Experiências missionárias: caminhos para uma formação presbiteral em chave missionária
DOI: https://doi.org/10.52451/q1fv6d16
Recebido em 05/08/2024
Aprovado em 17/09/2024
Doutor e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC/RS. Especialista em Metodologia Pastoral pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI. Graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral (Itepa) e em História pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Professor da Faculdade de Teologia e Ciências Humanas de Passo Fundo. Email: zaninipastoral@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8771-3799.
A nossa resenha versa sobre o livro “Experiências missionárias: caminhos para uma formação presbiteral em chave missionária”, organizado pelos autores: Dom Esmeraldo Barreto de Farias; Iracy dos Santos Júnior, Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz e José Bernardi, e publicado no ano de 2024 pela editora Edições CNBB.
O texto, como deixa explícito na apresentação, o cardeal Sergio da Rocha, tem especial importância em um tempo de renovada consciência missionária, impulsionada pelo Papa Francisco, nos passos do Concílio Vaticano II e da Conferência de Aparecida (p. 10). Não precisamos mais lembrar a insistência e a convicção provenientes do Papa Francisco para que a Igreja seja decididamente missionária, em saída, hospital de campanha, que coloque no centro a opção pelos pobres. A missionariedade da Igreja é o paradigma eclesiológico do pontificado do Papa Francisco (EG 15).
O presente livro, está organizado em três grandes partes, segue o método ver, iluminar e agir e surge com a motivação de ajudar no discernimento dos passos e prioridades a serem assumidas no processo formativo dos futuros presbíteros. Para os organizadores, esta reflexão nasceu com um objetivo preciso: refletir sobre Experiências missionárias, como forma de abrir caminhos para uma formação presbiteral em chave missionária. Partindo da prática missionária que tem seu núcleo fomentador e impulsionador, o Bispo Dom Esmeraldo deseja discutir questões importantes para a formação dos novos/futuros ministros ordenados em chave missionária. A tese de fundo é o desejo de superar a compreensão de missão como dimensão da formação, a fim de torná-la como fundamento e eixo da formação presbiteral e de todo o processo evangelizador. Isso não por modismo, ou por influência do Papa Francisco, mas porque a missão faz parte da identidade do sujeito como discípulo missionário, a partir da convicção teológica de que a missão é da natureza da Igreja (p. ١٣).
Para dar conta da proposta reflexiva, seguindo o método ver, iluminar e agir, o livro consta com a parte do ver. Na primeira parte, descrevem a história e a metodologia das experiências missionárias para perceber como elas, enraizadas na Palavra e na realidade, apontam lacunas e suscitam questões para um projeto de formação em chave missionária. Esta primeira parte tem como núcleo a experiência de Dom Esmeraldo e de outras pessoas que conviveram e participaram dessas experiências, bem como de material de consulta existentes: textos autorais, jornais impressos, vídeos e gravações. Essa parte é constituída por dois artigos escritos pelos organizadores do livro Dom Esmeraldo e os Freis Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, José Bernardi e Iracy dos Santos Júnior.
Na segunda parte, iluminar – considerando as problemáticas que as “experiências missionárias” suscitaram, o livro traz um conjunto de reflexões de temas transversais que contribuem, tanto para reorientar a compreensão de missão, reconhecendo que ela é da ordem do ser e do fazer, quanto para pensar um projeto de formação presbiteral a partir do eixo missionário. A Professora Rita de Cácia Ló, da Estef, aborda a compreensão bíblica da missão e, com o aporte do Pe. Antônio Niemiec, da Pontifícia União Missionária, a compressão teológica e paradigmática da missão. Nesta mesma sessão, o Pe. Rogério L. Zanini da Faculdade de Teologia e Ciências Humanas – Itepa Faculdades, desenvolve a temática da relação entre teoria e prática: entre vida intelectual e vida pastoral no processo formativo, e com o apoio do Pe. Gabriel dos Santos Filhos, da arquidiocese de Salvador, a perspectiva recai sobre como esta relação entre teoria e prática são expressadas e relevantes nas experiências dos missionários. O término, desta segunda parte, provém com as contribuições do Cardeal Dom Leonardo Steiner, que reflete a identidade missionária do presbítero como abertura ao Outro e à Casa Comum.
Na terceira parte – se encontra o agir – tecer orientações práticas para um projeto formativo em chave missionária. Abre as reflexões o Pe. Jaldemir Vitório, professor da Faje que se fixa em fornecer elementos pedagógicos (pedagogia mistagógica) que apontam as convicções pessoais e eclesiais que devem ser aprofundadas e assumidas na caminhada formativa e apresenta o processo de gestação e maturação de uma vocação-missionária. Na sequência, Dom Maurício da Silva Jardim, Bispo de Rondonópolis-Guiratinga (MT) e presidente da Comissão Episcopal para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da CNBB, dá a conhecer as ferramentas institucionais já existentes que podem ajudar na formação presbiteral em chave missionária. Em sintonia com a eclesiologia do Papa Francisco, visando aprofundar a compreensão da sinodalidade como oportunidade para uma conversão pessoal e pastoral e como exigência do processo formativo presbiteral, encontramos a reflexão do professor Pe. Francisco Aquino Júnior, da Universidade Católica de Pernambuco. Fecha este capítulo, Dom Zenildo Lima da Silva, Bispo auxiliar de Manaus, apontando aspectos indispensáveis para um projeto de formação missionário. Enquanto apreciação e considerações fizemos alguns destaques gerais desta obra oportuna e necessária dentro do contexto atual da formação presbiteral.
A primeira, que se refere à índole do nascimento destas reflexões: o chão das experiências de carne e pés de tantas pessoas que com coragem e valentia colocam sua mochila nas costas buscam ser sinal de Deus junto às pessoas. Este é um dos méritos desta obra, partir da preocupação em refletir fatos, acontecimentos, as realidades das pessoas e aqui toda ênfase na perspectiva da Igreja em saída para as periferias, como tem insistido e testemunhado o Papa Francisco. Isso precisa ser realçado, uma vez que os candidatos devem estar abertos aos sinais de Deus, no contato com as realidades diversas e plurais. Isso pressupõe abertura do coração à novidade do Espírito e à coragem de se deixarem provocar, colocando-se à disposição do projeto e da vontade do Senhor e não das suas vontades pessoais e autorreferencialidades. E aqui o desafio enorme dos seminaristas/vocacionados fazerem de suas vidas – uma sinfonia evangélica a serviço da vida dos pobres e dos excluídos, em primeiro lugar. Neste sentido, a reflexão levanta questões importantes e incômodas para quem está no processo da formação vocacional ou exerce o ministério presbiteral.
Como o seminarista pode dialogar com a realidade dos pobres, deixando-se transformar pelo contato com eles? Como podem ajudar os pobres, por meio da escuta e do engajamento, a descobrir sua dignidade e a dar passos em vista de um caminho que atenue as desigualdades sociais? O que fazer para que os seminaristas não tomem distância dos pobres e se sintam como privilegiados porque “receberam o chamado de Deus” e moram em um seminário que lhe supre todas as necessidades? O que o Espírito lhes fala através dos pobres e do clamor que vem das periferias geográficas, sociais, existenciais e eclesiais (p. 250-251).
Na medida em que estas questões são respondidas de forma evangélica, em sua naturalidade, ou seja, fruto desta experiência com os pobres, surge a novidade eclesial – uma Igreja que se parece com o seu fundador: Jesus Cristo, o Bom Pastor que fez da vida das pessoas o centro de seu ministério. A missão conduz ao seguimento e o seguimento já é a missão se fazendo e se concretizando no coração do vocacionado. É na experiência de encontro com o Senhor da Messe que o vocacionado se sente enviado para um caminhar juntos como povo de Deus, sem primeiro ou último, maior ou menor, mas como Fratelli Tutti – todos irmãos em Cristo Jesus. É esse caminhar junto como povo de Deus em diálogo e de relações horizontais se torna o antídoto para combater o clericalismo – chamado de câncer eclesial – pelo Papa Francisco. O “clericalismo é uma perversão, porque se constitui com base no distanciamento. Quanto penso no clericalismo, me vem ao pensamento também a clericalização do laicato, ou seja, a promoção de uma pequena elite que, ao redor do padre, acaba inclusive por desnaturar a sua missão fundamental: a do fiel leigo” (p. 252-253). E aí a necessidade de uma formação de qualidade iluminada pelo Evangelho e pela vida de Jesus Cristo, que interligue a atividade teórica e a prática pastoral, que faça dos novos presbíteros multiplicadores de uma eclesiologia cujo fundamento teológico é a sinodalidade, superando assim a perversão do clericalismo. Esta é a profecia necessária, que procede inspirada pelos ventos do Concílio Vaticano II, o caminho sinodal desencadeado pelo Papa Francisco que se inscreve nas pegadas do aggiornamento sempre em abertura para os sinais dos tempos (GS 4).
Outra consideração recai sobre a utilização do método ver, iluminar e agir na construção deste livro e sua pertinência na história eclesial, particularmente latino-americana e caribenha. Esta metodologia que lança suas raízes já no alvorecer do Concílio, plenamente assumido em Medellín (1968), mas que começa a perder força devido às críticas em Puebla (1979) ganha pujança neste livro. Em outras palavras, método que foi proibido em Santo Domingo (1993), que volta timidamente em Aparecida (2007); porém, agora com o Papa Francisco é assumido/validado, mas também reformulado por “contemplar-discernir e propor” (Francisco, 2020, p. 153)1. Este método que já sofreu por ostracismos no percurso da história, particularmente como crítica à Teologia da Libertação, ressurge mais uma vez como “sal” e “luz” para temperar e iluminar a concretude do reino de Deus nesta hora tão complexa da história brasileira e da humanidade.
Quando avaliamos o conjunto do livro, mesmo constituído de perspectivas diversas e transversais, o núcleo da questão se fixa na missão. Haja vista que o conceito e a compreensão de missão sempre foi o tendão de aquiles na eclesialidade da Igreja. Quantos processos de colonialismo e de uma evangelização como marcas sectárias, patriarcais, excludentes e autoritárias. Caminho que desconsiderou a encarnação e que o Evangelho – as sementes do Verbo - já se fazem presentes na realidade do povo antes da chegada do missionário. E isso não porque faltou fundamento por parte do Concílio, destacam os organizadores do livro. Ora, a Igreja é “missionária por própria natureza, já que, segundo o desígnio de Deus Pai, origina-se da missão do Filho e da missão do Espírito Santo” (AG, 2). Acrescentam, nesta direção, que a missão deve ser o princípio unificador de todo o processo formativo (Doc. CNBB 110, n. 228, p. 12). Os autores, chamam a atenção que mesmo sendo uma exigência, segundo os documentos da Igreja, “nem sempre a prática formativa tem como eixo a missão” (p. 12). E aí dizem que o objetivo do livro é colaborar com a formação dos novos presbíteros (p. 13).
A este paradigma missionário se liga outra dimensão que tem provocado os autores deste livro: a relação entre teoria e prática. Na medida em que se assume a missão como um estilo de vida, um modo de ser e de viver, alicerçada na Palavra de Deus, se exige uma afinada relação entre
vida intelectual e vida pastoral. Em outros termos, estamos diante do sempre presente desafio de relacionar teoria e prática, fé e vida. Este é um tema relevante, porque surgiu em diversos relatos dos missionários (p. 62). Normalmente, a teoria e a prática são vistas como antagônicas ou concorrentes. Percebemos em muitos estudos sistemáticos uma equivocada convicção de que a dedicação acadêmica afasta da pastoral e das atividades missionárias. No entanto, isso não é algo que se comprova, segundo as diretrizes para a formação presbiteral dos presbíteros da Igreja no Brasil, quando fazem questão de afirmar que em relação ao “aspecto teórico, deve-se insistir sobre a perspectiva pastoral-missionária, eixo unificador do processo formativo e, por isso, de grande relevância para os estudos acadêmicos” (Doc. CNBB 110, n. 228) (p. 62).
O que fica claro de diversas formas e de diferentes ângulos que estamos diante da possibilidade de virar a chave na evangelização. A passagem de uma Igreja que faz missão ou de atividades missionárias para a missão como eixo unificador da evangelização. Porque como lembramos acima, a missão é um estilo de vida e conforma o núcleo do Evangelho. Neste sentido, queremos retomar uma das ideias, que para nós é fundamental, a partir da reflexão do Pe. Niemiec, quando reflete em seu artigo: “a compreensão teológica e paradigmática da missão”. Depois de fundamentar teologicamente a missão como eixo da evangelização, faz questão de abordar os termos ad gentes, inter gentes e congentibus. Quanto aos dois primeiros têm uma história relativamente consolidada. Afirma que enquanto o primeiro termo é utilizado no magistério, o segundo está presente nas reflexões teológicas, mas ainda não no magistério oficial da Igreja. No entanto, percebe com esperança o avanço nesta direção, inclusive, hoje, segundo ele, além da missão inter gentes, fala-se também da missão congentibus. Congentibus quer dizer no mesmo nível que o outro, que não é nem melhor e nem pior. Somos todos da família de Deus, em Jesus de Nazaré. Ora, se na missão ad gentes – caminhamos em direção ao outro, saída de si; na missão inter gentes aprendemos com o outro; na missão congentibus é quando estamos no mesmo nível; dignidade batismal. E a motivação fundamental encontramos em Jesus que veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10) (p. 116).
Do ponto de vista da globalidade do livro, chamaria atenção para um aspecto, ou lacuna quanto à presença das mulheres e do laicato na reflexão. Mesmo considerando a proposta de ser um livro fruto das experiências missionárias, e os protagonistas serem padres ou bispos, não podemos deixar de registrar este aspecto restritivo que limita a visão da reflexão a partir do gênero masculino e dos ministros instituídos/ordenados. O texto contempla apenas a participação de uma mulher que é reflexão da professora Rita de Cácia Ló. Sem entrar no mérito dos motivos, sem culpabilizar os autores, mas registramos este limite como preocupação. Sabemos que é proveniente do Papa Francisco a exigência da incorporação de mulheres nos processos formativos dentro dos
seminários. Por isso, desde o início do seu pontificado, instiga os pastores e os teólogos para “ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104). Que sinais visualizamos nesse caminho? Que passos foram dados para uma maior presença da mulher até o momento na formação seminarística? Não estaria aqui uma luz para superar o câncer do clericalismo e das posturas autoritárias muito em voga nos presbíteros de hoje?
Terminamos esta recensão agradecendo a tarefa ousada dos organizadores e dos escritores, mas também com a convicção que o tema da missão é encantador e produz surpresa no caminho quando realizada no seio do povo de Deus das comunidades. Como nos lembram os organizadores deste livro, ao escreverem o posfácio, quando retomam as palavras de Dom Helder. Missão é partir ... É, sobretudo, abrir-se aos outros como irmãos... Porque, missão é da ordem do ser – e está alicerçada na vida de Jesus de Nazaré. Missão é da ordem da alteridade, é abertura gratuita e generosa ao Outro e aos outros (p. 247).
Referência
FARIAS, Dom Esmeraldo Barreto de et al (Orgs). Experiências missionárias: caminhos para uma formação presbiteral em chave missionária. Brasília: Edições CNBB, 2024.
1 PAPA FRANCISCO. Vamos sonhar juntos. O caminho para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.