
conjugar Evangelho, realidade e comunidade eclesial. Como a
mensagem evangélica aponta para a fraternidade intra e extra eclesial
em um contexto marcado pela injustiça e a exclusão, uma metodologia
a de planejamento pastoral precisa ser uma pedagogia de comunhão e
de conversão à realidade. Ela contribui para a superação do modelo de
Igreja centralizado no padre e na paróquia massiva e
sacramentalizadora, a pastoral de conservação, expressão de uma Igreja
autorreferencial, assim como do modelo eclesial espiritualizante e
apologético, a pastoral coletiva, em uma postura hostil frente a um
mundo que supostamente conspira contra a Igreja. Não conversão
ao Evangelho sem conversão à realidade e à comunhão fraterna, pois
evangelizar é antes de tudo não ignorar e nem impor. Daí os
princípios da metodologia participativa: intervenção de todos,
discernimento comunitário, decisão partilhada e ação desconcentrada.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 6-9, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.139
* Agenor Brighenti é doutor em Ciências
Teológicas e Religiosas na Universidade
Católica de Louvain (Bélgica), especializado
em Pastoral Social e Planejamento Pastoral
pelo Instituto Teológico-Pastoral do Celam
(Medellín) e licenciado em Filosofia pela
Universidade do Sul de Santa Catarina
(Tubarão, SC). Foi perito do Celam na
Conferência de Santo Domingo e da CNBB
em Aparecida.
E-mail: agenor.brighenti@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9399-2621
7
2 Qual a relação entre metodologia participativa e a espiritualidade do
seguimento de Jesus?
Seguimento de Jesus é continuação de sua obra, o Reino de Deus. É colocar-se atrás
dele, como discípulo. É colocar-se no caminho dele, pois ele é o Caminho. É ir fazendo
acontecer a transcenncia “na” imanência da história, na precariedade do presente, sempre
impregnado de eternidade, por mais contraditório que seja. A metodologia participativa
tamm e as pessoas a caminhar, pois privilegia o processo aos resultados. Mais
importante que buscar resultados é colocar-se no caminho, é fazer processo, pois deste
depende um bom resultado. Sobretudo porque o Evangelho pede a eficácia da fé, que passa
pela cruz, e não a eficncia ou o êxito a todo pro, que é a meta de uma cultura mercadológica.
O Papa Francisco tem frisado que o tempo é superior ao espaço. O processo ao sucesso. O
tempo do Evangelho é kairós e não chronos, pois o fim está no caminho. Na escatologia cris
o fim não está no final (chronos), mas na antecipação do fim no caminho (kairós).
3 Comente qual a relação: pastoralizar a teologia e teologizar a pastoral?
O lugar da teologia não é a academia. Enquanto inteligência reflexa da ação da Igreja
no mundo, seu lugar natural é o caminhar da comunidade eclesial, inserida profeticamente
na sociedade. A teologia é um “momento segundo” (reflexão) de um “momento
primeiro” (a práxis pastoral). Uma boa teologia não cai do céu, brota da realidade. A
teologia precisa ter, necessariamente, uma dimensão pastoral. Uma teologia que não se
articula na pastoral não serve para a Igreja e se não for uma pastoral inserida no mundo,
não serve para a humanidade. É sal que perdeu sua força e serve para ser pisado e
descartado. Por outro lado, a pastoral não é um receituário de ações pragmáticas e
pontuais, de práticas isoladas. Enquanto encarnação do Reino de Deus, pressupõe uma
vivida, consciente e consequente com seu contexto. A não é um ato “da” razão, mas
precisa ser um ato “de” razão para ser razoável, longe de fanatismos, digna do ser humano,
a quem Deus se propõe e não se impõe. Uma pastoral sem teologia é pragmatismo amador,
sem profissionalismo, sem ciência, sem poder dar razões ao que se faz.
4 Que relação tem a sinodalidade com a metodologia e os processos de
planejamento pastoral?
Sinodalidade é o modus vivendi et operandi da Igreja, o modo da Igreja viver e agir.
Infelizmente, nem sempre e nem em todo lugar é assim. Ainda resquícios, quando não
vigência, de uma Igreja configurada no binômio clero-leigos e não no binômio
comunidade-ministérios. Prova disso, é o clericalismo ainda reinante, de clérigos e de leigos
clericalizados, com o agravante da cópia ser sempre pior que o original. Em uma Igreja
piramidal, alguns planejam “para” os outros executarem, no exercício de um poder-
dominação. em uma Igreja sinodal, o sujeito do planejamento é a própria comunidade
eclesial, no exercício de um poder-serviço. Na Igreja, os ministros ordenados não têm o
monopólio do poder, pois este não deriva do sacramento da Ordem, mas do sacramento
do Batismo. Do sonho do Papa Francisco, expressado no Sínodo da Amazônia, de “uma
cultura eclesial marcadamente laical”. No primeiro milênio, reinava um princípio
genuinamente sinodal: “o que diz respeito a todos, deve ser discernido e decidido por
todos”. O planejamento participativo se caracteriza por algo parecido: “quem não
participou do processo de tomada de decisão, não tem nenhuma obrigação de participar
no processo de execução”.
Entrevista
Metodologia Pastoral: Entrevista com Agenor Brighenti
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 6-9, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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5 A pandemia revelou muitas mazelas no seio social, uma multidão de invisíveis.
Como Igreja, o que podemos aprender com a pandemia?
Não perder de vista o real da realidade, em um mundo que tende a virtualizar a
realidade. O negacionismo da ciência mata e explica porque o Brasil com 3% da população
mundial tenha tido 12% dos mortos. A fome de mais de trinta milhões de brasileiros delata o
cinismo dos satisfeitos. Estão associados terraplanistas, negação da vacina, armamentismo,
homofobia, machismo, ultraliberalismo, autoritarismo, fundamentalismo religioso e
autodenominados de direita contra a esquerda, dita comunista. A ideologia cega, corrói a
liberdade e o senso crítico, torna massa de manobra, aposta em messianismos e torna incapaz
de conviver com os diferentes e de aprender com as diferenças. Uma boa parte dos católicos
no Brasil es nesta fileira, resultado de três cadas de involução eclesial em relação à
renovação do Vaticano II, que precederam o atual pontificado. Temos o refluxo de modelos
de pastoral de um passado sem retorno, o encolhimento da pastoral social e da inserção
protica da Igreja na sociedade, assim como os preconceitos contra as comunidades eclesiais
de base e o fortalecimento do catolicismo pentecostal, que contribuíram para o deterioro da
cidadania, um grande desafio a reverter.
6 O que metodologicamente diz o processo de escuta sinodal proposto pelo Papa
Francisco? Em que consiste sua novidade?
Uma Igreja sinodal é a Igreja da renovação do Vaticano II que, por sua vez, é uma
“volta às fontes” bíblicas e patrísticas, das quais a Igreja do segundo milênio havia
praticamente perdido de vista. O que o Papa Francisco está fazendo, apoiado em Aparecida e
na tradição libertadora da Igreja na América Latina, é retomar o Concílio. O que parecia uma
batalha perdida, transforma-se em uma esperança renovada. A grande chaga é o clericalismo,
o ponto de estrangulamento da sinodalidade, que voltou com força, na esteira de uma re-
sacerdotizão
1
do presbítero, que o Vaticano II havia superado. Por sua vez, o clericalismo
tem subjacente a sacerdotização do próprio cristianismo, que historicamente adquiriu o
perfil de uma religião sacrificial, com o presbítero transformado em sacerdote separado do
povo e reduzido a uma fuão cultual e fonte de todo poder. Cristianismo não se conjuga
com clericalismo, que tem no batismo a fonte de todos os minisrios. A novidade do Papa
Francisco é a coragem de desencadear um processo de sinodalização da Igreja de baixo para
cima, a partir das Igrejas Locais, situando a colegialidade episcopal no seio da sinodalidade
eclesial, inclusive o Primado. O processo vai exigir a superação de uma Igreja piramidal, com
uma consequente mudaa de estruturas e do perfil dos minisrios ordenados, para dar lugar a
uma Igreja toda ela ministerial, na radical igualdade em dignidade de todos os ministérios.
7 Quais caminhos e métodos seriam necessários para a juventude se sentir mais
atraída e acolhida pela igreja neste tempo novo que estamos vivendo?
Mais que o futuro, a juventude é o presente da Igreja e da sociedade. Ela vive
tempos difíceis: de triunfo do indivíduo solitário, que põe em crise o compromisso
1 A rigor, o cristianismo não tem “sacerdotes” tal como no judaísmo e nas religiões do mundo greco-romano. O que
no antigo Povo de Deus eram funções de “classes” religiosas distintas sacerdotes, profetas e reis no novo Povo de
Deus, pelo Batismo, todo cristão passa a fazer parte de um povo todo ela profético, régio e sacerdotal, o denominado
tria munera ecclesiae. Entretanto, quando o memorial da Páscoa se torna “sacrifício”, começa um processo de
“sacerdotização” do cristianismo, que será hegemônico na Igreja do segundo milênio. A liturgia se clericaliza,
passando a ser celebrada somente pelo “sacerdote”, de costas para o povo, num presbitério (o “Santo dos Santos”)
separado da nave do templo de onde os leigos assistem. O Vaticano II, em sua volta às fontes, des-sacerdotizou o
cristianismo e o presbítero. Para o Concílio, dado que pelo Batismo o Povo de Deus constitui um povo todo ele
profético, régio e sacerdotal (LG 31), na Liturgia, o ministro ordenado preside uma assembleia toda ela celebrante. Com
isso, o padre deixa de ser chamado “sacerdote”, pois é um presbítero que preside uma assembleia toda ela sacerdotal.
Entrevista
Metodologia Pastoral: Entrevista com Agenor Brighenti
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 6-9, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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comunitário; de encolhimento da utopia no momentâneo, que leva ao presentismo ou ao
pragmatismo docotidiano; de crise da racionalidade e da ciência, com tendência a pautar-se
pelas sensações na inesgovel experimentação do presente; de busca de segurança diante da
sensação de que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, porta aberta para agarrar-se à falsa
seguraa do emocionalismo e do fundamentalismo, etc. Não por nada, a juventude se
tornou mais conservadora, tanto na Igreja como na sociedade. É preciso ajudá-la a superar
uma possível visão retrospectiva e catastrófica da realidade, condão para a tessitura do
risco, a única garantia do futuro. É mais próprio do jovem uma visão prospectiva da história,
que faz da esperança uma virtude ativa, capaz de criar o novo, que sempre vem da periferia.
8 A quais fatores se deve o não avanço na diversicação dos ministérios na Igreja,
que praticamente não evoluíram desde 1970?
Um deles é a visão fossilizada da Tradição, que é tradicionalismo, pois, como diz o
Vaticano II, a “tradição” progride, é viva, continuamente precisa ser redefinida para poder ser
suporte a uma ação evangelizadora, que necessita responder aos desafios de cada contexto e
de cada época. Como dizia Dom Hélder, “a Igreja precisa mudar muito, continuamente, para
ser sempre a mesma Igreja de Jesus Cristo”. Junto com o tradicionalismo está o medo de
avançar, de inovar, de criar. O medo exagera o perigo, cria monstros, profetas de
calamidades, paralisa, faz retroceder e agarrar-se às velhas seguranças do passado. Somos
depositários de uma abraâmica, uma pascal, de travessia e não do aconchego de um
porto seguro ou de uma tenda no Monte Tabor. Mas, somente os livres inovam e criam,
estão habitados pela esperança. No tradicionalismo medo dos leigos e de suas
organizações; medo das mulheres e de seu jeito diferente de ver a verdade; medo do exercício
de um poder democrático, que eliminaria o magistério; medo de padres casados e com
família; medo dos cristãos se engajarem no mundo e secularizar sua , etc. Entretanto,
desconfiar dos outros é desconfiar de Deus, pois como discípulos de Jesus Cristo, o primeiro
ato deé confiar nele que confiou em nós.
9 Na obra O Novo Rosto do C lero”, o senhor comenta sobre a pastoral para os
padres novos em novos tempos. Quais são os inuxos, delineamentos e
perspectivas pastorais a partir de um novo modo de ser dos novos presbíteros?
“Padres novos” não é uma categorização meramente cronogica. Há padres ordenados
recentemente, assim como padres da geração passada, que estão alinhados à renovação do
Vaticano II, que reconciliou a Igreja com o mundo moderno e a situou no seio da sociedade,
em uma postura de diálogo e serviço. Mas, também padres da geração anterior e padres
ordenados nas últimas décadas que tomam distância da renovação conciliar e da tradição
libertadora da Igreja na América Latina. A diferença é que a maioria dos padres recém-
ordenados está entre estes últimos. Vai de encontro ao que acontece com os jovens tamm
na sociedade, assim como com outros segmentos da Igreja e da sociedade. Por um lado, os
“padres novos” mantêm um relacionamento mais próximo com o povo, usam mais os meios
de comunicação modernos na evangelização; por outro, têm especial apreço a um perfil mais
sacerdotal do prestero, com grande esmero nas alfaias litúrgicas e trajes clericais; estão
mais inclinados ao estilo de uma vida cômoda, que usufrui de todas as benesses de uma
sociedade de consumo e tecnificada, etc. Isso tem levado na experiência religiosa, ao
deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético. Ao mesmo tempo
que se deve estar abertos a acolher as novidades que trazem, o grande desafio é ajudá-los a
descobrir a renovão do Vaticano II, pois o eles os que estão melhor posicionados para
fazer uma “segunda recepção” do Concílio no novo contexto em que vivemos.
Entrevista
Metodologia Pastoral: Entrevista com Agenor Brighenti
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 6-9, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
ARTIGOS
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Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
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FRATERNIDADE E EDUCAÇÃO
A Campanha da Fraternidade numa
abordagem freiriana do todo Ver-Julgar-Agir
FRATERNITY AND EDUCATION
The Fraternity Campaign in a Freirean
Approach to the See-Judge-Act Method
Rogério L. Zanini*
Humberto Maiztegui Gonçalves**
Resumo: O presente texto, tomando por substrato o método Ver-Julgar-
Agir, busca analisar como esta metodologia continua desafiando e
contribuindo como chave para uma leitura crítica dos contextos,
especialmente no desafio de suplantar o senso comum, e com isso,
contribuir para a superação de leituras limitadas e alienantes. Partindo dos
referenciais teórico-bibliográficos, elegemos aspectos do método Ver-Julgar-
Agir julgando sua implicância, tendo em vista um processo educativo
crítico e uma evangelização que tenha como alicerce a prática de Jesus.
Como conclusão se afirma que o método Ver-Julgar-Agir, depois de ter
passado por crises e aplausos no percurso da história da Igreja, ganha com o
pontificado do Papa Francisco uma atualização na Tradição da Igreja.
Palavra-chave: Método. Educação. Paulo Freire. Transformação.
Abstract: The present text, taking as substrate the See-Judge-Act Method,
aims to analyze how this methodology continues to challenge and
contribute as a key to a critical reading of the contexts, especially in the
challenge of overcoming common sense and, with that, contribute to
overcoming limited and alienating readings. Based on theoretical-
bibliographic references, elements of the See-Judge-Act Method were
chosen judging their implication with a view to a critical educational
process and an evangelization that has as a foundation the practice of Jesus.
In conclusion, it is stated that the See-Judge-Act Method, after having gone
through crises and applause in the course of Church history, with the
Pontificate of Pope Francis, gets an update on Church Tradition.
Keywords: Method. Education. Paulo Freire. Transformation.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 10-18, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.107
* Padre da Diocese de Chapecó/SC. Doutor e
Mestre em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PUCRS. Especialista em Metodologia Pastoral
pela Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões - URI. Graduado em
Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral
(Itepa) e em História pela Universidade do
Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Professor
da Faculdade de Teologia e Ciências Humanas
de Passo Fundo.
E-mail: zaninipastoral@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8771-3799
** Possui graduação no Instituto Superior de
Educação Física de Uruguai (1986), graduação
em Teologia - Seminário Teológico da Igreja
Episcopal Anglicana do Brasil (1990),
mestrado em Teologia (2001) e doutorado em
Área de Concentração Bíblia (AT) pelas
Faculdades EST (2005). Atua como professor
na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade
Franciscana em Exegese e Hermenêutica,
Antigo e Novo Testamentos, Questões de
Gênero, Interpretação Bíblica decolonial.
E-mail: humbertox@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4720-8282
Recebido em 19/07/2022
Aprovado em 17/10/2022
11
INTRODUÇÃO
Embora não faça referência diretamente, ao método Ver-Julgar-Agir na proposta da
Campanha da Fraternidade de 2022
1
, o Secrerio Executivo das Campanhas da Fraternidade,
Pe. Patriky Samuel Batista, ao apresentar a proposta para a 58ª Assembleia Geral da CNBB,
afirmou que o percurso da Campanha acontece dentro do método do ver na perspectiva de
escutar; o agir segue no caminho do propor; e o julgar volta o olhar para o discernimento.
2
Neste artigo não se tem a pretensão de avaliar as vantagens, ou retrocessos na
variação proposta para este método na Campanha da Fraternidade. O objetivo principal é
abordar esta temática tendo por norte o referido método, quando aplicado na educação, a
partir de Paulo Freire, e deixar para quem adentrar na leitura e reflexão deste artigo fazer
o discernimento de até que ponto a presente proposta proporcionou que se ampliassem ou
se alargassem as possibilidades de análises, aprendizados e práxis. Em decorrência, e sendo
fiéis à proposta, o próprio método de abordagem no presente texto, se fixano caminho
do Ver-Julgar-Agir.
1 O MÉTODO VER-JULGAR-AGIR E O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE CARDIJN
A FREIRE
Lopes em seu artigo: “O Método Ver-Julgar-Agir: genealogia e sua relação com a
Teologia da Libertação”
3
, explana como surge este método, partindo dos “Escritos da
prisão de Saint-Gilles em 1917”, toma forma na visão profético-vocacional do Padre Joseph
Cardijn, e se consolida como prática eclesial na Mater et Magistra (João XXIII) e no
Vaticano II (Gaudium et Spes) (Paulo VI). Sua escolha e utilização pelos grupos de
Juventudes Operárias Católicas (JOC) nos anos 70 e seguintes, serviu para evidenciar
“realidades concretas e suas dificuldades, passando pela iluminação das mesmas por meio
do Evangelho, para se chegar às ações concretas de transformação”.
4
No mesmo artigo, o
autor ressalta o resgate e a aplicação deste método também dentro do Movimento de
Educação de Base (MEB), impulsionado por Paulo Freire e Miguel Arraes, em 1961 antes
mesmo da realização do Vaticano II dando lugar ao Movimento de Cultura Popular em
Recife. Neste sentido, Lopes afirma:
Nas alturas da década de 1960, a Ação Católica no Brasil estava consolidada e
tinha reaproximado de um jeito esperançoso a Igreja da Escola (instituição),
fazendo com que a caminhada eclesial levasse em conta de novo o apelo
evangélico de ser pobre entre os pobres. Esta caminhada deu frutos libertadores
tanto na Igreja como na Escola, até meados de 1990
5
.
Assim, o método empregado para a conscientização e ação evangélica no meio
operário e popular se mostra, mesmo antes de sua adoção oficial pelo Magistério da Igreja,
um instrumento capaz de popularizar socializar o processo de ensino aprendizagem
sendo o próprio povo (especialmente os mais pobres e excluídos dos processos educativos
dominantes) alçado a sujeito de transformação social e cultural.
1 Tema: Fraternidade e Educação e o Lema: “Fala com sabedoria, ensina com amor” (cf. Pr 31,26).
2 Campanha da Fraternidade 2022: Fraternidade e Educação. 9 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://
cb.org.br/campanha-da-fraternidade-2022-fraternidade-e-educacao/
#:~:text=A%20proposta%20foi%20apresentada%2C%20na,de%20Campanhas%20da%20CNBB%2C%20Pe. Acesso
em 8 de junho de 22. No texto base, número 141 encontra-se na verdade uma referência explicita à tríade, porém,
“reinventando” (como se tem feito na América Latina) os passos do método. “Escutar, discernir e agir. Eis o caminho
que a campanha da Fraternidade nos apresenta este ano”.
3 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.34-43.
4 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.35.
5 Antonio de Lisboa Lustosa LOPES e Cassiano A. PERTILE, O Método Ver-Julgar-Agir. Razão e Fé. p.36.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 10-18, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
12
O Movimento de Educação de Base, cuja atuação permanece até hoje, mantém o
método Ver-Julgar-Agir dentro dos seus princípios, demonstrando, por meio desta sua
capacidade de articular, no processo educativo, questões como:
Construção de uma sociedade justa e ética, (...) conscientização e vivência da
cidadania e participação social, (...) participação social e comunitária nas
políticas públicas, (...) educação de jovens e adultos na perspectiva da
metodologia ver, julgar, agir, sintonizada com os princípios filosóficos do
educador Paulo Freire. (...) inclusão de homens e mulheres no mundo do
trabalho e na sociedade da informação
6
.
Em que pese o longo caminho percorrido e o decurso do tempo, as origens e o
desenvolvimento do método Ver-Julgar-Agir, continuam sendo objeto de ampla discussão
e tema de diversos artigos e trabalhos monográficos, inclusive obras dedicadas
exclusivamente a ele
7
.
1.1 VER: as barreiras que impedem uma educação libertadora
Quando se propõe ver, nos termos do método “Ver-Julgar-Agir”, se objetiva ir muito
além da superfície do “senso comum”, isto é, daquilo que está posto, ou dado pelas “coisas-
como-são”. Trata-se de munir-se de um “olhar”, uma “percepção” crítica, para “ver” além
do que as aparências demonstram ou se mostram, caso contrário, as possibilidades
transformadoras permanecerão ocultas atrás dos muros da exclusão. Exemplo típico e
muito atual, trata-se do surgimento das chamadas pessoas “invisíveis” da população
brasileira durante o tempo da pandemia. Por que estas pessoas não eram até aquele
momento lembradas ou visibilizadas no Brasil?
Nesta direção, basta ressaltar a observação que os Bispos do Brasil fizeram
recentemente: o rechaço aos pobres, não contribui para a civilização do amor e fere a
fraternidade universal. Na Mensagem ao Povo Brasileiro na 59ª. Assembleia Geral da CNBB,
os bispos atentamente profetizam dizendo que o “quadro atual é gravíssimo. O Brasil o
vai bem! A fome e a insegurança alimentar são um escândalo para o País, segundo maior
exportador de alimentos no mundo, castigado pela alta taxa de desemprego e
informalidade”. Na sequência, neste mesmo parágrafo, denunciam que “num sistema voraz
de ‘exploração e degradação’ notam-se a dilapidação dos ecossistemas, o desrespeito com os
direitos dos povos indígenas
8
.
Por isso, quando o “ver” ganha contornos de problematização da realidade, logo se
percebe outras dimensões até então ocultas, ou mesmo ocultadas por diferentes
mecanismos sociais, políticos e mesmo religiosos. Faz perceber a premente importância e
a necessidade do desenvolvimento de uma visão crítica da sociedade e dos seus mecanismos
ideológicos. A visão de Paulo Freire, em “Educação como prática da liberdade”, expressa o
potencial desconstrutor e transformador desta percepção crítica dizendo:
Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático e permeável,
em regra. Tanto mais democrático, quanto mais ligado às condições de sua
circunstância. Tanto menos experiências democráticas que exigem dele o
6 Movimento de educação de base (MEB). Metodologia. Disponível em: https://www.meb.org.br/metodologia/. Acesso
em 8 de junho de 22.
7 Deixamos algumas referências para quem deseja aprofundar esta temática: Jorge Boran. O senso crítico e método ver, julgar,
agir. Editora Loyola, 1977; Alfredo Piso. Ver-Julgar-Agir: ensaio de teologia pastoral. Edições, 1991; Antônio de Lisboa
Lustosa Lopes e Jorge Luis Gomes Bonfim. Ver-Julgar-Agir: a leitura pastoral de Francisco. Editora Saber Criativo, 2022.
8 CNBB, Mensagem ao Povo Brasileiro, 59ª Assembleia Geral da CNBB, “A esperança não decepciona” (Rm 5,5).
Disponível em: https://www.cnbb.org.br/mensagem-povo-brasileiro-fe-esperanca-compromisso-vida-brasil/.
Acesso em 11 de maio de 2022. (Grifo nosso).
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
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conhecimento crítico de sua realidade, pela participação nela, pela sua
intimidade com ela, quanto mais superposto a essa realidade e inclinado a
formas ingênuas de encará-la. As formas ingênuas de percebê-la. A formas
verbosas de representá-la. Quanto menos criticidade em nós, tanto mais
ingenuamente tratamos os problemas e discutem superficialmente os assuntos
9
.
Com esta visão superando as maneiras e visões ingênuas ou do senso comum - é
perceptível o quanto o povo brasileiro precisa avançar nos direitos elementares
conquistados e garantidos pela própria Constituição Brasileira. O sistema educativo
brasileiro nunca conseguiu refletir o que a Constituição de 1988 sonhou ao proclamar em
seu Artigo 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”.
Ainda mais se, nesta percepção crítica são colocados os princípios da realização desta
meta constitucional, a saber:
I– igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II– liberdade
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III–
pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino; IV– gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; V– valorização dos profissionais da educação escolar,
garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente
por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI– gestão
democrática do ensino público, na forma da lei; VII– garantia de padrão de
qualidade; VIII– piso salarial profissional nacional para os profissionais da
educação escolar pública, nos termos de lei federal (Art. 205).
Por isso, pode-se perguntar: Houve, desde 1988, avanços importantes e significativos
neste sentido? Quais? Quais barreiras de exclusão começaram a ser derrubadas? Quais os
instrumentos de participação popular, social e profissional foram construídos e
impulsionaram esses avanços? Chegaram a ser aferidos ou percebidos resultados
concretos? Qual foi o alcance desses resultados, a que parcela da população alcançou? E o
que mais podia e deveria ter avançado?
Mas também, e dialeticamente, será necessário questionar se houve retrocessos,
perdas, estagnações, ameaças, restrições e repressões em relação ao que foi previsto e
determinado na Constituição, ainda vigente, de 1988, e o que, a partir dela, foi construído,
alcançado e sofreu avanços. Como identificar essas novas barreiras e empecilhos? De onde
surgem? Quais são as forças antagônicas que não permitem que se consolide uma educação
que é direito de todas as pessoas e dever do Estado? Por que estas forças contrárias ao
acesso universal à educação como um direito se sentem ameaçadas e tentam impedir que
esta realidade se consolide? Qual é a educação que está sendo proposta e colocada em
prática, no lugar daquela desenhada no texto constitucional?
Certamente haverá uma diversidade de percepções, de hipóteses e respostas, mas
também - por ter um ponto de partida comum – interessa promover a convergência para o
encontro das pessoas que realmente almejam juntar e concretizar os conceitos de
“fraternidade” e “educação” e participam, em diversos lugares de atuação social, da
realidade que se vive hoje no Brasil.
Esteponto de partida” do todo, nas palavras de Paulo Freire, faz com que as pessoas:
9 Paulo FREIRE, Educação como prática da liberdade, p.94-95.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
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Revista Teopráxis,
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se identifiquem como seres que caminham para frente (...) como seres a quem o
imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser uma
forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que está
sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se identifique o movimento
permanente (...) que é histórico e quem tem seu ponto de partida, o seu sujeito
e o seu objetivo
10
.
Desta forma, o ver é o encontro inicial que compromete com a realidade, como
processo histórico, identificando o que une as pessoas como participantes – militantes – de
um processo de construção coletiva e democrática. Em decorrência, esta forma de ver a
partir da realidade dos “marginalizados”, dos “insignificantes ou “invisíveis” como nos
referimos acima possibilita identificar um problema comum. O ver é isso. Não no sentido
de ver todos os problemas, mas aqueles que se apresentam mais evidentes em contextos ou
lugares de fala e de vida (como afirma na exegese bíblica, em nossos “lugares vivenciais”).
Então sim, surge o diálogo que não joga para “soluções”, mas “saídas” ou “êxodos” (do latim
“ex” – para fora - e “hodos” – caminhos).
Neste caminho de êxodo nasce a consciência de que nem sempre existe clareza
quanto ao ponto de chegada. vale aquela frase atribuída ao escritor uruguaio Eduardo
Galeano, sobre o horizonte, que ele atribui a um filósofo argentino anônimo: “Para que
serve a utopia? A utopia é como o horizonte, serve para caminhar”. Portanto, o ver deve
proporcionar duas coisas: o ponto de partida (formulação do problema) e a direção
(hipóteses, sonhos, utopias, horizontes). Assim, desconstrói-se a paralisia e o medo gerado
pela tragédia da violência e da morte e se delineia e reconstrói coletivamente o caminho do
reencontro, o diálogo e a partilha.
Neste sentido é relevante observar que o Papa Francisco tem reiterado a defesa da
“cultura do encontro” (FT 30), porque é precisamente uma cultura do encontro que pode
fornecer a base para um mundo mais unido e reconciliado. Somente esta cultura pode
levar a uma justiça sustentável e à paz para todos, bem como a um autêntico cuidado pela
Casa Comum. Segundo a teóloga Maria Clara Bingemer, a intenção do Papa “é combater a
indiferença que prevalece em todos nós, a superficialidade das relações, buscar um
encontro verdadeiro e profundo com o outro”. A teóloga sintetiza o que deseja Francisco
com a cultura do encontro.
Para que isso ocorra é preciso acreditar no outro; acreditar que ele ou ela tem
algo bom para mim, para me ajudar a crescer, para viver plenamente, para dar a
minha medida como ser humano, como filho de Deus. É preciso estabelecer um
diálogo com homens e mulheres para entender suas expectativas, suas dúvidas,
suas esperanças, e para oferecer o Evangelho que é Jesus Cristo. Deus feito
homem, que morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado. Este desafio
exige uma profunda atenção à vida, exige sensibilidade espiritual. Dialogar
significa estar convencido de que o outro tem algo bom para dizer, aceitar seu
ponto de vista, as suas propostas. O diálogo não significa desistir das ideias e
tradições. O Papa deixa claro que a experiência do encontro envolve diferenças
e cresce com elas. No encontro com o outro que é diferente de nós podemos
aprender muito e enriquecer toda a igreja e a sociedade, a partir da experiência
e a perspectiva do outro.
11
Dentro deste universo percebe-se a importância do ver e suas implicações que
incidirão nos passos seguintes do método.
10 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.48-49.
11 Maria C. BINGEMER. A cultura do encontro. Revista Dom. Disponível em: https://domtotal.com/artigo/
6709/30/05/a-cultura-do-encontro/. Acesso em 12 de junho de 22.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
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15
1.2 JUL GAR: critérios para a construção da educação democrática
A percepção crítica da realidade requer um instrumental que permita a apreensão
desse processo de construção coletiva e democrática. Também exige critérios (do grego
krités, que significa julgar, que pode ser entendido como aquela pessoa habilitada para
julgar). De certa forma, o ver despertou o que Paulo Freire fala de “consciência” e esta nova
relação, ou “intencionalidade transcendental” que para com a realidade exigirá critérios
adequados para fazer desta “consciência”, uma “consciência crítica”.
A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar
indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as
situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Liberta pela força de seu impulso
transcendentalizante pode volver reflexivamente sobre tais situações e
momentos, para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade
é a raiz da objetivação
12
.
O julgar exigirá do sujeito ou do grupo a ampliação e aprofundamento daquilo que
foi suscitado no ver. Consequentemente, sempre será necessária a contribuição e utilização
das ferramentas técnico-científicas. O científico, neste sentido, o se torna mais
normativo, ou impositivo, mas orgânico, pois está a serviço da consciência, ou da
percepção da realidade daquelas pessoas que são sujeitos dos processos de transformação
de uma determinada realidade opressora ou desumanizadora. Como saber instrumental, o
julgar oferece ferramentas desta análise.
Para Alfredo J. Gonçalves, em seu artigo sobre a Campanha da Fraternidade 2022,
existem três entraves de caráter histórico e estrutural que impedem o Brasil de oferecer os
direitos ao conjunto da população: a desigualdade social, o descaso do atual governo diante
da cultura e o preconceito racista e excludente.
No caso da desigualdade social, o país caminha com um peso de chumbo atado
aos próprios pés. Trata-se da discrepância que, historicamente, vem cavando
um fosso cada vez mais fundo entre a base e o pico da pirâmide
socioeconômica. O círculo vicioso dessa situação desigual revela-se
extremamente perverso e difícil de romper. A condição de pobreza extrema
impossibilita o acesso integral à rede pública de educação. Sem estudo, sem
diploma e sem capacitação profissional, permanece cerrada a porta para o
mercado de trabalho, o que, por sua vez, levanta sérios obstáculos a outros
direitos, como a habitação, a saúde, o transporte, etc. Perpetua-se desse modo a
condição de exclusão social
13
.
Sob o critério do julgar se percebe, diante dos três elementos destacados pelo Alfredo
J. Gonçalves, o quanto as mudanças são necessárias, principalmente na educação blica,
visto que as diferentes realidades educacionais sofrem influência direta das desigualdades
sociais locais e podem até acarretar problemas de alfabetização. Surge a questão: como os
educadores analisam este contexto e como eles influenciam nos processos educativos?
Paulo Freire em muitas de suas obras, mas particularmente no livro “Pedagogia da
Autonomia”, destaca que um dos elementos norteadores da prática educativa da escola é
promover o desenvolvimento global e harmonioso à luz dos valores sociais, despertando e
estimulando o educando para a verdade, a justiça, o respeito e a solidariedade. Esse ideal da
instituição vai ao encontro da formação e das concepções educacionais de Paulo Freire,
que crê na educação autêntica como o caminho necessário para a justiça e a paz. Desta
12 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.9.
13 Alfredo J. GONÇALVES, Campanha da F raternidade 2022. Disponível em: https://crbnacional.org.br/campanha-da-
fraternidade-2022/. Jan. 6. 2022.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
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forma, para Freire, a escola deve estar pautada em um modelo de “pedagogia fundada na
ética, no respeito à dignidade, à própria autonomia do educando”.
14
Nas palavras de Freire,
nas diferentes realidades educacionais, a prática docente deve procurar aguçar a
curiosidade dos educandos, principalmente por meio de pesquisas na troca de saberes. No
ensino/aprendizagem por meio das atividades lúdicas, o conteúdo interage com os
objetivos a serem trabalhados no momento oportuno. Na troca de saberes entre o
professor e os educandos, estes constroem e reconstroem seus saberes desenvolvendo sua
autonomia. “Os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da
reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo”
15
.
Este mesmo problema se revela nos processos de evangelização. Desde a América
Latina e Caribe, a Teologia da Libertação percebeu que ao julgar a realidade com os valores
do Evangelho, precisava superar os abismos entre as classes sociais. Na visita ao Brasil, do
Papa Bento XVI, no ano de 2007, por motivo da Conferência de Aparecida, referendou a
opção pelos pobres e denunciou o crescente distanciamento “entre pobres e ricos e se
produz uma inquietante degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis
miragens de felicidade”
16
.
A pergunta feita por Gutiérrez, anos atrás (2003), de “onde dormio os pobres? segue ainda
atual e ela deve ser pronunciada insistentemente como denúncia profética, pois a exisncia de
estruturas de pobreza, o aumento do número de pobres em nossas cidades e entornos, com
rios rostos, como disse o Documento de Aparecida, rostos que doem em nós (DAp 407-430),
exige de nossa parte uma postura crítica pela teologia, uma postura de denúncia à sociedade e às
estruturas religiosas que não se posicionam de maneirarme contra esta realidade.
1.3 AGIR: a que age pelas obras (Tg 2,20)
O agir está intrinsecamente ligado ao conceito de “práxis” em sua forma germinal,
isto é, como “palavra-ação”. Para Paulo Freire, “produzida pela ‘práxis’, palavra cuja
discursividade ui da historicidade palavra viva e dinâmica, não categoria inerte (...).
Palavra que diz e transforma o mundo”.
17
Em termos teológicos, o agir é a encarnação do
julgar, dentro do ver. De certa forma, se fecha o círculo hermenêutico, comprometendo
essas pessoas como sujeitos de um processo de intervenção e transformação da realidade.
A primeira queso, em termos da luta por essa educão, cujos critérios foram
analisados no julgar, é quais são as pessoas que se apresentam como sujeitos do processo. O
senso comum” pode levar a visualizar o círculo “docente-discente”, ou, um pouco mais
ampliado, o conjunto das pessoas cujas atividades prossionais são exercidas no meio educativo
(incluindo funcionários e funcionárias das mais diversas áreas) e, ainda mais ampliado, os
núcleos familiares dos e das estudantes. Mas, se olharmos para a proposta freiriana de
desvelamento ela sempre é aberta, destinada não apenas a uma parte do processo de transformação
(seja esta a educão), mas ao processo como um todo a partir desta parte. Segue Freire:
Aqui, propriamente, ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um
sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que estes se
tornem sujeitos do ato de desvelar. O desvelamento do mundo e de si mesmas,
na práxis autêntica, possibilita às massas populares a sua adesão
18
.
14 Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p.16.
15 Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p.26.
16 Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, na sala de
conferência do Santuário de Aparecida – discurso (13 de maio de 2007).
17 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.13.
18 Paulo FREIRE, Pedagogia do Oprimido, p.104.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
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As pessoas vinculadas aos processos educativos são sujeitos de um desvelamento
transformador de todas as massas populares e estas, por sua vez, de toda a sociedade
humana. Portanto, o agir não pode ser centrípeto (de fora para dentro), mas centrífugo (de
dentro para fora), fazendo com que as diferentes práxis de ensino-aprendizagem
convirjam no grande exercício de todos os direitos.
Segundo o teólogo e filósofo Ellacuría, a “apreensão da realidade” precisa desdobrar-
se em três dimensões: levar em “consideração a realidade” (dimensão intelectiva),
“responsabilizar-se pela realidade” (dimensão ética) e “encarregar-se da
realidade” (dimensão práxica)
19
. E Jon Sobrino acrescenta uma quarta: “deixar-se levar pela
realidade” (dimensão da graça)
20
.
Este caminho conduz certamente ao mundo das vítimas, dos samaritanos, da mulher
que ia ser apedrejada, dos “invisíveis” do povo brasileiro; e, também, a descobrir os
salteadores, opressores que continuam fazendo vítimas no mundo atual. A partir deste
diagnóstico práxico aparece uma que busca dar razões de sua esperança fazendo
acontecer o reinado de Deus. Da mesma forma, irrompe um seguimento de Jesus com a
missão de descer da cruz os pobres crucicados. Em outras palavras, se conhece o Pai ao fazer
o Seu Reino. Assim, a ganha em densidade histórica, os pobres e injustiçados tornam-se
sujeitos e protagonistas, porque são libertados, o Reino cresce como grão de mostarda,
combatendo o antirreino os cegos veem “outro mundo possível” e todos entram na ciranda
do amor até doer. Dor que parece estranha quando conectada com um Deus abstrato e
distante dos dramas humanos, mas natural, no entanto, quando se convive com os pobres
e excluídos, porque testemunham um amor mais forte do que a morte. Um Deus de rosto
curtido, de mãos calejadase disposto a chorar a dor e o sofrimento como uma e que
lamenta e geme as dores dos filhos e filhas. Para lembrar o que dissemos: “Deus que
‘sofre no sofrimento’”.
É exigência do processo metodológico sua circulação constante, ou seja, trata-se de
uma perspectiva fundamental do método. Dimensão enfatizada pelo teólogo Luiz C. Susin:
“como é uma trindade em círculo, cada mediação influencia hermeneuticamente a outra”.
Esse círculo de mediações desestabiliza “quem está convicto de que ideias elaboradas em
gabinete mudam unilateralmente o mundo, esta metodologia é julgada não ingênua,
mas perigosa e heterodoxa, até porque quem pensa e quem governa pela doutrina perde a
hegemonia do controle da realidade”
21
.
CONCLUSÃO
O objetivo desta reflexão foi retomar aspectos do método Ver-Julgar-Agir no sentido
de interligar, ou propor a interface entre a educação e evangelização no contexto da
proposta da Campanha da Fraternidade. Desta simples abordagem, perceber ou dar-se
conta de como este método continua interpelando e influenciando os contextos eclesial e
educacional em que estamos imersos.
Por isso, este método conduz e interpela a retomar com assiduidade a dimensão da
educação e da evangelização como caminhos que se cruzam e se exigem à luz das verdades
da fé, pois ambas desejam a transformação do mundo Casa Comum para a humanidade.
Falar de educação e de evangelização é falar de humanidade, como disse o Papa Francisco
na Laudato Si: “Vários são os âmbitos educativos: a escola, a família, os meios de
19 I. ELLACURÍA, Escritos teológicos I. 1ª ed. San Salvador: UCA, 2000.
20 Jon SOBRINO, Fora dos pobres não salvação, p.18.
21 Luiz C. SUSIN, Teologia da Libertação: de onde viemos, para onde vamos, Voices. EATWOT, v.36, p.31.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 10-18, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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comunicação, a catequese, e outros. Uma boa educação escolar em tenra idade coloca
sementes que podem produzir efeitos durante toda a vida” (LS 213).
A Campanha da Fraternidade, especialmente quando vista sob a ótica de Paulo
Freire, revigora o sentido transformador da educação. Exige que todas as pessoas
envolvidas nos processos de ensino-aprendizagem se tornem sujeitos históricos. O método
Ver-Julgar-Agir quando entrelaçado dentro do círculo hermenêutico, é capaz de despertar o
sentido transformador e libertador dos processos educativos e de evangelização.
Este método que sofreu por ostracismos no percurso da história, particularmente
como crítica à Teologia da Libertação, ressurge mais uma vez como “sal” e “luz” para
temperar e iluminar a concretude do reino de Deus nesta hora tão macabra da história
brasileira e da humanidade. Método que atualmente ganha relevância e status teológico no
pontificado do Papa Francisco. Ele tem utilizado com tranquilidade e sem medo este
método, inclusive reformulando nos termos de “contemplar-discernir e propor”
22
.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
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BINGEMER, Maria C. A cultura do encontro. Revista Dom. Disponível em: https://domtotal.com/
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fraternidade-2022-foi-apresentada-aos-bispos-reunidos-em-assembleia/. Acesso em 15.03.2022.
CNBB. Mensagem ao povo brasileiro. 59ª. Assembleia Geral da CNBB. “A esperança não
decepciona” (Rm 5,5). Disponível em: https://www.cnbb.org.br/mensagem-povo-brasileiro-fe-
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www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
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Disponível em: https://crbnacional.org.br/campanha-da-fraternidade-2022/. Jan. 6. 2022. Acesso
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LOPES, Antônio de Lisboa Lustosa e PERTILE, Cassiano A. O Método Ver-J ulgar-Agir: genealogia e
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Pelotas, V. 22, N. 2/2020. p. 33-43). Disponível em: https://revistas.ucpel.edu.br/rrf/article/
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MEB. Movimento de Educação de Base. https://www.meb.org.br/metodologia/. Acesso em
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SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não salvação. São Paulo: Paulinas, 2008.
SUSIN, Luiz Carlos. Teologia da Libertação: de onde viemos, para onde vamos. Teologia da Libertação,
40 anos. Voices. EATWOT, v. 36, ed. 4, Oct/Dec 2013. p.25-34.
22 FRANCISCO, Vamos sonhar juntos, p.153.
ZANINI, Rogério L.; GONÇALVES, Humberto Maiztegui
Fraternidade e educão: A Campanha da Fraternidade numa abordagem freiriana do método Ver-Julgar-Agir
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 10-18, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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International License.
REFLEXÕES SOBRE A
METODOLOGIA CATEQUÉTICA
um caminho de aproximação,
escuta e presença
REFLEXIONS ABOUTTHE
CATECHETICAL METHODOLOGY
a path of approximation,
listening and presence
Maria Aparecida Barboza*
Paulo Cesar Gil**
Resumo: A metodologia catequética parte da pedagogia divina e tem por
princípio a fidelidade à Palavra de Deus e à realidade da experiência
humana. A transmissão da às novas gerações requer uma metodologia
catequética processual. Os desafios do nosso tempo, exigem uma
metodologia no horizonte da Pedagogia da Presença que propõe itinerários e
processos como caminhos de aproximação, encontro com a Pessoa, com a
Palavra de Deus e com a Comunidade. Uma metodologia que vai além do
estabelecer metas e objetivos, mas que considere a realidade dos interlocutores,
as ciências pedagógicas e a psicologia das idades e que favoreça um processo
interativo de amadurecimento na fé, de experiência do encontro com Jesus
Cristo, da pertença comunitária e do compromisso social.
Palavras-chave: Metodologia. Catequese. Escuta. Pedagogia da presença.
Abstract: The catechetical methodology is based on divine pedagogy and
has, as its principles, fidelity to the Word of God and the reality of human
experience. The transmission of faith to new generations requires a
procedural catechetical methodology. The challenges of our time demand a
methodology that be within the scope of the Pedagogy of Presence, which
proposes itineraries and processes as paths of approximation, encounter
with the person, with the Word of God and with the Community. Such
methodology goes beyond establishing goals and objectives, taking into
account the reality of its interlocutors, the pedagogical sciences and the
psychology of the ages; thus fostering an interactive process of maturation
in, and within, the faith, of experiencing the encounter with Jesus Christ,
of community belonging and of social commitment.
Key-words: Methodology. Catechism. Listening. Pedagogy of Presence.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 19-29, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.85
* Religiosa da Congregação das Irmãs do
Imaculado Coração de Maria; Conselheira
geral da Animação Missionária na
Congregação; Mestra em Teologia Bíblia,
especialista em pedagogia-catequética;
doutoranda em Teologia na PUC-RS;
membro do grupo de reflexão bíblico-
catequética (GREBICAT) da CNBB e
coordenadora da Iniciação à Vida Cristã na
arquidiocese de Porto Alegre. Tem
experiência nas áreas: Bíblia, Catequese e
Teologia Pastoral.
E-mail: barboza.icm@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-5025-7486
** Presbítero da Arquidiocese de São Paulo,
formado em Teologia e Pedagogia,
especialista em Psicopedagogia e Terapia
Familiar Sistêmica. Assessor para a
Animação Bíblico-Catequética na
Arquidiocese de São Paulo. Professor
convidado em escolas regionais, diocesanas e
universidades.
E-mail: ppaulogil17@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6072-4818
Recebido em 06/07/2022
Aprovado em 15/08/2022
20
INTRODUÇÃO
Falar da metodologia catequética em tempos de complexidade e de fragmentação
pastoral é colocar-se na dinâmica de uma viagem e percorrer caminhos que possibilitam
revisitar a fonte: a pedagogia divina ou mistério da encarnação. Dessa fonte emana: a
solidez, a garantia e a convicção de que estamos num caminho seguro para os processos e,
quando alicerçados numa raiz profunda, jamais deixam de produzir seus frutos. O
Diretório para a catequese acentua que
o mistério da encarnação inspira a pedagogia catequética, e tem suas implicações
para a metodologia da catequese, que deve ter por referência a Palavra de Deus
e, ao mesmo tempo, assumir as instâncias autênticas da experiência humana.
Trata-se de viver a fidelidade a Deus e às pessoas, a m de evitar qualquer
oposição, ou separação, ou neutralidade entre e método e conteúdo
1
.
A metodologia catequética tem sua raiz fundamentada na pedagogia de Jesus que em
sua íntima comunhão com o Pai e o Espírito Santo interage com seus interlocutores,
dando um novo sentido à vida. Na verdade, ela “não depende tanto de grandes programas
e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade,
como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino” (DAp 11).
Metodologia enquanto expressão, origina-se do grego e é composta por duas
palavras: método e logos μέθοδος (méthodos) e λo.γος (logos) que pode ser traduzido
por “ciência, estudo, tratado”. Portanto, método também pode ser definido como a ciência
do método. Assim sendo, podemos compreender o método como caminho que indica a
direção, as estratégias, metas e os objetivos que se desejam alcançar.
No tocante à catequese, e, sobretudo a catequese a serviço da Iniciação à vida cristã, o
método é sempre processual, pois, além de estabelecer metas e objetivos, considerando a
realidade dos interlocutores, as ciências pedagógicas e a psicologia das idades, possibilitam
um caminho interativo de amadurecimento na fé: na experiência do encontro com Jesus
Cristo e no crescimento de pertença comunitária e do compromisso social.
Diante da pluralidade de métodos que são riquezas para a catequese e a
evangelização, o Diretório para a Catequese chama atenção para a metodologia da
catequese, que tem por referência a Palavra de Deus e, por isso o princípio da fidelidade à
Palavra e à realidade da experiência humana
2
.
Ao mesmo tempo, acentua que a catequese valoriza a pluralidade desde que sejamos
guiados pelo princípio do Evangelho:
A Igreja, mantendo viva a primazia da graça, sente com responsabilidade e
sincero cuidado educacional a atenção aos processos catequéticos e ao método.
A catequese não tem um método único, mas está aberta a valorizar diferentes
métodos, relacionando-se com a pedagogia e didática, e permitindo-se guiar
pelo Evangelho necessário para reconhecer a verdade do ser humano. No
decorrer da história da Igreja, muitos carismas de serviço à Palavra de Deus
geraram diferentes itinerários metodológicos, um sinal de vitalidade e riqueza
3
.
A metodologia catequética propõe um caminho processual que conduz o
catequizando ao encontro com Jesus Cristo que dá o verdadeiro sentido da vida.
1 PONTIFICIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVENGELIZAÇÃO. Diretório para a catequese, n.194.
2 Uma metodologia que requer coerência, testemunho e vivência na fidelidade a Deus e às pessoas, a fim de evitar
qualquer oposição, ou separação, ou neutralidade entre método e conteúdo (DPC 194).
3 PONTIFICIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVENGELIZAÇÃO. Diretório para a catequese, n.195.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 19-29, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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O episcopado brasileiro em seu Documento Catequese Renovada, alerta para a
necessidade de uma metodologia que leve em consideração o princípio metodológico da
interação fé e vida.
Na catequese realiza-se uma inter-ação (= um relacionamento mútuo e eficaz)
entre a experiência de vida e a formulação da fé; entre a vivência atual e o dado
da Tradição. De um lado, a experiência da vida levanta perguntas; de outro, a
formulação da é busca e explicitação das respostas a essas perguntas. De um
lado, a propõe a mensagem de Deus e convida a uma comunhão com ele; de
outro, a experiência humana é questionada e estimulada a abrir-se para esse
horizonte mais amplo
4
.
Assim sendo, nosso artigo situa-se dentro do contexto de uma metodologia de inspiração
catecumenal que propõe uma catequese blico-vivencial, que provoque a experiência do
encontro pessoal e comunirio com Jesus Cristo, o pertencimento comunitário e a
transformão da sociedade. Para isso, pretende-se percorrer o itinerio de uma metodologia
cateqtica que acentua o caminho de aproximação: encontro com a Pessoa, o caminho de escuta:
encontro com a Palavra e o caminho da pedagogia da presença
5
: o encontro com a Comunidade.
1 NOVOS TEMPOS, NOVAS METODOLOGIAS
Para atender as demandas do nosso tempo é urgente uma metodologia catequética
mais apropriada. Ou seja, uma metodologia catequética processual, que favoreça os meios
e os instrumentos adequados para o anúncio e a vivência do querigma, que acompanham
os processos e itinerários catequéticos inspirados na pedagogia de Jesus que é marcada pela
valorização da pessoa, pela acolhida, pela presença, pela proximidade e pelo diálogo. Por
isso, ela possui duplo objetivo: fazer amadurecer a fé inicial e educar os catequizandos para
uma vida discipular em Jesus Cristo, mediante um conhecimento mais aprofundado e
sistemático da Pessoa e da mensagem de Cristo
6
.
Os novos tempos requerem uma metodologia cateqtica que vai além dos recursos
tecnológicos “é muito mais que uma técnica: é a mística do discípulo missionário”.
7
Ela não se
prende às regras e normas cnicas de um todo pastoral com rigor científico, ela conduz à
experiência do encontro com Jesus que dá sentido à vida e desperta para o encantamento discipular.
Assim, é possível perceber que mais do que um método, faz-se necessário estabelecer
o princípio metodológico, que perpasse todo o processo iniciático da e que garanta
fidelidade na transmissão dos conteúdos e a interação com os interlocutores. Para isso, faz-
se necessário o conhecimento dos interlocutores, do conteúdo e das estratégias:
Conhecer, valorizar e respeitar as diferentes idades dos catequizandos.
Conhecer os conteúdos da catequese para poder adaptar às diferentes realidades
dos catequizandos e conhecer bem os recursos necessários para a transmissão da
fé, utilizando diferentes textos e estratégias na catequese, mas sempre
adequados aos temas e à realidade dos catequizandos, possibilitando a
participação de todos num processo permanente de educação da de forma
dinâmica, atraente e comprometida
8
.
4 CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Catequese renovada - Orientações e conteúdo, n. 113.
5 O termo Pedagogia da Presença, foi utilizado pelo pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa com relação a projetos
sociais na área de educação, onde afirma que a pedagogia da presença, enquanto teoria implica os fins e os meio de
uma modalidade de ação educativa, se propõe a viabilizar este paradigma emancipador, através de uma correta
articulação do seu ferramental teórico com propostas concretas de organização das atividades práticas (Pedagogia da
Presença-da Solidão ao Encontro, p.34).
6 JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica, Catechesi Tradendae, n.19.
7 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT, Metodologia pastoral, p.5.
8 Paulo Cesar GIL, Metodologia catequética, p.20.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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Passo Fundo, v.39, n.133, p. 19-29, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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Esse artigo, sem a pretensão de dar resposta aos novos desafios, traz uma
colaboração no horizonte da metodologia não tanto fixada em técnicas, mas em processos
que abordam a Metodologia Catequética como um caminho de aproximação, escuta e presença
9
.
Para uma melhor compreensão da Metodologia Catequética no horizonte da
Pedagogia da Presea, buscamos dialogar com o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa,
que na década de 70, desenvolveu um trabalho com educandos em situação de risco pessoal e
profissional na defesa da convivência social dos educandos. Partindo do processo educativo e
da convivência social ele sistematizou os fundamentos da pedagogia da presença, como base
para o desenvolvimento da relação entre educador e educando como força motora do
processo. Para ele, a inspiração nasceu do pensamento: Quem o sentiu, em algum momento de
sua vida, a presença de quem estava longe e a ausência de quem estava perto
10
. É um inteirar-se
pelo cotidiano das pessoas. É mais que um estar presente, é um SER PRESENÇA.
O Papa Francisco em 2003, também abordou esse tema da Pedagogia da Presença em
sua carta anual aos catequistas, ainda como cardeal em Buenos Aires
11
em cada ano ele
acentuava um tema e recordava aos catequistas a importância da fidelidade ao chamado, do
anúncio do querigma, da Igreja em saída, do deixar-se encontrar por Jesus para poder
ajudar no encontro, na proximidade e na acolhida ao outro, como também, no recomeçar
sempre a partir de Cristo.
Para ele, a pedagogia da presença se caracteriza pela capacidade de acolher, cuidar do
outro e do empenhar-se para que ninguém fique à margem do caminho, assim ele
escreveu: “Convido-te a renovar tua vocação de catequista e colocar toda tua criatividade
em “saber estar” próximo de quem sofre, realizando uma “pedagogia da presença”, para que
a escuta e a proximidade não sejam apenas um estilo, mas um conteúdo da catequese”.
Na verdade, a pedagogia da presença “é parte do esforço coletivo na direção de um
conceito e de uma prática menos irreais e mais humanos de educação, pois sua realização
permite ao educando superar o isolamento e a solidão”
12
.
Pode ser definida também, por uma metodologia segundo a qual o educador precisa
estar sempre junto do educando para que o aprendizado aconteça. Ela permite a
interatividade onde a pessoa interage com o meio em que vive com habilidades e
capacidades para escutar, dialogar, falar, participar e propor soluções conjuntas.
Na verdade, na pedagogia da presença não existe ausência. O ser humano, que é um
ser de relação, por natureza, é um ser sempre presente. Portanto, num mundo onde o ser
humano é visto e valorizado pelo sucesso do poder e do fazer, é necessário acentuar a
dimensão do SER. Na verdade, na ação evangelizadora o SER vale muito mais que o
FAZER. São as atitudes e as posturas que revelam quem somos e o que fazemos.
A relão entre catequista, catequizando, famílias, comunidade e sociedade, do ponto de
vista da pedagogia da presea, baseiam-se nos prinpios: abertura, acolhida, proximidade,
reciprocidade, empatia e compromisso. O outro é um irmão e irmã, companheiro de viagem, um
aprendiz sempre. Todos agem com responsabilidade e compromisso com a promão e defesa
da vida e da casa comum. A metodologia catequética compreendida pelo horizonte da Pedagogia
da Presea fa grande diferença no processo iniciático da bem como, na ão pastoral.
9 A palavra presença, embora não seja de uso frequente no domínio da pedagogia, apresenta um conteúdo relacional
que faz dela a mais exigente das realidades e desafios do nosso tempo. Segundo esse enfoque, na Pedagogia da
Presença, cada membro da Família, Sociedade e Comunidade tem sua importância fundamental e são respeitados e
valorizados em sua essência e dignidade.
10 Antonio Gomes da COSTA, Pedagogia da Presença-da Solidão ao Encontro, p.55.
11 Jorge Mário BERGOGLIO, Queridos catequistas. Cartas, homilías y discursos. Editorial: Promoción Popular Cristina,
2013. Tradução em português. Papa Francisco. Aos catequistas: Sai, buscai, batei! São Paulo: Fons Sapientiae, 2020.
12 Antonio Gomes da COSTA, Pedagogia da Presença-da Solidão ao Encontro, p.34.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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2 CAMINHO DE APROXIMAÇÃO COM A PESSOA (ENCONTRO)
Enquanto conversavam e discutiam entre si, o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a
caminhar com eles” (Lc 24,15)
A pedagogia de Jesus, proposta pela comunidade lucana, leva o leitor a perceber um
itinerário de maturação da fé que se dá pelo processo de um itinerário que provoca encontro
com a pessoa (Lc 24,13-24), um encontro com a Palavra (Lc 24,25-27) e um encontro com a
Comunidade (Lc 24,28-35). No itinerário proposto pela comunidade lucana percebe-se todo
um processo de iniciação no conhecimento de que Jesus, com o peregrino que se aproxima
através da pedagogia da presença. É a Palavra que faz arder o coração dos discípulos, arranca-os
da escuridão, da tristeza e do desânimo, suscita neles o desejo de pertencimento: permanece
conosco, pois cai a tarde e o dia declina (Lc 24,29) e o encantamento pela missão: naquela
mesma hora, levantaram-se e voltaram para Jerusalém (Lc 24,33).
Jesus se aproxima e caminha com eles, primeira atitude de abertura para que o
verdadeiro encontro aconteça. A iniciativa é do Senhor! Aproximar, caminhar e dialogar,
são atitudes fundamentais da metodologia catequética
13
.
Para a experiência humana de viver e conviver é fundamental que a pessoa esteja
disponível para o encontro com outro. Ao nascer, o ser humano chega para uma aventura
humana, nem sempre tranquila, como a quietude intrauterina. No ventre materno, em
ambiente interativo, envolvente e estimulante ao desenvolvimento da vida, o bebê passa
por inúmeras vivências multissensoriais para a sua adaptação ao nascimento. Depois de
um período tão especial, a criança vem ao mundo para interagir e viver a longa jornada de
interação com o mundo, com as pessoas e com si mesmo. É nessa fase de encontro com
pessoas importantes e significativas para a criança, que ela descobre o amor. Um amor que
se revela na sensação de confiança, segurança e afeto. Essa iniciação ao afeto e ao amor
verdadeiro é a base para a construção de uma relação com Deus.
O ambiente familiar é espaço de vida, amor e fé. A interação entre os membros da
família torna-se fundamental na arte de viver. Quando uma família participa ativamente
da vida de seus membros, de forma saudável e assertiva, contribui muito como fonte de
apoio social. O bom funcionamento da família e a qualidade das interações entre seus
membros favorecem a rica experiência do encontro.
Ao pensar a ação catequética, cabe ressaltar que toda atividade, em diferentes
dinâmicas e funcionamento, deve levar o catequizando: criança, jovem ou adulto, ao
encontro pessoal e íntimo com o Jesus Cristo. Um encontro que acontece também no
encontro entre as pessoas e delas com o Mestre.
Jesus, o catequista da Palestina, nos deixou essa lição, amar e servir, anunciar a Boa
Notícia de Deus que é a salvação para todos. “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu
Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De
fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o
mundo seja salvo por ele” (Jo 3,16-17).
A metodologia catequética, sempre aberta para valorizar e adequar diferentes
métodos na ação educativa da catequese propõe diferentes caminhos para apresentar e
aprofundar o conteúdo e mensagens adequadas a cada idade e realidade dos catequizandos.
A Palavra de Deus é sempre a mesma, mas os diversos serviços e fases da catequese
geraram diferentes itinerários metodológicos.
13 Jesus se a conhecer numa metodologia simples; Ele aproxima-se das pessoas, dando-se a conhecer a partir das
necessidades concretas de cada situação.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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Passo Fundo, v.39, n.133, p. 19-29, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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A idade e o desenvolvimento intelectual dos cristãos, bem como o seu grau de
maturidade eclesial e espiritual e muitas outras circunsncias pessoais exigem que a
catequese adote métodos muito diversos». A comunicação da na catequese,
que também passa pela mediação humana, continua sendo um evento da graça,
realizado pelo encontro da Palavra de Deus com a experiência da pessoa
14
.
Os caminhos propostos pela metodologia catequética, podem garantir um novo agir,
criativo, atualizado e envolvente. Todas as ferramentas, técnicas e recursos, serão
fundamentais para o processo de crescimento da e para a interação dos catequizandos e
famílias no engajamento pastoral, na vida cristã, em comunidade de vida e fé. Todos os
caminhos devem ser construídos e revelam o jeito de a Igreja compreender a si mesma e de
acolher o mundo como campo de missão.
Na história da catequese, sempre fiel à missão da Igreja que é evangelizar, é
possível destacar diferentes metodologias para uma efetiva caminhada
catequética. Diferentes métodos em diferentes momentos históricos foram
inspiradores para a Catequese em sua missão de formar discípulos missionários
de Jesus Cristo. Ele mesmo percorreu um longo caminho para formar uma
comunidade que nasceu do anúncio da Palavra
15
.
Mas todo caminho, como processo de educação da fé, favorece a rica experiência do
encontro com o Senhor e ao encantamento pela sua pessoa, pensamento e ensinamentos
que abrem a mente e o coração de quem aproxima-se dele na busca de conversão. Esse
encontro é um acontecimento para a vida inteira.
Ao início do ser cristão, não uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo
horizonte e, desta forma, o rumo decisivo
16
.
Não podemos deixar de olhar para a missão de transmitir a cristã, sem considerar
a alegria do encontro entre as pessoas e delas com Deus.
Como um dos caminhos propostos pela metodologia catequética, o caminho do
encontro é envolvente e acolhedor porque diminui a distância entre todos nós e aproxima
as pessoas no encontro com o Senhor.
Encontramos Jesus enquanto caminhamos na direção do seu amor e na busca de suas
palavras para acolhermos a Boa Nova do Reino. E com ele podemos resgatar o que de fato
traz sentido a nossa vida. Todo catequista, mediador e educador da fé, favorece a
comunhão com a pessoa de Jesus
17
.
Como mediador o catequista também é o acompanhador. Ele caminha com seus
catequizandos levando-os no caminho do discipulado, podendo “partilhar a missão de
fazer acontecer o Reino no mundo de hoje”
18
. Com uma metodologia adequada, a catequese
prepara-se para um novo tempo. Estamos diante de um desafio que requer novas
iniciativas para orientar a vida dos catequizandos, pautado nos valores do Evangelho.
O caminho do encontro é sustentado pelo exemplo de Jesus que se aproxima das
pessoas para um convite especial: pensar e agir com coerência e liberdade, mas também,
viver e anunciar o que se crê e assumir uma vida comunitária e solidária.
14 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO, Diretório para a Catequese, n.195.
15 Paulo Cesar GIL, Metodologia catequética, p.10.
16 BENTO XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est, n.1.
17 A finalidade definitiva da catequese é a de fazer que alguém se ponha, não apenas em contato, mas em comunhão, em
intimidade com Jesus Cristo: somente Ele pode levar ao amor do Pai no Espírito e fazer-nos participar na vida da
Santíssima Trindade (CT n.5)
18 CNBB, Iniciação à vida cristã: itinerário para formar discípulos missionários, n.39.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 19-29, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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O encontro com Jesus é uma grande oportunidade para se sentir livre e para
viver e celebrar a alegria do amor. Estar com Ele é uma experiência inspiradora
e motivadora para a simplicidade, pois Deus se torna simples querendo
encontrar e relaciona-se com cada pessoa humana. Assim, o encontro entre as
pessoas deveria se dar na mesma disposição... Quando pessoas se encontram,
vidas se encontram
19
.
O encontro entre nós e com nossos catequizandos, faz o caminho do discipulado
tornar-se mais fecundo. O cristão, discípulo missionário do Mestre e Senhor Jesus, se
torna mais que um ouvinte, é um aprendiz que aprende enquanto caminha. Não é o
método que realiza o encontro, mas a disponibilidade para encontrar Jesus: Caminho,
Verdade e Vida (Jo 14,6).
3 CAMIN HO DE ENCONTRO COM A PALAVRA
E, começando com Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as
Escrituras o que a ele dizia a respeitos” (Lc 24,27)
A catequese de Jesus começa pela memória da Palavra de Deus, para relembrar aos
discípulos que o caminho percorrido pelo Cristo, já estava previsto nelas: E, começando por
Moisés e passando por todos os profetas, explicou todas as Escrituras, as passagens que se referiam a
ele (Lc 24,27).
Por meio da pedagogia da presença, Jesus faz com que os discípulos gradativamente
abram os olhos para enxergar os acontecimentos com o um novo olhar. O olhar das
Escrituras. Palavra que aquece o coração e desperta o encantamento para a missão.
Recorrendo às Escrituras, Jesus faz a narrativa da pedagogia divina, do plano salvífico do
Pai. Do mesmo modo se dirige a nós, discípulos desta época em mudanças, para
descobrirmos diante de nossos olhos e nosso coração a boa nova do evangelho que
sentido às situações vitais e recria a esperança de um novo tempo.
O encontro com a Palavra de Deus gera novos discípulos missionários de Jesus
Cristo em comunidades eclesiais missionárias
20
com espírito de pertencimento, adesão e
acolhida à Palavra que requer esforço para compreender e testemunhar a mensagem.
A Bíblia, palavra de Deus, ocupa lugar especial na vida dos ouvintes: nela, a Igreja
reconhece o testemunho autêntico da Revelação divina. Por isso, a grande insistência
desde João Paulo II “a fonte na qual a catequese busca a sua mensagem é a Palavra de Deus.
A catequese de haurir sempre o seu conteúdo na fonte viva da Palavra de Deus,
transmitida na Tradição e na Escritura” (CT 27). Na mesma linha insistia Bento XVI: “a
atividade catequética implica em abeirar-se das Escrituras na e na Tradição da Igreja, de
modo que aquelas palavras sejam sentidas vivas, como Cristo está vivo hoje onde duas ou
três pessoas se reúnem em seu nome (Mt 18, 20)” (VD 74).
A Palavra provoca um encontro que contagia. A Igreja é uma comunidade que
escuta e anuncia a Palavra de Deus. Ela não vive de si mesma, mas do Evangelho; e do
Evangelho tira, sem cessar, orientação para o seu caminho.
Por isso, a insistência dos bispos no Brasil em acentuar a Leitura Orante da Bíblia
como caminho de encontro com a Palavra que um novo rumo à vida de quem se deixa
encontrar-se por ela. O discípulo missionário é convidado a redescobrir o contato pessoal e
19 Paulo Cesar GIL, Metodologia catequética, p.54.
20 O termo Comunidades Eclesiais Missionárias (CEM) é utilizado pelo Episcopado Brasileiro nas Diretrizes Gerais da
Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2019-2023, na 57ª Assembleia Geral em Aparecida, 01 a 10 de maio de 2019,
para acentuar a importância das comunidades como espaço acolhida, formação de discípulos missionários e do
vínculo de pertença comunitária.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 19-29, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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comunitário com a Palavra de Deus como lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo.
Na verdade, a Leitura Orante da Palavra de Deus é um recurso muito importante para
iniciar novos cristãos e, ao mesmo tempo, manter toda a comunidade no caminho da
escuta obediente da Palavra.
A Igreja hoje tem consciência de que “particularmente as novas gerações têm
necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus através do encontro e do testemunho
autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande companhia que é a
comunidade eclesial” (VD 97).
O processo catecumenal propõe uma catequese “impregnada e embebida de
pensamento, espírito e atitudes bíblicas e evangélicas, mediante um contato assíduo com
os próprios textos sagrados” (VD 74).
Narrar, explicar as Escrituras é lembrar a prática, a missão e os ensinamentos de
Jesus. Essa prática pedagógica de Jesus ensinar gerou uma mudança de mentalidade e de
atitude nos discípulos a ponto de voltar para a missão em comunidade. Retornam pelo
mesmo caminho, mas com um novo olhar. “Uma comunidade que assume a iniciação
cristã renova sua vida comunitária e desperta seu caráter missionário” (DAp 291).
O percurso realizado por Jesus com os discípulos de Emaús, é um modelo
inspirador para a inicião à vida cris em seu núcleo essencial, pois trata-se de um
encontro vital com o Senhor, ampliando a audição e compreeno de sua palavra, a
adesão ao seu projeto e a celebração da fé. Assim diz Aparecida: “a iniciação cristã a
possibilidade de uma aprendizagem gradual no conhecimento, no amor e no seguimento
de Cristo. Ela forja a identidade cristã com as convicções fundamentais e acompanha a
busca do sentido da vida” (DAp 291).
Tornemos a nossa catequese cada vez mais narrativa. O evangelho é uma narrativa
catequética da vida e dos ensinamentos de Jesus. A catequese, e, sobretudo, a catequese de
inspiração catecumenal, precisa ser narrativa, ou seja, partir dos atos e palavras de Jesus
que, nele, Deus se revela, e não, somente, expor ideias e doutrinas. Não se trata apenas de
contar a vida de Jesus, mas de mostrar que em Jesus o caminho da de Israel, chega à sua
plenitude e revela o caminho salvador de Deus, presente desde sempre de diversas formas.
Além dos discípulos de Emaús, encontramos no Novo Testamento rios exemplos
de pessoas que, ao fazerem a experiência da no encontro com Jesus Cristo, seus sonhos
foram alimentados e suas vidas transformadas. Vejamos alguns deles: Nicodemos e sua
ânsia de vida eterna (Jo 3,1-21); O cego Bartimeu, modelo de discipulado que acolhe a cura
e se torna seguidor de Jesus: No mesmo instante recuperou a vista e O seguiu no caminho (Mc
10,52). Zaqueu, com sua vontade de ser diferente, passa por uma mudança radical: Senhor,
eis que dou a metade de meus bens aos pobres, e se desfraudei a alguém, restituo-lhe o
quádruplo (Lc 19, 8); O cego de nascimento e seu desejo de luz interior (Jo 9); A
Samaritana e seu desejo de saciar sua sede. Ela pede da água da Vida e se torna missionária
entre o seu povo: Senhor, -me desta água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha que vir
aqui para tirá-la(...) a Mulher, então, deixou seu ntaro e correu à cidade, dizendo: Vinde ver
um homem que diz tudo o que fiz (Jo 4,15.28-29). Todos eles, graças a esse encontro, foram
iluminados e recriados, porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai, que se
oferece por sua Palavra de verdade e vida (DAp 249).
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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4 CAMINHO DE ENCONTRO COM A COMUNIDADE
Entrou então paracar com eles. E, uma vez à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-
o, depois partiu-o e deu-o a eles. Naquela mesma hora, levantaram-se e voltaram para
Jerusalém, onde a comunidade estava reunida” (Lc 24,29-30.33)
A acolhida, a proximidade e o caminhar, juntos, são pequenos gestos que fazem toda a
diferença na ação evangelizadora. O Papa Francisco insiste numa Igreja que vai ao
encontro das pessoas:
a Comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa,
precedeu-a no amor (cf. Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a
iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às
encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Convida mesmo para
atitudes corajosas: Ousemos um pouco mais no tomar iniciativa! (EG 24).
Acolher e evangelizar são objetivos que requerem atitudes concretas de conversão.
“O pondo de partida da conversão missionária é sair, aproximar-se das pessoas e acolhê-las
nas situações em que se encontram” (EG 177).
Quando se aproximam da aldeia, os discípulos, então, tomam a iniciativa e
convidam Jesus para permanecer com eles. Jesus agora, não é mais o peregrino,
estrangeiro, mas o hóspede esperado. Na tradição bíblica, convidar uma pessoa para entrar
na casa e fazer uma refeição junto, se faz com amigos e familiares. Quando cresce a
confiança se estabelecem relações. O tempo é favorável para uma refeição: é tarde e o dia
declina (Lc 24,29). Ao cair da tarde, aquela ceia dos discípulos de Emaús com Jesus (Lc
24,30) é a “fração do pão” (At 2,42), que o evangelista Lucas apresenta quase com os
mesmos verbos empregados no relato da instituição da Eucaristia (Lc 22,19). A palavra é
compreendida a partir da experiência concreta do partir o pão. Não estava ardendo nosso
corão quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?(Lc 24,32). A palavra
aquece o coração, a eucaristia, gesto da partilha, abre os olhos para a missão.
Jesus ao narrar as Escrituras e ao partir o pão, aquece o coração dos Discípulos que
retomam no caminho de volta para Jerusalém com novo sentido de vida. Com o coração
aquecido, eles se põem a caminho, ao encontro dos outros discípulos, para contar a alegria
do encontro, assumir a missão de formar comunidades e anunciar a boa nova de Jesus
Cristo. Os discípulos voltam à comunidade com um novo olhar. Refazem o caminho, com
espírito novo e com melhor compreensão da missão.
As Escrituras indicam o caminho a seguir. Os discípulos de Ems reconhecem o Mestre
e expressam seu entusiasmo dizendo:Não estava ardendo nosso corão...?”. O coração aquecido os
impulsionou para o dinamismo, para a missão. É com renovado ardor pela presea e
proximidade com o Ressuscitado que os olhos se abrem e o coração se aquece. Agora, o novo
ardor se espalha. Sai do coração e chega à mente, à conscncia e desce aos s daqueles que
evangelizam (Is 52,7). Eles compreendem e interpretam o caminho percorrido e essa tomada de
conscncia, interpretando o pprio itinerio, é fundamental no processo evangelizador.
A rotina pastoral, catequética e celebrativa, em lugar de atrair, muitas vezes afasta as
pessoas. O Documento de Aparecida ressalta que nenhuma comunidade deve isentar-se de
entrar decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação missionária e de
abandonar as ultrapassadas estruturas, que não favoreçam a transmissão da (DAp 365). É
necessário criatividade e entusiasmo dos evangelizadores e da própria comunidade, pois a
conversão pastoral de nossas comunidades exige que se vá além de uma pastoral de mera
conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DAp 370).
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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A Eucaristia é comunhão com a Palavra e com o Corpo do Senhor, o corpo
sacramental, que é o o eucarístico, e com corpo eclesial, que é a Igreja. Em cada
celebração eucarística “o encontro com o Ressuscitado se realiza mediante a participação
na dupla mesa da Palavra e do Pão da Vida” (DD 39).
No encontro com Jesus Cristo, os discípulos são reconduzidos no caminho de volta
para Jerusalém. O encontro com Jesus devolve a eles as condições para a sua reintegração
na comunidade, espaço vital onde se pode fazer a experiência do Ressuscitado e ambiente
que sustenta e legitima a proclamação da em Cristo vivo. “A comunidade é o lugar por
excelência da catequese. É o lugar da iniciação à vida cristã e da educação na das
crianças, adolescentes, jovens e adultos batizados e não suficientemente evangelizados”
21
.
É a partir de Jerusalém que o querigma precisa ser anunciado: Mas vós recebereis o
poder do Espírito Santo que virá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, por toda
a Judeia e Samaria, e até os conns da terra” (At 1,8).
O caminhar e o permanecer de Jesus com os discípulos possibilitaram o itinerário da
iniciação à fé. O Papa Francisco nos adverte afirmando que o olhar de Jesus gera uma
atividade missionária, de servo, de entrega.
De fato, o discípulo missionário é um itinerante, está sempre a caminho. A narrativa
não termina no rito gestual de partilha, nem na emoção do encontro ou na celebração,
mas relata a mudança de atitude na vida dos discípulos. O encontro com o Ressuscitado
transforma o medo em coragem; a fuga, em empolgação; o retorno, em nova iniciativa; o
egoísmo, em partilha e compromisso até a entrega da vida. Assim, mais do que o relato de
um encontro de discípulos com Jesus, o texto de Lucas é proposta de resposta, de
comunhão, de comunidade, de missão e de entrega até o fim.
Assim, todo o batizado é constitutivamente discípulo missionárionão existe missão
sem iniciação. A iniciação à vida cristã trata-se, de um novo estilo de vida. O processo se
de forma interativa, com criatividade e ousadia da iniciativa. O iniciado é
comprometido e próximo da realidade em que se encontra (envolver-se); acolhedor e
disponível para fazer caminho com todos (acompanhar); paciente para recolher os frutos da
sua ação no tempo oportuno (fruticar); capaz de celebrar os pequenos e os grandes passos
da vida (festejar) (EG 24).
CONCLUSÃO
Ao percorrer o caminho da metodologia catequética pelo horizonte da pedagogia da
presença foi possível perceber que falar ao coração das novas gerações requer criatividade,
ousadia e coragem na busca de uma metodologia que seja sólida e eficaz em suas metas e
estratégias.
A metodologia catequética tem sua raiz fundamentada na pedagogia de Jesus que em
sua íntima comunhão com o Pai e o Espírito Santo interage com seus interlocutores,
dando um novo sentido à vida. Na verdade, ela “não depende tanto de grandes programas
e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade,
como discípulos de Jesus Cristo e missionários de seu Reino” (DAp 11).
Por isso, é real a necessidade de aprofundar o tema e propor uma metodologia
cateqtica que acentua o caminho de aproximão e encontro com a Pessoa, o caminho de escuta
e encontro com a Palavra e o caminho da pedagogia da presença e o encontro com a Comunidade.
21 CNBB, Diretório Nacional de Catequese, n.301.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
Reflexões sobre a Metodologia Catequética: um caminho de aproximação, escuta e presença
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No tocante à catequese, e, sobretudo a catequese a serviço da Iniciação à vida cristã, o
método é sempre gradual, pois além de estabelecer metas e objetivos, considerando a
realidade dos interlocutores, das ciências pedagógicas e da psicologia das idades, possibilita
um caminho interativo de amadurecimento na fé, da experiência do encontro com Jesus
Cristo e do crescimento na pertença comunitária e no compromisso social.
A pedagogia da presença vem de encontro com a metodologia de inspiração
catecumenal que pressupõe uma catequese bíblico-vivencial, que provoca a experiência do
encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo, o pertencimento comunitário e a
transformação da sociedade.
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GIL, Paulo Cesar. Metodologia catequética: caminhos para iluminar e comunicar a . Petrópolis:
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SANTOS, Maria de Fátima. Pedagogia da presença: uma estratégia para o sucesso escolar. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal da Paraíba, 2016.
BARBOSA, Maria Aparecida; GIL, Paulo Cesar
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Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
METODOLOGIA PARA UMA LEITURA
POPULAR FEMINISTA DA BÍBLIA
METHODOLOGY FOR A POPULAR
FEMINIST READING OF THE BIBLE
Mercedes de Budallés Diez*
Resumo: O presente texto busca tecer elementos que possam capacitar as
pessoas para uma leitura e reflexão crítica-construtiva dos textos sagrados,
a partir de uma visão feminista de alguns textos bíblicos. Trata-se de
intencionalmente fazer uma leitura feminista-política, porque procura-se
novas respostas visando novas relações de gênero, raça, classe, geração e
religião. Ainda persiste na sociedade a invisibilidade das mulheres, ou seja,
somos as que não contamos! A leitura da Bíblia, no entanto, fundamenta
que somos mulheres e homens filhas e filhos de Deus com os mesmos
direitos e deveres. Com esta leitura da Bíblia, como cristãs, assumimos:
frente à exclusão, queremos proximidade; frente ao mercado total, à
globalização, optamos pela gratuidade; frente à corrupção, nosso
compromisso é a ética. Em tonalidade testemunhal/experiencial buscamos
refletir sobre o método da leitura popular feminista libertadora, com
objetivo de fortalecer e construir uma sociedade de iguais como deseja o
“Deus conosco”.
Palavras-chaves: Bíblia. Mulheres. Libertação. Método.
Abstract: This text aims to weave elements that can enable people to a
reading and a critical-constructive reflection of sacred texts from a
feminist point of view. It is about intentionally doing a feminist-political
reading because new answers are sought aiming at new relations of
gender, race, class, generation and religion. The invisibility of women still
persists in society, that is, they are the ones who do not count. Reading
the Bible, however, establishes that we are women and men, sons and
daughters of God, with the same rights and duties. With this reading of
the Bible, as Christians, we assume in the face of exclusion, we want
proximity; in the face of globalization, we opted for free; in the face of
corruption, our commitment is ethics. In a testimonial/experimental
tone, it is sought to reflect on the method of a liberating feminist popular
reading method, with the objective of strengthening and building a
society of equals as "God with us" desires.
Keywords: Bible. Women. Release. Method.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 30-40, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.86
* Mestre em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo,
atuando principalmente nos seguintes temas:
leitura bíblica, estudos da religião, ciências da
religião e pesquisa bíblica.
E-mail: mercedesbudalles@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2038-6495
Recebido em 08/07/2022
Aprovado em 19/10/2022
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INTRODUÇÃO
Anos atrás, num dia frio do mês de dezembro, Eduardo Galeano foi até a Praça
Catalunha de Barcelona, onde estavam acampados centenas de jovens que se identificavam
como “indignados”. Eu estava lá conversando com um grupo e, quando reconheci Galeano,
corri perto e pedi-lhe que falasse com aquela juventude sedenta de algo novo. Ele falou, e
foi ouvido graças ao auxílio de uma caixa de som portátil dos meus amigos. Ficou bem
dentro do meu ser o que Eduardo Galeano disse sobre a utopia. De fato, ele contou que o
seu amigo, o cineasta argentino Fernando Birri conhecido como o construtor de utopias,
respondeu a um jovem que perguntou sobre o que era a utopia. Eu gravei esta resposta: A
utopia é o horizonte. Se eu me aproximo, ele se afasta. Se caminhamos juntas e juntos uns passos, o
horizonte anda também esses passos. E stá claro que por mais que caminhemos, não chegaremos .
Para que serve, então, a utopia? A utopia serve, e principalmente é, viver e caminhar junto!
Dialogar com a Metodologia moderna, para viver a utopia, especialmente quando
queremos fazer isso a partir do compromisso de uma Leitura Bíblica Popular, e ainda
feminista, exige muita escuta, atenção às experiências de vida e muito caminhar, juntas e
juntos, numa direção concreta. Nosso livro, a Bíblia, é conhecido e valorizado por séculos.
Respeitado como um Livro Sagrado por judeus, cristãos e até por grupos muçulmanos. E
nós não o queremos profanar. Tentaremos, aqui, sintetizar a evolução da compreensão da
Bíblia nos últimos anos e possíveis aproximações.
1 O MÉTODO E SUA EVOLUÇÃO NO ESTUDO BÍBLICO
Queremos ler e entender os textos bíblicos para encontrar respostas e ajudas à nossa
vida tão conturbada no cotidiano. Temos que fazer isso de forma simples, transparente,
metodológica, sem fugir dos avanços das ciências da linguagem e com profundo respeito à
fé milenar. A seguir buscamos elucidar este processo.
Nos novos estudos bíblicos, aplicando às ciências da linguagem, partimos do “texto”,
no seu “contexto vital” e procuramos “crescer o sentido”, ou seja, fazer uma releitura para o
nosso hoje. Assim os primeiros passos dentro das ciências da linguagem são: A EXEGESE,
que significa “tirar fora do texto” o que está dentro, ou seja, procurar a produção de
sentido. Ex = fora + egese, do grego, ago, guiar, conduzir. E a HERMENÊUTICA, é a
ciência que corresponde à “interpretação”. Sentido para o hoje a partir de problemas
atuais. De hermeneu (grego) a interpretare (latim).
Na história e estudo da Bíblia passamos pela preocupação de entender o que está
“atrás” do texto (história, autor) até buscar na “palavra” o acontecimento presente. Na
época medieval e em tempos posteriores lia-se a Bíblia, por exemplo, em sentido literal
(fundamentalista), alegórico (cristológico), moral (relativo aos costumes), ou escatológico
(conduz para). Todas essas leituras confirmam que a Bíblia não esgota seu sentido.
Severino Croatto
1
, pioneiro na América Latina, apontou possíveis aproximações da
Bíblia para a compreensão das pessoas que querem conhecer realmente este texto sagrado
que orienta suas vidas:
1) Considerando-a um texto desatualizado.
2) Assumindo-a como ela está escrita, literalmente (fundamentalismo ou
concordismo).
3) Abordando-a com métodos exegéticos atuais.
1 José Severino CROATTO, Hermeneutica Bíblica, Buenos Aires: Ediciones la aurora. 1984.
BUDALS DIEZ, Mercedes de
Metodologia para uma leitura popular feminista da bíblia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 30-40, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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4) Estudando-a a partir das ciências da linguagem, particularmente desde a
linguística e semiótica narrativa, no estudo dos signos.
5) Entendendo seu conteúdo para hoje, fazendo um estudo hermenêutico.
De forma simples, as aproximações propostas, hoje, têm diferentes enfoques: 1) A
via DIACRÔNICA: quando estudamos o texto no seu caráter cronológico e explicamos a
origem e o processo de sua formação. Logicamente, a hermenêutica está ligada a esta via,
porque estuda a transformação do sentido das palavras, seus significados na história. 2) A
via SINCRÔNICA: se estudamos a significação do texto no seu caráter total, atual. O
“tecido” é analisado segundo sua estrutura. Aprofundando na ciência dos signos, na
semiótica.
E quando encontramos um fato que se repete muitas vezes na Bíblia? O
acontecimento nos leva a vários textos. Mas, o fato fundante traz uma relação de sentido.
Por exemplo, a passagem do Mar Vermelho (Ex 14,22) é interpretada por ocasião da
entrada da terra pelo rio Jordão (Js 3,16-17) e na divisão das águas por Elias (2Rs 2,8). Na
Bíblia, a memória da libertação da escravidão do Egito é apresentada repetidas vezes e em
muitos gêneros literários. Na realidade não é repetição de um fato: é releitura, “reserva de
sentido” onde os acontecimentos “crescem” em sentido. Podemos afirmar, então, que a
Bíblia, antes do que PALAVRA de Deus é ACONTECIMENTO de Deus!
2 ANÁLISE EXEGÉTICA DE TEXTOS BÍBLICOS
2
Se desejarmos aprofundar, mais do que fazer uma simples leitura da Bíblia para
trazer uma mensagem para o hoje, precisamos, ainda, questionar mais o texto para ouvir
tal como foi escrito e, assim, perceber seu sentido. Deste modo, poderemos entendê-lo
melhor, percebendo os detalhes.
Sintetizamos aqui, de forma esquemática, os passos mais importantes que podem e
devem ser estudados exegeticamente em um texto bíblico
3
.
1) CRÍTICA TEXTUAL
Objetivo: Reconstruir o texto primitivo. Verificar a confiabilidade das cópias.
Pressupostos: Comparação dos textos com os manuscritos mais antigos, desconfiar das
variantes tendenciosas, daquelas mais parecidas com os dogmas da época etc.
2) ANÁLISE SEMÂNTICA
Objetivo: Encontrar o verdadeiro significado das palavras e frases em cada texto.
Pressupostos: Pesquisar em outros textos paralelos para verificarmos se essa expressão
é de uma época e lugar ou o. Depois, temos que procurar uma palavra na nossa língua
com as mesmas características semânticas.
3) ESTUDO DAS TRADIÇÕES ou da TRANSMIS SÃO DO TEXTO (histórico-
transmissiva)
Objetivo: Analisar os possíveis estágios de um texto durante seu processo de
transmissão oral até sua escrita e a chegada até nós.
Pressupostos: fazer as comparações entre tradições e manuscritos e procurar dados em
outros documentos, como nos comentários dos Santos Padres.
2 Cassio Murilo Dias da SILVA, “METODOLOGIA DE EXEGESE BÍBLICA”, São Paulo: Paulinas, 2000.
3 Conteúdo muito rico e extenso em WEGNER Uwe, EXEGESE DO NOVO TESTAMENTO. MANUAL DE
METODOLOGIA. Sinodal: São Leopoldo e Paulus: São Paulo, 2002.
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BUDALS DIEZ, Mercedes de
Metodologia para uma leitura popular feminista da bíblia
33
4) CRÍTICA LITERÁRIA
Objetivo: Descobrir a intenção do autor, o que ele quis dizer. Reconhecer a
pseudoepigrafia ou a atribuição fictícia.
Pressupostos: Comparar o texto bíblico com outros documentos (manuscritos de
Qumran, non de Muratori do séc. II, etc.). Verificar, no texto, a unidade literária: o
vocabulário da época, as relações, os paralelismos, os quiasmas, a unidade de estilo, do
tema, etc., ou seja, as relações do conjunto.
5) ANÁLISE DA REDAÇÃO
Objetivo: Captar o interesse de quem escreveu o texto.
Pressupostos: Estudo detalhado do uso do vocabulário, estilo, para ver a lógica
teológica do autor.
6) ESTUDO DA FORMA
Objetivo: Situar os textos dentro do ambiente vital (Sitz im Leben) do Oriente Médio,
do lugar onde foi vivido e escrito o texto para reconhecer sua intencionalidade.
Pressupostos: Identificar a forma literária de cada trecho, seu gênero literário.
7) ANÁLISE DE CONTEÚDO
Objetivo: Analisar o conteúdo, conduzir para fora o que está no texto a partir das
descobertas anteriores.
Pressupostos: Encontrar o eixo do texto à luz do significado no contexto de quando e
onde foi escrito.
8) CRÍTICA HISTÓRICA
Objetivo: Reconstruir os fatos narrados segundo a objetividade histórica. Fazermos a
pergunta: esses fatos aconteceram?
Pressupostos: Uso de testemunhos arqueológicos e outros documentos da mesma época.
Especialmente, depois do Concílio Vaticano II, a pergunta que os teólogos/as sempre
fazíamos era: como ler a Bíblia assim com nosso povo semianalfabeto, com as mulheres, os
jovens e crianças das nossas comunidades?
Parto da minha própria experiência: como aprendi a ler a Bíblia nas comunidades
com quem compartilhava a vida? Como explicar a descoberta de novas leituras que
vivenciávamos e partilhávamos? De fato, fui aprendendo uma nova Teologia e auma
nova religião. Pela graça de Deus, naquele tempo conheci o CEBI, Centro de Estudos
Bíblicos. À luz da vida e de uma candeia, pelas noites, lia o que chegava às minhas mãos. E
aprendia, praticava. À luz da Palavra e especialmente da vida daquele povo do interior, no
norte do Brasil, os textos cresciam e traziam respostas às minhas muitas perguntas.
Aconteceu algo marcante para aprender uma nova maneira de ler a Bíblia. Foi a
pergunta de uma criança. Pelos anos 1980-1986, morei em Conceição do Norte, à época,
Estado de Goiás e, hoje, Conceição do Tocantins. Lá, ia aprendendo outra forma de vida.
Um dia, fui substituir uma catequista que estava com febre e pediu ajuda na última hora.
Deveria ler e vivenciar a parábola do filho pródigo do Evangelho de Lucas 15,11-22. Agi
rápido e fui para ler e recontar a história que as crianças desenharam e encenaram com
facilidade e gosto. na roda final, prontas para rezar e despedir, me surpreendeu a
pergunta de uma menina: cadê a mãe do rapaz malandro? Eu perguntei às crianças: o que
vocês acham, esse rapaz malandro tinha mãe? Depois de uma pequena discussão entre os
participantes com motivações pouco adequadas, uma menina afirmou categoricamente:
“Sim, tinha mãe e ela estava lá junto do pai. Lá em casa é assim. Quando um filho apronta e
o pai perdoa, a mãe sempre está perto”. As crianças bateram palmas. E eu senti, nesse
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 30-40, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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instante, como essa menina me deu três chaves de leitura: usar a linguagem e as palavras
mais conhecidas do que ‘filho pródigo’. Lá, “em casa é assim”. Casa, como lugar do
cotidiano deve ser o espaço da leitura e compreensão, o lugar da vida. E “a mãe sempre está
lá”. As mulheres, estamos juntas, mas não somos nomeadas. Somos ignoradas. As mulheres
no tempo da Bíblia, como agora, estavam presentes, mas não contavam. Lembremos o
texto de Mateus na multiplicação do pão e do peixe (Mt 14,13-21): os que comeram foram
cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças” (v.21).
Aquele dia à tarde, tínhamos um encontro com as mulheres das comunidades, o que
acontecia uma vez ao mês. Uma mãe escutou do seu filho o que aconteceu na catequese e
contou para o grupo. Foi muito bom sentir a reação das companheiras, das mães nunca
valorizadas e sempre fieis. “Nós somos importantes, no nosso silêncio, temos valor” disse
Dona Petu, mulher pobre e muito sofrida daquela comunidade. A animação confirmou o
compromisso de nos reunirmos aos domingos para ler a Bíblia como mulheres. E
estamos até hoje: eu ajudando de longe, elas reunidas presencialmente depois de uma
breve interrupção pela pandemia.
O CEBI publicou vários subsídios sobre o texto Lc 15,8-9, a mulher que perdeu uma
moeda, para ajudar a compreensão da nossa metodologia. Guardo na memória, como um
tesouro, um encontro de leitura naquele grupo de mulheres. E o esquema que foi rabiscado
num caderno manuscrito pela comadre Nilda ajudada pela filha Zuleika. Parte da proposta
da nossa Metodologia, já virou tradição:
4
- acender uma luz (para lembrar a história);
- varrer a casa (para acompanhar a Tradição);
- procurar diligentemente (v.8);
- reunir amigas e vizinhas para alegrarem-se juntas (v.9).
As perguntas das mulheres do grupo surgem e as respostas também: o que dizer desta
mulher que tinha dez moedas de prata e perdeu uma, acendeu uma mpada, varreu a casa e
procurou cuidadosamente até encontrá-la? Chegamos à concluo de que a mulher tomou
conscncia, procurou, agiu cuidadosamente, reagiu, partilhou alegremente e valorizou a vida!
Na nossa experiência, logo, perguntamos o porquê. A resposta é pida: partimos da
realidade! E, assim, ‘acendemos uma lâmpada’ à luz da nossa experiência, ou seja, da nossa
história. A de ontem e a de hoje. No ‘contexto histórico’ do texto lido, momento em que
foi dito por Jesus e no tempo quando foi escrito, paramos a pensar: como era o cotidiano,
a religião, a cultura, a dominação política naquele tempo?
Ao ‘varrer a casa’ nos damos o direito de limpar as contradições da tradição. Tirar a
poeira das traduções e interpretações feitas e transmitidas por interesses patriarcais,
machistas e capitalistas. Com teimosia, ‘procuramos cuidadosamente’ até encontrar. As
mulheres, temos uma liberdade própria, fruto da nossa sensibilidade. No diálogo e na
fidelidade à Palavra. E agimos na hora que encontramos o perdido, que encontramos
soluções para algum problema. A mulher ‘chama as amigas e vizinhas’ para se alegrarem
com ela. Essa mania de partilhar é importante, sobretudo, entre nós, mulheres.
Interessante foi observar, ainda, que no texto do Evangelho escrito pela comunidade
de Lucas, Jesus contou três parábolas com igual final: alegria, afeto, festa por achar o
que chamamos de ‘perdido’. Comparando-as percebemos como foram escritas as três
parábolas em Lc 15,1-32
5
.
4 Nancy CARDOSO; Carlos MESTERS, A Leitura Popular da Bíblia à procura da moeda perdida. In: A Palavra na Vida.
São Leopoldo: CEBI, 2011, n.73, p.11.
5 Mercedes BUDALLÉS DIEZ, Meus olhos são bifocais. In: Hermenêutica Feminista e de Gênero, São Leopoldo: CEBI,
2000, n.155/156, p.26-35.
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Perdas Encontros. Será válida a interpretação? 1) Tem cem ovelhas e perde uma
ovelha - Deus Pastor se preocupa conosco; 2) Tem dez moedas e perde uma moeda - Deus
Mulher se preocupa conosco; 3) Tem dois filhos e perde um - o Filho de Deus Pai se
preocupa conosco. Sentimos que Jesus quis nos dizer: o importante é você, mulher. Cada
uma de nós. Para Jesus, na tradição da procura e do cuidado da ovelha, da moeda e do
filho, o importante não é o muito, é cada uma e cada um de nós!
E ainda Jesus acrescentou algo mais surpreendente: DEUS também é MULHER!
Estamos acostumadas a olhar para Deus também como mulher? Procuramos
conhecimentos e novas leituras! Procuramos outras alegrias que nos libertem!
Este texto, que li centenas de vezes com mulheres, somado às perguntas e
respostas delas, me trouxe novas descobertas. Sobre a parábola do pastor, a comadre Chica
perguntou: é possível afirmar que Jesus disse que um pastor abandonou 99 ovelhas como
algo normal? Não é uma loucura? Uma companheira respondeu: ‘Você esqueceu que as
mulheres sempre encontram soluções? Certamente, as comadres e vizinhas do pastor (ou
pastora) foram tomar conta das ovelhas aquela noite!’
Nós que juntas partilhávamos nas nossas comunidades, a leitura popular da Bíblia no
Brasil, graças à nossa pertença ao CEBI, tivemos o privilégio de nos encontrar repetidas
vezes para partilhar nossos conhecimentos e descobertas. Em certo encontro, sintetizamos
a nossa prática conforme exponho a seguir e depois verificamos como esta síntese foi uma
ajuda real para fazer uma leitura feminista.
3 METODOLOGIA DE LEITURA BÍBLICA FEMINISTA
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Leituras realizadas com mulheres das comunidades e especialmente com jovens nos
bairros de empobrecidos confirmaram como é possível uma conscientização e capacitação
das nossas lideranças para ter outra compreensão dos textos bíblicos e da vida depois de
tantas vezes comentados com compreensões e resultados legalistas sofridos pela falta de
outras visões em suas interpretações.
3.1 Exercícios de interpretação em perspectiva feminista
Relato um exemplo, vivenciado por mim em uma comunidade de Goiânia
retomando o texto Lc 15,8-9 com o método e o esquema proposto. A síntese foi redigida
por Rosa, uma participante do grupo:
1 DESCOBRINDO O TEXTO (SUSPEITA)
Levantaram as perguntas que foram discutidas em grupos pequenos: como é
apresentada essa mulher? O que ela faz? O que o texto não diz da mulher? Com quem essa
mulher é comparada?
Sabemos que no contexto da época, no antigo Israel, quando foi contada essa
história, o valor da mulher era definido em função do marido e dos filhos. É assim, que as
mulheres na Bíblia, são reconhecidas por seus pais, maridos ou filhos, estes, normalmente
lembrados como “heróis”. Na maioria das vezes, as mulheres que aparecem o
apresentadas como mulheres sem nome, anônimas. Simplesmente o as filhas dos seus
pais, as esposas dos seus maridos e as es dos seus filhos, preferentemente homens. Elas
são passivas, não tomam decisões, e até partilham um marido com outras mulheres.
Estudamos a figura das mulheres descritas por autores numa sociedade patriarcal
que, sob essa ótica, apresentam as mulheres: se, estéril, tinha filhos, era graças à
intervenção de Deus. Se doente, era pecadora, prostituta... E assim, muitas outras.
2 DESCONSTRUINDO O TEXTO
Levantamos perguntas. Aquelas para as quais as mulheres já m respostas no dia-a-dia.
Que imagem de mulher passa a leitura da mulher da moeda perdida? Como enfrenta sua situação?
Que uso do corpo revelam os gestos e atitudes dessa mulher? Que imagem de mulher passam as
amigas e vizinhas? O texto nos mostra mulheres no seu papel de dona de casa”? Fazendo uma
releitura: qual era a proposta dos direitos das mulheres dentro e fora de casa? “Imprimir um jeito
femininoé contrário ao compromisso de lutar pelos direitos do seu sexo? Como está o nosso
empenho pela promão dos Direitos Humanos com perspectiva de gênero?
Foi muito rico e interessante observar que as respostas eram semelhantes nos
diferentes grupos. Na realidade, era expressar o desejo, como uma companheira afirmou:
`Tudo isso que aprendo me confirma que devo educar as minhas filhas e filhos de forma
bem diferente de como nós fomos educadas´.
3 RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Reconhecemos que fazer memória é importantíssimo na leitura bíblica. Devemos
estudar textos bíblicos para descobrir, no contexto concreto, quais eram os fatores que
contribuíram para a opressão das mulheres e também as lutas que enfrentaram contra a
opressão, com o duplo objetivo de “devolver as mulheres para a história e a história às
mulheres” (Joan Kelly).
4 ATUALIZAÇÃO CRÍTICA
Comentar de novo os valores do diálogo, desenho, encenação, dança! Pensar em
outras formas de atualização do texto. O texto bíblico não é legitimação, é diálogo. O
diálogo com o texto cria, gera algo novo que na realidade está dentro de nós.
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SÍNTESE: ESTUDO BLICO NA PERSPECTIVA POPULAR-FEMINISTA PROPÕE:
1) Refletir o que fazer para criar uma verdadeira parceria entre mulheres e homens,
na procura de uma vida mais humana e fraterna para todas e todos nós. É urgente e
necessário recriar as relações sociais de gênero, etnia, classe, geração e religião.
2) Adotar uma metodologia, na reflexão bíblica, que nos comprometa a:
- Estabelecer diálogo entre a vida e a Bíblia.
- Resgatar textos esquecidos, mal interpretados ou que incomodam.
- Priorizar o estudo de textos onde aparecem acontecimentos do cotidiano da vida e
afirmar que há teologia na casa, na panela vazia, no corpo da mulher, na mulher estéril...
- Perceber: não existe neutralidade no contar histórias, na construção do saber.
- Suspeitar, confrontar nossas memórias, desconstruir, reconstruir, recriar.
4 ERA NECESSÁRIA, URGIA A PRÁTICA
Mulheres participantes ativas nas Igrejas Católicas do Sul reclamavam da situação de
falta de valorização no seu serviço gratuito e a de falta de respeito dos presbíteros e
diáconos com os quais tinham um trabalho pastoral. Muitas de nós líamos os livros e
escritos de Elizabeth Schusler Fiorenza
6
, o que sempre nos motivou e ajudou. Com ela
aprendemos muito.
Preparamos o estudo sobre a “Boa Notícia” de Lc 10,38-42 que nos ajudou a entender
essa reclamação de tantas mulheres trabalhando nas nossas comunidades. Nós nos
debruçamos sobre este texto aplicando o método proposto.
A) DESCOBRINDO O TEXTO (SUSPEITA)
Quais são as interpretações que conhecemos deste texto? Os relatos dos grupos
foram os mesmos. O incômodo de ouvir que a vida contemplativa tinha mais valor do que
a vida ativa nos intrigava. Cuidar de filhos e marido, às vezes, zelar pelos pais e sogros
idosos. Trabalhar fora de casa e ainda sentir-se pouco valorizada pela mentalidade
eclesiástica, era duro de engolir.
No sistema greco-romano, quando o texto de Lucas foi escrito tudo era baseado na
divisão da realidade: racional X espiritual, rico X pobre, homem X mulher, patrão X
escravo etc. O que justificava as relações de poder?
B) DESCONSTRUINDO O TEXTO
Não foi difícil perceber que a interpretação de Marta e Maria tem sido sempre
dualista. De fato, as irmãs aparecem como:
Marta: X Maria
dona de casa X discípula
que fala X ouvinte
ativa X passiva
inquisidora X calada
rejeitada X escolhida
Certamente o texto fala da realidade das primeiras comunidades cristãs que chama
a Jesus de Kyrios, título que corresponde ao Senhor Ressuscitado. E situa Jesus no centro
do relato entre duas mulheres: Uma ‘calada’ e outra ‘silenciada’.
6 Elisabeth Schüssler FIORENZA, Pero ella dijo. Prácticas feministas de interpretación bíblica. Madrid: Editorial Trotta,
1992, p.88-106.
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C) RECONSTRUÇÃO HISTÓRI CA
O que acontecia nas primeiras comunidades? Estamos na casa de Marta que tinha
uma irmã, Maria. Seriam Marta e Maria, discípulas e lideranças numa ekklesía doméstica?
Diakonia, nos tempos que se escreve o texto de Lucas, era termo que designava
liderança, serviço da mesa eucarística na igreja doméstica. Lucas, nos Atos, informa que os
homens assim como as mulheres se converteram como discípulos (8,3; 9,1; 17,11; 22,5),
porém, não narra nenhuma história de mulher presidindo uma reunião ou pregando a
Palavra. Procurando mais história sobre Marta e Maria lembramos a narração de João que
afirma eram amadas por Jesus (11,15). Marta confessa publicamente sua no Jesus
Messias, Ressurreição e Vida (11,1-54) assumindo a liderança como porta-voz da da
comunidade, e não é Pedro como afirmam os outros Evangelhos. Por que seria?
Reconstruir a história é confirmar que Marta e Maria eram líderes, incluídas, porém
reprimidas, na luta das mulheres do século I para serem reconhecidas no seu ministério.
D) ATUALIZAÇÃO CRÍTICA
Atualizando o texto bíblico em poesia, na dança, no teatro. Trouxemos a história
para nossas lutas. Não para legitimar, mas para dialogar. Aqui está uma das nossas grandes
tarefas.
Depois de tão ricas experiências foram aparecendo novas ideias e propostas. Muito
significativa foi a criatividade e a experiência de integrar o Bibliodrama, sabedoria e
prática especial de nossa companheira Simone.
5 BÍBLIA E ARTE
Em Goiânia um novo Grupo de Mulheres “Leitura Feminista da Bíblia”, nasceu em
novembro de 2015. Surgiu, uma vez mais, da necessidade de estudar os textos bíblicos na
perspectiva feminista libertadora e crítica, para partilhar o aprendido com as mulheres
camponesas longe de outras possibilidades de formação e crescimento pessoal.
Os encontros do grupo sempre foram mensais, aconteciam na sede da CPT - GO.
Estudávamos aprofundando um texto bíblico e depois transferíamos para o corpo as
reações e as descobertas através dos jogos do teatro do oprimido que nos ajudavam a
desmecanizar os nossos corpos e expressar com liberdade corporal nossos entendimentos.
Desmistificávamos os entraves opressores que nos tiram o direito, a voz e a vez. As
descobertas eram partilhadas no coletivo. Era uma experiência de Bibliodrama.
O Bibliodrama era levado aos grupos de mulheres nas comunidades rurais,
valorizando o texto bíblico, a sensibilização, e a ligação com a vida. Fizemos deste método
um ato político de transformação pessoal e comunitária. As mulheres treinavam a partilha
e reflexão para outras mulheres, ninguém ficava a mesma pessoa, as mudanças eram
notáveis depois do encontro.
Outra experiência importante, pelos resultados, com destaque e motivação foi o de
nossos encontros da “Palavra Que Vai à Rua”. O primeiro aconteceu em um bairro da
periferia de Goiânia o Real Conquista, no ano de 2016. Outros vários iam acontecendo
em diferentes comunidades do interior e das periferias das cidades. Porém, o que deu um
giro na experiência do grupo pelo muito valorizado, aconteceu no dia 8 de março, numa
manifestação de Rua no Dia Internacional da Mulher. Nesse dia o texto interpretado foi a
Moeda perdida (Lc 15,8-10). A experiência vivida na rua, numa praça pública do Centro de
Goiânia, teve o texto bíblico, contado e dançado com músicas apropriadas, apresentação de
faixas escritas com os verbos do texto. Abriu-se uma fala, dialogando com o público
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presente, partindo de uma apresentação e dança. O fato foi uma costura do texto bíblico
com a realidade atual das mulheres sofridas de hoje, focalizando as nossas perdas e o muito
que perdemos cotidianamente. A Rua virou palco de arte com a beleza e encantamento
pela Bíblia Palavra viva. Houve uma boa receptividade, sobretudo das mulheres e ade
homens jovens presentes. Tempos depois éramos abordadas na rua para receber os elogios
pela apresentação que mexeu e remexeu com muitas pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi que cheguei até aqui? Anos atrás, fui convidada a visitar um acampamento
do MST na diocese de Porto Nacional - TO. A Comunidade queria agradecer a conquista
do poço artesiano na Escola que conseguiram abrir graças às ajudas de mulheres lutadoras
da Espanha. Na escola, uma professora e seus alunos nos acolheram muito bem. No quadro
da sala de aula estava escrito: OCUPAR, RESISTIR, PRODUZIR.
Os alunos comentavam o que entendiam das palavras do quadro. Não esqueço o
rosto de uma menina negra dizendo algo assim: “Se Deus quer vida para todas as pessoas
da terra, Ele quer que nós, negros e brancos, chegantes na região, ocupemos a terra para
plantar e poder comer”. Eram tempos de mudanças e eu estava à procura de novos
caminhos, para encontrar outros métodos de leitura bíblica. Naquele dia aprendi que eu
tinha que entrar na Bíblia, ocupar a Bíblia como mulher, interpretar a Palavra, na nossa
sociedade patriarcal e capitalista, principalmente junto às mulheres sofridas. A Palavra de
Deus teria que nos mostrar novos caminhos para resistirmos nos grupinhos de leitura e
estudo bíblico. Estas experiências, entre muitas outras, me faziam descobrir o sentido da
Bíblia, Palavra, de forma diferente da que sempre era pregada. E cientes, em comunidade
conseguimos produzir novas interpretações que nos fizeram mais livres.
O que não pretendíamos fazer na leitura bíblica popular-feminista?
- isolar textos de mulheres;
- estudar ou escrever histórias de heroínas;
- ponderar só as narrações de vítimas;
- esquecer que o patriarcalismo é um sistema construído por meio de relações sociais
onde mulheres e homens estão envolvidos;
- acrescentar a questão da mulher como um tema a mais no estudo bíblico.
Na nossa leitura da Bíblia pretendemos tecer elementos que nos capacitem para uma
leitura e reflexão crítica-construtiva dos textos sagrados, com visão feminista a partir das
nossas próprias vidas. Portanto, o importante é refletir comunitariamente sobre
acontecimentos das nossas vidas. E num processo de escuta, de troca de saberes e diálogo
real, encontrar e interpretar a Sagrada Escritura como resposta para a vida das pessoas, no
hoje e no agora.
Assumimos que nossa leitura feminista é leitura política porque procuramos novas
respostas visando as relações de gênero, de raça, de classe, de geração e de religião. Temos
muito claro que ainda hoje, na sociedade, as mulheres sempre são as que não contam. A
leitura da Bíblia nos confirma que mulheres e homens o filhas e filhos de Deus com os
mesmos direitos e deveres.
Com esta leitura da Bíblia, como cristãs, assumimos: frente à exclusão, queremos
proximidade. Frente ao mercado total, à globalização, optamos pela gratuidade. Frente à
corrupção, nosso compromisso é a ética. Deus conosco!
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Leopoldo: CEBI, 2000, n.155/156, p.26-35.
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São Leopoldo: CEBI, 2008, n.250, p.53-62.
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A TEOLOGIA NA PRÁTICA DE
JOSÉ COMBLIN
da escuta à escrita
THE THEOLOGY IN
JOSÉ COMBLINS PRACTICE
from listening to writing
Lucy Terezinha Mariotti*
Resumo: A Igreja em saída reivindica discípulos missionários para ser
coerente em meio aos desafios contemporâneos. Encontramos no teólogo
Pe. José Comblin e em sua ação missionária uma metodologia que
conseguiu de forma eloquente a articulação entre teologia e prática. A
partir de uma análise bibliográfica e de testemunhos, o presente texto
busca destacar o seu fazer teológico, considerando três dimensões: do
missionário aberto a encontrar e conviver em novos espaços; atento aos
“sinais dos tempos” que inspiraram práticas ousadas e na permanente
escuta do Espírito que sopra onde quer e preferentemente em meio aos
pobres. Seguindo este itinerário assumimos a hipótese de validar este
como método teológico urgente na igreja em saída, missionária e profética
como tem escrito e testemunhado Papa Francisco.
Palavras-chave: Escuta. Sinais dos tempos. Espírito. Pobres. Metodologia.
Abstract: The Church which goes forth calls for catholic missionary
disciples in order to be coherent amidst contemporary challenges. We can
find in theologian Fr. José Comblin and his missionary action, a
methodology that eloquently achieved an articulation between theology
and practice. Based on a bibliographic analysis and testimonials, this essay
seeks to highlight Fr. Comblin’s theological practice by taking three
dimensions into consideration: the missionary who was willing to find
and live in new spaces; his attentiveness to the “signs of times” that
inspired bold actions; and his permanent listening to the Spirit that blows
where it pleases, preferably among the poor. Following this route, we
assume the hypothesis of validating this as an urgent theological method
in the missionary and prophetic Church that goes forth, as it has been
written and witnessed by Pope Francis.
Keywords: Hearing. Signs of times. Spirit. Poor. Methodology.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 41-49, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.106
* Mestra em Teologia pela PUC-SP,
Especialista em Arquitetura e Arte para
Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico -
Ateneu Santo Anselmo, Roma; membro do
Grupo de Pesquisa José Comblin, PUC-SP.
E-mail: lucymariotti@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2045-7836
Recebido em 19/07/2022
Aprovado em 30/09/2022
42
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende encontrar o que embasou a Teologia e a ação missionária
de Comblin por meio de alguns de seus escritos e depoimentos registrados por pessoas que
o conheceram ou com ele conviveram. O padre belga deixou uma vasta obra para ser lida,
degustada e analisada em centenas de entrevistas, 420 artigos e mais de 70 livros, além de
cartas a amigos, ex-alunos, familiares, bispos, sacerdotes e missionários. O seu método do
fazer teológico revela, em poucas amostras de seus escritos, um vestígio de um projeto de
vida que antecede o método e que foi considerado pelos testemunhos. Revisitamos textos
do autor do ano 74, após a experiência do Seminário rural enquanto era assessor de Dom
Hélder Câmara, dos 80 quando retorna do Chile onde esteve exilado e textos dos anos
2000, dentre os seus últimos escritos. Para responder à questão adentramos em três
direções, destacando o teólogo missionário de Jesus Cristo; a sua atenção aos “sinais dos
tempos” e a vida no Espírito. Um minimum fundamental que permeia o seu jeito de ser e de
fazer Teologia, aquilo que o tornou uma voz profética e incômoda, mas reconhecidamente
necessária na Igreja, em especial na América Latina.
1 O TEÓLOGO MISSIONÁRI O
A Igreja pós Concílio Vaticano II, Povo de Deus, Igreja toda missionária, tem em Pe.
José Comblin um de seus mais fervorosos defensores e animadores. Ao falar sobre a
teologia da missão, Comblin
1
argumenta que a teologia parte da prática missionária que
em um dado momento será explicitada, examinada criticamente e sintetizada em conceitos
científicos. O autor entende a missão não como recrutamento de novos membros para a
Igreja, uma atividade de grupos institucionalizados, que parte ou está em função da Igreja,
mas como ação inspirada nos próprios atos de Jesus Cristo. “Jesus dirige-se aos que estão
fora, fala para denunciar, anunciar, provocar, chamar à transformação de vida, libertar do
passado, da sinagoga, do peso dos escribas e das tradições”
2
. Não é, portanto, fazer
proselitismo. Assim também vemos Papa Francisco exortar a sair, a tomar a iniciativa e
chegar até os últimos:
Naquele “ide” de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos
da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova
“saída” missionária. Cada cristão e cada comunidade de discernir qual é o
caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta
chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as
periferias que precisam da luz do Evangelho (EG 20).
Sair é um verbo que caracterizou a vida de Comblin que era professor na Bélgica,
mas optou por ser missionário no Brasil; chegou em Campinas (SP) em 30 de junho de
1958, onde atuou como professor; mas após três anos e meio mudou-se para o Chile e, em
1965 para Recife (PE), a convite de dom Hélder Câmara, de quem foi assessor. Escolheu o
Nordeste como lugar para viver sua vida de teólogo missionário, onde priorizou a
formação das lideranças da Igreja por acreditar que é delas que depende a sua renovação
em igualmente renovados métodos de evangelização; elaborou subsídios e cursos direcionados
a diferentes públicos com o intuito de que todos pudessem compreender o Evangelho.
Durante as férias, segundo a sua biógrafa Monica Maria Muggler, viajava por toda a
América Latina para conhecer a realidade social, econômica, política, as culturas e seus
1 José COMBLIN, Teologia da missão, p.10-16.
2 José COMBLIN, Teologia da missão, p.2.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
A teologia na ptica de José Comblin: da escuta à escrita
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 41-49, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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povos, o que o colocou em contato igualmente com diferentes experiências pastorais.
“Desde o México até o Chile pôde testemunhar as buscas e os ensaios daquilo que daria
fundamento a uma teologia especificamente latino-americana
3
.
A disposição de encontrar o diferente, o novo, encontrar pessoas e desafios fazem
parte do cotidiano de Comblin. Ele se inspira e realça a vinda de Jesus ao mundo; um mundo
concreto, feito de pessoas. Cada pessoa é um lugar deste encontro: “Jesus Cristo veio para
dirigir a palavra a Pedro, João, André, e a todos os Pedros, Joões, Antônios ou Severinos da
história
4
. Essa vinda ao mundo e o ir ao encontro de homens e mulheres significa penetrar
não no íntimo de cada pessoa, mas chegar às grades das estruturas sócio-econômico-
culturais que se impõem escondendo e oprimindo as pessoas. Assim tamm, a Igreja é
convocada a fazer essa viagem, a caminhar, a sair para encontrar; a correr o risco de não ser
acolhida ou compreendida. E isso o nosso autor vivenciou. Foi expulso duas vezes: pela
ditadura Pinochet no Chile e governo Médici no Brasil por sua perspicácia e lucidez na
análise da realidade nos tempos em que rondava, na Igreja e nos governos antidemocráticos,
o fantasma do comunismo. Também ele foi identificado como uma ameaça; mas, mesmo
exilado, mantinha a comunicação com pessoas e grupos que participavam dos seus projetos
de formação para lideranças e comunidades eclesiais de base.
Em um livro intitulado “O Enviado do Pai”, Comblin mostra a centralidade da
missão no quarto Evangelho. Começa argumentando que o Evangelho de João quer dar
uma resposta à pergunta: quem é Jesus? Mas “Jesus não diz quem ele é: diz donde vem e
aonde vai”
5
. Jesus é aquele que vem, que foi enviado pelo Pai (cf Jo 7,28). É a própria
mensagem do Pai e se identifica com a sua missão; “Ele existe na condição de missionário.
Nele se revela justamente o modo de ser humano que é o ‘ser missionário’”.
6
Jesus não é em
função de si mesmo, mas é enquanto comunicação, mediação que permite o encontro de
Deus com o mundo. Quem conheceu Comblin pode afirmar: “Comblin fez de sua vida e de
sua teologia um desdobramento dessa centralidade da missão”
7
.
Comblin argumenta que a missão não é acidental, mas é a razão de ser da Igreja: “a
norma, o significado e o próprio conteúdo da missão dos cristãos é a própria missão de
Jesus”
8
. Jesus, o enviado do Pai, entra no mundo das pessoas, enfrenta as estruturas que
escravizam, encontra resistências. Assim como ele, a Igreja, comunidade dos seus
discípulos, faz a mesma viagem que ele fez: do Pai para as pessoas, mesmo quando os
caminhos se apresentam estreitos e árduos. Nesse movimento ela sai de seus limites e se
integra numa cultura, o que não é fixar um discurso eclesiástico em comunidades fechadas
em si mesmas. Seguir Jesus Cristo leva a Igreja a uma permanente flexibilidade; livre do
passado, da dependência de culturas, povos ou circunstâncias que possam obstaculizar a
ação no presente. “Já que a história da Igreja é essencialmente a história da missão, importa
reconhecer os tempos da missão e a sua história com os seus sinais visíveis”
9
. Somente
assim a Igreja poderá encontrar as palavras certas para traduzir as palavras dadas por Jesus
a quais precisam ser constantemente reformuladas para chegar ao coração das pessoas.
Diante disso podemos dizer que o método de Comblin provém da contemplação e
assimilação do jeito de Jesus falar e agir: “Vendo o que é Jesus, vemos também o que é o
discípulo e o que é a Igreja”
10
. Por isso, mesmo, tem presente que a mensagem do
3 Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.150.
4 José COMBLIN, Teologia da missão, p.21.
5 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.9.
6 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.11.
7 Paulo SUESS, Missionário migrante – teólogo militante José Comblin: O retorno do enviado do Pai, p.77.
8 José COMBLIN, Teologia da missão, p.22.
9 José COMBLIN, Teologia da missão, p.73.
10 José COMBLIN, O enviado do Pai, p.13.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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Revista Teopráxis,
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Evangelho - conteúdo da missão da Igreja - não cabe em formulações fixas, em discursos
estáveis que possam ser recitados em todos os lugares e tempos. Dporque encontramos
em seus escritos uma crítica à burocracia eclesiástica. Nosso autor adverte que é necessário
falar de modo que as palavras sejam compreendidas, para tanto é imprescindível compreender
o presente, ouvir as perguntas, perceber os desafios da realidade, enumerar as características
que distinguem o nosso tempo dos tempos anteriores, ler os sinais dos tempos.
2 A LEITURA DOS SINAIS
As pessoas que conheceram Comblin e a leitura de seus escritos testemunham que
ele era uma pessoa que prescrutava a realidade; ela era o chão a partir do qual contemplava
a vida e a Palavra de Deus e de onde nasciam seus textos e seus projetos de formação,
primeiro nas universidades, na formação do clero e, depois na formação dos leigos.
“Quando chegou na América Latina, Comblin já se preocupava em elaborar uma teologia
que levasse em conta as bases sociais e a realidade. Ele considerava a atenção às realidades
terrestres como uma preparação a uma teologia da revolução”
11
. Théologie de la volution:
théorie, é o título do seu livro editado na França no ano de 1974. Em outra obra,
retomando a história da Igreja, argumenta que a teologia se tornou estéril quando se
esqueceu dos pobres, constituindo-se um mundo à parte, com discussões apologéticas e
inúteis. No entanto, o Evangelho é claro, Jesus privilegia os pobres; aos pequenos se revela
(cf. Mt 11,25), porque eles estão abertos a receber a verdade e o esquecimento dos pobres
constitui a ruína da Teologia
12
. Se o critério de toda a evangelização, de toda a ação da
Igreja é a libertação dos pobres, o mesmo vale para a teologia. A verdade liberta: “Se
permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32).
O problema, segundo Comblin, está ligado ao fato de que a teologia ainda inspirada
na filosofia grega, segue um esquema medieval ao pretender conectar fórmulas racionais à
verdade. “A teologia grega exalta o valor dos conceitos dos quais se afirma que descrevem a
realidade. Na realidade, os conceitos somente descrevem ou representam algumas porções
de realidade”
13
. No entanto, Jesus se apresenta aos seus discípulos como “o Caminho, a
Verdade e a Vida” (Jo 14,6); a Verdade que se revelava no amor. A verdade não está no
âmbito das ideias ou conceitos, mas significa o que existe e vida, é real. Portanto, seguir
a Jesus é viver na verdade, na coragem da verdade, como Ele viveu. É preciso ter presente
que o embate entre ele e os que o condenaram se inscreve no enfrentamento entre verdade
e mentira. Jesus denuncia a mentira e as autoridades de Israel não acreditaram nele
exatamente porque ele falava a verdade (cf. Jo 8,44-45)
14
.
Neste sentido concordamos com Edelcio Ottaviani que demonstra a aproximação de
Comblin, embora por outras premissas, às pesquisas do filósofo francês Michel Foucault
15
.
O dizer verdadeiro, a fala franca é o que Foucault chama de parresía
16
. O sujeito livre se
apresenta aos olhos dos outros e a si próprio, pronunciando um discurso verdadeiro; assim
se manifesta e assim é reconhecido. A verdade não é retórica porque respaldada pela
existência bela que é articulação ou coerência entre as convicções mais profundas e as
11 Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.71.
12 José COMBLIN, O que é a verdade? p.53-54.
13 José COMBLIN, O que é a verdade? p.5.
14 Lucy Terezinha MARIOTTI, Ele se vestiu de pastor, mas o revestiram de imperador, p.119-122.
15 Edelcio OTTAVIANI, Busca da verdade versus ideologia no Acontecimento José Comblin, p.71-74.
16 Parressía - do grego - coragem da verdade. Tema desenvolvido por Foucault, em suas aulas, no ano acadêmico 1983-
1984 no Collège de France.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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atitudes
17
Parressía é a coragem da verdade, de assumir os riscos pelo dizer de forma franca
e de aceitar a verdade por parte do interlocutor
18
.
Comblin, um dos expoentes da Teologia da Libertação, pautou sua vida na Palavra
da Verdade, a Verdade que liberta e “considerava a vida cristã do povo de Deus, das
comunidades populares e suas lutas de vida e morte, como o lugar primeiro de toda
teologia cristã e teologia de libertação”
19
. Constatou que a Igreja estava quase ausente do
meio popular e que havia um discurso do pobre, porém vazio. Acreditou que as
comunidades devem ser formadas, conforme o estilo de vida e da cultura, com a
sensibilidade própria dos pobres; comunidades nas quais eles se sentem “em casa”
20
.
Vivendo no meio dos pobres, ouvindo suas perguntas, Comblin vai lendo os sinais, os
“sinais dos tempos” e a partir disso, empreendeu suas ações e na ótica do pobre escreveu
suas reflexões em formato de cursos e livros.
Sinal dos tempos é um conceito encontrado em um único texto, no Evangelho de
Mateus 16,3 e utilizado por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II
21
. Em um de seus
artigos com o título “Sinais dos tempos”, o Padre Comblin demonstra as variações do
conceito e a atualidade da sua interpretação: o primeiro sentido, presente nos discursos
daquele Papa, aparece como advertência, atenção; o sinal indica uma realidade não
percebida, mas que exige resposta, o que implica em mudanças na Igreja “que poderiam
estar relacionadas com as mudanças do mundo”
22
. O concílio entendeu que era necessário
conviver com a modernidade.
A análise de Comblin destaca que João XXIII encontrou nos sinais indicações de
novos rumos. “Todas as empresas, todas as instituições devem prestar atenção aos sinais de
mudança que as obrigam a mudar os seus programas”
23
. E retém este como o segundo
sentido, pois o papa convocou a Igreja a olhar para o mundo com otimismo, valorizando o
que existe de positivo na sociedade moderna. Seja por motivação evangélica ou por
instinto de sobrevivência, a Igreja aceitou a modernidade como um sinal dos tempos.
Comblin, neste contexto, observa que existe uma antiga e atual luta a superar entre o
Espírito e a lei. Alguns pensam que para defender a Igreja é preciso condenar e aumentar o
legalismo como muralhas de resistência, mas “João XXIII estava muito consciente do
problema, apesar de não ser teólogo. Estava mais perto do povo e podia entender qual era
o eixo do problema”
24
.
Mas Comblin é propenso em concluir que o Papa aludia ao texto de Mateus, isto é,
“que estamos nos tempos do advento do reino de Deus, reino de misericórdia e apelo
universal [...] tempo para anunciar os sinais do reino de Deus”
25
. O contexto, continua o
nosso autor, é de conflito entre Jesus e as autoridades que não sabem reconhecer os sinais
dos tempos, os tempos messiânicos. Fariseus e saduceus esperavam um Messias de acordo
com um molde por eles desenhado. Jesus anuncia o Reino de Deus no qual não espaço
para templo, lei e um sistema religioso fechado, baseado em privilégios. Entendem a
mensagem de Jesus, mas resistem em reconhecer os sinais. João XXIII anunciou novos
tempos; o final de uma época e o início de outra.
17 M. FOUCAULT, A coragem da Verdade – O governo de si e dos outros II, p.3-4.
18 M. FOUCAULT, A coragem da Verdade – O governo de si e dos outros II, p.13.
19 Luiz Carlos SUSIN, José Comblin, um mestre da libertação, p.128.
20 José COMBLIN, O que é a verdade? p.57.
21 O tema foi igualmente desenvolvido por Clodovis Bo em “Sinais dos Tempos” princípios e leituras. São Paulo:
Loyola, 1979.
22 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.102.
23 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.105.
24 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.178.
25 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.107.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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A análise de Comblin
26
aponta que no Concílio de modo geral e, em particular na
Gaudium et Spes, os pobres não são reconhecidos como o são nos Evangelhos e em todo o
Novo Testamento. Em seu lugar, estava a preocupação pela modernidade e predominou
uma visão otimista e ideológica do mundo, confirmando o sistema estabelecido com
exortações e, por esse motivo, é preciso esclarecer o que significa a “luz da fé”. Não
significa aceitar pontuais verdades bíblicas, mas reconhecer o advento do Reino, “a marcha
do povo de Deus nos nossos tempos”
27
. Porque o Reino é movimento de libertação de
todas as forças opressoras humanas e institucionais que submetem as pessoas por meio de
mentiras, violência, engano. Jesus lutou durante toda a sua vida para libertar o povo da
violência, da injustiça, da mentira. Ele não enfrenta um pecado misterioso escondido nas
consciências individuais; mas luta contra a mais significativa das opressões que é a
dominação religiosa; disfarçada e escondida é a mais perigosa de todas porque invoca a
autoridade de Deus:
A luz da mostra a presença atual da mesma luta de Jesus em cada momento da
história. Ela não mostra simplesmente situações. Ela mostra a marcha do reino de
Deus frente a inimigos tão fortes. Os sinais o as lutas dos pobres, excluídos,
dominados. Pois ali está Deus. Ali está Jesus e se trata de descobrir ou reconhecer
essa presença no nosso mundo. As forças dominantes negam a dominação,
escondem a realidade, fazem discursos bonitos para justificar e consolidar a sua
dominação. Jesus vem tirar essas máscaras e manifestar a verdade do mundo
28
.
A luz da é capaz de mostrar o que os meios de comunicação, os discursos
dominantes e até a ciência escondem ou negam, assim afirmou o nosso autor. Os sinais dos
tempos mostram o que está acontecendo e que está intencionalmente oculto, o que os
privilegiados negam, mas que é visível para as vítimas. A luz da revela o que as pessoas
querem esconder e não o que ignoram, porque o contrário de luz são as trevas e não o
ignorar. A luz da fé “não dá a conhecer todos os mecanismos de funcionamento da sociedade,
mas as motivações secretas que as estruturas querem esconder”
29
. Os sinais dos tempos
mostram onde estão os oprimidos e o que realmente importava para Jesus e, hoje, para seus
discípulos: a libertação dos oprimidos. E é este o lugar, a partir do qual Comblin faz a leitura
da realidade e do Evangelho. Neste sentido também afirma Papa Francisco que o anúncio do
Evangelho e o testemunho cristão indubitavelmente passam pela transformação social em
favor dos mais vulneráveis (cf. EG 180).
Pe. Jo Comblin
30
entende que os tempos m seus sinais e que nem todos percebem,
porque para estes a hisria é apenas continuação do passado. Os sinais dos tempos não o
oportunidades de expano ou crescimento quantitativo da Igreja, nem revelam em que a ela
deve se adaptar. Sinais dos tempos da missão da Igreja o os passos dados ao encontro dos
outros. “Esses passos o os lugares da manifestão de Jesus Cristo na luz do Espírito”
31
; é no
outro que o dispulo missionário encontra o Cristo que pensava conhecer. Os sinais são
oportunidades para que a Igreja possa “nascer de novo”, como Jesus propusera a Nicodemos (cf.
Jo 3,7). As manifestações exteriores desta vocação o sinais dos tempos; é quando o Esrito
convoca a Igreja a sair de si e enfrentar novos desaos, a viver tempos novos da manifestação
de Jesus Cristo. Atento aos movimentos do Espírito, Comblin foi um teólogo missiorio
sensível aossinais dos tempose em sua prática pedagico-pastoral ousou respostas corajosas.
26 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.112-114.
27 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.112.
28 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.114.
29 José COMBLIN, Os sinais dos tempos, p.114.
30 José COMBLIN, Teologia da missão, p.72-78.
31 José COMBLIN, Teologia da missão, p.73.
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3 A E SCUTA DO ESPÍRITO
As opções de Comblin deixam transparecer a liberdade de alguém que vive como
Igreja e, por isso mesmo, mostra as tensões, seus pontos nevrálgicos enquanto intui e
aponta alternativas nas quais inclui a si próprio e sua ação enquanto teólogo e missionário.
Para ele, a teologia deve “falar” às pessoas; se não o fizer não é teologia: “a teologia é um
ato reflexo, realizado depois das experiências e a partir delas”
32
. Portanto, a vivência, o que
acontece no cotidiano das pessoas são os dados da teologia. Os resultados da investigação
dos sinais dos tempos serão assim integrados na missão da Igreja – Povo de Deus.
Comblin sempre esteve atento à ocasião propícia (kairós) para colocar em
prática o resultado de suas reflexões teológicas e não se poupou dos riscos que
isso implicava. Desde o início do seu ministério, o vemos atento à voz do
Espírito para não deixar escapar o momento favorável de transformar em
práticas (tà prágmata) o que suas reflexões teológicas, amparadas pelos maiores
pensadores da época, julgaram ser mais sensato
33
.
A leitura de sua produção intelectual mostra embasamento bíblico teológico, nas
ciências humanas e sociais e mais do que isso, deixa transparecer claramente a
contemplação da ação do Espírito. A teologia do Espírito embasou suas análises críticas
frente à instituição eclesial, às doutrinas, à realidade e à prática cristã. “A vida de José
Comblin, sacerdote e teólogo, é um testemunho contundente da ação do Espírito Santo”
34
.
A teologia do Espírito foi um tema priorizado e discorrido por Comblin em cinco de seus
livros. O primeiro: “O tempo da ação ensaio sobre o Espírito e a história” nos permite
entender de onde provinha a sua aguçada crítica e suas corajosas e inovadoras ações.
O Espírito, escreve Comblin
35
é que está na origem de todas as nossas ações. E são
elas que fazem a história. O próprio Espírito se faz conhecer ou compreender por aquilo
que faz. Deus é ação e é este o conteúdo da mensagem cristã. “Só podemos compreender o
alcance de nossa ação se a referirmos à sua origem: pois nossa ação é uma expressão de
uma ação do próprio Deus [...]. A ação de Deus é aquela que a mensagem do Novo
Testamento põe em relevo: é o Cristo e o Espírito”
36
. E o Cristo hoje, age pelo Espírito que
habita em nós e age em nós. Agir é entendido por Comblin como salvar-se das pressões,
libertar-se das estruturas, recuperar a autonomia. Ação é o que muda o mundo e aquilo
que fazemos para mudarmos a nós mesmos.
Nosso autor, destaca essa ação, dentre tantas de suas obras, também no livro “O
povo de Deus”, enfatizando a quem Jesus privilegiou: os marginalizados como as mulheres,
os pobres, os abandonados, os doentes, aqueles que o sistema religioso e político
desprezavam. Nessa obra ele postula: “O povo de Deus é povo de pobres”
37
. Foi a partir das
conferências de Medellín e Puebla que a Igreja na América Latina “passou a defender mais
nitidamente que os pobres ocupam o primeiro lugar no povo de Deus, que o povo de Deus
se caracteriza pelo pobre e que a Igreja verdadeira é a Igreja dos pobres”
38
. E Comblin fez
parte da construção desta Igreja com rosto latino americano, sendo um dos seus teólogos
assessores. Para ele, a abertura da Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, foi um sinal da
presença do Espírito porque ela saiu de si mesma para se juntar à ação dos homens,
32 José COMBLIN, Teologia da missão, p.7.
33 Edélcio OTTAVIANI, José Comblin: um teólogo contemporâneo e parresiasta, p.179-203.
34 Monica Maria MUGGLER, Padre Jo Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.19.
35 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.45-72.
36 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.46-47.
37 José COMBLIN, O povo de Deus, p.281.
38 José COMBLIN, O povo de Deus, p.238.
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“conexa ao impulso do Deus que age, do Deus que é Espírito [...]. A Igreja não existe a o
ser no Espírito e sob a movimentação do Espírito”
39
.
Essas convicções tornaram-se vida em Comblin; em toda a sua trajetória leu a
história da Igreja e escreveu a partir da ótica dos mais necessitados, conforme o Espírito de
Jesus. Podemos dizer que era essa a base de seu projeto de vida que buscava realizar
coerentemente. Em uma carta escrita em Talca, Chile, em 6 de agosto de 1973”, Comblin
escreveu: “Procurarei viver o que eu mesmo ensino”
40
.
Suas palavras faladas ou escritas, antes foram escutas de palavras ditas pela realidade.
Atento às perguntas, ele sentava-se em círculos de intelectuais, agentes de pastoral, entre
colegas de sacerdócio, religiosos e religiosas, leigos e leigas para trocar ideias, analisar a
realidade, para discernir os sinais que apontariam ações novas; ensinava a contemplar a
ação do Espírito em meio à “verdadeira Igreja, a Igreja dos pobres”
41
. Luiz Carlos Susin
considera Comblin “um mestre da libertação”
42
ao comparar o seu método à maiêutica
socrática, dado que não ouvia perguntas, mas fazia perguntas provocadoras; por meio
da aporia que cria o impasse, o paradoxo, impede a fixação do sentido - instigava a
discernir, inquietava. Susin mostra a similitude do teólogo com pedagogo crítico Paulo
Freire (filósofo e educador brasileiro) e Ivan Illich (filósofo e educador austríaco, crítico do
sistema educacional).
Comblin acreditava no diálogo, na aprendizagem contínua, liberta de traçados
prontos, na busca coletiva, na ação conjunta. Sua sensibilidade percebia as necessidades no
campo e na cidade, na Igreja e na sociedade e suas respostas foram se diversificando em
palavras compreensíveis a todos, tanto nas universidades quanto nas comunidades eclesiais
de base, nos subsídios e cursos simples elaborados com a intenção de que a mensagem do
Evangelho fosse acolhida e vivida sob o sopro do Espírito.
OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
A nossa abordagem apresentou um fragmento do que foi motivador na prática
teológica de Comblin. Pudemos destacar, e retemos como atual para a Igreja de nossos
dias, que o seu método provinha do próprio Evangelho, por meio do qual reconheceu e
interpretou a realidade com suas demandas, suas possiblidades e limites; da escuta atenta
das perguntas foi desenhando um caminho novo e coerente com o sentir e o agir de Jesus
Cristo. A partir da escuta dos sinais, com os pés firmes na realidade conseguia
compreender a voz do Espírito. O discernimento, feito sempre em grupo, afluía em
iniciativas inéditas como escolas missionárias para leigos e religiosos e a formação,
contextualizada no meio rural, para sacerdotes, tema que não aprofundamos, mas que vale
a pena ser revisitado.
A centralidade da missão em sua vida, o fez formador de missionários. A vida dos pobres
com suas alegrias, tristezas e sua mística esperançosa foi o universo a partir do qual nascia uma
prática que tinha seu desfecho nos artigos e livros; um saber que dialogava com outros
saberes e era partilhado nas assessorias, nas universidades e nas bases, seu ponto de partida.
O teólogo Comblin soube harmonizar erudição e simplicidade; testemunha do
Espírito como força, movimento, sopro de vida e libertação, apostou numa Igreja
missionária, em saída dos esquemas fixos, sem medo de dar voz e de acreditar no
39 José COMBLIN, O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História, p.15.
40 José COMBLIN, Apud Monica Maria MUGGLER, Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito, p.111.
41 José COMBLIN, O povo de Deus, p.238.
42 Luiz Carlos SUSIN, José Comblin, um mestre da libertação. In HOOMAERT, Eduardo (org). Novos desaos para o
cristianismo. A contribuição de José Comblin, p.125-138.
MARIOTTI, Lucy Terezinha
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protagonismo dos pobres. Comblin viveu em sintonia com a Igreja pós Vaticano II,
contribuindo para que ela se redescobrisse em seu semblante latino-americano.
O mesmo Espírito continua inspirando discípulos missionários a perceber os
indicadores de novas práticas que falem com a ação, a voz e a escrita uma mensagem
inteligível. O Espírito de Jesus - Verdade que conduz à vida - desafia a Igreja hoje, em
tempos de fake news, a gritar a verdade que liberta, que traz vida, que responda às
perguntas feitas nas realidades mais gritantes, em todas as periferias: os lugares
privilegiados de escuta.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
COMBLIN, José. A vida em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007.
COMBLIN, José. O enviado do Pai. Petrópolis: Vozes, 1974.
COMBLIN, José. O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a História. Traduzido pelo autor por Celina
Monteiro. Petrópolis: Vozes, 1982.
COMBLIN, José. Teologia da missão. 2.ed. Petrópolis: Vozes,1983.
COMBLIN, José. O que é a verdade? São Paulo: Paulus, 2005.
COMBLIN, José. Os sinais dos tempos. Revista Concilium – Revista Internacional de Teologia 312, 4,
2005, p.101[525]-114 [538].
COMBLIN, José. O povo de Deus. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2011.
FOUCAULT, Michel. A coragem da VerdadeO governo de si e dos outros II. Trad. Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo
atual. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013.
MARIOTTI, Lucy Terezinha. Ele se vestiu de Pastor, mas o revestiram de imperador: Representações de
poder e resistência a partir da arte cristã na Antiguidade tardia. Dissertação de mestrado. PUC-SP,
2021. Disponível em: https://tede.pucsp.br/handle/handle/23592.
MUGGLER, Monica Maria. Padre José Comblin: Uma vida guiada pelo Espírito. São Bernardo do
Campo: Nhanduti Editora, 2013.
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A teologia na ptica de José Comblin: da escuta à escrita
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Passo Fundo, v.39, n.133, p. 41-49, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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DOM JOSÉ GOMES E A METODOLOGIA
POPULAR DOS GRUPOS DE REFLEXÃO
NA DIOCESE DE CHAPECÓ-SC
DOM JOSÉ GOMES AND THE POPULAR
METHODOLOGY OF REFLECTION GROUPS
IN THE DIOCESE OF CHAPECÓ-SC
Tiago Arcego da Silva*
Resumo: As décadas de 1960 a 1980 trazem um novo cenário eclesial, diante do
contexto potico, social e econômico em toda a América Latina. um
aprofundamento da pobreza e desigualdade social, bem como também a
abertura da Igreja Católica para uma nova leitura teológica, a partir do Concílio
Vaticano II (1962-1965), Medeln (1968) e da Teologia da Libertação. No bojo
deste contexto, é transferido para a Diocese de Chapecó, no Oeste Catarinense,
o bispo Dom José Gomes, o qual se torna um ícone da ala progressista Igreja
Calica no Brasil. O bispo irá desencadear muitas frentes eclesiais e sociais
libertadoras. Entre elas, interessa nesta reflexão percorrer a metodologia dos
Grupos de Reflexão, dimeno eclesial singular na formação e libertação das
conscncias do povo do Oeste se Santa Catarina. Para dar conta deste objetivo,
primeiro refletimos o fortalecimento dos Grupos e sua metodologia na
Diocese, e em seguida, o papel fundamental de Dom Jo em reforçar e
entender tais reuniões como espo privilegiado de formão de lideranças.
Palavras-chave: Grupos de Reflexão; Dom José Gomes; Teologia da
Libertação; Diocese de Chapecó.
Abastract: The decades from 1960 to 1980 brought a new ecclesial scenario,
given the political, social and economic context throughout Latin America.
There is a deepening of poverty and social inequality, as well as the opening of
the Catholic Church to a new theological reading, from the Second Vatican
Council (1962-1965), Medellín (1968) and Liberation Theology. In the midst of
this context, Bishop José Gomes is transferred to the Diocese of Chapecó, in
western Santa Catarina, who becomes an icon of the progressive wing of the
Catholic Church in Brazil. The bishop will unleash many liberating ecclesial
and social fronts. Among them, it is interesting in this reflection to go through
the methodology of the Reflection Groups, a singular ecclesial dimension in
the formation and liberation of the consciences of the people of the West of
Santa Catarina. To achieve this objective, we first reflect on the strengthening
of the Groups and their methodology in the Diocese, and then, the
fundamental role of Dom José in reinforcing and understanding such meetings
as a privileged space for leadership formation.
Keywords: Reflection Groups; Dom Jose Gomes; Liberation Theology;
Diocese of Chapecó.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 50-60, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.126
* Mestre em História pela Universidade de
Passo Fundo - UPF. Graduado em História
pela Universidade Federal da Fronteira Sul
(2014). Especialista em Espiritualidade pela
Faculdade de Teologia e Pastoral - Itepa
Faculdades, de Passo Fundo. Especialista em
Educação no Campo com ênfase em Estudos
da Realidade Brasileira pela Universidade
Federal da Fronteira Sul - Campus Chapecó.
E-mail: tiago_xxe@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4573-0683
Recebido em 30/09/2022
Aprovado em 19/10/2022
51
INTRODUÇÃO
O contexto do final da década de 1960 apresenta um cenário de endurecimento do
regime político no país, desigualdade social em números alarmantes, repressão, fome e
pobreza. Cena parecida se replicava em muitos países da América Latina. Diante deste
panorama, a Igreja Católica procurava se reposicionar, ao mesmo tempo em que sofria
pressão para que assumisse uma postura mais aberta, frente a sua tamanha influência neste
ambiente, fruto de diferentes experiências locais e os resultados do Concílio Vaticano II
(1962-1965). A Conferência Episcopal realizada em Medellín, em 1968, aponta novas
possibilidades de abordagem, com campo aberto para uma nova interpretação teológica,
pouco mais tarde sintetizada como Teologia da Libertação (TdL)
1
, em todo o Continente.
É nesse período que ocorre a transferência de Dom José Gomes, então bispo da
Diocese de Bagé RS, para ser o terceiro bispo da Diocese de Chapecó - SC, o qual
permaneceria de 1968 até 2002, ano de sua morte. Embora não se saiba ao certo o porquê
da decisão política da Igreja pela transferência do bispo, como veremos, em Chapecó sua
presença foi decisiva, pois assumiu o cargo de figura eclesial mais importante, e também
foi onde sua história ficou marcada como à história de um grande líder da Igreja e dos
movimentos sociais no Brasil.
Aos poucos, a Igreja local assume e traduz os debates que toda a América Latina fazia
em torno da Teologia da Libertação e também se estrutura a partir da “opção preferencial
pelos pobres”. Os círculos bíblicos, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), os Grupos de
Reflexão (GRs), as Pastorais Sociais, o avanço na democratização das tomadas de decisão
incorporando o papel fundamental dos leigos e os espaços de formação de e política,
serão grandes marcas da Igreja diocesana, principalmente nas décadas de 1970-1980.
Os Grupos de Reflexão, como veremos, fomentam o estudo dos documentos
eclesiais, da Bíblia e da realidade social, política, econômica e cultural em que eram
condicionadas as comunidades. No entanto, o bojo das discussões propostas pelos roteiros
gera conflitos de interesses entre os diferentes grupos sociais, logo esse se torna um
período onde ocorrem grandes enfrentamentos e tensões relacionados às posturas e ações
da Instituição na região em defesa dos pobres.
Vale destacar a grande importância da figura do bispo diocesano como
impulsionador e rígido na cobrança da efetivação do modelo de Grupos de Reflexão. É
neste cenário que a Igreja local ganha notoriedade, a partir da formação de lideranças e na
organização popular e é reconhecida em todo o Brasil pelo grande número de pessoas que
aparecem à frente dos movimentos populares, partidos políticos e pastorais sociais. Ao
mesmo tempo, Dom José é lembrado como o “bispo dos pequenos”, “mestre e aprendiz do
povo”, “profeta da esperança” e tantos outros adjetivos que ainda marcam a vida e história
de quem conviveu ou, simplesmente, soube de sua atuação na defesa dos “pequenos” e no
anúncio de uma nova organização geradora da justiça social, a partir da Teologia da
Libertação.
2
1 A Teologia da Libertação foi uma ampla produção teológica, com pressupostos históricos, sociológicos, econômicos
e sociais, fruto de debates a partir da linha mais social da Igreja Católica e protestante, que nortearam uma leitura e
ação a partir da experiência e protagonismo da “opção pelos pobres”. Ela vai ter conceito e atuação singular na
América Latina, especialmente, entre as cadas de 1970 a 1990. Na referência a seguir, apontamos uma
oportunidade de aprofundamento no conceito.
2 Infelizmente não é possível fazer uma análise mais detalhada sobre todos os conceitos importantes registrados nesta
introdução. Para evitar a exaustão, ao mesmo tempo em que fugiríamos da proposta do artigo, damos ao leitor
apenas uma possibilidade de leitura de cenário. Para um debate mais amplo dentro destes pressupostos, o qual baliza
esse rápido estudo, ver: Tiago Arcego da SILVA. A práxis política da Igreja Católica na Diocese de Chapecó/SC (1970-
1980). Erechim: AllPrint, 2018.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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Fonte: IBGE, 2015; FRITZEN, Maycon; SILVA, Tiago Arcego da. (Org). 2015. In: SILVA, Tiago
Arcego da. A práxis política da Igreja Católica na Diocese de Chapecó/SC (1970-1980). Erechim: AllPrint,
2018. p. 17.
OS GRUPOS DE R E FLEXÃO NA DIOCESE DE CHAPECÓ
Como dito, os Grupos de Reflexão (GRs) eram um dos principais mecanismos de
comunicação e formação na Diocese de Chapecó. Em 1975, os GRs, baseados na Educação
Popular de Paulo Freire, foram assumidos pela primeira vez como Diretriz para
Evangelização. A metodologia propunha o fomento das CEBs, onde deveria se consolidar
a renovação litúrgica e bíblica, a partir de uma “leitura popular da Bíblia”, em parcerias da
Diocese com diferentes grupos ligados à Teologia da Libertação, como o projeto
“ASSESSOAR” de Francisco Beltrão PR; o Centro de Orientação Missionária COM, de
Caxias do Sul; e o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos CEBI.
3
Neste ínterim, embora
também com dificuldades, é que eram difundidas de maneira mais efetiva para as
lideranças e comunidades as posturas da Igreja diocesana frente aos problemas sociais.
a partir de 1976, a Diocese passou a produzir seus próprios roteiros para Grupos
de Reflexão. Na prática, a proposta era de que pequenos núcleos familiares, dentro das
comunidades eclesiais de base, pudessem se encontrar para estudar um tema específico,
que era proposto a partir da realidade, seguido de uma leitura bíblica com perguntas para
serem debatidas pelos grupos e, por fim, um bloco destinado a fazer com que os mesmos
percebessem formas de ação concreta na comunidade ou sociedade. Frequentemente, os
roteiros também apresentavam gravuras ou desenhos para ilustrar o tema proposto. Por
abordarem temas locais, ligadas às questões macro, reunir diferentes visões de mundo,
posicionamentos e interesses, não sem demora, conflitos passaram a existir também no
seio das comunidades, como veremos adiante.
Figura 1 – Abrangência territorial da Diocese de Chapecó.
3 Adayr Mário TEDESCO; Romualdo ZIMMER. O pastor de uma Igreja que transformou o Oeste. In: UCZAI, Pedro
(Org.). Dom José Gomes: Mestre e Aprendiz do Povo. p. 82-83.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
53
Fonte: DIOCESE DE CHAPECÓ. Natal Vida e Esperança Pastoral Rural. Roteiro de Grupo de Reflexão. Chapecó, 1980.
pia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S, Chape-SC.
Segundo Clodovis Bo, “todo o trabalho popular necessita destas duas coisas, ligadas
entre si: teoria (reflexão, estudo, análise, compreensão) e práxis (ou prática, ação,
compromisso, luta)”.
4
Desta maneira, os roteiros buscavam essa mediação entre o estudo e
o compromisso concreto, o que também era princípio primeiro na discussão
apresentada por Paulo Freire a partir de seu método.
Em 1988, por exemplo, foi enviado para as comunidades um caderno de roteiros
para os GRs, comemorativo aos primeiros 12 anos de elaboração pela própria Diocese de
Chapecó. Nele os objetivos dos Grupos de Reflexão são retomados e apresentados como: 1
Evangelizar o povo cristão; 2 Formar e construir a Comunidade Eclesial de Base; 3
Promover a educação popular; 4 Favorecer o engajamento nas organizações populares
que lutam pela libertação e o ferramentas na construção do Reino de Deus; 5 Ser sinal,
fermento e instrumento do Reino de Deus.
5
Dentro do objetivo 3, de “promover a educação popular”, encontram-se os subitens:
[...] que desperte a consciência crítica e a visão política; - que ajude a criar
Consciência de Classe; - que defenda os interesses do povo explorado e
trabalhador; - que fortaleça as organizações populares; - que desperte e forme
lideranças do povo para organizar as lutas populares; - que torne o povo
oprimido sujeito de sua história; - que busque a transformação da sociedade.
6
Os GRs tinham o intuito de ser o espaço privilegiado de formação de lideranças na
Diocese de Chapecó. Em seus objetivos, conforme descrito, a “consciência política e de
Figura 2 – Roteiro de Grupo de Reflexão: “Natal: Esperança de Libertação”.
4 Clodovis BOFF. Como trabalhar com o povo. p. 53.
5 DIOCESE DE CHAPECÓ. Roteiro para grupos de reexão. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral.
Av. Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC, p. 9.
6 DIOCESE DE CHAPECÓ. Roteiro para grupos de reexão. p. 9.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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classe” vem a partir da elaboração da TdL e de sua aproximação de análise sociológica com
o materialismo histórico. Muitos roteiros foram elaborados nas décadas de 1970 e 1980, a
partir desses pressupostos.
Em pesquisa no arquivo diocesano
7
foi possível mapear 28 cadernos de roteiros para
GRs, elaborados entre 1978 e 1989, com diversas propostas de encontro e temáticas. Porém, é
provável que o número de prodão seja muito maior, visto que não eso nos arquivos alguns
cadernos básicos, como o de Natal e Campanhas da Fraternidade de alguns anos. Outros
cadernos de roteiros vinham de outras Dioceses do Brasil e provavelmente serviam de modelo
ou subdio de estudo para os agentes responsáveis pela elaborão. São diversos livros com
sugestões de encontros, especialmente para quaresma (campanha da fraternidade), Natal, datas
e temas especícos, como dia do agricultor e a organização das mulheres. Em cada estudo, a
tentativa de aproximação entre e vida atras da linguagem popular apontava para o
compromisso concreto dos participantes, forjando novas lideraas nas comunidades.
ORGANIZAÇÃO E CONTRADIÇÕES NOS GRUPOS DE REFLEXÃO
Em uma ampla pesquisa feita no ano de 1984, como estratégia de organização a
partir do jubileu de 25 anos da Diocese de Chapecó, encontramos o resultado
sistematizado de que naquele ano havia 10.160 Grupos de Reflexão, apenas nas
comunidades rurais, e mais 724 grupos
8
nas comunidades dos bairros das cidades,
espalhados pelos, até então, 32 municípios de abrangência. Esse mesmo estudo compilou
dados do senso do IBGE de 1980, os quais marcavam que a população total da diocese era
de 632.516 pessoas, das quais 423.181 residiam na área rural e 209.355 residiam na área
urbana. Nesse universo populacional, ter um montante de quase de 11 mil Grupos de
Reflexão pressupõe um bom nível de organização desta prática na Diocese.
9
Figura 3 – “A Realidade do Povo de Deus da Diocese de Chapecó”.
Fonte: DIOCESE DE CHAPECÓ. A realidade do povo da diocese de Chape 1959/1984: Pesquisa Socio-Político-Econômico-
Religiosa. Chapecó, 1984.Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
7 Desenvolvida para elaboração da Dissertação de Mestrado, entre os anos de 2016 e 2018.
8 A pesquisa nos bairros aponta também o mero de famílias que participavam dos grupos, chegando ao total de
3.887 famílias. DIOCESE DE CHAPECÓ. A realidade do povo da diocese de Chapecó 1959/1984: Pesquisa Socio-Político-
Econômico-Religiosa. Chapecó, 1984, p. 19. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio
Vargas, 121S, Chapecó-SC.
9 Sem dúvidas valeria a pena um estudo específico sobre os materiais elaborados em 1984 em decorrência do jubileu de
prata da Diocese de Chapecó. DIOCESE DE CHAPECÓ. A realidade do povo da diocese de Chapecó 1959/1984: Pesquisa
Socio-Político-Econômico-Religiosa. Chapecó, 1984. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av.
Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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Diante dos números colhidos na época, é possível perceber que a formação de
lideranças se dava de maneira bem articulada dentro dos GRs. Os estudos e as provocações
para ação prática na realidade onde viviam impulsionavam a procura por novas fontes e
referências. Se analisados a partir da ótica da educação popular, em um primeiro olhar, os
GRs foram uma experiência exitosa. Para Paulo Freire:
Não existe conscientização se a prática não nos leva à ação consciente dos
oprimidos como classe social explorada na luta pela sua libertação. Por outro
lado, ninguém conscientiza ninguém. O educador e o povo conscientizam-se
através do movimento dialético entre a reflexão crítica da ação anterior e a ação
que se segue no processo dessa luta.
10
No entanto, era justamente na interação entre educador e povo que ocorriam as
maiores tensões no processo dos GRs e, a partir de então, se revelavam outras fragilidades.
Nas reuniões de avaliação e, especialmente, nos relatórios de assembleias diocesanas
verificamos inúmeras dificuldades encontradas na efetividade dos grupos.
Tais contextos de dificuldade podem ser observados 3 (três) anos antes do
lançamento do estudo supracitado, de maneira mais enfática. A Circular Outubro 81
11
, por
exemplo, apresenta o resultado de quatro reuniões comarcais que tinham o objetivo de
fazer uma leitura da organização e ação da Diocese naquele ano. Dentro do material estão
textos referentes à conjuntura estadual, nacional e latino-americana, além da
sistematização das avaliações feitas nas comarcas. As dificuldades dos GRs são divididas
entre rurais e urbanas, embora o texto referencie que ambas as realidades apresentem
desafios parecidos. Na lista das 28 dificuldades, aparecem em destaque, quanto à
metodologia, as seguintes afirmações:
- Grupos se prendem ao texto, não entendendo a dinâmica e o método dos
grupos de reflexão; - Falta de ligação/ reflexão-oração-ação; - Falta de
conhecimento e convicção quanto à validade, utilidade e finalidade dos grupos
de reflexão por parte do povo e dos agentes; Os mais pobres não são atendidos;
- O material demais intelectual do que popular.
12
As lideranças das paróquias, em grande medida, sugeriam o avanço ainda maior na
eficiência e proposição dos GRs. inúmeras cobranças sobre a necessidade de tornar os
materiais mais populares e fazer com que esse mecanismo despertasse mais para a ação
concreta. Algumas argumentações, no entanto, elucidam as divergências e fragilidades
internas que a nova proposta eclesial gerava entre as famílias. Embora tivesse uma ampla
adesão, a metodologia dos Grupos de Reflexão o tinha total aceitação e as avaliações
também apresentavam repúdios ao cunho político, além de sugerirem o indicativo para
assuntos ligados à moral, sacramentos e catequese, especialmente.
13
Segundo Clodovis Bo, havia duas esferas distintas de trabalho com o povo: a esfera
eclesial e a esfera social, que embora tenham suas práticas próprias deveriam estar
relacionadas entre si. “Por isso, a questão, nesse nível não é desdobrar, mas antes combinar as
10 Paulo FREIRE. Os cristãos e libertação dos oprimidos. p. 17.
11 Circular eram textos em formato de estudos, comunicados, reflexões etc., escritos pelo Bispo Diocesano ou por
equipes da estrutura da Igreja local, destinados a paróquias ou comunidades, no intuito de formação e informação das
lideranças.
12 DIOCESE DE CHAPECÓ. Circular Outubro 81. Resumo dos encontros comarcais e outros Documentos. Chapecó, 1981.
As 28 dificuldades listadas na circular quanto aos grupos no meio rural são basicamente relacionadas a dicotomia
entre vida; o pouco engajamento político; os conflitos entre patrões e empregados, ricos e pobres; o modelo de
Igreja; a alta demanda de reuniões e; a linguagem difícil dos materiais.
13 DIOCESE DE CHAPECÓ. C ircular Outubro 81. Resumo dos encontros comarcais e outros Documentos. Chapecó, 1981.
Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
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SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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duas esferas, ou seja: a comunidade eclesial e outras associações do povo”.
14
Como proposta,
para resolver tais dificuldades e contemplar todas as argumentações foi sugerida a realização
de uma Assembleia Diocesana
15
específica dos Grupos de Reflexão para o ano de 1982.
DOM JOSÉ GOMES: O BISPO DA DIOCESE DE CHAPECÓ
Como mencionamos, não se sabe ao certo o que motivou a opção da Igreja pela
transferência do bispo Dom José Gomes para Diocese de Chapecó, em 1968.
16
Vastos
estudos foram elaborados sobre a importância do bispo para a Igreja local e nacional. É
imprescindível lembrar, no entanto, que Dom Jo não chega em Chapecó com a
postura mais ligada a TdL. É no contexto encontrado que ele vai se forjando como um
bispo da libertação, ligado às causas sociais e à defesa dos pobres, como pressupõe a
premissa básica fortalecida por esse segmento dentro da Igreja Católica.
Adayr Tedesco e Romualdo Zimmer (2002) definem a presença do bispo em três
grandes períodos, sendo eles chamados de patamares: 1 entre os anos de 1968 e 1975; 2
entre os anos de 1975 e 1984; 3 de 1985 até 1998, quando se torna bispo emérito da
Diocese, com a nomeação do novo bispo, Dom Manuel João Francisco.
Segundo os autores, no primeiro patamar encontramos uma característica marcada
por uma organização de Igreja mais moderna que libertadora. É o momento em que Dom
José se insere em um movimento de renovação interna na Igreja, focado em novas
diretrizes para a catequese, formação de lideranças comunitárias e introdução de
Ministérios Leigos, baseado nas deliberações do Concílio Vaticano II.
17
No segundo patamar ocorrem os debates mais apurados da Igreja diocesana para
Teologia da Libertação e para as lutas sociais mais fortes. Neste período Dom José é
perseguido, difamado e ameaçado por defender os direitos dos sem-terra, dos indígenas,
das mulheres, dos trabalhadores. É um cenário onde “entram em cheio os movimentos e as
lutas sociais”.
18
A Diocese de Chapecó ganha importância em nível nacional com a
organização de dois importantes órgãos, o Conselho Indigenista Missionário CIMI, e a
Comissão Pastoral da Terra CPT, os quais Dom José assumiria a presidência nacional
mais tarde e que fomentaram um amplo debate em torno das questões de demarcação de
terras indígenas e da luta pela terra dos trabalhadores rurais sem-terra.
19
Nesta conjuntura, Dom José toma posse dos debates da Conferência de Medellín e
da Teologia da Libertação. A Opção pelos pobres passa ser a marca forte do bispo
diocesano que, por sua vez, se difunde para as lideranças e para o jeito de fazer pastoral e
se organizar de toda a diocese. Para gerar cada vez mais sintonia na opção e orientação,
Dom José passa a escrever, a partir de 1975, homílias para serem reproduzidas em todas as
comunidades da Diocese. Na publicação das homílias de Dom José - escritas entre os anos
de 1975 e 1992 - encontramos a seguinte descrão da característica do discurso de Dom José,
que revelam a importância de seu pronunciamento para a politização das comunidades:
14 Clodovis BOFF. Como trabalhar com o povo. p. 109.
15 Principal mecanismo de consulta e tomada de decisão elaborado pela Diocese de Chapecó para saber as opiniões das
paroquias sobre a ações que deveriam ser tomadas.
16 Em Pedro UCZAI (Org.). Dom José Gomes: Mestre e Aprendiz do Povo. Chapecó: Argos, 2002, é possível perceber o
porquê desse contexto ser tão emblemático.
17 Adayr Mário TEDESCO; Romualdo ZIMMER. O pastor de uma Igreja que transformou o Oeste. In: UCZAI, Pedro
(Org.). Dom José Gomes: Mestre e Aprendiz do Povo. p. 77.
18 Adayr Mário TEDESCO; Romualdo ZIMMER. O pastor de uma Igreja que transformou o Oeste. In: UCZAI, Pedro
(Org.). Dom José Gomes: Mestre e Aprendiz do Povo. p. 78.
19 Dom José foi presidente Nacional do CIMI entre os anos de 1979 à 1981 e da CPT entre os anos de 1981 à 1984.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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Dom José tinha do dom da palavra. Até hoje suas pregações estão à flor da pele
de muitos militantes. Elas sempre incidiam diretamente no contexto em que
vivia o povo oprimido nas comunidades de agricultores, de caboclos, de povos
indígenas, de operários explorados nas cidades.
20
Logo, os sermões, são uma forma de diálogo direta entre o bispo e as comunidades e
uma maneira de posicionamento e direcionamento dos debates propostos pela Igreja a
partir da realidade local e nacional, ligando o discurso da Teologia da Libertação. Para o
cenário do Oeste Catarinense, Dom José descreve os pobres a partir de uma realidade bem
concreta. Para uma região onde os índios, cabocos e pequenos agricultores sem-terra e
sem direitos, diante do avanço do modelo agroindustrial que endividava e gerava
dependência do “modelo de integração” das famílias agricultoras e de exploração dos
trabalhadores. Em uma de suas homilias o bispo apresenta os pobres como:
Os que não têm comida; Os que não tem roupa; Os que não tem água para
beber; Os que não tem remédios e condição de ser recebidos em hospitais; Os
que são presos. Sempre vai para cadeia o pobre. O rico, bem cotado, nunca vai
para cadeia. O dinheiro paga a “justiça”; Os que não tem terra; Os que não têm
casa e nem podem pagar o aluguel; Os que não têm trabalho, os desempregados;
Os desprezados e humilhados. Aqueles que nós gostamos de pisar em cima; Os
desprezados porque são de outra raça (caboclos, negros, índios); Os explorados
nos salários e no preço do seu trabalho, como os pequenos agricultores; Os
pequenos, que a Bíblia diz que do outro lado tem os grandes que os desprezam;
Os que são roubados no pouco que têm. Toda esta gente, que normalmente a
sociedade despreza, Jesus chama de bem aventurados, felizes ou abençoados de
Deus, porque sua situação não é do plano de Deus. E Jesus diz que o Reino de
Deus é deles. E não daqueles que exploram ou sustentam estas situações para
proveito próprio, ou simplesmente os chama de vagabundos e miseráveis,
relaxados. O Evangelho é brabo, gente!
21
Tais posturas e debates, por sua vez provocam reações. Nesse cenário, Dom José,
impulsionador e incentivador da ação leiga em diferentes campos da luta por direitos, vai
sofrer um grande número de críticas e ameaças. Nessas relações conflituosas, intra e extra
eclesiais, a Diocese de Chapecó se consolida como uma Diocese de organização e lutas
populares. Muitas lideranças formadas nesse meio, ocupam posições de destaque em
cenários políticos, acadêmicos, movimentos sociais, sindicatos, inseridos na luta pela
valorização e por direitos para suas comunidades. Para isso era preciso um amplo e
eficiente método de formação.
DOM JOSÉ GOMES E OS GRUPOS DE RE FLEXÃO
Dom José Gomes tinha papel decisivo também na animação dos Grupos de
Reflexão, pois via o potencial fundamental de formação e organização de lideranças, tanto
para o âmbito eclesial, como para o social e político, que tais reuniões proporcionavam. O
bispo fazia questão de participar de espaços de debate, formação e elaboração sobre as
temáticas.
Em seus sermões rotineiramente se encontra o apelo para que as lideranças
dedicassem tempo para estudar através dos GRs. Também, nas apresentações dos cadernos
de roteiros, o bispo deixava nítido quais deveriam ser os horizontes do estudo.
No roteiro da Campanha da Fraternidade 1978, por exemplo, cujo o tema é
“Trabalho e justiça para todos” o bispo escreve o seguinte:
20 Clair LOVERA (et al.). Sermões do bispo Dom José Gomes. p. 26.
21 Clair LOVERA (et al.). Sermões do bispo Dom José Gomes. p. 464.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
58
Alguém poderia perguntar, o que tem isto tudo a ver com Religião, com a
Quaresma. Pois, eu digo a vocês: Religião é vida. Sem trabalho e sem justiça não
se vive. E onde não existe trabalho e justiça, a religião está mal. É religião de
papo e não religião de Cristo. Onde não há trabalho e justiça, só existe miséria e
necessidade. E Deus não quer isto para os homens.
22
O pensamento de Dom José é repassado para as comunidades e lideranças de
maneira direta. A mudança no modelo eclesiológico na Diocese de Chapecó vai se
consolidando, no entanto, como mencionado anteriormente, no centro das
comunidades a receptividade das posturas da Igreja Diocesana e do bispo se dava de
maneira distinta entre diferentes grupos. É nos GRs e nas CEBs que se notam os conflitos.
Não sem demora, ao mesmo tempo em que Dom José encontra muito apoio e
acolhida, além de reconhecimento nacional dentro da ala progressista da Igreja,
também um avanço nas ameaças contra sua própria vida, ao longo de sua trajetória. Tais
ameaças vinham de diferentes lugares e diferentes formas, dentro do contexto que se
percebem redes de perseguição a religiosos com tais posturas.
23
Porém, mesmo em meio a conflitos, Dom José continua apostando na metodologia
dos GRs. Com temas tão relevantes para a vida das comunidades e sua formação de
consciência a partir da ótica da libertação, o bispo insistia em seu fortalecimento. No
sermão feito para a celebração do domingo do advento, em 14 de dezembro de 1980,
Dom José escreve:
Meus amigos, eu vou falar bem claro! Vocês têm 28 dias por mês quando podem
rezar quanto quiserem. Ninguém proíbe. É o dever de vocês. E vocês tem dois
dias por mês para se reunir e estudar algum assunto importante da vida, da
religião, da sociedade, dos problemas de vocês. São os dois dias da reunião dos
grupos. No meio do estudo todo, vocês têm também um pouco de oração para
fazer. Então, minha gente. Rezem à vontade, até a noite toda, nos 28 dias do
mês, em que vocês não têm reunião do grupo. Mas nas duas noites em se
reúnem para estudar, então vamos estudar de fato! Sem esquecer a oração. Eu
volto a dizer: vocês têm 28 dias por mês para rezar e dois dias para estudar. [...]
Deus não muda o mundo, não faz reforma agrária, não melhora o preço do
milho, do feijão, do porco; não melhora a política, o sindicato a cooperativa, se
vocês não estudarem estes problemas e não se unirem e lutarem para que sejam
tratados como gente.
24
No discurso, Dom José revela muita ênfase na defesa de que as participações nos
GRs deveriam ser prioridade nas comunidades. Além disso, deixa subentendido que são os
grupos o mecanismo de estudo e organização chaves diante dos problemas concretos das
famílias. Neste sentido, apenas a partir da organização, estudo e ação é que poderia se
transformar a realidade.
Os Grupos de Reflexão ainda são uma estratégia de evangelização da Igreja na
Diocese de Chapecó. Durante toda a permanência de Dom José em seu bispado, podem ser
identificado momentos de ênfase na importância desta metodologia de organização. No
entanto, as décadas de 1970 e 1980 o o auge da estruturação e repercussão na formação
de lideranças, que extrapolam os murros da Igreja.
Mesmo após 1985, quando o Brasil vivenciava o avanço da abertura política, ao
mesmo tempo em que houve a grande investida do papa João Paulo II de conter a TdL em
nível mundial e a “emancipação” dos movimentos sociais da tutela eclesial, onde a Igreja
22 DIOCESE DE CHAPECÓ. Circular Outubro 81. Resumo dos encontros comarcais e outros documentos. Chapecó, 1981.
Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. p. 1.
23 Em SILVA, 2018, pode-se verificar como os grupos atuavam e como as ameaças chegavam a Dom José Gomes.
24 Clair LOVERA (et al.). Sermões do bispo Dom José Gomes. p. 241.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
59
volta-se mais sobre si mesma, ainda, assim, encontramos investidas das classes dominantes
contra Dom José, tamanho foi seu legado e atuação.
Com uma organização de grande escala no Universo da Diocese de Chapecó, os GRs
foram um mecanismo privilegiado de formação de lideranças e o bispo diocesano um
agente de importância indispensável para o seu bom funcionamento. Neste sentido, é
possível perceber que os Grupos moldaram e formaram muitas lideranças, inclusive a
formação do pensamento e da atuação de Dom José Gomes, que ao mesmo tempo que
liderava, se deixava liderar por essa metodologia.
CONCLUSÃO
Diante do nosso objetivo de analisar a relação do Bispo Dom José Gomes e dos
Grupos de Reflexão, podemos ressaltar que as décadas de 1970 e 1980 apresentam uma
nova perspectiva de organização popular no Oeste de Santa Catarina. Com a vinda do
bispo para a Diocese de Chapecó, no mesmo período em que se reforça o protagonismo
das lideranças leigas e a “opção pelos pobres” da Teologia da Libertação, como diretriz da
Igreja Latino-americana, o modelo de Igreja baseado nas Comunidades Eclesiais de Base e
na organização dos Grupos de Reflexão, fizeram com que a proposta de educação e
formação das lideranças ganhasse um salto qualitativo e direcionado para este cenário.
Os roteiros para os Grupos de Reflexão, que são elaborados para instigar e forjar a
organização e compromisso das comunidades com sua própria realidade, confrontando-a
com a experiência dos povos descritos na bíblia, seguem o modelo de educação popular e
apresentam o diferencial de proposta de estudo e participação coletiva no entendimento da
realidade social. Eles serão os impulsionadores e motivadores de encontros comunitários
de pequenos núcleos familiares, a fim de debaterem seus problemas, desafios locais e
globais e inseri-los em sua pauta de reivindicações por direitos.
Neste cenário, Dom José mostra-se sempre vigilante e exigente para que se efetive a
proposta dos grupos entendendo-os como espaço fundamental de estudo comunitário.
Mesmo em meio às críticas que as lideranças recebiam por estarem misturando religião
com política e outros aspectos, as respostas eram sempre de que fé e vida que andam juntas
e nunca podem se separar. Assim, os roteiros dos Grupos de Reflexão têm importância
significativa no processo formativo não apenas de lideranças eclesiais, mas também para os
movimentos populares e partidos políticos ligados a essa linha de pensamento, assim como
de direção da atuação do bispo.
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Econômico-Religiosa. Chapecó, 1984. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av.
Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
DIOCESE DE CHAPECÓ. CircularOutubro – 81. Resumo dos encontros comarcais e outros
DOCUMENTOS. Chapecó, 1981. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av.
Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
DIOCESE DE CHAPECÓ. Conclusões da Assembleia Diocesana de Pastoral – 1987. Texto Popular. 1987.
Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S, Chapecó-SC.
DIOCESE DE CHAPECÓ. Natal Vida e EsperançaPastoral Rural. Roteiro de Grupo de Reflexão.
Chapecó, 1980. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S,
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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DIOCESE DE CHAPECÓ. Plano de Pastoral da Diocese de Chapecó 1980. Cópia no arquivo do
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DIOCESE DE CHAPECÓ. Roteiro para grupos de reexão. Grupos de Reexão: Sementes de nova gente,
sociedade. 1988. Cópia no arquivo do Secretariado Diocesano de Pastoral. Av. Getúlio Vargas, 121S,
Chapecó-SC.
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Erechim: AllPrint, 2018.
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Diocese de Chapecó (1970-1980). In: XVI Encontro Estadual de História ANPUH-SC, 2016, Chapecó-
SC. Anais do XVI Encontro Estadual de História da ANPUH - SC, 2016.
TEDESCO, Adayr Mário; ZIMMER, Romualdo. O pastor de uma Igreja que transformou o Oeste.
In: UCZAI, Pedro (Org.). Dom José Gomes: Mestre e Aprendiz do Povo. Chapecó: Argos, 2002. p.
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 50-60, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
SILVA, Tiago Arcego da
Dom Jo Gomes e a metodologia popular dos Grupos de Reflexão na Diocese de Chape-SC
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A METODOLOGIA
HISTÓRICO-EVANGELIZADORA
1
THE HISTORICAL-EVANGELIZING
METHODOLOGY
Ivanir Antonio Rodighero*
Ivanir Antonio Rampon**
Resumo: A metodologia constitui-se uma preocupação constante no
processo formativo da Itepa Faculdades. A Instituição busca no diálogo
permanente entre a teoria teológico-pastoral e prática pastoral
evangelizadora possibilitar a formação acadêmica que contemple as
características desta região com suas comunidades eclesiais. uma tensão
permanente devido às provações dos contextos, perspectivas da
comunidade, do/a agente e da graça de Deus, em vista de novas respostas. A
Metodologia Histórico Evangelizadora se remete a esta dinâmica na medida
em que provoca para a observação, o registro, a partilha e aprofundamento
na sala aula durante o estudo da disciplina de Metodologia e Prática Pastoral
e o reencaminhamento. Este, por sua vez, passa a ser o recomeço do
processo de observação, registro e de aprofundamento teórico. É uma
metodologia que requer a mística do seguimento a Jesus Cristo.
Palavras chaves: Metodologia. Teoria. Prática. Mística. Formação.
Participação. MHE.
Abstract: The methodology constitutes a constant concern in the training
process of ITEPA College. The Institution seeks in a permanent dialogue
between practical-pastoral theory and evangelizing pastoral practice to
enable an academic training that contemplates the characteristics of this
region with its ecclesial communities. There is a permanent tension due to
the trials of the contexts, to the perspectives of the community, the agent
and the Grace of God, in view of new answers. The Historical Evangelizing
Methodology refers to this dynamic, insofar as it provokes the people for
the observation, the recording, sharing and deepening in the classroom
during the status of the disciplines of Methodology and Pastoral Practice
and their forwarding. This, in turn, becomes the restart of the process of
observation, recording and theoretical deepening. It is a methodology that
requires the mystique of following Jesus Christ.
Keywords: Methodology. Theory. Practice. Mystic. Formation.
Participation. MHE Historical Evangelizing Methodology.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 61-71, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.111
* Possui graduação em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo, graduação em
Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral
de Passo Fundo, especialização em
Epistemologia das Ciências Sociais pela
Universidade de Passo Fundo e mestrado em
Teologia Dogmática pela Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção.
E-mail: ivanirantonio.itepa@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2195-3252
** Possui graduação em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo, graduação em
Teologia pela Itepa Faculdades, mestrado em
Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, doutorado em Teologia Espiritual
pela Pontifícia Universidade Gregoriana de
Roma.
E-mail: iarampon@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-2882-440X
Recebido em 23/07/2022
Aprovado em 29/10/2022
1 Este texto tem sua origem no artigo de: RAMPON, Ivanir Antonio; RODIGHERO,
Ivanir Antonio. A eclesiologia do Papa Francisco e a Metodologia Histórico-
Evangelizadora. In ZANINI, Rogério Luiz; REIS, Ari Antonio dos (Org.). Eclesiologia
perspectivas teológica-pastorais. Passo Fundo: Berthier, 2022.
62
A presente reflexão é desenvolvida a partir da experiência metodológica realizada na
Faculdade de Teologia e Ciências Humanas, Itepa Faculdade, durante os 40 anos (1982-
2022) de atuação. Neste percurso ocorreram muitas práticas, reflexões e produção de
registros, relatórios e textos documentados, também, em livros e revistas. Trata-se, aqui,
de recorrer ao caminho percorrido, tentando escutá-lo atentamente para visualizar as
lacunas e acertos e, principalmente, descrever a Metodologia Histórico-Evangelizadora
(MHE) da Itepa Faculdades.
Este processo foi descrito em duas obras que tentam relatar a teoria e a prática da
MHE
2
e mais recentemente foi resgatado o legado deixado pelo Pe. Elli Benincá, um dos
mentores da MHE, em duas obras: Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli
Benincá e Itepa Faculdades: 40 anos reetindo sobre EvangELLIzação
3
.
1 A METODOLOGIA DA ITEPA FACULDADES
A perspectiva metodológica da Itepa Faculdades fundamenta-se na Palavra de Deus,
na Tradição Eclesial, especialmente aquela oriunda Concílio Vaticano II, das Conferências
Latino-americanas, da CNBB e da reflexão de nossas igrejas locais, mais recentemente, no
magistério do Papa Francisco. Este referencial remete-nos a um “fazer pastoral” que
procura contemplar o processo participativo, provocando um diálogo permanente entre a
“teoria pastoral” e a prática pastoral realizada pelos discentes e docentes. O nome da Itepa
Faculdades, na sua origem, era “Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo”
4
sugerindo que a pas toral necessitava ocupar um espaço significativo. As Constituições
apresentam a pastoral como um eixo inte grador da formação teo lógica numa perspectiva
metodológica participativa, que envolve o estudo da teologia e a ação pastoral.
A Instituição, desde sua origem, procura refletir metodologicamente sobre a
pastoral a par tir de suas espe cificidades: “preparar os futuros sa cer dotes da região [...] ser
cen tro de pesqui sa e reflexão teológica”
5
. As metas contemplam significativamente a
dimensão pasto ral exercida de forma consciente, participativa e reflexiva. Este quesito
explicita-se quando se refere à metodolo gia pas toral: “A pastoral deveser desenvolvida ao
longo de todo o perí odo de preparação teogica. O engaja mento pastoral será uma exi ncia
para o ingresso no curso
6
. E no curculo encontram-se oito disciplinas que tratam diretamente
sobre vários ramos da pas toral, porém, todas as disciplinas precisam ter cunho pasto ral.
Esta postura, também, fundamenta-se no Concílio Vaticano II. Este aponta com
nitidez que nos estudos teológicos: “A solicitude pastoral, [...] deve penetrar toda formação
dos estudantes[...]” (OT 19). O Decreto Optatam Totius (OT) pede que os seminaristas
tenham formação em todos os aspectos, incluindo a formação intelectual... e estes possuem
por finalidade formar pastores: “por isso, todos os aspectos da formação, o espiritual, o
intelectual e o disci plinar, em ação conjunta, devem ordenar-se a esse fim pastoral” (OT 4).
O Decreto desafia os estudantes “procurar as soluções dos problemas humanos sob a luz da
Revelação; aplicar suas verdades eternas à mutável condição das realidades humanas; e a
comunicá-las de modo adaptado aos homens de hoje” (OT 16).
2 Neri MEZADRI; Rodinei BALBINOT (Org.). MHE: metodologia da ação evangelizadora. Uma experiência no fazer
teológico-pastoral. Passo Fundo: Berthier, 2008. Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística
do discípulo missionário. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012.
3 Elton Henrique MÜHL; Telmo MARCON (Org.). Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli
Benincá. Passo Fundo: EDIUPF, 2022. Selina Maria DAL MORO; Ivanir Antonio RODIGHERO (Org.) Itepa
Faculdades 40 anos reetindo sobre EvangELLIzação. Passo Fundo: EDIUPF, 2022.
4 ITEPA, Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo - RS, p.6.
5 ITEPA, Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo - RS, p.6.
6 ITEPA, Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo - RS, p.8.
RODIGHERO, Ivanir Antonio; RAMPON, Ivanir Antonio
A Metodologia Hisrico-Evangelizadora
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 61-71, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
63
A pastoral, por ser o “agir da Igreja no mundo”
7
, vem impregnada de conflitos. O
testemunho e o anúncio do Reino de Deus constituem-se em denúncia e ameaça ao
antirreino e aos acomodados. Porém, isto não é para a outra pessoa, mas serve também
e permanentemente para o evangelizador/a. Todos necessitamos de evangelização e de
conversão continuada. Por isso, a partilha da prática pastoral provoca reflexões sobre te
mas vi tais
8
. A apreensão dos pro blemas reais tais como desemprego, miséria,
desigualdade..., a partir da pastoral, nos primei ros anos de vida da Instituição, revelou-
se profundamente conflitiva. Os acadêmicos, que se engajavam e se com prometiam com a
prática pasto ral e com as comunidades onde atua vam, revelavam-se interessados pela
reflexão, o que, normalmente, não acontecia com os que encontravam dificuldades de
optar pela prática pastoral.
Um dos quesitos fundamentais é o planejamento pastoral, segundo o Pe. Jair
Carlesso, pois “planejar é um processo permanente de tomada de decisões. O plano de
ação, quando feito de forma comunitária e participativa, torna-se aglutinador de forças”
9
.
O Pe. Elli também destacava a importância do projeto:
Uma condição sica para que a metodologia pastoral possa construir seu processo
evangelizador é a existência de um projeto de pastoral. Este servirá como guia
para a prática pastoral dos agentes e comunidade. É um instrumento simples,
mas incorporado a consciência dos agentes de pastoral. Um projeto com mais
acadêmicos pode não ser prático nem construir-se em consciência disponível, e
por isso torna-se inútil. O projeto de pastoral passa a ser a mística do agente
10
.
Um dos constantes dilemas que perpassa a vida da Itepa Faculdades é o desafio de
como refletir sobre a prática pastoral. Como ajudar os acadêmicos a optarem pela pastoral,
pelas pessoas e pelas comunidades? Como auxiliar os estudantes de teologia para que
realizem a pastoral, elaborando um plano de pastoral? Como ajudar a refletir sobre a
prática pastoral (método, instrumental...)? Como fazer o elo entre a teologia e a pastoral?
Estas perguntas provocaram muitas reflexões, muitos sonhos e projetos, muitas que das,
mas no final desponta um sinal de esperança. É o que veremos a seguir.
1.1 Caminho Percorrido na Tentativa de Compreender a Ptica Pastoral
Como vimos acima, uma das inquietações que tem perpassado a Itepa Faculdades é a
refle o sobre a prática pastoral dos acadêmicos. Esta, por ser ação orga nizada dos
membros da Igreja no mundo, vem permeada de confli tos, ten sões, inseguranças,
impasses, divisões que requerem um pro cesso de reflexão constante.
Neste sentido, ao longo dos anos, foram criadas várias estratégias para refle tir sobre
a prática pastoral dos acadêmicos. A primeira postura do Itepa, na sua origem (1983-1984),
foi a de ini ciar um processo de reflexão sobre a prática pastoral dos acadêmicos nas
comuni dades seminarísticas. Cada comunidade era assessorada pelo padre as sistente. O
Instituto assumia a função de for necer um currículo numa perspectiva pastoral e
disciplinas espe cíficas (Pastoral I: análise da conjuntura da região - social, econômica,
cultural e religiosa; Pastoral II: princípios de evangelização e catequese; Pastoral III:
catequese de iniciação e catequese escolar; Pastoral IV: catequese de adultos; Pastoral da
família e dos jovens; Pastoral V: movimentos de Igreja; Pastoral VI: ecumenismo, seitas
7 João Batista LIBANIO, O que é pastoral?, p.11.
8 COMUNIDADE DE TEOLOGIA, Livro de Crônicas, p.7.
9 Jair CARLESSO, Planejamento pastoral, in Selina Maria DAL MORO; Ivanir Antonio RODIGHERO, Itepa
Faculdades: 40 anos reetindo sobre evangELLIzação, p.181.
10 Elli BENINCÁ, Metodologia pastoral; in: DIOCESE DE PASSO FUNDO, Caderno de formação - nº 2, p.53.
RODIGHERO, Ivanir Antonio; RAMPON, Ivanir Antonio
A Metodologia Hisrico-Evangelizadora
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 61-71, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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populares, cultos afro-brasileiros, religiosidade popular; Pastoral VII: pastoral popular e
movimentos populares - sindicatos, cooperativas, partidos, legislação traba lhista...;
Pastoral VIII: organização paroquial e organização diocesana)
11
, e proporcionava
encontros men sais para estudar os planos de pastoral das quatro dioceses e organizava
uma partilha e dis cussão sobre questões mais candentes da prática pas toral
12
.
Esta articulação, Itepa/comunidade seminarística, foi significativa, mas não
contempla va os religio sos (as) e os leigos. Outra dificuldade mani festava-se nas comu ni da
des seminarísticas que não possuíam um for mador per manente (algumas comunidades de
seminaristas residiam em paróquias e o assistente os acompanhava esporadicamente). No
final de 1984 amadureceu a proposta de modificar a reflexão sobre a prática pastoral: a
partilha e a reflexão passaram a ser realizadas por setores, isto é, todos os que realizavam
pastoral num determinado campo (setor) encontravam-se, periodicamente, para planejar,
trocar experiências e avaliar, com a presença de um professor.
Esta proposta vigorou durante dois anos, 1985-1986. Ocorreram reflexões
interessantes, mas as dificuldades em refletir sobre a prática foi esmorecendo paulati
namente a eficácia da maioria dos setores. Em 1987, o Instituto reagiu, elaborando
subsídios e oficializando os antigos setores em disciplinas. O efeito foi adverso.
No segundo semestre de 1988 continuando até 1992, a reflexão sobre a prática
pastoral retor nou às pequenas comunidades, que elas possuíam assistentes permanentes.
O Instituto acompanhava a prática pastoral, através da criação da Equipe de Pastoral,
composta por um acadêmico de cada comunidade seminarística, um religioso, um leigo e
um professor. No decorrer destes cinco anos foram definidas as funções específicas nas
várias ins ncias
13
. Uma das preocupações foi o estudo sobre a metodologia pastoral que
culminou com a elaboração de texto orientativo. A deficiência que se manifestou nestes
cinco anos foi o hiato que separava a reflexão teológica (no Itepa) e a prática pastoral (nas
pequenas comunidades). A teologia dissociada da pastoral tornava-se bastante abstrata e a
pastoral carente de fundamentos teológicos e de uma metodologia mais definida.
1.2 Nova perspectiva com a MHE
A partir de 1993 iniciou-se uma proposta nova que visava possibilitar ao acadêmico/
acadêmica realizar uma experiência coerente entre os estudos teológicos e a prática
11 ITEPA, Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo - Itepa, p.9-10.
12 A reflexão sobre como refletir, analisar e revisar a experiência pastoral foi sempre uma preocupação em nível de
Itepa: “como escrever e revisar a experiência pastoral” (Livro de Crônicas da Comunidade de Teologia, p. 11) e no
encontro de 05/09/83 foram elencados alguns elementos que poderiam ajudar na observação dos seminaristas que
atuavam em vila: “1 - Ver 1.1 - O que os vileiros fazem? a) o que pensam? b) o que falam? d) o que valorizam? c) que
aspiração pos suem? 1.2 - Como são vistos: a) pelos próprios vileiros? b) pela imprensa, polícia e povo? d) pela Igreja?
e) e por nós, os agen tes, como os vemos? 2 - Julgar 2.1 - Quais são as causas e consequências das situações
constatadas? 2.2 - Que princípios orientam e justificam o trabalho do agente de pastoral? 3 - Agir 3.1 - Que método
deve ser utilizado? 3.2 - Que atividades devem ser assumidas?” (Ibidem, p.26).
13 As instâncias foram assim definidas: Quanto à comunidade ou setor onde ocorre a ação pastoral dos alunos: -
O aluno deverá participar do planejamento, execução, avaliação, celebração em sintonia com os demais agentes e
com o plano diocesano de pastoral; - É necessário ter conhecimento da comunidade (história, desafios, impasses,
potencialidades, prioridades...); - Ação pastoral seja acompanhada pelo assistente ou alguém indicado pelo mesmo.
Quanto à comunidade seminarística: - Local para partilhar as experiências e celebrar a caminhada pessoal na
pastoral; - Planejamento pessoal sobre a pastoral e discussão do mesmo com a comunidade; - Aprofundamento da
experiência pastoral e as questões que exigem reflexões mais especializadas remeter ao Itepa. Quanto ao assistente e/
ou responsável: - Marcar presença, isto é, acompanhar o trabalho pastoral do estudante do Itepa para apoiar,
orientar, desafiar...; - Auxiliar os estudantes para conhecer e respeitar a vida da comunidade ou setor, iluminando
pela Palavra de Deus, documentos da Igreja e com a colaboração de outras ciências; - Aprofundar e remeter ao Itepa
os desafios oriundos das atividades pastorais. Quanto ao Itepa: - Estar atento e aprofundar os entraves da ação
pastoral; - Reunir os assistentes e/ou responsáveis para analisar como está sendo desenvolvida a prática pastoral e
juntos en contrar saídas; - Organizar uma equipe para pensar e dinamizar a pastoral” (in: Caminhando com o Itepa, p. 23).
RODIGHERO, Ivanir Antonio; RAMPON, Ivanir Antonio
A Metodologia Hisrico-Evangelizadora
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 61-71, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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pastoral
14
. Para tanto, as disciplinas de pastoral específicas foram convertidas em sessões de
reflexões teológico-pastoral. Esta nova forma está utilizando os avanços metodológicos e
epistemológicos das ciências sociais e humanas. Tenta-se romper com a epistemologia
tradicional sujeito/objeto para uma epistemologia cujas relações são entre sujeitos. Isto
não é fácil na medida em que o esquema mental sujeito/objeto está introjetado inclusive
inconscientemente dentro de s. Para superar esta postura concupiscente precisamos da
abertura à graça, do cultivo e de certa ascese espiritual, além dos recursos científicos
disponíveis no presente contexto.
A seguir, apresentaremos os passos metodológicos que são utilizados a fim de
favorecer a relação sujeito/sujeito na práxis pastoral. Tal metodologia busca ser coerente
com a prática de Jesus que não tratava as pessoas como objetos de sua ação, mas sujeitos
(ou não) na busca do Reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33). Esta metodologia exige um
processo de constante conversão pastoral. Ora, no Evangelho de Marcos, as primeiras
palavras atribuídas a Jesus fazem justamente este grande apelo: “O tempo se cumpriu, e
o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,15).
1.2.1 Observação da prática pastoral
A observação constitui-se condição fundamental para se fazer ciência e isto vale
também à ciência pastoral. O ato de observar centraliza-se sobre três agentes ativos: o
contexto (situações geográficas, étnicas, estruturais e conjunturais da vida social, política e
econômica...), a comunidade (pos sui seu “modelo” de Igreja, corren tes teológicas, expressões
religiosas, valores, relações de poder e práticas) e o/a agente (insere-se na comunidade
olhando e atuando neste contexto e não a analisa “de fora-para”. Para tanto, o/a agente
analisa o seu conteúdo, suas convicções, métodos, modo de ser). A observação não se fixa
num dos polos, que na relação à comuni dade depende da forma como o/a agente
intervém e das condições (sociais, políticas, religiosas e culturais) para reagir. As relações
nunca se repetem, há sempre o original, o novo, as surpresas de Deus na vida cotidiana.
As ciências modernas, tanto as sociais como as exatas, têm na observação um
elemento de rigor. Mas nem todas procedem da mesma forma no decorrer da investi gação
e nem todas têm o mesmo conceito de observação. Nas ciências experimentais, por
exemplo, o pesquisador busca não se envolver no processo ao observar. Ele, o sujeito,
observa rigorosamente as reações e a dinâmica do observado, o objeto
15
. Na ação pasto ral
existe um/a agente em ação frente a outros agentes/sujeitos. Por isso, a observação do/a
agente de pastoral recai tanto para as reações da comunidade, do grupo, das pessoas como
para o seu próprio comportamento. A observação requer do/a agen te uma atitude
inquiridora, sempre desejosa de investigar e descobrir na rotina pastoral novos conhe
cimentos pastorais e teológicos
16
.
Esta postura supera a tendência do agente, principalmente o que está chegan do, de
julgar a comunidade a partir do seu jeito de ser e de seu modo de pensar e agir, ou de
supor que já conhece tudo.
14 A reflexão que segue se baseia nos textos do projeto de encaminhamento da reflexão da prática pastoral de março de
1993; nos relatórios de cada encontro de 1993-1994 e nas avaliações. Estes textos estão arquivados computador do Itepa.
15 Convém assinalar, no entanto, que mesmo nas ciências experimentais tal método é questionado, principalmente a
partir de teóricos da física quântica. Além disto, sabemos que não existe neutralidade científica pura, uma vez que as
pesquisas tendem a ser influenciadas por empresas que visam aumentar seus lucros...
16 Elli BENINCÁ, Metodologia pastoral; in: DIOCESE DE PASSO FUNDO, Caderno de formação - nº 2, p.41-43.
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A Metodologia Hisrico-Evangelizadora
Revista Teopráxis,
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1.2.2 Registro da pastoral
O registro constitui-se no segundo momento onde o/a agente reconstrói sua prática
pastoral e registra o acontecido, sem esquecer as três forças que se confrontam na pastoral:
contexto, agente, comunidade. Os registros vêm permeados por dúvidas, preocupações,
conquistas e descobertas. Esta postura tenta romper a prática pastoral que dicotomiza e
separa de um lado o sujeito e de outro o objeto. Os registros servem de matéria-prima às
sessões de estudo.
O registro consiste em uma elaboração simples, após a ação pastoral, através de
relatório ou de memória, isto é, descrão da ação pastoral contendo os elementos principais
e peculiaridades que chamaram atenção. Os agentes que atuam em mais de uma pastoral,
optam por uma prática a ser observada, registrada e refletida com rigor nas sessões de
estudo. Neste sentido, pressupõe-se que o agente ao se modificar frente à comunidade
observada, haverá de modificar-se igualmente nas outras mesmo não realizando o registro.
1.2.3 Sessões de estudo
A sessão de estudo estabelece um espaço para os agentes de pastoral, no caso os
acadêmicos da Itepa Faculdades, para se encontrarem e partilharem suas experiências e
procurarem explicitações teóricas para os problemas que enfrentam. Trata-se de um
esforço teórico para compreender a prática pastoral e, simultaneamente, realizar o
confronto entre a teoria teológica e a prática pastoral.
O ponto de partida é a leitura das observações que foram registradas anterior mente.
Este relato serve para identificar questões que necessitam ser refletidas e possivelmente
tornam-se hipóteses que remetem a novas observações durante determi nado tempo.
Outras questões precisam de assessoria para “desencalhar o barco”, ou seja, explicitar as
questões dúbias que envolvem a teoria teológica ou de outras áreas do conhecimento. As
sessões de estudo reencaminham à prática com uma nova luz teórica, uma nova
compreensão. O retorno à prática constitui-se no reinício da siste matização.
As sessões de estudo são registradas através de relatórios. Estes servem de referência
ao grupo. As questões candentes das sessões de estudo são remetidas para as respectivas
disciplinas, a fim de serem aprofundadas. É bom recordar que a análise da prática pastoral
se fundamenta na teologia. Este proce dimento supõe com preensão teológica (teoria) para
observar a prática. Esta teologia pode ser contestada ou modificada pela prática, desde que
esta também seja teorizada. Importante assinalar aqui, a importância de buscar luzes na
Palavra de Deus e reforços na tradição viva e no magistério da Igreja.
As ausências da observação e do registro da prática pastoral ocasionam nos agen tes,
geralmente, o hábito de dominação, de autoritarismo, de moralismo, já que os problemas e
os conflitos são vistos sempre e apenas do lado do povo e não conseguem perceber as
limitações de sua ação.
Os acadêmicos, ao ingressarem no Bacharelado de Teologia da Itepa Faculdades, são
instruídos para elaborar o plano de pastoral
17
e fazer os seus registros. Os relatos revelam
17 No projeto constarão: 1 - problematização da temática a ser tralhada, isto é, elencar os possíveis problemas que se
encontrará no apostolado; 2 - contextualização do ambiente onde vai se realizar o trabalho pastoral; das comunidades
(situação social e educacional, étnica e tradição teológico-religiosa); do agente de pastoral com seus anseios, expec
tativas e dificuldades, condição de inserção e condições de trabalho dos agentes e dos fiéis; 3 - objetivos da pastoral; 4
- fundamentação teológica (sociológica-filosófica-metodológica); 5 - metodologia com fundamentação,
procedimentos e passos a serem dados; 6 - ações estratégicas do agente de pastoral para desenvolver o projeto de
pastoral (pedagogia); 7 - tempo disponível e horários para a ação pastoral e para a reflexão da prática pastoral; 8 -
materiais necessários; 9 - bibliografia (ITEPA, Projeto para Curso de Teologia Regular, p. 5-6. ITEPA, Relatório de
11/4/94; p. 27-28).
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que a prática pedagógica da sala de aula pode se munir das melhores estratégias didáticas,
mas, se o/a agente não assumir a pastoral como opção de vida e de fé, a sessão de estudo
dificilmente ultrapassará o nível do senso comum. A opção pela pastoral implica numa
opção pela comunidade com quem trabalha. Optar pela comunidade significa entendê-la
como ela é, querer-lhe bem e buscar transformá-la. A capacidade de observar‑se
observando e o desejo de transformar-se trans formando formam a espiritualidade do/a
agente, fazendo do método mais que um método, ou seja, tornando-o mística pastoral.
No final do relatório, o/a relator/a registra um parecer descritivo geral sobre a sua
experiência para ser apresentado na aula de MPP. Este parecer explicita elementos de
espiritualidade da ação pastoral refletida, ou seja, aquilo que a tradição espiritual inaciana
chama de “moções interiores”. Importante assinalar que metodologia similar a esta foi
sugerida no Documento Preparatório e no Vademecum para o Sínodo “Por uma Igreja
Sinodal: comunhão, participação e missão”.
1.2.4 Reencaminhamento
A análise dos registros serve para identificar questões que necessitam de reflexão mais
sistematizada e especializada, além de, possivelmente, possibilitarem novas hipóteses que
remetem a outras observações durante determinado tempo. A reflexão envolve
aprofundamentos teóricos de ordem teogica e de outras áreas do conhecimento nas
questões suscitadas pela análise dos registros. Além disto convém dizer que diversos eventos
da Itepa Faculdades e, concomitantemente, de nossos Igrejas Particulares, surgiram das
reflees das práticas pastorais. Como exemplos podemos citar o Seminário sobre Espiritualidade,
Fóruns, Seminário Educação e Cultura do Bem-Viver e os Seminários da Pastoral da Saúde.
2 A MÍSTICA DA MHE
A mística eclesiológica presente no magistério do Papa Francisco e na Metodologia
Histórico-Evangelizadora nos remete para um esforço de apreender, na prática, os desafios
dos contextos como “sinais dos tempos”, utilizando os referenciais teóricos que permitam
uma leitura adequada dos mesmos e, simultaneamente, aberta aos apelos do Espírito, em
vista da qualificação permanente dos agentes das comunidades, em configuração com o
Senhor. A mística de Jesus, expressa nos evangelhos, alimenta a autêntica práxis cristã.
Aqui nos detemos apenas em sete aspectos.
1º) Deus Trindade. A mística trinitária enfatiza a importância das relações
(“Trindade imanente” e “Trindade econômica”). Entre as Três Pessoas Divinas circula o
amor, o respeito às diferenças e a harmonia da unidade. Na “economia da salvação” (cf.
Santos Padres): 1º) Deus se revela numa iniciativa gratuita, a fim de estabelecer um
“diálogo benevolente” (hén) com os seres humanos; 2º) Deus capacita o ser humano para
acolher a Revelação, tornando-nos interlocutores do próprio Deus a partir da liberdade,
na (DV 2). Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, é o critério da experiência mística do
Mistério Trinitário. No Nazareno, o amor a Deus e o amor ao próximo estão
verdadeiramente juntos (1Jo 4,20)
18
. O Filho encarnado ausculta o Pai e os dramas dos
irmãos e das irmãs.
2º) Relações dialógicas. Precisamos educar-nos para o diálogo e para a participação
uma vez que, em nossas sociedades, a perspectiva autoritária possui raízes firmes. Os
oprimidos tendem a reproduzir o modo de ser dos opressores quando lhes advém uma
18 D. Pedro CASALDÁLIGA; José Maria VIGIL, Espiritualidade da libertação, p.123.128-129.
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oportunidade. Assim, educar-se para o diálogo e a participação é um dos exercícios
espirituais e pedagógicos mais necessários para construir a fraternidade universal e a amizade
social. O Papa Francisco tem incentivado a Igreja a abrar cada vez mais esta postura (FT 103).
Ele, por exemplo, dedicou o capítulo VI da Fratelli Tutti para tratar desta temática espefica
(o termo “diálogo” aparece 47 vezes no documento). Neste sentido, convém assinalar que a
Igreja está dando passos significativos com as experiências sinodais. Também a Campanha da
Fraternidade 2022 visava promover a educação com a “pedagogia do diálogo”.
A educação para o diálogo exige tempo e tempo de qualidade que permita
escutar, com paciência e atenção, até que a outra pessoa manifeste o que deseja dizer. Isto
requer a ascese de não começar a falar antes do momento apropriado (FT 48). Em vez de
começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso assegurar-se de ter escutado. Isto implica
fazer silêncio interior, escutar sem ruídos no coração e na mente: despojar-se das pressas
em falar controlando a afobão, controlar a precipitação de decorro das próprias necessidades
ou das urgências em ter uma resposta acabada, dar espaço ouvindo além das palavras...
Muitas vezes as pessoas o precisam duma solução para os seus problemas, mas de
ser ouvidas, sentindo que se apreendeu a sua mágoa, a sua desilusão, o seu medo, a sua ira,
a sua esperança, o seu sonho. Todavia é frequente ouvir estes queixumes: “Não me ouve. E
quando parece que o faz, na realidade está a pensar noutra coisa”. “Falo-lhe e tenho a
sensação de que está à espera que acabe de vez”. “Quando lhe falo, tenta mudar de assunto
ou dá-me respostas rápidas para encerrar a conversa” (AL 137). Da mesma forma, é preciso
discorrer uma fala pensada, refletida, rezada, meditada, amadurecida, “com conteúdo”: “É
grande o desejo de que as comunidades criem espaços de escuta, que deem atenção e acolhida,
especialmente as vozes das mulheres, que o maioria absoluta nas pastorais e movimentos”
19
.
3º) Fé inabalável no projeto de Jesus, o Ressuscitado. A inabalável em Jesus
Cristo faz participar do projeto do reino de Deus. Na compreensão de Elli Benincá e
Rodinei Babinot, o agente de pastoral “expressa na sua mística da participação, o resultado da
experiência de um Deus comunhão [...]. A experiência de um Deus participação transforma-
se em fonte utópica da nossa fé e, por isso, razão do nosso esforço de participação”
20
.
4º) Metodologia de trabalho em equipe. Participar é tomar parte na ação com os
outros, trabalhar em equipe, requerer a ação da outra pessoa. “De fato, trabalhar em equipe
dá trabalho e existe a tentação de fazer as coisas sozinho”
21
. É necessário que cada um tome
parte e que todos os envolvidos no processo possam dizer a sua própria palavra. Marcos
nos mostra que o Nazareno necessitou escolher pessoas que ajudassem os irmãos e irmãs e
conseguissem consertar as redes rompidas no confronto com a sociedade opressora (Mc
1,16-20)
22
. O agir em equipe, em comunidade, requer a adoção do método participativo e a
consciência que a nossa está depositada num Deus que é comunidade. A Trindade é a
base sob a qual os agentes e a Igreja se constroem. O próprio Jesus suscitava
evangelizadores(as) (Mc 1,31.36-37.45), comunidade itinerante. Ser cristão ou cristã
implica em realizar o trabalho de evangelização em equipe/comunidade. Esta metodologia
provoca para conversão para valorização do outro e superar o espírito de superioridade
23
.
19 ARQUIDIOCESE DE PASSO FUNDO, Síntese Arquidiocesana do Sínodo 2021-2023, Escutar.
20 Metodologia pastoral, p.105.
21 ARQUIDIOCESE DE PASSO FUNDO, Síntese Arquidiocesana do Sínodo 2021-2023, Acompanhantes do Caminho.
22 Os discípulos e as discípulas não são os donos de Jesus, mas seguidores. René Guerre frisa que para tanto: “É preciso
que cada um se sinta responsável pelos seus irmãos; é preciso um acolhimento confiante e simpático do pensamento
e das atitudes dos outros, uma disposição em encontrar Jesus Cristo nos outros, a escutá-lo o que nos diz através dos
irmãos. É essencial um grande respeito a liberdade dos outros, nunca lhes impor nosso pensamento, nossas
atividades” (Espiritualidade do sacerdote diocesano, p.109).
23 José Gaston HILGERT, Elli BENINCÁ: o revolucionário humanista. Eldon Henrique MÜHL; Telmo MARCON,
Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli Benincá, p.171.
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5º) C apacidade de doação e despojamento. O Papa Francisco afirma: “Todos
estamos chamados a ser pobres, a despojar-nos de nós mesmos; e para isto devemos
aprender a estar com os pobres, partilhar com quem está privado do necessário, tocar a
carne de Cristo! O cristão não é alguém que enche a boca com os pobres, o! É alguém
que se encontra com eles, que olha para eles nos olhos, que os toca”
24
. Infelizmente, dois mil
anos após o anúncio do evangelho e oito séculos depois do testemunho de Francisco de Assis,
estamos diante de um fenômeno de “iniquidade global” e de “economia que mata (EG 52-60).
6º) Formação continuada. O processo de formação é gradual e permanente e isto
fica bem evidente no processo que Jesus realizou junto aos doze. O evangelizador ou a
evangelizadora, numa perspectiva evangélica, é simultaneamente discípulo/a. Enquanto
evangeliza está sempre na dinâmica do aprendizado permanente. Por outro lado, os
discípulos são sempre evangelizadores, porque a convivência amorosa com o Mestre os
leva a compartilhar de sua experiência. Discipulado e apostolado são “dois lados da mesma
moeda”; um não pode existir sem o outro. Ora, Pedro foi desafiado a avançar nesta
perspectiva: ele havia ido pescar por conta própria (Jo 21,3) e não pescou nada. Jesus
havia dito “sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). Jesus será sempre a referência, tanto do
seguimento, quanto do discipulado missionário.
7º) Insistência em seus ideais. A busca do reino de Deus e sua justiça (Mt 6,33),
não se perdendo numa espiritualidade individualista (Mt 6,25-34), mas abraçando os
grandes ideais de “terra para todos, teto para todos, dignidade que o trabalho dá”, é muito
importante para quem, na prática, é discípulo/a e missionário/a de Jesus Cristo em
profundidade (Mc 4,16-17). Importante é não desanimar perante os obstáculos, mas
continuar na busca dos ideais, com ousadia e criatividade.
Com estas características, o/a agente é um revolucionário/a na medida que avança
para além da superficialidade e da exclusão, por isso transformador/a da sociedade, agente
da cidadania e de uma eclesiologia de comunhão da participação e, concomitantemente,
testemunha do Ressuscitado!
3 CON CLUINDO!
Na compreensão da Itepa Faculdades, a Metodologia Hisrico-Evangelizadora necessita
tornar-se uma consciência assumida e um modo de ser. Atras da ptica refletida e iluminada
pelo Evangelho, pode-se viver o esrito do todo” e, de fato, assumir as alegrias e as
esperaas, as tristezas e as anstias dos homens de hoje (GS 1), principalmente dos mais
pobres (DM 14,2). o existe uma metodologia fora da consciência. Os acadêmicos ou agentes
de pastoral; ao assimilar a MHE, vai tornando-a stica da ão evangelizadora.
Participar é ter parte na ão. É sentir a ação como sua. Sentir-se responsável
pela ação. Tomar parte em uma ação implica aceitar que outras partes também
tenham presença na ação. A integração das partes no todo da ação é feita pelos
objetivos e pela metodologia. Nenhuma das partes da ação pode pôr-se sobre as
demais do contrário as outras se anulam e deixam de ter compromisso (com-
pro-misso: igual à missão junto com a comunidade, em favor da mesma ou de
objetivo). Não havendo compromisso não se pode esperar que haja
responsabilidade. Ter parte na ação implica em ser responsável pela ação, mas,
ao mesmo tempo, ter consciência de que não representa o todo da ação, na qual
está integrado com as outras partes. Nem todas as partes operam da mesma
forma numa ação. Cada parte opera segundo suas condições e possibilidades.
24 FRANCISCO. Carta do Santo Padre ao Bispo de Assis por ocasião da inauguração do Santuário do Despojamento. Disponível
em: <https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2017/documents/papa-francesco_20170416_santuario-
spogliazione-assisi.html>. Acesso em: 17 dez. 2021.
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Tomar parte na ação significa entrar na ação e é por isso que se torna sujeito da
mesma. Se uma parte se nega a integrar-se nos objetivos da ação, ou dela se
ausenta, é o todo da ação que sofre ou se desintegra.
O poder decisório decorre dos objetivos da ação e não é propriamente das
partes. Estas apenas operam o poder, em favor da ação. O poder se localiza na
proposta acordada pelas partes. Quando não houver acordo sobre o exercício do
poder, é provável que alguém o assuma e localize o poder em si mesmo
25
.
A MHE tem como ponto de partida a prática dos acadêmicos e dos agentes de pastoral e
faz da prática evangelizadora um processo e não uma soma de atividades. Para isto, tem alguns
passos que necessitam ser seguidos: a observação, o registro, as sessões de estudo (no caso do
Bacharelado de Teologia da Itepa Faculdades), as aulas de MPP e o reencaminhamento para
uma prática mais qualificada. O processo recoma novamente. Somos seguidores daquele que,
também, se definiu como caminho (Jo 14,6) e os primeiros seguidores tamm se chamavam
grupo do Caminho (At 9,2). Neste sentido, antese Arquidiocesana de Passo Fundo afirma:
A Itepa Faculdades destacou-se historicamente pelo “caminhar juntos” a
metodologia participativa, de escuta, de fazer, viver e rezar juntos é parte do seu
método teológico. Na prática, o método participativo é o método evangélico e
cristão, é o método que a Igreja vive. Alimenta-se de uma espiritualidade
encarnada, do seguimento a Jesus Cristo
26
.
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25 Elli BENINCÁ, Metodologia pastoral; in: DIOCESE DE PASSO FUNDO, Caderno de formação. nº 2, p.36-37.
26 ARQUIDIOCESE DE PASSO FUNDO, Síntese Arquidiocesana do Sínodo 2021-2023, Acompanhantes do Caminho.
71
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 61-71, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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DESAFIOS DA PASTORAL
TRANSFORMADORA A PARTIR DA
PRÁXIS BENICANIANA NO
CONTEXTO NEOLIBERAL
CHALLENGES OF TRANSFORMATIVE
PASTORAL CARE BASED ON
BENINCÁ PRAXIS IN THE
NEOLIBERAL CONTEXT
Altair Alberto Fávero*
Antônio Pereira dos Santos**
Resumo: O ensaio intitulado “Desafios da pastoral transformadora a partir
da práxis benicaniana no contexto neoliberal”, apresenta de início alguns
aspectos que corroboram para compreender a realidade atual. O texto
reflete sobre o conceito de neoliberalismo, apontando críticas ao novo
modelo que afeta as relações sociais, imputando sobre os sujeitos, uma nova
forma de agir, que se configura na lógica mercantil e concorrencial. Para
trilhar um caminho de libertação, contra a razão neoliberal, que seja
favorável e de mudanças, apostamos numa pastoral transformadora a partir
da práxis benicaniana, que contribui sobremaneira para a construção da
coletividade, consciência de uma formação humanizadora e de práticas
solidárias, em vista da promoção do bem comum.
Palavras-chave: Pastoral. Práxis. Neoliberalismo. Diálogo.
Abstract: The essay titled “Challenges of Transformative Pastoral Care
Based on Benincá Praxis in the Neoliberal Context” presents, at the outset,
aspects that corroborate to understand the current reality. The text reflects
on the concept of neoliberalism, pointing out criticisms of the new model
that aects social relations, pointing out to the subjects a new way of action
that appears in the mercantile and competitive logic. To walk a path of
liberation, against neoliberal reason, that is favorable and of changes, it is
committed to a transformative pastoral from the practice of Benincá which
contributes greatly to the construction of the collective, awareness of a
humanizing transformation and solidary practices with a view of
promoting the common good.
Keywords: Pastoral. Praxis. Neoliberalism.Dialogue.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 72-80, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.108
* s-doutorado (Bolsista Capes) pela
Universidad Autónoma del Estado de México
(UAEMéx). Doutorado em Educação
(UFRGS), Mestre em Filosofia do
conhecimento (PUC/RS). Especialista em
Epistemologia das Ciências Sociais (UPF).
Graduado em Filosofia (UPF). Atua como
professor titular III e pesquisador no curso de
Filosofia, no Mestrado e Doutorado em
Educação da UPF, onde coordena os projetos
de pesquisa Docência Universitária e Políticas
Educacionais (em andamento desde março de
2012) e Políticas Curriculares para o Ensino
dio (em andamento desde outubro de 2020).
E-mail: favero@upf.br
https://orcid.org/0000-0002-9187-7283
** Graduado em Filosofia (Bacharelado) pelo
Instituto Superior de Filosofia Berthier
IFIBE. Graduado em Filosofia (Licenciatura
Plena) pela Universidade de Passo Fundo
UPF. Mestrando em Educação pela
Universidade de Passo Fundo. Integrante do
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Superior (GEPES-UPF/RS), no qual
participa dos projetos de pesquisa “Políticas
para Docência Universitária” e “Políticas
Curriculares para o Ensino Médio”.
Atualmente é Coordenador de Pastoral do
Colégio Salvatoriano Bom Conselho.
E-mail: antoniops1993@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-3530-6582
Recebido em 21/08/2022
Aprovado em 29/10/2022
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1 CONSIDER AÇÕES INICIAIS
Olhar pela ótica teológica e pastoral num cenário atual pode se mostrar promissora e
importante. A Igreja, desde o Vaticano II, Medellín e Puebla, preocupou-se com questões
sociais, fez a opção preferencial pelos pobres, esteve atenta às fragilidades humanas,
promoveu uma comprometida e sobretudo se dedicou ao cuidado com a vida. Nas
palavras do grande teólogo brasileiro, Agenor Brighenti (2016), foi a partir do Vaticano II,
que a Igreja “volta às fontes”, ou seja, vive a passagem da fuga do mundo, à inserção no
mundo. Destaca, que isso se deu de duas formas: "de um lado, pela pastoral social,
alicerçada no Ensino Social da Igreja e na opção pelos pobres, e, de outro, pelo
engajamento dos cristãos como cidadãos no mundo”
1
. Isso demonstra o grande
movimento causado pelo Vaticano II, em preocupar-se com o serviço às pessoas, em vista
da promoção do bem comum.
Ocupar-se com as questões, sobremaneira, as que afetam a vida, a política, na sua
compreensão, de que todos o sujeitos ativos e responsáveis por uma sociedade justa e
solidária e também pela construção do Reino de Deus, em que todos o partícipes, torna-
se iniciativa fundante de uma pastoral inserida para e na vida do povo. Mas, são muitos os
desafios que acarretam todos aqueles e aquelas que se dedicam ao Evangelho, numa
realidade conturbada, emergente e atravessada pela razão neoliberal, conceito que
aprofundaremos no presente texto.
A partir dessas palavras iniciais, o objetivo do ensaio é refletir sobre os “desafios da
pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal” e os
indicativos serão retomados mediante a proposta da práxis benicaniana. Primeiramente,
abordaremos alguns traços da realidade atual, principalmente olhando para o conceito de
neoliberalismo que além de afetar as estruturas físicas, coloca-se como uma nova razão,
transformando profundamente as relações sociais. Em seguida, a partir do testemunho e
das ações que nortearam a vida do padre Elli Benincá, principalmente nos seus escritos
sobre práxis pedagógica, ação dialógica, educação libertadora e ressignificação da prática,
apontaremos alguns indicativos que podem contribuir para o compromisso pastoral.
Para ajudar com o objetivo proposto, a pesquisa tem amparo teórico, sobretudo, em
Benincá (2002), Balbinot e Benincá (2009), Brighenti (2016), Dardot e Laval (2016), Laval
(2004), vero; Tonieto; Consalter (2020) e em estudos recentes que homenageiam o
padre Elli Benincá, trazendo à tona sua contribuição para o cenário atual e em estudos de
educadores que abordam a presença do neoliberalismo que afronta os interesses sociais.
Dentro deste campo bibliográfico, a pesquisa configura-se quanto aos procedimentos num
trabalho hermenêutico com as fontes citadas. Esse procedimento investigativo torna-se
importante pela relevância da temática e pela viabilização do diálogo com as fontes em
busca de respostas para o objetivo norteador da investigação.
2 CONTEXTO DE MUDANÇAS: O NEOLIBER ALISMO E SEUS IMPACTOS NA VIDA
Basta olhar ao redor para perceber quantas mudanças vêm ocorrendo a nível de
Brasil e de mundo. São mudanças profundas no âmbito econômico, social, cultural e que
afetam as instituições e as pessoas de modo geral. Como a Igreja é constituída de pessoas,
também é atingida pelas transformações emergentes. Mas, o que tem afetado a vida das
pessoas? Por que as relações se tornaram mercadológicas? Por que a competição, o
individualismo, a ganância e a concorrência estão se contrapondo a valores cristãos
1 Agenor BRIGHENTI. Em que o Vaticano II mudou a Igreja, 2016, p.77.
VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
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importantes como a solidariedade e a vida comunitária? E diante desses desafios, como a
Igreja tem organizado sua prática pastoral? São perguntas atuais, inquietantes e por isso,
“uma das preocupações necessárias é compreendermos essa nossa época”
2
. Nesse ínterim,
um conceito bastante utilizado por autores do âmbito político, social e educacional, para
demonstrar como a sociedade vem sendo acarretada, é o conceito de neoliberalismo,
definido por “um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo
modo de governo dos homenssegundo o princípio universal da concorrência”
3
.
Concernente a isto, ainda em 2009, Benincá e Balbinot, faziam uma leitura de época,
demonstrando que os tempos mudaram, pois, “passamos de um tipo humano que coloca
toda a sua vida à disposição do processo produtivo para um outro que tenta gozar da
produção, e para isso, não problema em mercantilizar a si próprio”
4
. Percebe-se que
depois de muitos anos, essa lógica apoderou-se dos comportamentos, a forma relacional
com os outros e consigo mesmo. Ou seja, é uma luta econômica que adentra a “forma de
nossa existência”
5
. Sendo assim, essa mercantilização, precisa ser compreendida também
pelo olhar de pensadores que problematizam a “subjetivação neoliberal, que opera na vida
comum, no trabalho e fora dela, provocadas pelo neoliberalismo que operam no sentido do
egoísmo social e da negação da solidariedade”
6
. Ou seja, a subjetivação transforma os
sujeitos em mercadoria, por um processo que adentra as relações sociais, produzindo “a
mercantilização implacável de toda a sociedade”
7
. Sendo assim, “o que o neoliberalismo
passa propor não é somente uma ressignificação de uma racionalidade mercantil, mas sim,
a concepção de uma sociabilidade que passa a ser regida por uma lógica empresarial”
8
.
Também, é importante frisar que essa lógica neoliberal, para os autores Dardot e
Laval, torna-se uma nova racionalidade, na medida que orienta políticas e
comportamentos numa nova direção, ou seja, “quando tornar-se uma norma geral de vida,
que passa a ser incorporada ‘naturalmente’ na alma e no coração das pessoas”
9
. Dessa
forma, como consequência, as relações o individualizadas e pautadas por uma
concorrência generalizada “que transforma desde os mais ricos, até os extremamente
pobres, colonizando o inconsciente, a subjetividade e a própria vida
10
.
Tal dimensão ressaltada acima, revela o caráter obscuro e perverso dessa nova
subjetividade pautada pela lógica empresarial. É sistematicamente a construção de pessoas
tuteladas pelo mercado, pela empresa e desejo de realização pessoal. Isso significa, que a
racionalidade coletiva, ou o exercício da solidariedade são banidos, através do controle dos
comportamentos e da redefinição do caráter. Em outras palavras, "a racionalidade neoliberal
produz o sujeito de que necessita ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza
realmente como uma entidade em competição”
11
. Esse ordenamento, expõe os indivíduos
aos próprios riscos e inteira responsabilidade por seus fracassos. Como conseqncia, nega-
se o caráter fundamental das poticas, através da instrumentalização da empresa como
primordial para a superação de si mesmo, a prosperidade e resolução de problemas.
Ao se tornar especificamente um projeto de construção de uma racionalidade
instrumental da vida e uma poderosa ferramenta de dominação dos sujeitos, o modelo
2 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.10.
3 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.17.
4 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.11.
5 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.16.
6 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.9.
7 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.23.
8 Regiano BREGALDA. A formação humana no contexto da colonização neoliberal da subjetividade, 2020, p.200.
9 Regiano BREGALDA. A formação humana no contexto da colonização neoliberal da subjetividade, 2020, p.201.
10 Regiano BREGALDA. A formação humana no contexto da colonização neoliberal da subjetividade, 2020, p.201.
11 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.328.
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Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
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neoliberal se constituiu por promessas sedutoras de liberdade de escolhas, do fim da
interferência de um estado opressor e do livre mercado. No entanto tais promessas se
tornaram ineficazes para resolver e enfrentar os problemas sociais, ambientais e
educacionais da população de baixa renda. O neoliberalismo promoveu a constituição de
uma suposta subjetividade inovadora, flexível, aberta ao novo, capaz de conviver com a
mudança permanente e incentivando a busca pela excelência, mas incapaz de criar políticas
de proteção para os mais pobres, para os que não têm poder econômico e para os
marginalizados e excluídos do banquete econômico. O princípio e o fim de todas as
questões encontram-se em ser empreendedor de si mesmo. Isso pressupõe “que a empresa
se torna não apenas um modelo geral que deve ser imitado, como também uma atitude que
deve ser valorizada nos sujeitos, uma energia potencial”
12
. Nessa nova condição de vida,
segue-se o horizonte do agir individual em prol do desenvolvimento de si, flexibilidade,
aperfeiçoamento e tecnicismo das próprias condutas. Nesse ínterim, Brighenti reafirma
que “a sociedade vive uma transformação histórica que se caracteriza por grandes
mudanças que afetam profundamente a vida das pessoas, marcado principalmente pela
globalização da indiferença”
13
. Ou seja, o neoliberalismo vai colonizando todas as relações
humanas, tornando-as mercadológicas, pautadas pela indiferença e sobretudo, pelo viés
competitivo, que coloca o outro como inimigo/concorrente a ser vencido. Por isso, a
necessidade de “refazer o tecido social e eclesial”
14
.
Quando do ponto de vista desta conjuntura social, de fragmentação das relações
humanas e o enfraquecimento de qualquer ideal pautado pelas instituições, faz-se
necessário primeiramente entender a corrosão engendrada pelo neoliberalismo, para em
seguida apontar caminhos para uma pastoral transformadora. O contexto de mudanças,
sobretudo caracterizado pela formação do sujeito neoliberal “transforma os cidadãos em
consumidores de serviços que nunca têm em vista nada além de sua satisfação egoísta”
15
.
Por isso, é de suma importância entender a engrenagem que está posta, transformando os
sujeitos em responsáveis tanto pelo fracasso ou pelo sucesso de suas vidas, sem considerar
políticas públicas de qualidade e para todos. Esse é o modelo que se instalou por meio da
“interiorização”, do qual o neoliberalismose alimenta e sobrevive.
Nesse sentido, compreender o neoliberalismo e as mudanças que vêm ocorrendo, é
tarefa primordial para quem deseja aventurar-se na prática de uma pastoral
transformadora, constatando as inúmeras contradições de um modelo concorrencial e
compatível com a nova estrutura econômica. Uma pastoral, alicerçada na vida fraterna,
solidária e em vista do bem comum, não se distancia da realidade, nem tampouco deixa de
fazer críticas ao economicismo que transforma as relações na busca de interesses
individuais, em contrapartida aos interesses comunitários. Nesse sentido, podemos
afirmar que “o presente e o futuro da humanidade dependem da coragem de constituir
políticas e tomadas de decisão que sejam suficientemente conscientes dos rumos
societários de uma determinada coletividade”
16
. Porque na medida que o neoliberalismo
acentua as desigualdades, a pastoral, constitui-se como força propulsora de diálogo em
torno da vida, da humanização e da promoção da dignidade humana.
Assim, cultivar a humanidade por meio da uma pastoral comprometida com a vida
“representa a capacidade de colocar-se no lugar dos outros, de interpretar e compreender
12 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.332.
13 Ferraro BENEDITO. Refazer o tecido social e eclesial, 2021, p.162.
14 Ferraro BENEDITO. Refazer o tecido social e eclesial, 2021, p.163.
15 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.320.
16 Altair Alberto VERO; Junior CENTENARO; Antônio Pereira dos SANTOS. A cultura humanista como antídoto ao
empresariamento da educação: para além da eciência e da ecácia, 2020, p.173.
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de forma inteligente a história das pessoas, seus anseios, emoções, desejos e opiniões”
17
.
Por isso, toda e qualquer ação pastoral é carregada de intencionalidade e carrega no seu
bojo a promoção da vida em abundância, assim, “a vida é o ponto de chegada da pastoral e
também o de partida”
18
. Dado o contexto marcado pela exclusão, e da corrosão das
relações, “se quisermos ultrapassar o neoliberalismo, abrindo alternativa positiva, temos
de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a
partir das experimentações e das lutas do presente”
19
. Nessa perspectiva, podemos dizer
que o princípio comunitário que emana de uma pastoral transformadora e profética, das
lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à
racionalidade neoliberal. Desse modo, através do panorama apresentado até aqui, em
seguida, o texto procura apontar indicativos para uma pastoral que reflete as preocupações
da sociedade, sobretudo no que tange aos problemas sociais proporcionados pelo
neoliberalismo. Para sustentar a análise, a reflexão baseia-se na práxis benicaniana.
3 A PASTORAL E A PRÁXIS BENICANIANA
Certamente, um dos primeiros passos para uma ação pastoral que tenha em vista o
bem social, a formação para a esperança e a consciência comunitária, faz-se necessário, de
antemão olhar para a realidade de forma cautelosa, crítica e objetivando a transformação
das estruturas. Anteriormente, vimos o quanto o neoliberalismo tem influência constante
na subjetividade dos sujeitos, ocasionando mudanças que dizem respeito à coletividade,
cerceando a autonomia em consonância com a lógica do individualismo, da precariedade e
da concorrência exacerbada. Diante desse contexto, que novas relações são necessárias?
Como a práxis benicaniana pode contribuir para uma pastoral transformadora?
Antes de adentrarmos mais especificamente nas questões apontadas acima, é preciso
compreender o conceito de práxis, orientador dos escritos e da ação evangelizadora do
padre e educador Elli Benincá. Para uma compreensão mais aguçada, “considera-se que o
processo informal e espontâneo da prática se constitui sobretudo, do conhecimento
advindo do senso comum”
20
. Assim, por ser adquirido de forma espontânea, o portador
desse saber não percebe a necessidade de transformar-se. Dessa maneira, a prática pastoral,
torna-se uma ação fragmentada, superficial e que não gera a experiência do vivido.
Evidentemente que o nosso intento não é se ater à reflexão sobre o senso comum, pois esta
demanda outras investigações. Porém, o que nos cabe é olhar para uma “pedagogia da
práxis como caminho possível para viabilizar a transformação dos sujeitos”
21
, e
transformando os sujeitos, transformar-se–á o modo de fazer pastoral.
Voltando ao que foi dito no primeiro tópico, sobre o contexto de mudanças,
ocasionado pelo neoliberalismo, que se configura de maneira implacável em mudar o
modo de ser dos sujeitos, contaminando as instituições e os seus membros, desconsidera a
participação, o diálogo, e a problematização dos reais problemas que a sociedade vem
passando. Essa nova racionalidade obstrui o agir coletivo, “provocandoo egoísmo social e
negação da solidariedade”
22
, e por consequência a diluição da cidadania e da vivência
democrática. Em contrapartida, “a ação pastoral precisa ser uma ação transformadora,
17 Altair Alberto VERO; Junior CENTENARO; Antônio Pereira dos SANTOS. A cultura humanista como antídoto ao
empresariamento da educação: para além da eciência e da ecácia, 2020, p.171.
18 Agenor BRIGHENTI. Teologia Pastoral: A inteligência reexa da ação evangelizadora, 2021, p. 99.
19 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.9.
20 Altair Alberto FÁVERO. A práxis benicaniana na formação continuada de professores, 2022, p.275.
21 Elli BENINCÁ. O senso comum pedagógico: práxis e resistência, 2002, p.171.
22 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.9.
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VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
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geradora de vida, humanizadora, dado que o divino é a plenitude do humano”
23
. Para o
mesmo autor, uma ação pastoral transformadora, toma posição frente a tudo o que
contradiz o “Reino de vida da opção pelos pobres à ótica do cuidado e da defesa da vida”
24
.
Compreende-se dessa maneira, que o método da práxis pedagógica para o padre Elli
Benincá, “é caracterizado pela autoformação e formação coletiva, compreende um
processo metodológico de observação da prática, por sua vez, registrada e refletida de
forma sistemática”
25
. Nessa perspectiva, “a pastoral torna-se o agir do povo de Deus no
mundo em mudança”
26
que também se constitui em denúncia às ameaças à vida,
“transforma as concepções de mundo e ressignifica os sentidos impostos à consciência das
pessoas”
27
. Essa visão de mundo, marcada pela sensibilidade, humildade, tomada de
consciência das próprias limitações e percepção do mundo em que vive, demonstra um
novo jeito de fazer pastoral. Assim, uma pastoral orientada por princípios que
fundamentam uma metodologia participativa é o grande intuito e defesa do padre e
educador Elli Benincá, tanto em seus escritos, como em seu testemunho de vida.
Importante destacar que para o padre Elli Benincá, ao lado do princípio da
participação, está o princípio do diálogo, que “significa a palavra aqui e ali, um com o
outro e para que aconteça um diálogo verdadeiro necessidade de reconhecimento entre
as partes e, ao mesmo tempo, de se colocar num processo em que não uma verdade
derradeira”
28
. Assim, o diálogo torna-se um caminho fértil para quebrar as barreiras da
indiferença e torna-se um dos caminhos de construção do bem comum. O sentido do
diálogo, a partir da perspectiva que o padre Elli Benincá desenvolveu, “vem acompanhado
de um sensível tato pedagógico que se conjuga com as capacidades de ouvir, ver, sentir
com o outro”
29
, assim, é possível “dizer que o diálogo de Benincá configurou-se pela sua
generosidade de colocar-se junto ao outro, de deixá-lo falar, de dar-lhe o tempo para se
expor, pensar e interagir dialogicamente”
30
.
Através do que foi apontado até agora, precisamos voltar à pergunta norteadora
desta investigação: quais os indicativos para uma pastoral transformadora num contexto
de mudanças a partir da práxis benincaniana? Com essa pergunta, nos atrevemos a elencar
três indicativos que poderão ajudar no caminho de fortalecimento de uma pastoral que
tenha em sua centralidade a vida, o ser humano, a justiça social e o exercício da cidadania.
Em primeiro lugar, ter consciência das transformações de um mundo em mudança, e
isto, o padre Elli soube muito bem, através de um olhar aguçado e sempre a frente de seu
tempo, soube compreender a realidade em que vivia, de olho num passado/presente, ou
seja, no Concílio Vaticano II, e lançar luzes para o futuro, ainda que incerto, cheio de
desafios. Com muitas aspirações, “refletiu sobre a teologia, a pastoral e todo o processo
formativo a partir das dificuldades e aspirações, dos alcances e contexto eclesiais peculiares
da região em que vivia”
31
. Compreendendo que as mudanças feitas pelo Concílio Vaticano
II, não deveriam ser assumidas apenas no discurso e que os documentos não ficassem
engavetados, assumiu e propôs uma prática pastoral de acordo com a eclesiologia conciliar.
23 Agenor BRIGHENTI. Teologia Pastoral: A inteligência reexa da ação evangelizadora, 2021, p. 98.
24 Agenor BRIGHENTI. Teologia Pastoral: A inteligência reexa da ação evangelizadora, 2021, p. 98.
25 Altair Alberto FÁVERO. A práxis benicaniana na formação continuada de professores, 2022, p.282.
26 Neri José MEZADRI; Ivanir Antônio RODIGHERO. Fazer teológico pastoral no Itepa. Caminhando com o Itepa,
2008, p. 34.
27 Neri José MEZDRI; Ivanir Antônio RAMPOM; Ivanir Antônio RODIGHERO. Fazer teológico pastoral no Itepa:
Caminhando com o Itepa. Passo Fundo, 2008, p. 38.
28 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.171.
29 Eldon Henrique MUHL; Telmo MARCON. Formação de educadores-pesquisadores: contribuões de Elli Benincá, 2022, p.191.
30 Eldon Henrique MUHL; Telmo MARCON. Formação de educadores-pesquisadores: contribuições de Elli Benincá, 2022, p.184.
31 Ivanir Antônio RODIGHERO. Padre Elli: uma vida dedicada à formação, 2022, p. 363.
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VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
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Sempre fazendo a leitura das mudanças de época, apontando inclusive para a crise na
Igreja e para a crise na sociedade como um todo. Por isso, “urge a construção de um novo
modelo de agente de pastoral”
32
, consequentemente um novo jeito de fazer pastoral, “mas
isso não acontece sem o enfrentamento da crise”
33
.
Ainda sobre o primeiro indicativo, cabe mencionar a importância e a capacidade de
deixar-se envolver e sensibilizar com os novos contextos e necessidades das pessoas, por
isso, padre Elli Benincá, “entendia que o processo participativo, é uma mediação para a
libertação de tudo o que, na sociedade, na comunidade eclesial e nas pessoas, é obstáculo ao
crescimento do ser, do conviver, do amar, do educar-se e do servir os irmãos e as irmãs”
34
.
Essa visão de mundo, de ser humano, permeada por uma prática historicizada em vista de
uma experiência vivida e transformadora, é possível “quando as pessoas são o ponto de
partida do processo participativo na ação pastoral, compreendidas a partir de suas práticas,
da graça de Deus e do contexto sócio-histórico-cultural com a qual interagem”
35
. Essa
prática é entendida com o olhar para a ação, para a realidade, refletindo as mudanças e
descortinando o que impede uma ação mais inclusiva, direcionando o próprio agir, para
ações solidárias, de esperança e de vida.
Em segundo lugar, como indicativo para uma pastoral transformadora, a defesa de
uma cultura humanista, frente ao neoliberalismo. Mesmo sem mencionar as consequências
neoliberais na vida das pessoas em seus escritos, sempre refletiu sobre a racionalidade
imposta aos sujeitos, que corroía as relações humanas, impossibilitando o diálogo e o
processo participativo. Defende “que o ser humano não é uma máquina que pode ser
montada e desmontada, peça por peça, pois a ação humana é imprevisível e o resulta de
um processo previamente estabelecido”
36
. Nota-se que o modelo neoliberal, transforma os
sujeitos em objetos e as ações são isoladas e organizadas mecanicamente. Padre Elli, propôs
caminhos favoráveis de mudança e de inserção que fosse contextualizado, por isso sua
preocupação com os mais fragilizados, com os contextos sociais e históricos e sobretudo,
“na luta contra a opressão e na busca por justiça e dignidade humana”
37
. Nesse sentido, a
pastoral para o padre Elli era considerada integral, encarnada na vida do povo, profética e
sempre à luz da opção pelos pobres. Sendo assim, as ações coletivas e humanizadoras,
mediante uma pastoral orgânica, pode tornar-se “um caminho para resistir aqui e agora à
racionalidade dominante, ou seja, a racionalidade neoliberal”
38
.
Em terceiro lugar, outro grande indicativo é a educação como princípio
fundamental de promoção do ser humano. Quando os agentes de pastoral, arregaçam as
mangas, estudam e vivem o processo metodológico “agente-comunidade-contexto”
39
, tão
defendido pelo padre Elli, a pastoral torna-se um espaço de inclusão e de inúmeras
possibilidades de promoção do ser humano. A práxis pedagógica não é apenas para o
outro, mas para todos que querem e se deixam conduzir por um processo que se faz no
caminho, mas que exige preparação, formação, humildade e capacidade para enfrentar os
conflitos existentes. Ainda, para a superação de tantos desafios relacionados à prática e aos
contextos sociais, padre Elli ressaltava, a importância da formação continuada,
“considerando a necessidade de projetos de formação que superassem o paradigma dos
32 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.14.
33 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.14.
34 Ivanir Antônio RODIGHERO. Padre Elli: uma vida dedicada à formação, 2022, p. 365.
35 Ivanir Antônio RODIGHERO. Padre Elli: uma vida dedicada à formação, 2022, p. 365-366.
36 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.104.
37 Gaston HILGERT. Elli Benincá: o revolucionário humanista, 2022, p. 169.
38 Pierre DARDOT; Christian LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016, p.396.
39 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT. Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.74.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 72-80, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
79
repasses de informação”
40
. Ainda, essa modalidade formativa, não pode ser concebida
apenas como acúmulo de conhecimentos e técnicas, mas é necessário “consolidar-se como
um trabalho de reflexibilidade crítica sobre as práticas e de construção permanente de uma
identidade pessoal e profissional em interação mútua”
41
.
Com esses três indicativos, o queremos fechar a discussão sobre os desafios da
pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal, mas o
aspectos considerados pelos autores, pertinentes e fundamentais que são possíveis
considerar a partir da práxis benicaniana. Padre Elli, acreditava que a promoção da vida se
faz de mãos dadas com o diferente, respeitando e propondo caminhos de justiça social para
ambos os lados. Acreditava, numa pastoral humana e humanizadora, “com o horizonte
sempre aberto, em processo continuado de construção”
42
.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo por cenário o contexto de mudanças, pautado pela racionalidade neoliberal
que está se tornando o modelo dominante que vem colonizando e formatando as relações
sociais e as vidas humanas, a presente reflexão buscou delinear, mediante a práxis
benicaniana, caminhos para uma pastoral transformadora. Sabemos que são muitas as forças
que procuram distanciar a construção de uma sociedade fraterna, e entre essas forças,
existe a racionalidade neoliberal, que conduz os sujeitos paraa diluição das relações coletivas.
Nossa pretensão não foi esgotar a temática, até porque o pensamento benicaniano é
impossível de traduzir em poucas páginas de um texto, mas realçar sua primorosa
contribuição de uma metodologia pastoral, baseada numa práxis formativa, humanizadora
e promotora do cuidado com a vida. Assim, no atual cenário brasileiro, marcado por
imensos problemas sociais e inúmeras fragilidades da vida dos mais pobres, marcados pela
colonização da razão neoliberal que subjuga os sujeitos e suas ações, entendemos que a
ação pastoral precisa ser profética, conjugando reflexão e ação numa práxis formativa.
Sobre este aspecto o padre Elli Benincá, soube dar seu testemunho com maestria, pois
viveu, ensinou e compartilhou sua vida com os mais frágeis e com todos aqueles que
assumem com responsabilidade a defesa da dignidade humana.
Portanto, uma pastoral libertadora, precisa ser profética de denúncia e anúncio:
denúncia da lógica desigual e profundamente injusta baseada no modelo mercantil e
economicista que promove a exclusão e a marginalização dos mais pobres; anúncio da boa
nova que se faz presente quando são promovidas ações de solidariedade, inclusão,
reconhecimento e vida digna para todos. A pastoral libertadora se materializa por meio do
diálogo, da participação e da tomada de consciência das amarras que impossibilitam que as
pessoas vivenciem a solidariedade e a experiência comunitária. Frente aos imperativos
autoritários do neoliberalismo que coloca os sujeitos em confronto, constituindo
indivíduos adversários e concorrentes, a práxis benicaniana sugere o diálogo e a acolhida,
o protagonismo de todos como irmãos e irmãs, no cuidado com a vida, na opção por uma
causa justa, verdadeira, contextual e que promova a transformação da sociedade para que
todos tenham vida digna.
40 Altair Alberto FÁVERO. A práxis benicaniana na formação continuada de professores, 2022, p.282.
41 Altair Alberto FÁVERO. A práxis benicaniana na formação continuada de professores, 2022, p.282.
42 Elli BENINCÁ; Rodinei BALBINOT, Metodologia pastoral: mística do discípulo missionário, 2009, p.106.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 72-80, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
80
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Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 72-80, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
VERO, Altair Alberto; SANTOS, Antônio Pereira dos
Desafios da pastoral transformadora a partir da práxis benicaniana no contexto neoliberal
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
A PASTORAL OPERÁRIA
NO BRASIL
Uma descrição a partir da Doutrina Social
da Igreja sobre as pastorais sociais
THE WORKERS PASTORAL
IN BRAZIL
A description from the Social Doctrine of
the Church in the Social Pastorals
LA PASTORAL OPERÁRIA
EN BRASIL
Una descripción según la Doctrina Social
de la Iglesia sobre la pastoral social
Elvis Rezende Messias*
Resumo: Apresentar uma descrição da Pastoral Operária (PO) no Brasil,
destacando os seus aspectos marcadamente inspirados pela Doutrina Social
da Igreja (DSI), é o objetivo geral deste artigo. A pesquisa fundamenta-se
em dados documentais/bibliográficos a partir do ponto de vista da Igreja
Católica e, secundariamente, também intenta contribuir para que o objeto
estudado seja mais conhecido e compreendido dentro do âmbito mais
abrangente do que hoje se chama de pastoral social. O caminho expositivo-
reflexivo aqui trilhado apresentará, de início, uma caracterização geral das
pastorais sociais segundo a DSI. Em seguida, busca-se compreender a
identidade, a organização estrutural geral e as prioridades da PO elencadas
pela atual coordenação nacional, sobretudo na perspectiva da sua
reorganização em terras brasileiras. Por fim, serão expostas as campanhas
mais conhecidas da PO no Brasil.
Palavras-chave: Pastoral social. Pastoral operária. Doutrina Social da Igreja.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 81-95, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.110
* Docente-pesquisador do Departamento de
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da
Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG Campanha) e vice-diretor da mesma
Instituição (gestão 2021-2025). Doutorando
em Educação pela Universidade Nove de
Julho (UNINOVE), com bolsa CAPES.
Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Alfenas (UNIFAL). Licenciado em
Filosofia pela UEMG Campanha. Bacharel
em Teologia pela Universidade Católica Dom
Bosco (UCDB). Especialista em Filosofia pelo
Centro Universitário Claretiano
(CEUCLAR). Especialista em Doutrina
Social da Igreja pela Pontifícia Universidade
Católica de Goiás (PUC-GO). Membro do
Grupo de Pesquisas e Estudos em Filosofia da
Educação (GRUPEFE, CNPq, UNINOVE).
E-mail: elvismessias.prof@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5395-1964
Recebido em 08/09/2022
Aprovado em 24/10/2022
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
Abstract: The general purpose of this article is to present a description of
the Workers’ Pastoral in Brazil, highlighting its aspects markedly inspired
by the Social Doctrine of the Church. The research is based on
documentary and bibliographic data from the point of view of the Catholic
Church and, secondarily, it also tries to contribute so that the studied object
is better known and understood within the broader scope of what is today
called as Social Pastoral. The expository-reflective path trodden here will
present, at first, a general characterization of the social pastorals according
to the Social Doctrine of the Church. Then, an attempt is made to
understand the identity, the general structural organization and the
priorities of the Workers’ Pastoral listed by the current national
coordination, especially from the perspective of their reorganization in
Brazilian lands. Finally, the best-known Workers’ Pastoral campaigns in
Brazil will be exposed.
Keywords: Social Pastoral. Workers’ Pastoral. Social
DoctrineoftheChurch
Resumen: Presentar una descripción general de la Pastoral Operária (PO)
en Brasil, destacando sus aspectos marcadamente inspirados en la Doctrina
Social de la Iglesia (DSI), es el objetivo general de este artículo. La
investigación parte de datos documentales/bibliográficos desde el punto de
vista de la Iglesia Católica y, secundariamente, también pretende contribuir
a que el objeto de estudio sea mejor conocido y comprendido en el ámbito
más amplio de lo que actualmente se denomina pastoral social. El camino
expositivo-reflexivo aquí recorrido presentará inicialmente una
caracterización general de las pastorales sociales según la Doctrina Social de
la Iglesia. Después de eso, busca comprender la identidad, la organización
estructural general y las prioridades de la PO enumeradas por la actual
coordinación nacional, especialmente en la perspectiva de su
reorganización en tierras brasileñas. Finalmente, se expondrán las
campañas de la PO más conocidas en Brasil.
Palabras-clave: Pastoral social. Pastoral operária. Doctrina Social de
la Iglesia.
INTRODUÇÃO
A Pastoral Operária é uma importante pastoral social da Igreja.
Se compreendida à luz da DSI, sua importância se destaca ainda mais,
uma vez que o tema da “condição dos operários” é central nessa
Doutrina e está na gênese de seu desenvolvimento.
Em 15 de maio de 1891 o papa Leão XIII tornava pública a encíclica
Rerum novarum (RN), que tomava, justamente, a situão do operariado
europeu do século XIX como a queso social que interpelava o
Magistério da Igreja a refletir seriamente e a oferecer soluções
humanamente dignas para os conflitos em jogo, à luz do Evangelho.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
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A situação contextual não era mais aquela marcadamente rural, pois os tempos
eram outros, bem mais dinâmicos, decorrentes da efervescência industrialista urbana que
produziu, especialmente para os operários, uma profunda “situação de infortúnio e de
miséria imerecida” que os colocou “à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma
concorrência desenfreada” (RN 2).
Ocorreram muitas greves, mobilizações e revoltas políticas e sociais na França,
Inglaterra, Itália, Alemanha, Bélgica, Prússia e territórios de colônias e ex-colônias, a
partir das quais as pessoas buscavam melhores condições de trabalho e de vida. Muitas
soluções eram buscadas, diversos movimentos surgiram para combater a desumanidade do
capitalismo, mas nem sempre tais soluções pareciam compatíveis com a doutrina católica,
tais como aquelas que propugnavam a violência e a destruição de máquinas e indústrias ou
a luta de classes, a supressão da propriedade privada e a ditadura proletária.
Segundo Souza,
Na Europa, a massa de operários criada pela Revolução Industrial constituía a
nova multidão dos chamados proletários. [...] o proletário é o cidadão pobre
que tem para viver a remuneração, muitas vezes insuficiente por nem sequer
chegar ao mínimo vital da sua força de trabalho. [...] Cedo o proletário empurra
os lhos para a fábrica, de modo a aumentar o rendimento familiar. A sua vida
decorre na fábrica, no cortiço e no botequim. O trabalho é duro e excessivo, a
alimentação é sempre insuficiente, a habitação, onde se alojam em condições
insalubres autênticas colmeias de gente, é miserável e o botequim será lugar de
refúgio de milhares de operários, onde se pode desafogar o peso de uma
existência miserável. Todas essas condições determinam uma elevada
mortalidade. [...] Os camponeses, forçados por situações de penúria,
abandonam o meio rural onde sempre viveram [...]. Dessa forma aumenta
desmesuradamente a camada do proletariado. Nesse novo lugar geográfico não
encontram qualquer estrutura pastoral da Igreja. Era diferente em seus
povoados e aldeias. As paróquias urbanas não chegam aos subúrbios, de modo
que o novo proletariado se torna elemento fácil para as doutrinações
anarquistas e marxistas.
1
Como se vê, essa realidade exigiu da Igreja uma especial resposta pastoral. Ela
entendia, cada vez mais, que não poderia ficar indiferente a tal situação e, nos dizeres de
Leão XIII, “calarmo-nos seria, aos olhos de todos, trair o nosso dever” (RN 10).
Sobre isso, assim se expressa o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI),
elaborado pelo então Pontifício Conselho “Justiça e Paz” e publicado no ano de 2004:
Destinatária da mensagem da Igreja fora por séculos uma sociedade de tipo
agrário, caracterizada por ritmos regulares e cíclicos; agora o Evangelho deveria
ser anunciado e vivido num novo areópago, no tumulto dos acontecimentos
sociais de uma sociedade mais dinâmica […] No centro da solicitude pastoral da
Igreja impunha-se mais e mais urgentemente a questão operária, ou seja, o
problema da exploração dos trabalhadores, consequência da nova organização
industrial do trabalho, de matriz capitalista, e o problema, não menos grave, da
instrumentalização ideológica, socialista e comunista, das justas reivindicações
do mundo do trabalho. No seio desse horizonte histórico se colocam as reflexões
e as advertências da Encíclica “Rerum novarum” de Leão XIII (CDSI 267).
Ora, naquele quadro da Modernidade
2
a Igreja reconhece que especialmente “os
acontecimentos ligados à revolução industrial subverteram a secular organização da
l1 Ney de SOUZA. Aspectos das raízes da Doutrina Social da Igreja. In: Ronaldo ZACHARIAS; Rosana MANZINI
(Orgs.). Magistério e Doutrina Social da Igreja: continuidade e desafios. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 36-37.
2 Terminologia consagrada pela historiografia recente que se refere a um conjunto de transformações que caracteriza a
história econômico-social da humanidade, englobando tanto a Idade Moderna (séculos XV a XVIII) quanto a Idade
Contemporânea (séculos XVIII aos dias atuais).
MESSIAS, Elvis Rezende
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Revista Teopráxis,
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sociedade, levantando graves problemas de justiça e pondo a primeira grande questão social,
a questão operária, suscitada pelo conflito entre capital e trabalho” (CDSI 88. Itálicos
nossos). Como se vê, a situação do operariado se tornou a questão social da qual a Igreja
por primeiro se ocupou no contexto do que hoje se chama de sua Doutrina Social,
especialmente a partir da encíclica leonina Rerum novarum
3
.
Diversas atuações assistenciais católicas apareceram nesse contexto do século XIX,
algumas antes mesmo da Rerum novarum, como raízes especiais da DSI. Como expressa
Souza, “não faltavam numerosíssimas iniciativas no campo da caridade, entendidas
principalmente como assistência ao pobre. Inegavelmente encontram-se obras que
revelam uma grande generosidade e abnegada dedicação”, e exemplifica
4
: a fundação, por
Frederico Ozanan, da Sociedade São Vicente de Paulo em 1833; a fundação, por Conde
Albert de Mun, dos Círculos Católicos de Operários em 1871; iniciativas, como as de León
Harmel, de cooperação de operários nas direções fabris e de condução cristã das fábricas
pelos patrões que culminou com a criação do chamado Conselho de Usina em 1909, com
raízes de sindicalismo cristão; a organização, por Pe. Adolph Kolping, de associações
católicas de operários alemães em 1849; a fundação, por Dom Bosco, da Sociedade de São
Francisco de Sales em 1859; a fundação, por Franz Hitze e Ludwig Windthorst, da associação
católica de trabalhadores Volksverein em 1890. Além disso, vale destaque também para a
publicação da obra A questão operária e o cristianismo, de 1864, por Dom Wilhelm Emmanuel
von Ketteler, e os posicionamentos críticos de Hugo Félicité de Lamennais, Jean-Baptiste
Henri-Dominique Lacordaire, Dom De Bonald, Dom Giraud, dentre outros.
Segundo Souza
5
, nas obras sociais, intelectuais e pastorais desses católicos
preocupações de ordem moral que se expressam em “um real protesto social que, no
decorrer de anos, ganha força e extensão. São essas e muitas outras as inspirações que estarão
na encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII, iniciando a Doutrina Social da Igreja”.
Tendo, então, esse pano histórico e pastoral de fundo, o presente trabalho objetiva
apresentar uma descrição da Pastoral Operária no Brasil a partir de dados documentais/
bibliográficos de pesquisa, destacando os seus aspectos marcadamente inspirados pela DSI,
com o intuito de contribuir para que seja mais conhecida e compreendida no âmbito mais
abrangente da pastoral social. É importante que fique claro que o ponto de vista
epistemológico-metodológico aqui adotado toma como base um recorte analítico a partir
de documentos e bibliografias conforme a perspectiva da própria Igreja Católica, não
sendo - por limitação de espaço em um trabalho como esse e por um caráter mais
3 Ainda sobre a Rerum novarum, seu contexto e seus posicionamentos diante dos movimentos de contestação ao
capitalismo surgidos ao longo do século XIX, é importante ficar claro que essa encíclica “condena o socialismo como
‘solução’, como ‘remédio’ (cf. RN 3). Ou seja, antes do mal do socialismo havia o mal do capitalismo liberal, que
estava expresso exatamente nas condições deploráveis dos operários de então. Tanto um quanto outro é o pano
contextual de fundo que leva Leão XIII a escrever sua encíclica social. [...] Aclaramentos sobre isso foram
acontecendo no decorrer do desenvolvimento da DSI nesses últimos 130 anos, mas são deduzíveis da própria
encíclica leonina. Falando sobre a Rerum novarum, o papa São João XXIII afirmou na encíclica Mater et magistra
(MM) que ‘tanto a concorrência de tipo liberal como a luta de classes no sentido marxista são contrárias à natureza e
à concepção cristã da vida’ (MM 22)” (MESSIAS, 2021a, s/p). Vale ainda considerar o que pondera Josaphat (2002,
p.56), que diz que “a ênfase na condenação do erro, quando não acompanhada de uma formação positiva do senso da
justiça, que a luta de classes envenenara, tem sido ou pode ser ocasião de equívoco para a mentalidade do homem
comum. Dir-se-á de maneira global: ‘O comunismo espalha e fomenta a luta de classes, a desarmonia social, a
desordem e a anarquia’; ‘O cristianismo prega o amor, a harmonia e a colaboração entre as classes, a manutenção da
ordem e a paz social’. Essa oposição simplista pode levar à omissão ou ao esquecimento de uma das exigências do
amor cristão: sua condenação ativa do mal sob todas as suas formas [...] A paz que o cristianismo prega e tende a
instaurar não é aceitação de qualquer situação estabelecida; ela resulta da ordem, fundada na justiça”.
4 Ney de SOUZA. Aspectos das raízes da Doutrina Social da Igreja. In: Ronaldo ZACHARIAS; Rosana MANZINI
(Orgs.). Magistério e Doutrina Social da Igreja: continuidade e desafios. São Paulo: Paulinas, 2016. p.44-48.
5 Ney de SOUZA. Aspectos das raízes da Doutrina Social da Igreja. In: Ronaldo ZACHARIAS; Rosana MANZINI
(Orgs.). Magistério e Doutrina Social da Igreja: continuidade e desafios. São Paulo: Paulinas, 2016. p.48-49.
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 81-95, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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introdutório e descritivo aqui escolhido - mobilizadas críticas internas e externas mais
amplas por diferentes atores dentro e fora da própria Igreja
6
.
À vista do exposto, trilharemos um caminho expositivo-reflexivo que, inicialmente,
apresentará uma caracterização geral das pastorais sociais conforme a compreensão da DSI
sobre elas para, em seguida, compreender a identidade e a organização geral da PO em
nosso país, suas prioridades elencadas pela atual coordenação nacional, sobretudo na
perspectiva da sua reorganização em terras brasileiras, e, por fim, serão expostas as
campanhas mais conhecidas da PO no Brasil.
1 CARACTERIZAÇÃO DAS PASTORAIS SOCIAIS NA DOUTRINA SOCIAL
A Igreja não é ministra de uma salvação meramente abstrata ou de uma dignidade
da alma (EN
7
31), mas do ser humano em sua totalidade, “todos os homens e o homem
todo” (PP
8
14). Ela tem o direito e o dever de fecundar e fermentar a sociedade mesma com
o Evangelho (CDSI 62.64.69-71). De fato, o Evangelho tem profunda incidência social
9
,
nada lhe é alheio (CDSI 66), “a posição cristã não é cômoda, porque é integral. Abraça
todos os dados do problema”
10
(assim como a própria Trindade é comunhão de Pessoas e a
ação redentora de Jesus Cristo, singularmente iniciada no mistério da encarnação (CDSI
65), é interpeladora socialmente de modo íntimo e inevitável: “Ele é em pessoa a Doutrina
Social de Deus”.
11
Nesse sentido, a Igreja também tem uma doutrina social e atua socialmente na
competência que lhe é própria, ou seja, não a da técnica nem a da proposição de regimes
sócio-político-econômicos, mas a do anúncio de Jesus e da redenção e libertação por ele
trazidas (CDSI 68). Como tal, a atuação da Igreja é marcadamente a de pastoreio, de
cuidado pastoral. D que, dentre suas atividades pastorais, ocupam especial lugar de
importância as chamadas pastorais sociais.
O pastoreio social da Igreja é iluminado, em sua articulação, natureza, enfoque e
desenvolvimento, pela Doutrina Social, que compreende a pastoral social como “a
expressão viva e concreta de uma Igreja plenamente consciente da própria missão
evangelizadora das realidades sociais, econômicas, culturais e políticas do mundo” (CDSI
524). Ora, essa dimensão pastoral revela um elevado grau de maturidade da Igreja no que
tange à sua autoconsciência, à consciência clara da abrangência de seu chamado e de sua
identidade, bem como da compreensão que a cristã “torna-se luz para iluminar as
relações sociais” (GS
12
40).
Na Evangelii gaudium (EG), o Papa Francisco afirmou que “o querigma possui um
conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida
comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma
repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade” (EG 177). E é, então, justamente
baseada na mensagem social do Evangelho que a Igreja desenvolve uma dupla tarefa
6 Temos ciência de que outras abordagens são possíveis para o objeto aqui estudado, bem como maiores
problematizações histórico-contextuais podem ser evocadas. Existem, inclusive, disputas por significados,
hermenêuticas e exegeses no interior da própria Igreja. Aqui optamos, contudo, por uma descrição a partir da
própria ótica eclesiástica. Novas leituras e pesquisas serão bem-vindas e necessárias posteriormente.
7 EN = Evangelii Nuntiandi.
8 PP = Populorum progressio.
9 Elvis Rezende MESSIAS; Dom Pedro Cunha CRUZ. O Evangelho Social: manual básico de Doutrina Social da Igreja.
São Paulo: Paulus, 2020.
10 Frei Carlos JOSAPHAT. Evangelho e revolução social. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p.74.
11 FRANCISCO. Prefácio. In: DOCAT. Como agir? São Paulo: Paulus, 2016a. p.12.
12 GS = Gaudium et spes.
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
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pastoral: 1) “ajudar os homens a descobrir a verdade e escolher a via a seguir”; 2) “encorajar
o esforço dos cristãos em testemunhar o Evangelho no campo social” (CDSI 525).
Assim, segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI 526), a pastoral social deve:
• anunciar o Evangelho;
• confrontar a mensagem evangélica com a realidade social;
• projetar ações voltadas a renovar a realidade social.
Desse modo, sua fundamentação e atuação são eminentemente evangélicas e
teológicas. De fato, antes do seu agir social vem sua identidade pastoral. É daí que se
sustenta sua prática e encontram seus agentes as inspirações basilares para seus
planejamentos, organizações, avaliações e celebrações.
Segundo expressa a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no texto A
missão da pastoral social (MPS), de 2008, cada organismo, setor, comissão e pastoral social
que são várias têm um profundo sentido de ser, de fato, “pastoral”. Com o intuito de
“formar pessoas/Igrejas/comunidades ‘samaritanas’ prontas para socorrerem os
necessitados”, desde o princípio, no Brasil, por exemplo, esses trabalhos
[...] eram plenamente “pastorais”, no sentido de serem parte de uma dimensão
essencial e irrenunciável da missão da Igreja de Jesus, e por desejarem, mesmo
incomodando profeticamente, que todas as comunidades/Igrejas estivessem
despertadas e organizadas para viver esse aspecto da missão.
13
A título, então, de indicações e pistas de ação inspiradas na Doutrina Social da Igreja
e na dimensão sociotransformadora da ação pastoral da Igreja no Brasil
14
, podemos elencar
alguns tópicos iluminadores para a atuação das diversas pastorais sociais católicas.
Destaca-se que elas podem:
• contribuir para a transformação dos corações e das estruturas da sociedade à luz do
Reino de Deus e do projeto de construção da Civilização do Amor;
concretizar atividades que viabilizem a transformação de situações específicas
(mundo do trabalho, realidade das ruas, mobilidade humana, presídios, marginalização da
mulher, negros, pescadores, indígenas, múltiplos rostos sofredores);
• ser presença (testemunho) junto aos setores mais marginalizados da população;
ser alerta (denúncia e anúncio) à Igreja e à sociedade civil sobre a exisncia
desses submundos;
ser ação (serviço) que multiplica atividades de conscientização, organização e
transformação, e que levem à conversão;
ser articulação fraterna (diálogo) com outros setores e instituições em vista do
bem comum;
reconhecer que o mundo é lugar teológico (Deus nos fala, interpela, encontra e
chama em todas as circunstâncias);
identificar os rostos sofredores que nos interpelam (categorias marginalizadas,
subalternizadas e/ou situações sociais de extrema carência)
15
;
13 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 20.
14 Sobre ver as inúmeras indicações da CNBB, disponíveis em: https://www.cnbb.org.br/acao_transformadora/. Acesso
em 07 set. 2022.
15 Acerca
dos
rostos
sofredores,
o
Documento
de
Aparecida,
justamente
em
uma
seção
na
qual
trata
de
Uma
renovada
pastoral
social
para
a
promoção
humana
integral,
considera
que
em
nosso
atual
contexto
globalizado
emergem-se
muitos
“novos
rostos
pobres”
e,
em
sintonia
com
as
anteriores
Conferências
Gerais
do
Episcopado
Latino-Americano
e
Caribenho,
oferece
uma
lista
desses
rostos
interpeladores
hoje
(DAp
402):
migrantes,
vítimas
de
violência,
deslocados
e
refugiados,
vítimas
do
tráfico
de
pessoas
e
sequestros,
desaparecidos,
enfermos
de
HIV
e
de
enfermidades
endêmicas,
tóxico-dependentes,
idosos,
meninos
e
meninas
vítimas
da
prostituição,
pornografia
e
violência
ou
do
trabalho
infantil,
mulheres
maltratadas,
vítimas
de
exclusão
e
do
tráfico
para
a
exploração
sexual,
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 81-95, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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estimular o protagonismo das pessoas atendidas pastoralmente na luta e conquista
de seus próprios direitos, no trabalho de fazer com que suas vozes sejam ouvidas,
reconhecidas e respeitadas na sociedade como um todo e na Igreja especificamente;
tomar consciência constante da realidade local (que seja sensível e gere um
processo de organização e mobilização);
fortalecer equipes de base para que possam acompanhar de perto e
sistematicamente as situações específicas;
discernir e desenvolver atividades e redes de apoio e solidariedade, num trabalho
gradativo e persistente;
integrar todas as pastorais sociais da paróquia/diocese/regional, em diálogo com
os corpos intermédios da sociedade civil organizada;
conhecer e difundir a Doutrina Social da Igreja e deixar-se guiar por ela em todos
os seus processos e percursos;
• defender e promover a dignidade integral da pessoa humana como princípio primaz,
difundindo a cultura da vida e combatendo as múltiplas expressões de cultura de morte;
• resgatar o sentido original da política, da economia e da sociedade como um todo;
• despertar a consciência crítica frente à realidade político-social do entorno;
• mobilizar a comunidade no conhecimento e na busca de seus direitos e deveres;
estimular o exercício da cidadania e o surgimento de lideraas engajadas e democticas;
impregnar a própria organização pastoral de processos democráticos e,
especialmente, sinodais;
acompanhar, oferecer apoio e fiscalizar os trabalhos dos diversos agentes sociais,
especialmente daqueles politicamente eleitos;
• atuar junto à comunidade para discutir problemas locais;
promover encontros de estudo dos projetos políticos, emendas de leis, políticas
públicas etc., avaliando suas motivações e impactos à luz da Doutrina Social da Igreja,
Evangelho Social de Jesus Cristo;
promover encontros para reflexão e construção coletiva de ações sobre as diversas
questões de interesse público (educação, saúde, moradia, desenvolvimento econômico,
ecologia...);
articular-se com outras pastorais, como, por exemplo, à Pastoral da Comunicação,
para um trabalho de difusão e promoção de informações necessárias à saúde sócio-
político-econômica da comunidade e ao sistemático combate de informações falsas
16
;
• aproveitar as diversas datas de mobilização social previstas no calendário civil, bem
como dos santos e das santas da Igreja, que contribuem para a reflexão cristã na dimensão
sócio-político-econômica;
• buscar constante assessoria teológica, política e filosófica (ciências humanas) para o
fortalecimento dos alicerces da pastoral social.
pessoas
com
capacidades
diferentes,
grandes
grupos
de
desempregados/as,
os
excluídos
pelo
analfabetismo
tecnológico,
as
pessoas
que
vivem
na
rua
das
grandes
cidades,
os
indígenas
e
afro-americanos,
agricultores
sem-terra
e
os
mineiros
(lembrando
que
o
DAp
é
do
ano
de
2007
e,
desse
modo,
talvez
outros
novos
“rostos”
precisam,
infelizmente,
ser
acrescentados
a
essa
lista).
E
o
Documento
conclui
esse
número
com
a
seguinte
afirmativa:
“A
Igreja,
com sua Pastoral Social, deve dar acolhida e acompanhar essas pessoas excluídas nas respectivas esferas” (DAp 402).
16 Sobre as singulares ameaças que merecem nossa atenção atualmente, os bispos brasileiros reunidos em Assembleia
Geral em abril de 2022, alertaram sobre “a disseminação das fake news, que através da mentira e do ódio, falseia a
realidade. Carregando em si o perigoso potencial de manipular consciências, elas modificam a vontade popular,
afrontam a democracia e viabilizam, fraudulentamente, projetos orquestrados de poder” (CNBB, 2022, s.p).
MESSIAS, Elvis Rezende
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A esses destaques, muitos outros poderiam ser acrescidos. Contudo, pelo que se
fundamentou até aqui, uma tarefa essencial da ação pastoral social é, por fim, reunir-se
para avaliar e celebrar frequentemente, vivendo uma espiritualidade cristã integral. Não se
pode esquecer que, enquanto definida como uma atividade “pastoral”, ela nasce do
encontro com o Bom Pastor. Tal como alertaram os bispos no Documento de Aparecida, “a
missão não se limita a um programa ou projeto, mas é compartilhar a experiência do
acontecimento do encontro com Cristo, testemunhá-lo e anunciá-lo de pessoa a pessoa, de
comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo” (DAp 145).
2 NASCIMENTO E IDENTIDADE DA PASTORAL OPERÁRIA NO BRASIL
Em se tratando especificamente do contexto brasileiro, as Pastorais Sociais
“nasceram na década de 70 do século passado, por um motivo muito claro: a insuficiência
das mediações de trabalho social na Igreja Católica para dar conta, na época, dos novos
problemas que atingiam amplos setores da sociedade brasileira”.
17
Eram tempos árduos de
ditadura civil-militar e do cínico processo de integração de diversas regiões – em especial a
região amazônica à ideologia do “progresso nacional” ou do “milagre econômico”, um
processo capitalista e autoritário que “mantinha viva e aprofundava, disfarçada sob a
linguagem modernizadora, a tradicional política colonizadora de usurpação do território
brasileiro”, produzindo a ilusão “de que os ditadores estivessem efetivamente introduzindo
a modernização e o progresso e impedindo o avanço do comunismo”.
18
Nesse cenário de marcante opressão, de forte exploração do trabalho e de repressão
dos movimentos de organização sindical e/ou política, as pastorais sociais nascentes do
Brasil, especialmente a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), foram surgindo marcadamente como “pastorais de fronteiras”
19
,
como “serviço evangélico de risco”
20
como “pastoral de conflito”
21
, tendo nas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) um grande berço para o aparecimento de lideranças de
movimentos sociais, partidos democráticos, sindicatos e de agentes de pastorais sociais
22
.
Daí que se possa dizer que:
Com a mesma inspiração do CIMI e da CPT, foram surgindo, a partir de 1976, a
Pastoral Operária, a Pastoral do Menor, dos Migrantes, da Mulher
Marginalizada, a Pastoral Carcerária, o Serviço Pastoral dos Pescadores... Elas
propuseram-se a ser parteiras, no sentido de ajudar a nascer, o protagonismo
destas pessoas e classes com direitos e existência negados, apostando na força de
sua organização e luta política e na experiência histórica da ressurreição.
Evitaram, para isso, transformar-se em “movimentos sociais” e agir em nome
ou representando os empobrecidos como um serviço da Igreja.
23
Considerando, então, a Pastoral Operária de modo mais dedicado, pode-se dizer que
ela tem como data de nascimento no Brasil o ano de 1970. Naquele ano, mais
especificamente no dia 18 de outubro de 1970, foi celebrada na cidade de São Paulo aquela
que ficou conhecida como a Missa pelo salário justo, presidida pelo cardeal Agnelo Rossi, à
época arcebispo de São Paulo. Segundo explicita Rodrigues citando “Waldemar Rossi, um
dos fundadores da Pastoral Operária”, naquele ano, aproximadamente oito sindicatos se
17 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p.13.
18 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p.14.
19 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 15.
20 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 18.
21 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 32.
22 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 33.
23 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p.18.
MESSIAS, Elvis Rezende
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uniram em luta contra “o arrocho salarial”, de tal forma que ele sugeriu “a ‘Missa do Salário
Justo’. O cardeal (Agnelo Rossi) fez questão de celebrar a missa e, naturalmente, ficou
então instituída a Pastoral Operária naquele dia”.
24
Criada, então, quase 52 anos, primeiramente na Arquidiocese de o Paulo, e,
depois, nacionalmente em 1976
25
, a PO nutre especial atenção às questões que envolvem o
trabalho humano, sobretudo no âmbito urbano, lidando com situações como direitos
trabalhistas, acidentes e doenças de trabalho, campanhas de formação para o conhecimento
da legislação trabalhista, economia solidária, união de trabalhadores, segurança e saúde no
trabalho, na perspectiva de uma espiritualidade integral do trabalho.
Engajada social e eclesialmente, a PO no Brasil pode ser identificada a partir dos
seguintes tópicos
26
:
1) A PO é uma pastoral social que se coloca a serviço da classe trabalhadora urbana,
como uma pastoral organizada, composta e dirigida por trabalhadores(as). Ou seja, é uma
pastoral preocupada com a incidência social do Evangelho e possui uma estruturação
marcada pelo protagonismo dos cristãos leigos e leigas. Esse protagonismo, contudo, não é
sinônimo de exclusivismo, pois a PO no Brasil faz parte das Pastorais Sociais da Comissão
para a Caridade, Justiça e Paz da CNBB.
2) Como tal, a PO procura ser espaço para reflexão da vida da pessoa trabalhadora à
luz da Sagrada Escritura e da DSI. Sua orientação é marcadamente cristã, procurando
oferecer uma resposta social que seja, de fato, pastoral, compreendendo que o Evangelho
da Salvação não é alheio às injustiças sociais concretas de cada tempo histórico.
3) Nesse sentido, a PO autocompreende-se como intrinsecamente missionária,
identificando sua própria missão no sentido de atuar como presença da Igreja junto à
classe trabalhadora e da presença da classe trabalhadora junto à Igreja. Assim como a
sociedade e os trabalhadores devem abrir-se à presença orientadora da Igreja, também a
Igreja deve abrir-se à presença interpeladora da sociedade e dos trabalhadores.
4) Donde vem, então, aquele que é o compromisso especial da PO: agir com o povo,
resgatando a cidadania plena de trabalhadores formais, informais e desempregados, tendo
o trabalho como chave para construção de uma sociedade justa e solidária.
Deste quarto ponto, duas coisas merecem destaque ainda:
Em primeiro lugar, a Igreja como um todo não trabalha para o povo nem
simplesmente em favor dele, mas que age com ele, com os pobres, porque ela é povo de Deus
em caminho e em comunhão, porque ela é dos pobres, ou, melhor dizendo, ela mesma é pobre,
ou seja, sempre necessitada da solicitude compassiva do Bom Pastor.
27
E, nunca é demais
relembrar, não se trata aqui de desejar, em última instância, uma sociedade do poder
proletário de inspiração marxista, como refletiu Francisco quando interpelado em 2016
por Eugenio Scalfari, do jornal La Repubblica
28
. Naquela ocasião, disse o Papa que, se
houver alguma semelhança entre as duas coisas, na verdade a prerrogativa do cuidado
libertador para com os pobres, que os e os torna sujeitos de sua própria formação, é do
cristianismo, e não do marxismo. Expressou Francisco que, nesse caso,
24 Cátia Regina RODRIGUES. D. Paulo Evaristo Arns e as pastorais sociais. Projeto História, São Paulo, n. 37, p. 319-328,
dez. 2008, p. 320.
25 Ver histórico em: https://pastoraloperaria.org.br/. Acesso em: 07 set. 2022.
26 Optamos aqui por uma apresentação de cunho didático. Estas e outras informações podem ser consultadas em Pastoral
operária. Quem somos? Disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/quem-somos/. Acesso em: 07 set. 2022.
27 Elvis Rezende MESSIAS. A pastoral deve voltar a Jesus: inspirações e provocações a partir da obra de J. A. Pagola.
Annales FAJE, Belo Horizonte, v. 6, n. 1, p. 40-50, 2021b.
28 A entrevista de Scalfari com Francisco foi em novembro de 2016 e o seu texto completo está disponível em: https://
www.repubblica.it/vaticano/2016/11/11/news/scalfari_papa_francisco_trump_no_lo_juzgo-151826657/. Acesso em:
07 set. 2022.
MESSIAS, Elvis Rezende
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[...] são os comunistas os que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma
sociedade onde os pobres, os frágeis e os excluídos sejam os que decidam. Não
os demagogos, mas o povo, os pobres, os que têm em Deus ou não, mas são eles
a quem temos que ajudar a obter a igualdade e a liberdade
29
(Tradução nossa).
Em segundo lugar, destaca-se a compreensão da sociedade em chave laboral. Essa é
uma das contribuições fundamentais da Encíclica Laborem exercens (LE), de João Paulo II,
em leitura atualizada da Rerum novarum. O documento do papa polonês versa sobre o
trabalho humano, reconhecendo sua centralidade na vida das pessoas e declarando-o como
a chave de toda a “questão social” (LE 3).
Em síntese, não se constrói uma sociedade justa e solidária sem a dignidade concreta
da pessoa trabalhadora em seus trabalhos concretos. Daí a singular importância da
existência de uma pastoral social que tome a realidade operária como objeto especial de sua
ação missionária.
3 E STRUTURA, ORGANIZAÇÃO GERAL E PRIORIDADES DA PASTORAL OPERÁRIA NO
BRASIL
Pelo que se expôs até aqui, pode-se compreender que as áreas de atuação da PO o
abrangentes, envolvendo o âmbito eclesial, mas também as realidades da organização
dos trabalhadores e da organizão sociopotica e ecomica como um todo. Os
trabalhos pastorais desenvolvidos envolvem formação eclesial, conhecimento da DSI e
também a interpelação para a ão pastoral organizada, envolvendo, por consequência,
campanhas, movimentos de reivindicação e diálogo com gestores poticos, projetos de
lei de iniciativa popular etc.
Um dos destaques, nesse sentido, são os chamados grupos de economia popular solidária
(GEPS), que são criados e acompanhados pela PO para integrar os Grupos de Base nas
paróquias e cidades. Os GEPS “são coletivos de geração de trabalho e renda (cooperativas e
outros empreendimentos), em todo Brasil. A PO promove a formação e organização dos
grupos, a partir dos princípios de autogestão, solidariedade, justiça”.
30
Tal perspectiva é importante para vencer três coisas:
1) o individualismo, pois não se luta sozinho, isoladamente nem pensando somente
nos “meus problemas”, dado que eles possuem tanto incidência quanto certa decorrência
histórico-social;
2) o fatalismo, pois a solidariedade fraterna ajuda a compreender que as coisas podem
mudar, que os problemas de injustiça sistêmica que passamos não são “vontade de Deus”;
3) o espontaneísmo, pois a luta por melhores condições de vida e de trabalho não se faz
por mero impulso, mas iluminada pela Palavra de Deus, orientada pelo Magistério Social
católico e organizada comunitariamente, dificultando que as justas reivindicações dos
trabalhadores sejam cooptadas por ideologias, sejam elas de direita, esquerda, centro etc.
Daí que se destaca, então, a organização da própria PO em diversos níveis,
possibilitando maior consistência no trabalho/missão que ela pretende desenvolver. Têm-
se os seguintes veis de organização:
29 “[...] son los comunistas los que piensan como los cristianos. Cristo habló de una sociedad donde fueran los pobres,
los débiles, los marginados, quienes decidieran. No los demagogos, no los Barrabás, sino el pueblo, los pobres,
independientemente de que tengan o no fe en el Dios trascendente, es a ellos a los que debemos ayudar para que
logren la igualdad y la libertad”. (FRANCISCO. Entrevista concedida a Eugênio Scalfari. La Reppublica. 11 nov. 2016b.
Disponível em: https://www.repubblica.it/vaticano/2016/11/11/news/scalfari_papa_francisco_trump_
no_lo_juzgo-151826657/. Acesso em: 07 set. 2022.
30 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 36-37.
MESSIAS, Elvis Rezende
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Grupos de base: compostos pelos trabalhadores em suas realidades. É neles que a
ação concreta nas especificidades dos trabalhadores acontece. Ali ocorrem reuniões sobre a
realidade do dia a dia, uma especial vivência da espiritualidade do trabalho, celebrações da
vida e da luta do povo, encontros de reflexão, formações e articulações sobre rios temas
pertinentes à atuação da PO
31
.
Coordenação Diocesana: formada por representantes dos Grupos de Base.
Coordenação Estadual: formada por representantes das dioceses e pelos
coordenadores/liberados estaduais.
Articulação Norte/Nordeste e Sul/Sudeste.
Colegiado Nacional: instância geral de direção da PO, com estrutura regimental de
oito membros: 5 trabalhadores leigos (daí saindo as duas pessoas coordenadoras), um
padre, uma religiosa e o bispo referencial da CNBB
32
.
A última coordenação nacional, que atuou até março de 2022
33
, procurou, assim, um
trabalho de reorganização interna da PO, tendo em vista que em muitas dioceses do Brasil
ela encontra-se sem atuação. Para tanto, a equipe elencou duas frentes de prioridades,
como se pode ver a seguir
34
.
Prioridade 1: Formação. O objetivo aqui é
[...] contribuir para a formação de trabalhadoras e trabalhadores, no que se
refere a organização, mobilização, direitos, políticas públicas, espiritualidade,
bíblia, Ensino Social da Igreja, comunicação, mundo do trabalho em geral para
o desenvolvimento de uma consciência cristã cidadã de defesa e garantia de
direitos de trabalhadoras e trabalhadores.
35
As realizações que foram previstas para essa primeira prioridade são:
Realização 1: produzir subsídios de formação em níveis [grupo de base/diocese
estadual/regional – nacional] a partir das áreas de atuação da PO [eclesial – organização da
classe trabalhadora – social – político – economia popular solidária].
• Realização 2: realizar processo formação [rodas de conversacursos – seminários]
em níveis [grupo de base/diocese (para novos grupos, jovens e para militantes) – estadual/
regional – nacional] com os subsídios produzidos.
Realização 3: acompanhar [monitoramento, avaliação e sistematização] com
sistematização da realização das rodas de conversas, cursos e seminários.
• Realização 4: celebrar os 50 anos da PO [ocorridos 2020].
Prioridade 2: Comunicação. O objetivo aqui é, sinteticamente, melhorar a comunicão
da PO a serviço da Classe Trabalhadora. As realizações que foram previstas são:
31 Sobre a organização e funcionamento dos Grupos de Base, ver a cartilha disponível em: https://
pastoraloperaria.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Ebook_Grupos_Base_PO. pdf. Acesso em: 07 set. 2022.
32 Até março de 2022 a equipe estava composta pelas seguintes pessoas: Jardel Neves Lopes (trabalhador coordenador),
Mônica Helena de Andrade Fidelis (trabalhadora coordenadora), Osmarina Oliveira (trabalhadora articuladora
regional Sudeste), Iguaracira Fidelis Maia (trabalhadora articuladora regional Nordeste), Luzarina Varela
(trabalhadora articuladora regional Norte), Alessandra Lazzari (trabalhadora articuladora regional Sul), Pe. Miguel
Pipolo (Assessor Eclesiástico) e Dom José Reginaldo Andrietta (bispo referencial da CNBB para a Pastoral Operária).
33 Uma nova equipe foi eleita a partir da última Assembleia Nacional, ocorrida entre 11 e 13 de março de 2022. Está
agora composta por: Marina Oliveira e Marcos Moura (trabalhadores coordenadores - liberação), Alessandra Lazzari
(trabalhadora articuladora regional Sul), Gilmar Ortiz (trabalhador articulador regional Sudeste), Lucia Ângelo
(trabalhadora articuladora regional Nordeste), Luzarina Varela (trabalhadora articuladora regional Norte). O assessor
eclesiástico ainda está a definir e Dom José Reginaldo Andrietta segue sendo o bispo referencial da CNBB para a
Pastoral Operária. Informações disponíveis em: https://pastoraloperaria.org.br/2022/03/17/sintese-geral-da-20a-
assembleia-nacional-da-po/. Acesso em: 07 set. 2022.
34 Disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/quem-somos/. Acesso em: 07 set. 2022.
35 PASTORAL OPERÁRIA 2022. Quem somos? Disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/quem-somos/. Acesso
em: 07 set. 2022.
MESSIAS, Elvis Rezende
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Realização 1: produzir cartilha de formação sobre comunicação, com conteúdo
introdutórios, formas de linguagens da comunicação, instrumentalização e orientações
sobre a comunicação na PO.
Realização 2: realizar oficina de comunicação com representantes estaduais/
regionais para auxiliar no envio de informações da equipe nacional e estadual para as bases
e das bases para as equipes estadual e nacional.
Realização 3: promover intercâmbio de informações entre as experiências dos
grupos de PO pelo Brasil.
• Realização 4: melhorar as mídias sociais da PO: refazer o site.
• Realizão 5: atualizar e republicar subsídios de formação uteis para a formação da base
da PO: (i) Grupos de Base, (ii) PO como e para quê, (iii) Igreja e os Trabalhadores (coleção).
A organização, (re)estruturação e elenco de prioridades e caminhos a serem trilhados
mostram uma pastoral em perene movimento e vitalidade, atenta às interpelações do
contexto operário atual. De fato, os desafios são muitos, pois a realidade laboral na atual
conjuntura nacional inspira muitos cuidados e ação pastoral profética, bem organizada e
coerentemente fundamentada nos princípios e critérios da Doutrina Social da Igreja.
4 MOVIMENTAÇÕES E CAMPANHAS DA PASTORAL OPERÁRIA NO BRASIL
Destacamos, dentre outras, três movimentações/campanhas bastante conhecidas da
PO no Brasil e que auxiliam os grupos de base e dioceses a se inspirarem e se articularem
em torno de suas próprias demandas locais/regionais.
Uma movimentação fundamental é a Assembleia Nacional da PO, ocorrida anualmente,
preparada ao longo de rios meses, com articulações e encontros em níveis diocesanos e
estaduais, à luz de um texto-base preparado previamente. A última edição ocorreu entre 11
a 13 de março de 2022, de forma virtual
36
, sob o tema “A organização e a luta da classe
trabalhadora por condições dignas de trabalho e vida”. O lema foi “Sejam fortes e
corajosos” (Dt 31,6)
37
.
Outra movimentação bastante conhecida e presente em várias dioceses do Brasil é o
Grito dos(das) excluídos(as). Esse encontro geralmente ocorre no dia 07 de setembro de cada
ano, envolvendo diversas Pastorais Sociais das dioceses e/ou paróquias, e não somente a
PO. A edição de 2022 insere-se no contexto dos 200 anos da (in)dependência do Brasil e
teve como tema “Vida em primeiro lugar”. O seu lema, consideravelmente provocativo/
reflexivo, foi: “Brasil, 200 anos de (in)dependência. Para quem?”.
Por fim, destaca-se também a chamada Campanha Acidente de trabalho não é culpa da
vítima. Com duração temática de um ano, ocorrida de 28 de abril de um ano ao outro,
essa data foi escolhida pelo fato da Organização Internacional do Trabalho (OIT - ONU)
ter instituído, em 2003, a data de 28 de abril como o Dia Mundial de Segurança e Saúde no
Trabalho. O tema escolhido para a última Campanha concluída (2021-2022) foi “Covid19 é
doença do trabalho”. Isso se deu porque se compreende que a pandemia se relaciona
diretamente com a realidade laboral, pois muitas pessoas adquirem-na ou no ambiente
onde trabalham ou no trajeto para ele, equiparando-se por lei ao acidente de trabalho.
Desse modo, essa Campanha visou conscientizar a sociedade para o fato de que as pessoas
acometidas por Covid-19 devem ter os direitos e deveres trabalhistas e previdenciários
36 Uma síntese sobre o que ocorreu encontra-se disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/2022/03/17/sintese-
geral-da-20a-assembleia-nacional-da-po/. Acesso em: 07 set. 2022.
37 O Texto-base da edição encontra-se disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/wp-content/uploads/2021/11/
PO_Texto-base_20a-Assembleia-Nacional.pdf. Acesso em: 07 set. 2022.
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93
garantidos e aplicados como qualquer outro acidente ou doença do trabalho
38
. A atual
Campanha, finalmente, tem como tema “Atuemos juntos!” e foi lançada em 28 de abril na
sede do Regional Sul 1 da CNBB. Segundo expresso pela própria PO, acerca da Campanha
em vigor e sua temática,
trabalho digno é direito de todos e todas e reflete a importância da união entre
todas as categorias de trabalhadores/as, sejam formais ou informais para o
desenvolvimento de uma gestão segura em Segurança e Saúde no Trabalho para
a redução da ocorrência de doenças e acidentes do trabalho. A campanha aborda
também a campanha da Fraternidade de 2022 (Fraternidade e Educação) e a
importância da formação e capacitação dos trabalhadores e trabalhadoras
39
.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo que se pode expor ao longo deste artigo, a PO se revela como uma pastoral
social fundamental. Necessitando de novo ardor em diversas dioceses e regiões do Brasil,
ela tem procurado se reestruturar e tem desenvolvido um consistente trabalho em tantos
outros lugares do país
40
.
Diversos subsídios formativos encontram-se disponíveis no site da PO e, no âmbito
da CNBB, o Regional Sul I parece estar desenvolvendo um trabalho mais sistemático, com
uma comunicação mais atuante. As redes sociais da PO têm divulgado diversas
movimentações recentemente, em especial no contexto dos preparativos e sínteses da
Assembleia Nacional em várias dioceses e Estados e do Grito dos(das) excluídos(excluídas).
Isso é um importante sinal da perene e também atual vitalidade dessa pastoral social da
Igreja no Brasil.
A fundamentação teológica das Pastorais Sociais é indiscutível, como se pode ver à
luz da Doutrina Social da Igreja, do mistério trinitário e da encarnação de Jesus. Como
bem expressa a CNBB (2008), “inserida nas situações concretas da sociedade humana e
vivendo o mistério da encarnação, a Igreja sente-se solidária com toda a humanidade a com
sua história. A missão das Pastorais Sociais é, igualmente, evangelizar encarnando-se”.
41
Desse modo, a articulação e atuação da PO como uma pastoral social específica se faz
sempre mais necessária e bem-vinda. Como explicou o Papa Francisco (2017, s/p),
“sempre houve uma amizade entre a Igreja e o trabalho, a partir de Jesus trabalhador.
Onde houver um trabalhador, ali estarão o interesse e o olhar de amor do Senhor e da
Igreja”. E a isso se acrescenta o que afirma a CNBB em suas atuais diretrizes para a ação
evangelizadora no Brasil: “A solidariedade com quem sofre as consequências do
desemprego e do trabalho precário é, pois, uma expressão importante de caridade,
devendo se manifestar pela atuação organizada dos cristãos leigos e leigas”
42
Diante de tais considerações, por fim, destaca-se a importância das pastorais sociais
na Igreja, como é o caso específico da Pastoral Operária, fazendo-se ainda mais
iluminadoras as palavras do profeta, que diz: “Administrai a justiça e livrai o explorado da
mão do opressor” (Jr 21,12).
38 Sobre essa Campanha, consultar: https://cnbbsul1.org.br/32847-2/. Acesso em 07 set. 2022.
39 Disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/2022/04/25/https-pastoraloperaria-org-br-2022-04-25-campanha-
contra-ntes-de-trabalho/. Acesso em: 07 set. 2022.
40 Segundo consta no item PO no Brasil do site da Pastoral Operária, ela espresente em pelo menos 15 Estados do
país. Disponível em: https://pastoraloperaria.org.br/. Acesso em: 07 set. 2022.
41 CNBB. A missão da pastoral social, número 2, p. 36-37.
42 CNBB. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil: 2019-2023, n.106.
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 81-95, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. A missão da pastoral social: número 2.
Coordenação da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz.
Brasília: Edições CNBB, 2008.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Bíblia Sagrada. Tradução Oficial da
CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2018.
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes gerais da ação evangelizadora da
Igreja no Brasil: 2019-2023. Documento 109. Brasília: Edições CNBB, 2019.
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Assembleia Geral da CNBB. 29 abr. 2022. Disponível em: https://www.cnbb.org.br/mensagem-
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Discurso do Santo Padre. 27 maio 2017. Disponível em: https://www.vatican.va/content/
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JOÃO PAULO II. Laborem exercens: carta encíclica sobre o trabalho humano, no 90º aniversário da
Rerum novarum. 14 set. 1981. Petrópolis: Vozes, 1981. (Documentos pontifícios)
JOSAPHAT, Frei Carlos. Evangelho e revolução social. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
LEÃO XIII. Rerum novarum: carta encíclica sobre a condição dos operários. 15 de maio de 1981. 10.
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MESSIAS, Elvis Rezende. 130 anos da Rerum novarum: uma encíclica sempre atual, um tesouro a
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atual-um-tesouro-a-redescobrir. Acesso em: 07 nov. 2022.
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SANTA SÉ. Catecismo da Igreja Católica. Edição típica vaticana. São Paulo: Loyola, 2000.
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 81-95, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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SANTA SÉ. Gaudium et spes: constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. In: SANTA SÉ.
Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001. (Clássicos de bolso).
SOUZA, Ney de. Aspectos das raízes da Doutrina Social da Igreja. In: ZACHARIAS, Ronaldo;
MANZINI, Rosana (Orgs.). Magistério e Doutrina Social da Igreja: continuidade e desafios. São
Paulo: Paulinas, 2016.
MESSIAS, Elvis Rezende
A Pastoral Operária no Brasil: Uma descrão a partir da Doutrina Social da Igreja sobre as pastorais sociais
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 81-95, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
RESENHA
Este artigo está licenciado com a licença: Creative
Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0
International License.
ITEPA FACULDADES:
40 ANOS REFLETINDO SOBRE
EVANGELLIZAÇÃO
A Itepa Faculdades e o protagonismo
do Pe. Elli Benincá
Selina Maria Dal Moro*
PREÂMBULO
O texto que segue foi elaborado com o objetivo de oferecer aos
leitores da revista Teopráxis indicativos sobre a história da Itepa
Faculdades e sobre o protagonismo do professor e primeiro diretor
desta casa de formação teológico-pastoral, o Pe. Elli Beninca. O texto
é uma versão atualizada e ampliada da apresentação do livro
produzido em homenagem ao Pe. Elli Benincá, intitulado Itepa
Faculdades: 40 anos reetindo sobre EvangELLização, organizado pelos
professores da Itepa Faculdades, Pe. Ivanir Antonio Rodighero e
Selina Maria Dal Moro (p.15-19) e lançado ao público quando da
realização pela Itepa Faculdades do I Seminário Nacional de Teologia
Pastoral, em 29 de agosto de 2022.
INTRODUÇÃO: UM POUCO DE HISTÓRIA
Os documentos oficiais do Itepa, hoje Itepa Faculdades, registram
que, em assembleia, presidida pelo Bispo Diocesano de Passo Fundo,
Dom Urbano José Allgayer, no dia 9 de novembro de 1982, as Igrejas
Particulares do Interdiocesano Norte, a saber, Passo Fundo, Erexim,
Frederico Westphalen e Vacaria, representadas respectivamente por seus
Bispos Diocesanos, Dom Urbano Jo Allgayer, Dom João Aloysio
Homann, Dom Bruno Maldaner e Dom Henrique Gelain, firmaram o
documento que sancionava a criação do Instituto de Teologia e Pastoral
de Passo Fundo Itepa. O novel Instituto, sediado em Passo Fundo,
destinava-se ao ensino superior de Teologia, sendo orientado pelo objetivo
da formão teológico-pastoral de presbíteros, religiosos/as e agentes de
pastoral leigos/as para atuarem no contexto eclesial do Norte riograndense
1
.
A criação desta casa de formação teológica abriu uma aurora de
esperança às Igrejas Particulares do Norte do Rio Grande do Sul.
v. 39, n. 133, Passo Fundo,
p. 96-100, Jul./Dez./2022,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v39i133.138
* Mestre em Educação, professora
aposentada da Universidade de Passo Fundo
(UPF), onde foi diretora da Faculdade de
Educação - Faed e professora da Itepa
Faculdades, na qual foi vice-diretora.
E-mail: selinamaria2017@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2044-4894
Recebido em 02/10/2022
Aprovado em 09/11/2022
1 ITEPA, Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo, p.5-9.
97
Em 1996, a Diocese de Chapecó integrou a caminhada desta Instituição. Em
dezembro de 2004 foi criada uma entidade jurídica própria: a Faculdade de Teologia e
Ciências Humanas Itepa Faculdades. Neste ano de 2022, a Itepa Faculdades celebra 40
anos de história. Biblicamente, 40 anos lembram a trajetória do êxodo, tempo de gestação
de um projeto novo de vida para os hebreus que sofriam as amarguras da escravidão.
Aniversários são tempos e ocasiões plenos de graça para, em comunhão, avaliar e celebrar
o caminho percorrido e, irmanados em um projeto comum, traçar perspectivas em vista
do que nos interpelam o contexto atual e o Reino de Deus.
FAZER TEOLOGIA INSERIND O-SE NAS TR AMAS DA HISTÓRIA
Atenta às múltiplas necessidades pastorais, desde a sua origem, a Itepa Faculdades
teve por linha mestra a realização de um fazer teológico inserido nas tramas da história,
com o objetivo de refletir sobre a realidade da evangelização correlacionada com a prática
socioeclesial. Neste sentido, tem-se presente a necessidade de lembrar que “uma das
motivações para a criação do Instituto de Teologia e Pastoral - Itepa foi o desafio de pensar
a relação teologia-pastoral de forma dialética”
2
.
Assim, ao localizar no calendário a data do nascimento dessa Instituição, consagrada
como “Berço de Esperança”, o leitor defronta-se, em primeiro lugar, com o objetivo
fundante dessa casa de formação teológica: “atuar no processo de formação de presbíteros,
religiosos e leigos para o serviço evangelizador junto ao povo de Deus da região norte
riograndense”
3
. No movimento processual que levou à criação deste Instituto sobressai a
ação de agentes sócio-eclesiais que, em busca de novos espaços de formação, contribuíram
para o lançamento da pedra fundamental deste Instituto: o clamor dos seminaristas, da
vida religiosa e dos leigos. Estas vozes somavam-se aos novos apelos pautados pela Igreja a
partir do Concílio Vaticano II e pelas Conferências do Episcopado latino-americano,
Medellín (1968) e Puebla (1979).
PE. ELLI BENINCÁ E A FUNDAÇÃO DA ITEPA FACULDADES
No peregrinar pela história em busca das raízes da Itepa Faculdades desvelou-se o
legado teológico-pastoral do Pe. Elli Benincá, agente principal da sistematização de um
arcabouço teórico-metodológico coerente com um fazer teológico comprometido com a
causa de Jesus, o Reino de Deus, construído participativamente. Atento aos sinais do tempo,
aos movimentos de renovação da Igreja Católica e das Igrejas Particulares do Norte
riograndense, o Pe. Elli comungava com o conjunto dos agentes (presbíteros, seminaristas,
religiosos/as) que arquitetavam o novo Instituto como espaço da “formação presbiteral e
da reflexão teológica pautados no evento conciliar. Com destaque para a nova concepção
da Igreja – Povo de Deus e o novo foco da evangelização: o Reino de Deus”
4
.
Visando a manutenção da história desta Instituição, que vem sendo construída40
anos, bem como a atualização na consciência coletiva da perspectiva apontada pelos
princípios e objetivos consagrados desde a fundação da Itepa Faculdades e a intenção de
iniciar a construção de um memorial da vida e da ação pastoral do Pe. Elli Benincá, a
Direção e Professores da Itepa Faculdades disponibilizaram-se para organizar uma obra
2 Rene ZANANDREA; Rodinei BALBINOT, Prática pastoral e fazer teológico na perspectiva histórico-
evangelizadora, p.33.
3 Ata de criação do Itepa e nomeação do primeiro diretor. In: Anais 1983-1986, p.25.
4 Rene ZANANDREA; Rodinei BALBINOT, Prática pastoral e fazer teológico na perspectiva histórico-
evangelizadora, p.33.
DAL MORO, Selina Maria
Itepa Faculdades: 40 anos refletindo sobre EvangELLIzação: A Itepa Faculdades e o protagonismo do Pe. Elli Benincá
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 97-100, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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que captasse, com a maior amplitude possível, os feitos desta Instituição e a trajetória
teológico-pedagógica do Pe. Elli, intitulando-a Itepa Faculdades: 40 anos reetindo sobre
EvangEllização, editada pela EditoraUPF e posto à disposição do público em 29 de agosto
de 2022. No processo de investigação, de escuta, de registro e sistematização dos achados
que compõem o legado de Pe. Elli, consolidou-se no coração e na consciência dos agentes da
investigação o sentido e a importância original de sua produção - ação teológico-pastoral, o
que permite categorizá-lo como um “Clássico Regional”
5
. Tendo Jesus Cristo como Mestre,
Pastor e Guia de sua vida e missão, com ele foi se configurando uma espiritualidade que
tinha por horizonte o Reino de Deus pelo viés da libertação e da promoção humana. Ou,
como diz José Antonio Pagola, “o Reino de Deus foi, sem dúvida, o núcleo central de sua
pregação, sua convicção mais profunda, a paixão que anima toda a sua atividade
6
.
OS HORIZONTES INDICADOS PELO MESTRE JESUS
Que traços do ensinamento de Jesus o Pe. Elli incorporou em sua vida e missão?
Jesus inseriu-se no meio do povo e assumiu o projeto do Reino de Deus como sua grande
causa (Mc 1,14-15, Mt 4,17; 6,33; Lc 4,14-21). Jesus não andou pela Galileia fazendo
discursos teológicos. Ele aproximou-se dos pobres e, a partir de seus contextos e de suas
necessidades, foi ajudando-os a perceberem a presença amorosa de Deus. Não partia de
Deus, mas da vida das pessoas. Jesus, também, não tinha por base o legalismo judaico. O
Reino de Deus, na sua compreensão, era de vida digna, com vitalidade para todos (Jo
10,10). No Reino, Jesus encontrou o ponto de referência do seu agir, rezar, conviver,
cuidar da vida e do ensinar com prazer, alegria e fé. Nele encontrava a unidade, o fascínio,
a força apaixonante de colocar a sua vida a serviço e propor este projeto para a
humanidade encontrar o caminho da realização.
Jesus organizou o grupo dos seus discípulos com posturas diversas. Fez o processo
formativo tendo por referência o Reino de Deus. Desde o primeiro momento do chamado,
Jesus envolveu os discípulos a permanecerem com Ele (Mc 3,14), a se empenharem na
realização da vontade do Pai (Mt 6,10) e no serviço aos irmãos e irmãs (Jo 13,17). A
participação efetiva no anúncio do Reino de Deus fez parte do processo formador do
Nazareno, pois a missão era a razão de ser da vida comunitária (Mc 3,14-15; Lc 9,1-2; 10,1).
Os discípulos foram acolhidos como amigos (Jo 15,15), enviados dois a dois para anunciar a
chegada do Reino de Deus (Mt 10,7; Lc 10,1.9). Jesus corrigia-os quando erravam,
querendo ser os primeiros (Mc 9,33-35; 10,14-15); desafiava-os quando eram lentos (Mc
4,13; 8,14-21); pedia-lhes que observassem os contextos (Mc 8,27-29; Jo 4,35; Mt 16,1-3);
confrontava-os com as necessidades do povo (Jo 6,5, Mc 6,37); tinha momentos a sós com
eles para instruí-los (Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3); era severo com a hipocrisia (Lc
11,37-53); interrogava-os mais do que dar respostas prontas (Mc 8,17-21); despertava a
atenção deles para as coisas da vida, ensinando através de parábolas (Lc 8,4-8).
O ensino realizado por Jesus baseava-se no diálogo com todos e o cuidado com os
últimos: conversou com a mulher Samaritana (Jo 4,1-42), com a mulher pega em adultério
(Jo 8,1-11), com a mulher que sofria de hemorragia (Mc 5,25-34), com um grupo de leprosos
de várias confissões religiosas (Lc 17,11-19), com endemoninhados pelo império romano (Mc
5,1-20) e até se admirou com a fé de um centurião romano (Lc 7,1-10). Segundo Marcos, Ele
próprio se definiu como aquele que “não veio para ser servido, mas paraservire dar a sua
vida em resgate para muitos(Mc 10,45). A grande preocupação era ensinar o caminho da
vida com dignidade, cuidar dos doentes e libertar os alienados (endemoninhados).
5 Conceituação cunhada pelo Professor Doutor Claudio Almir Dalbosco – UPF.
6 José Antonio PAGOLA. Jesus: aproximação histórica, p.115.
DAL MORO, Selina Maria
Itepa Faculdades: 40 anos refletindo sobre EvangELLIzação: A Itepa Faculdades e o protagonismo do Pe. Elli Benincá
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 97-100, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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Não nos consta a existência de algum outro homem antes de Cristo que tenha
tanto amor, atenção e respeito para com os pobres, e se tenha interessado,
incomodado, sacrificado para socorrer às necessidades, também dos indivíduos
particulares, quanto Jesus. Nem sequer Sócrates, que gostava de se misturar ao
povo nas praças e lugares públicos, mas que atraía sobretudo os aristocratas e
filhos de aristocratas, os únicos com condições de dialogar com ele. Jesus, pelo
contrário, era sobretudo procurado e seguido pelos pobres e desamparados
7
.
CAMINHANDO NAS TRILHAS DE JESUS DE NAZARÉ
Desde os anos dedicados à sua formação e na sua missão presbiteral, o Pe. Elli foi ao
encalço do horizonte revelado por Jesus. Ou seja, tanto em sua missão presbiteral, quanto
na sua lide educacional nos dois maiores espaços de sua atuação, na Itepa Faculdades e na
Universidade de Passo Fundo, o “menino” nascido nas encostas de Severiano de Almeida/
RS revelou-se fiel discípulo do filho da pequena Nazaré. Inspirando-se na prática de Jesus,
reunia seus discípulos para o estudo, para a reflexão e para a oração. Como o bom pastor,
sempre caminhou junto as suas ovelhas, seja de que cor fosse sua “lã. Junto a ele e sempre
num processo formativo reuniam-se em diálogo brancos, negros, índios, caboclos, jovens,
adultos e idosos. Para todos dirigia sua mensagem de paz e de estímulo.
referido anteriormente com um olhar atento ao passado, coletivamente
construído em conjunto com o Pe. Elli no seguimento a Jesus Cristo e com o objetivo de
garantir a continuidade e o avanço do pensamento teológico-pastoral desse “mestre de
todos”, a Itepa Faculdades lançou em 29 de agosto de 2022 a obra acima citada e
estruturada em três partes.
FAZENDO MEMÓRIA: ITEPA FACULDADES: 40 ANOS REFLETINDO SOBRE
EVANGELLIZAÇÃO
A primeira parte trata da vida e dos traços do pensamento do Pe. Elli Benincá. Estão
inseridos nesta parte oito textos que têm como foco a vida e o perfil teológico-pastoral do
Pe. Elli e seu protagonismo na criação da Itepa Faculdades, como resultado de minucioso
estudo, de acurada consciência das necessidades culturais, religiosas e educacionais da
região norte do Rio Grande do Sul (RS). Ele foi escolhido como seu primeiro diretor
graças à perspicácia da Igreja em encontrar nele as capacidades indispensáveis do perfil
adequado para dirigir a contento o Instituto recém-criado, cujos desafios e inquietações
eram enormes.
A segunda parte resgata e reflete sobre a práxis de ensino do Pe. Elli Benincá na
Itepa Faculdades, na ação pastoral e na Universidade de Passo Fundo - UPF. Os autores
dos oito textos que compõem esta parte buscaram aproximar-se, de maneira didática e
reflexiva, do legado pedagógico-metodológico que o Pe. Elli foi construindo e
sistematizando em parceria com coletivos que, com ele, buscavam um itinerário educativo
promotor da formação humana integral. Categorias históricas do dicionário educacional,
tais como observação, registro, relatório, planejamento, método, participação, diálogo,
escuta, pesquisa, espiritualidade, articulados pelo objetivo de promover a formação e a
libertação humana imprimiram novos contornos à prática pedagógica e passaram a dar
forma à Metodologia-Histórico Evangelizadora - MHE, que hoje sustenta e a
orientação à práxis pedagógica da Itepa Faculdades.
7 Pedro DALLE NOGARE. Humanismo e anti-humanismo, p.45.
DAL MORO, Selina Maria
Itepa Faculdades: 40 anos refletindo sobre EvangELLIzação: A Itepa Faculdades e o protagonismo do Pe. Elli Benincá
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 97-100, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.
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A terceira parte coroa a obra com uma palavra-depoimento de pessoas que
conviveram e trabalharam junto ao Pe. Elli Benincá. São ex-alunos, amigos, colegas,
familiares que, ao longo da sua frutífera jornada com ele partilharam a vida, as opções e o
trabalho em favor do Reino de Deus.
Testemunhando respeito à memória do Pe. Elli Benincá, às lembranças e
aprendizagens realizadas pelos seus companheiros de jornada formativa e teológica,
coloca-se a obra produzida pela Itepa Faculdades à disposição do amigo leitor/a com votos
de que os reflexos que emanam de sua memória iluminem a caminhada espiritual de todos.
REFERÊNCIAS BIBLI OGRÁFICAS
DALLE NOGARE, Pedro. Humanismo e anti-humanismo. 10.ed., Petrópolis: Vozes, 1985.
ITEPA. Ata de criação do Itepa e nomeação do primeiro diretor. In: Anais 1983-1986 Instituto de
Teologia e Pastoral de Passo Fundo Itepa. 1986.
ITEPA. Constituições do Instituto de Teologia e Pastoral de Passo Fundo.
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 7.ed., Petrópolis: Vozes, 2014.
ZANANDREA, Rene; BALBINOT, Rodinei. Prática pastoral e fazer teológico na perspectiva
histórico-evangelizadora. In: MEZADRI, Neri; ZANADREA, Rene (orgs) e alli. MHE Metodologia
da ação evangelizadora: uma experiência no fazer teológico-pastoral. Passo Fundo: Berthier Gráfica
Editora, 2008.
INFORMAÇÕES TÉCNICAS
Título: Itepa Faculdades: 40 anos refletindo sobre EvangELLização
Organizadores: Ivanir Antonio Rodighero e Selina Maria Dal Moro
Ano: 2022
Editora: EDIUPF
Local: Passo Fundo
ISBN: 978-65-997253-2-6
Páginas: 401 páginas
DAL MORO, Selina Maria
Itepa Faculdades: 40 anos refletindo sobre EvangELLIzação: A Itepa Faculdades e o protagonismo do Pe. Elli Benincá
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.39, n.133, p. 97-100, Jul./Dez./2022. ISSN On-line: 2763-5201.