EUCARISTIA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Considerações de um pastor
Dr. Dom Hernaldo Pinto Farias*
DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v37i129.8
Recebido: 10 de dezembro de 2018 | Aprovado: 02 de abril de 2019
Resumo:
O presente artigo quer aprofundar as celebrações litúrgicas, mais
precisamente as celebrações eucarísticas, e fazer algumas provocações a partir
de práticas realizadas neste tempo de pandemia, nem sempre condizentes
com aquilo que a Igreja orienta. Ao mesmo tempo quer lançar luzes sobre o
contexto que estamos vivendo a partir do Sacramento da Eucaristia.
Palavras-chave:
Eucaristia. Missa. Liturgia das Horas. Igreja. Oportunidade.
Introdução
A pandemia da Covid-19 pegou todo o mundo de surpresa,
atingindo não apenas os sistemas de saúde municipais, a
economia das nações, mas também a vida da Igreja e, em
particular, sua liturgia. Não tem sido fácil compreender e
acolher toda essa realidade. E mais: para nós, não é possível
acolhê-la sem a profunda vivência da fé no Cristo morto e
ressuscitado. Durante esses meses que já se passaram, para
muitos presbíteros alimentar a fé pessoal e também a fé da
porção do rebanho a ele confiado e, por consequência, orientar
a vida celebrativa de ambos tem sido um grande desafio.
O presente artigo foi solicitado pelo Superior Geral da
Congregação do Santíssimo Sacramento, Padre Eugênio
Barbosa Martins, SSS, para que os especialistas das mais diversas
* Bispo da Diocese de Bonfim (BA). Possui Mestrado em Teologia Dogmática pela
PUC/SP; Mestrado e Doutorado em Sagrada Liturgia pelo Pontifício Ateneu
Santo Anselmo de Roma/IT. Foi assessor da Comissão Episcopal para a Liturgia
da CNBB e Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard. Email:
hepifari@gmail.com
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áreas do saber pudessem lançar luzes sobre essa realidade a partir
da Eucaristia, como expressão do carisma eymardiano
1
, pois,
segundo a Regra de Vida da Congregação, Procuramos
compreender toda a realidade humana à luz da Eucaristia, ápice
e fonte da Igreja (nº 34).
Impedidos de celebrar principalmente a Eucaristia com a
presença indispensável dos fiéis discussão que deve ser feita
em outro momento , muitos clérigos têm recorrido aos atuais
meios de comunicação com transmissões de celebrações
on-line
,
além daquelas já transmitidas pelas redes de televisão. A princípio,
não isso é ruim, pois a Igreja, desde o Concílio Vaticano II,
tem-se preocupado com a comunicação social, chegando a
publicar diretórios para tal fim, aprovados em diversas
Conferências Episcopais
2
. A questão é que, além de, na maioria das
vezes, tais transmissões não primarem pela discrição e decoro,
perfeição e eficácia (SC 20; IM 14), por causa das improvisações e
amadorismos, elas têm veiculado teologias e formas litúrgicas
personalistas, revelando vícios que antes eram mantidos no recôndito
de suas paróquias e, o mais preocupante, escancarando ao mundo a
baixa preparação teológica e litúrgica de muitos. Num mundo
globalizado, a Igreja globalizou também suas fraquezas litúrgicas.
Limitamo-nos a citar apenas algumas dessas transmissões,
para não nos alongarmos e para adentrarmos no conteúdo que
nos propusemos partilhar.
1 Eucaristia manipulada
No domingo de Ramos da Paixão do Senhor, um presbítero,
após um breve canto, começou a Eucaristia persignando-se e
dizendo: Em nome do Pai, do Filho, da Mãe e do Espírito
Santo. Essa fórmula ritual, além de ser bizarra pela falta da
1 São Pedro Julião Eymard, fundador da Congregação do Santíssimo Sacramento.
2 Cf. CNBB.
Diretório de comunicação da Igreja no Brasil
(Documentos da CNBB
99). Brasília: Ed. CNBB, 2014.
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necessária conjunção e o acréscimo de uma quarta pessoa (?) da
Santíssima Trindade, nos leva a questionar o antiquíssimo axioma
lex orandi lex credendi
(Próspero de Aquitânia após 455), pois
Deus uno e trino, fonte e princípio de toda a fé professada pela
Igreja em sua liturgia, que é a
theologia prima
, deixa de ser
experimentado pela comunidade celebrativa como obra de
salvação querida pelo Pai, operada por Cristo e continuada na
liturgia, pela condução do Espírito Santo (SC 5-6). Transmitir
conteúdos contrários à liturgia da Igreja é levar as pessoas a uma
errônea e distorcida experiência da fé, submetendo-a a conceitos
pessoais daqueles que deveriam ser guardiões e mestres da mesma
(SC 14), pois a norma do orar determina a norma do crer. Fé que é
eclesial e não subjetivista, e o presbítero presidente da celebração
deve estar lembrado de que ele é servidor da sagrada Liturgia e de
que não lhe é permitido, por própria conta, acrescentar, tirar ou
mesmo mudar qualquer coisa na celebração da Missa (IGMR 24).
No mesmo domingo de Ramos, um bispo, além de outros
presbíteros que também utilizaram a grande ideia, fixou nos
bancos da igreja fotos impressas de fiéis de sua diocese. Para
completar essa estranha cena, o prelado entrou com um
presbítero assistente, nave adentro, munido de báculo, como
pastor de seu
rebanho de papel
. A participação ativa, consciente e
frutuosa dos fiéis por sua presença atuante na liturgia não é uma
brincadeira de papel, como canta certa música brasileira sobre
Papai Noel. Ela é a expressão da força do Espírito que age na
ritualidade da Igreja, precisamente, através de seus ritos e preces
(SC 48), o que também nos levaria a questionar o conceito e a
orientação de participação espiritual, quando se fala de liturgia
hoje. Além do mais, o báculo pastoral é uma das insígnias
daquele que fora constituído pastor de seu rebanho reunido em
torno ao presbitério e não, fictício. É o sinal de seu múnus
pastoral, a exemplo do Cristo, Bom Pastor e, por isso mesmo,
deve ser usado, sobretudo, em seu próprio território
3
.
3 Cf. CNBB,
Cerimonial dos Bispos (Cerimonial da Igreja)
, n.59.
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Durante a Missa Vespertina da Ceia do Senhor, as
criatividades selvagens foram até maiores: o lava-pés, já
orientado pela Santa Sé para que fosse omitido (cf. Decreto
Em
tempo de Covid-19 II
), foi feito por presbíteros que lavaram
desenhos de pés, outro que lavou os pés das imagens dos santos
de sua igreja, ou outro ainda, que lavou os pés de bonecos,
somente para citar alguns exemplos. Ora, o chamado lava-pés,
que já é um rito opcional nesta celebração de abertura do
grande Tríduo Pascal para nossa participação nos mistérios do
Senhor, não é uma mera encenação. Por ele, ritualizamos
evocando a força teológica do serviço maior prestado por Cristo
ao entregar sua vida ao mundo, porque muito amou. Teologia
joanina muito cara à Igreja. Este gesto ritual é, portanto, a
expressão de um amor incondicional que, celebrado na e pela
Eucaristia da Igreja, deve ser imitado por todos aqueles que
professam a fé em Jesus Cristo, a tal ponto de tornar-se a
marca-opção de vida de seus discípulos e discípulas (cf. Jo
13,14.35).
Padres adotaram a prática de, após
sua
Missa, distribuir a
comunhão eucarística a fiéis que fazem filas à porta das igrejas,
mesmo que, segundo os pastores, estejam tomando os
cuidados higiênicos e sanitários exigidos pelas autoridades.
Houve também a prática do
Drive-through
ou, popularmente,
drive-thru através do carro
. Este é um método usado no
mundo do consumismo capitalista para vender produtos a
clientes que, confortavelmente, os adquirem sem sair de seus
veículos. A comunhão eucarística tem sido tratada quase como
um verdadeiro
fast-food
(comida rápida), fabricada e preparada
para não fazer o cliente esperar, e para recebê-la no conforto
de seus carros por causa da frenética correria da vida, mas
agora também por causa do cuidado com a possibilidade de
contágio do novo coronavírus. Aqui, não só a ritualidade da
Igreja é vilipendiada, mas, sobretudo, a Eucaristia é destituída
de sua força de Ceia do Senhor, como alimento da vida eterna.
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Não questionamos o fato da distribuição da sagrada
comunhão em si, porque a Igreja normatiza tal prática
4
, mas
a forma e o objetivo com que está sendo distribuída: como se
comungar fosse o antídoto para a proteção viral ou porque o
que importa ao fiel é somente a comunhão eucarística, sem
qualquer ritualidade ou disposição interior de participação
no Mistério do Senhor em sua íntima relação com a
Celebração Eucarística (Cf. SCCEFM 13-15 e 25). E o clero
se vê na obrigação de atender aos distorcidos desejos de
grupos ou indivíduos.
E o que dizer de quando a Eucaristia é trasladada em um
carro (quase alegórico, próprio dos carnavais), como se fosse um
objeto para afastar o vírus das portas daqueles que a ela se
voltam, devotamente? Sem falar nos desfiles de paramentos
medievais de gostos duvidosos. A exposição da Eucaristia foi
finalmente regulada pelo Ritual promulgado em 1973 e exige
cuidados por parte dos pastores que, às vezes, a fazem tão
somente para dar a bênção, o que tem acontecido com
frequência nesses dias. Não é demasiado recordar que, desde
1967, com a Instrução
Eucharisticum Mysterium
, nº 66, a Igreja
proibiu a exposição da Santíssima Eucaristia unicamente para
dar a bênção (SCCEFM 89). Trata-se de sabedoria e prudência
da Igreja para não facilitar as manipulações e, quem sabe,
magias no trato com a Eucaristia.
E assim, tantas outras práticas nos têm preocupado e
provocado muitas reflexões e questionamentos. Fiquemos,
porém, apenas com as citadas acima.
4 Cf. SAGRADA CONGRAGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO,
A sagrada
comunhão e o culto do mistério eucarístico fora da missa
, n.16. De agora em diante
citado como SCCEFM.
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2 Perdemos oportunidade única?
Desde o início desta pandemia, aqui no Brasil com o
primeiro caso divulgado no dia 26 de fevereiro do corrente ano,
pesquisadores de várias áreas do saber humano e também
teólogos, entre eles liturgistas, têm feito reflexões com o
objetivo de iluminar essa realidade, que já se apresentava de
forma quase anacrônica. Entre as várias reflexões houve uma
que nos chamou a atenção: este é o momento propício para
repensarmos e revalorizarmos a liturgia da Igreja doméstica.
Não faltaram sugestões como a recuperação da prática da
bênção dos alimentos, perdida nos últimos tempos; a oração
antes de dormir, com a importante bênção dos pais a seus filhos;
a leitura orante da Bíblia, como forma de deixar-se orientar pela
Palavra de Deus, entre outras.
Uma forma orante de alimentar a fé nos parece mais
apropriada para esta reflexão: a prática da Liturgia das Horas
(LH) na Igreja doméstica e na vida dos presbíteros ou religiosos.
A Igreja tem sua forma de oração, prioritariamente
comunitária
5
, que é a Liturgia das Horas, abandonada por
muitos, sobretudo por leigos e leigas que, apesar da recuperação
aos mesmos pelo Concílio (SC 100), não foram iniciados nos
mistérios e, por isso, buscam às apalpadelas se manterem de pé
às custas de práticas devocionistas. Será que não perdemos a
oportunidade dessa recuperação na vida da Igreja, nestes tempos
de pandemia? Em vez de transmitir práticas litúrgicas duvidosas,
no intuito de manter a vida orante dos fiéis, ou de manipular a
Eucaristia de diversas formas, como se fosse a única forma
celebrativa da Igreja, apesar de ser a mais sublime, não seria o
caso de incentivarmos os leigos a que alimentem sua fé através
da oração da Liturgia das Horas? Os próprios presbíteros, não
5 Cf. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, In.
As introduções gerais dos livros
litúrgicos
, São Paulo: Paulus, 2003, n.9, p.288. De agora em diante citado como
IGLH.
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perdemos nós a oportunidade de reavivar nosso compromisso
sacramental de rezar as horas do Senhor? Não seria também
uma forma de solidariedade do clero com os milhares de leigos
e leigas que, raramente, podem participar de uma Celebração
Eucarística (como em tantos lugares do Brasil, onde
comunidades passam um ou mais meses sem este Sacramento
central da vida da Igreja), na certeza eclesial de que também nos
unimos aos mistérios do Cristo quando celebramos a LH,
meditando e cantando a Palavra de Deus?
Quem sabe o excesso de zelo pastoral nos tenha impedido de
experimentar a simplicidade de nossa vida celebrativa, como se
a Liturgia das Horas fosse apenas uma oração e, como fuga,
fomos buscar o espetáculo eucarístico, quase transformando a
Eucaristia em simples objeto devocional.
3 Liturgia das Horas forma privilegiada de participação
no mistério eucarístico
Ao rezar a LH, a Igreja santifica o dia e toda a atividade
humana (IGLH 11), pois esta oração é fonte de piedade e da
multiforme graça divina e [serve] também de alimento à oração
pessoal (IGLH 19). Por isso mesmo, a LH é cume e fonte da
atividade pastoral (IGLH 18), recomendada pela Igreja para
que os pastores, por meio dela, encontrem [não só] uma fonte
de piedade e alimento de sua oração pessoal, mas [também]
nutram e incentivem, através de intensa contemplação, sua
atividade pastoral e missionária para proveito de toda a Igreja de
Deus (IGLH 28).
Santificar a hora, o dia, as atividades, significa que pela Liturgia
das Horas a Igreja revela sua genuína natureza de participante dos
mistérios de Cristo pela oração (Cf. IGLH 22) a cada hora do dia,
durante a semana e em cada tempo do ano litúrgico.
Aquele que faz uso da LH, portanto, experimenta os
mistérios de Cristo a cada hora, pascalizando, assim, sua vida e
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todas suas atividades. Tudo é lido, interpretado e vivido a partir
da força da Páscoa de Cristo, que revitaliza os membros de seu
Corpo, a Igreja. Das trevas à luz, da noite ao dia, da morte à
vida. Noite e dia são transformados em experiência pascal
cotidiana porque o Cristo mesmo, presente na ação orante
salmódica da Igreja (SC 7), canta ao Pai seus mistérios (Cf.
IGLH 13), tornando-a participante dos mesmos.
Limitando-nos apenas às horas do dia, tomando como
referência a primeira semana, com as Vésperas, canta-se o
mistério da morte do Cristo que salmodia a tentativa de
domínio das trevas sobre o mundo, sobre ele. Este canto,
porém, é pleno de confiança na bondade, misericórdia e ação de
um Deus que não abandonou seu Filho na região dos mortos, e
a morte não teve sua vitória. E Cristo canta:
O Senhor é minha
luz e salvação; de quem eu terei medo? O Senhor é a proteção de
minha vida; perante quem eu temerei?
(Sl 26 quarta-feira). É
por isso mesmo que a Esposa glorifica aquele que é sua
Cabeça..., o princípio, o Primogênito entre os mortos (Cl
1,18 quarta-feira) e suplica a Deus pelos irmãos e irmãs
falecidos, para quem espera a vida eterna. No novo dia que
surge, com as Laudes, a esperança da vitória do Cristo sobre o
pecado, as trevas e sobre a morte se faz realidade, quando se
canta a ressurreição: Vós sois grande, Senhor, para sempre...
Porque vós castigais e salvais, fazeis descer aos abismos da terra
e de lá nos trazeis novamente (Ct. Tb 13,2 terça-feira). Nas
Horas Médias, proclamando os mistérios de seus sofrimentos e
crucifixão, o justo lamenta o abandono e, confiante em Deus,
canta: Até quando, ó Senhor, me esquecereis? Até quando
escondereis vossa face? Até quando estará triste minha alma? e o
coração angustiado cada dia? Até quando o inimigo se
erguerá? (Sl 12,2-3 terça-feira). Sem citar o Ofício dos fiéis
defuntos, com o qual a Igreja canta o mistério da morte de
Cristo na morte dos irmãos e irmãs, reafirma que não é a
tristeza e o choro que devem prevalecer, mas a esperança
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naquele que é o vencedor da morte, pois ele há de conduzir a
sua companhia todos os que morreram na fé, em seu Filho Jesus
Cristo.
Ora, nestes angustiantes dias de pandemia, quando a dor e a
morte buscam seu domínio, quando o desespero parece querer
ser a voz mais forte, quando o mundo não suporta mais as
infindáveis trevas, ressoam os salmos da Igreja que canta com
seu Senhor: Guardei minha fé, mesmo dizendo: É demais o
sofrimento em minha vida! Confiei, quando dizia na aflição:
Todo homem é mentiroso! Todo homem (Sl 115,10-11
Comum dos Apóstolos, São Matias). Pela oração, a Igreja
pascaliza a vida, interpretando-a à luz dos mistérios de Cristo
que vive e age nela. Ela, dessa forma, como mãe, se solidariza
com toda a humanidade e, no sofrimento de seus filhos e filhas,
continua a acreditar na força da vida que venceu a morte.
Tudo isso nos remete à Eucaristia, sacramento por
excelência da celebração e participação da Igreja nos mistérios
da Páscoa de Cristo. A Liturgia das Horas, por sua vez, está tão
intimamente ligada à Celebração Eucarística que alarga aos
diferentes momentos do dia o louvor e a ação de graças, a
memória dos mistérios da salvação, as súplicas, o antegozo da
glória celeste, contidos no mistério eucarístico... (IGLH 12).
Por essa unidade com a Eucaristia, torna-se para a Igreja seu
sacrifício vespertino (Sl 140,2), evocando o próprio sacrifício
do Senhor quando, no cenáculo, confiou os santos mistérios a
seus apóstolos e o realizou logo depois, na cruz (Cf. IGLH 39).
Esta é a forma com a qual se pode falar de sacrifício espiritual,
participação espiritual ou sacrifício de louvor: como fruto dos
lábios que glorificam o nome do Senhor (Cf. Hb 13,15; IGLH 15).
Mais ainda: para a Igreja, a própria celebração eucarística
tem na Liturgia das Horas sua melhor preparação, porque esta
suscita e nutre da melhor maneira as disposições necessárias para
uma frutuosa celebração da Eucaristia, quais são a fé, a esperança,
a caridade, a devoção, o espírito de sacrifício (IGLH 12).
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A LH encontra tamanha importância por parte da Igreja
que, por causa dos mistérios do Cristo que são estendidos no
decurso do dia e do tempo, uma das horas pode ser usada como
rito para o culto eucarístico fora da Missa (exposição da
Santíssima Eucaristia), sobretudo uma das horas principais
(Laudes ou Vésperas). Na verdade, por ela os louvores e as
ações de graças tributados a Deus na celebração da Eucaristia
estendem-se às diversas horas do dia e as preces da Igreja se
dirigem a Cristo e por Cristo ao Pai em nome de toda a
humanidade (SCCEFM 96). De fato, pela adoração a Igreja
prolonga a Eucaristia celebrada, contemplando no Pão
Eucaristizado os mistérios daquele que nos deu a salvação.
A Liturgia das Horas é, de fato, uma forma privilegiada de
participação nos mistérios eucarísticos da Igreja e pode ser
incentivada e melhor experimentada por todos, em particular
pelas famílias nesses difíceis tempos de isolamento social que
vive a humanidade.
À guisa de conclusão
É curioso, e quase paradoxal, que a forma de compreender a
realidade humana à luz da Eucaristia aqui proposta seja
justamente, sem ela. Ou melhor, através de outro rito que não o
da Celebração Eucarística. Assim foi feito para, justamente,
preservar a Eucaristia de seu sublime e mais digno lugar e
condição na vida da Igreja. Foi para que não seja feito o que
tem acontecido em vários lugares do mundo, banalizando a
Eucaristia como se fosse possuidora de qualidades mágicas,
através de práticas que desconsideram seu sentido e
desrespeitam toda e qualquer norma do rito litúrgico.
Em vez disso, somos chamados a reafirmar e revalorizar a
liturgia doméstica, cuja vida pode e deve ser alimentada através
da oração dos mistérios de Cristo cantados nos Salmos,
utilizando-se da força e sabedoria das Sagradas Escrituras. Esta é
FARIAS, Hernaldo Pinto.
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uma boa oportunidade para promover cada vez mais na Igreja a
Oração das Horas, pascalizando por ela o cotidiano para ajudar
a ler a realidade à luz da Eucaristia, Páscoa de Cristo Jesus, nosso
Senhor e redentor.
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