Palavra, contexto, texto e testemunho:aproximações ao legado teológico-pastoral de Elli Benincá

Word, context, text and testimony: approaches to Elli Benincá’s theological-pastoral legacy

DOI: https://doi.org/10.52451/b4x84t94

Recebido em 15/06/2024

Aprovado em 19/09/2024

Rogério L. Zanini

Doutor e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS. Especialista em Metodologia Pastoral pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI. Graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral (Itepa) e em História pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Professor da Faculdade de Teologia e Ciências Humanas de Passo Fundo. Email: zaninipastoral@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8771-3799.

Rodinei Balbinot

Doutorando em Educação pela Universidade de Passo Fundo. Mestre em educação pela mesma universidade. Especialista em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia e Pastoral (Itepa). Licenciado em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque – FEBE. Diretor Geral da Rede Santa Paulina.Email: 65287@upf.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7246-0319

Resumo. Este artigo pesquisa o desafio da evangelização a partir de algumas aproximações ao legado teológico-pastoral do padre e educador Elli Benincá, considerando a pertinência da Palavra, do contexto, do texto e do testemunho na práxis cristã. O objetivo central do artigo é justificar a relevância destes elementos prioritários da vida e legado de Benincá para uma evangelização que considera a realidade das pessoas como lugar de manifestação da graça divina (DV 2). Desde a prática cristã, experimentamos o encontro pessoal com Deus feito carne na pessoa de Jesus Cristo, sempre dentro dos contextos sócio-históricos, nos quais testemunhamos a nossa fé na comunidade cristã, através da comunhão, participação, anúncio e serviço. A partir deste objetivo a questão que o artigo busca responder é como pensar a evangelização tendo presente o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo no contexto atual, marcado pela superficialidade, cultura da indiferença e uma prática pastoral desconectada da experiência de vida concreta das pessoas. Por isso, a nossa hipótese é que para recuperar a força do Evangelho, questão central para a vida cristã, faz-se necessário compreender a relação entre Palavra, contexto, texto e testemunho. E, neste sentido, o legado de Benincá se torna como que passagem obrigatória para uma teologia não das sacadas, mas das ruas, das fronteiras, ou das periferias, como pede o Papa Francisco. A partir dos textos e do testemunho, por termos vivenciado algo com o Padre e educador Benincá, propomos-nos refletir sobre estes aspectos que metodologicamente se organizam em quatro passos. Depois das considerações iniciais, buscar-se-á compreender o Padre Elli Benincá e o fazer teológico-pastoral ancorado na Palavra de Deus. Segue-se com a preocupação da Palavra e da escuta ativa, comprometidas com as interpelações de Deus que provêm da escuta como práxis. A seguir, centra-se no fazer teológico-pastoral benincaniano relacionando a escuta, a graça e a práxis. E conclui-se com um quarto aspecto, relacionando o fazer teológico-pastoral com a formação e a participação eclesial.

Palavras-chave: Elli Benincá; Palavra; Contexto; Testemunho; Evangelização.

Abstract: This article investigates the challenge of evangelization based on some approaches to the theological-pastoral legacy of the priest and educator Elli Benincá, considering the relevance of the Word, the context, the text and the testimony in Christian praxis. The central aim of the article is to justify the relevance of these priority elements of Benincá’s life and legacy for an evangelization that considers the reality of people as a place for the manifestation of divine grace (DV 2). From Christian practice, we experience the personal encounter with God made flesh in the person of Jesus Christ, always within the socio-historical contexts in which we testify to out faith in the Christian community, through communion, participation, annunciation and service. Based on this objective, the question that the article aims to answer is how to think about evangelization, bearing in mind the annunciation of the Gospel of Jesus Christ in the current context, which is marked by superficiality, a culture of indifference and a pastoral practice that is disconnected from people’s concrete life experience. Therefore, our hypothesis is that to recover the power of the Gospel, which is central to Christian life, it is necessary to understand the relationship between Word, context, text and testimony. And in this sense, Benincá’s legacy becomes a kind of obligatory passage for a theology not of the balconies, but of the streets, the frontiers, or the peripheries, as Pope Francis calls for. From the texts and the testimony, for having experienced something with the Priest and educator Benincá, we propose to reflect on these aspects, which are methodologically organized into four steps. After the initial considerations, we then attempt to understand Priest Elli Benincá and his theological-pastoral work anchored in the Word of God. It continues with the concern for the Word and active listening, committed to God’s interpellations that come from listening as praxis. It then focuses on the Benincan theological-pastoral approach, associating the listening, the grace and the praxis. It concludes with a fourth aspect, relating theological-pastoral work to ecclesial formation and participation.
Keywords: Elli Benincá; Word; Context; Testimony; Evangelization.

INTRODUÇÃO

“Hoje compreendo que não há Investimento melhor e mais duradouro do que aquele feito no ser humano” (Elli Benincá, 2012)

A fé cristã tem como fundamento o mistério Pascal de Cristo que é atualizado, celebrado e testemunhado em cada realidade histórica. Essa afirmação concentra uma das questões fundamentais de toda a evangelização, a saber, que Deus se revela (DV 2), que experimentamos o encontro com Deus nos contextos sócio-históricos e que, desde esta experiência de encontro pessoal com o mistério encarnado, testemunhamos a nossa fé na comunidade cristã pela comunhão, participação, anúncio e serviço, a exemplo dos discípulos (At 2; 4). Deste modo, a revelação não é algo do passado ou uma promessa para um longínquo futuro, senão uma experiência viva, que concentra o já e o ainda-não, cujo testemunho fundamental foi dado pelo próprio Cristo. Temos, em Jesus Cristo, a plenitude da revelação e, por conta deste dado de fé, suas palavras e ações nos são sempre uma fonte inspiradora. “Em virtude desta Revelação, Deus invisível (cf. Cl 1,15; 1Tm 1,17), no seu imenso amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15, 14-15) e conversa com eles (cf. Br 3,38), para os convidar e admitir a participarem da sua comunhão” (DV 2). Deste dado revelado emana a nossa condição de vida cristã, como processo histórico permanente e continuado de configuração a Cristo.

Localizamos aqui também a questão central deste ensaio, a saber, a relação indissociável entre Palavra, contexto, texto e testemunho nos processos de evangelização. As narrativas bíblicas, particularmente os evangelhos, são exemplo vivo da vinculação entre esses quatro aspectos. A questão é propriamente em que consiste o anúncio do evangelho? Seria uma repetição do texto em seu contexto? Uma pregação de normas e doutrinas incorporadas pela tradição eclesial? Um testemunho do sentido da palavra que o texto guarda? Uma experiência pessoal e comunitária de encontro com a Palavra de Deus, cujo mistério Pascal de Cristo revelou em plenitude? Mas o que significa esse encontro com a Palavra hoje?

São Paulo, em Carta aos Hebreus, diz que “a Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4,12). Enquanto viva, a Palavra sempre vivifica. Ela não morre, nem se deixa prender em um rito, uma instituição, um texto. Estes são, antes, um modo de expressão sempre parcial e limitado daquela. A Palavra de Deus vive na criação e, como bem expressa a Laudato Si’, “o Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo” (LS 80). Eis que a evangelização, neste aspecto, encontra-se com a necessidade de perceber e discernir continuadamente os sinais dos tempos que se apresentam no presente. Por isso, ela não pode prescindir de sua dimensão humana e histórica que, neste texto, chamamos de contexto.

A Palavra de Deus é o manancial de onde jorra a fonte da história da evangelização. Os textos bíblicos são fonte à medida que contêm a Palavra. Mas, a Palavra viva e eficaz continua a suscitar a vivacidade do espírito em todas as coisas, de modo que “a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente” (Rm 8,22-23). Assim como a criação também continua acontecendo. Ela ainda não está pronta, feita, acabada. É um renascimento constante, de modo que, como seres criados, também nós estamos nos fazendo. A evangelização contém, assim, essa dimensão cósmica, holística e realizadora da criação, na qual, os seres humanos “se tornam partícipes da natureza divina” (Ef 2,18; 2Pd 1,4). Talvez, por conta disso, Paulo VI diz a respeito de evangelizar:

para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação (EN 19- grifo nosso).

Destacamos a frase central da citação, que concentra o significado de evangelizar: atingir e modificar pela força do evangelho. A questão que se coloca, imediatamente, é sobre as condições de possibilidade de se fazer isso, hoje, num mundo marcado pela forte e esmagadora influência das redes sociais. Quem atinge e modifica mais as pessoas, hoje: a força do evangelho ou a força das redes? Estamos, de fato, percebendo os sinais dos tempos nos contextos atuais e testemunhando essa Palavra de Deus que é sempre viva e eficaz?

Recuperar a força do evangelho, a vivacidade e eficácia da Palavra parece ser uma questão central para a vida cristã e interessante, nesta reflexão, a ser tematizada na relação entre contexto, texto e testemunho, porque a experiência cristã, desde seu nascimento, é uma fé encarnada, vivida no interior dos contextos sócio-históricos e culturais, suscitando e se alimentando de “testemunhas” e de “textos”.1 Cada vez mais parece justificar-se a afirmação de que se precisa fazer uma teologia não tanto de textos, mas de testemunhos. O que se quer dizer com isso, é que a teologia precisa brotar da vida, da experiência de encontro com Deus, “Aquele que sempre se renova, porque Ele é sempre novo: Deus é jovem!” (Papa Francisco, 2018, p. 67). Quem vive a experiência de encontro com Deus, já não consegue permanecer alheio, acomodado, indiferente ao que se precisa atingir e modificar neste mundo pela força do evangelho. Deste modo, a via testemunhal, num mundo marcado pelo digital, parece ser uma interessante porta de entrada para a evangelização. O texto adquire, a partir desta experiência, sentido existencial, mais que uma pretensão lógico-conceitual. O texto é uma tecitura da experiência deste encontro fundante. Daí que não se pode desligá-lo do testemunho. Ele – o texto – é uma construção reflexivo-meditativa da experiência. É um testemunho histórico.

Neste sentido, retornam em atualidade as palavras de Paulo VI quando dizia, ainda no ano de 1975, que “o homem [ser humano] contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, dizíamos ainda recentemente a um grupo de leigos, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41- grifo nosso). Recentemente, com o Papa Francisco, também a dimensão do testemunho ganha maior relevância, pois em vários momentos esclarece a importância dos gestos, das atitudes e do modo como se utiliza o remédio da misericórdia na evangelização (EG 47).

É no bojo desta perspectiva que nasce esta reflexão, e de uma forma bem singular, busca aproximar-se e reconstituir alguns aspectos da imbricação entre Palavra, contexto, texto e testemunho na vida e obra do Padre Elli Benincá. O seu legado testemunhal continua impulsionando e cativando diversos estudantes e pesquisadores, particularmente na área da educação, pastoral e teologia. Merecidamente tem sido classificado como um exímio “clássico regional” (Dalbosco)2; e nas palavras do arcebispo da Arquidiocese de Passo Fundo, Dom Rodolfo: “testemunho vivo de teólogo e educador comprometido com os grupos mais fragilizados”.3

Depois desta introdução um tanto longa, mas que consideramos necessária para o caminho a ser traçado nesta reflexão, adentramos em outros quatros pontos para responder ao objetivo proposto. Primeiro, buscar-se-á compreender o Padre Elli Benincá e o fazer teológico-pastoral ancorado na Palavra, como fermento da fé transformadora. Em seguida, a preocupação recai sobre a dimensão da Palavra e da escuta ativa comprometida com as interpelações de Deus que provêm da escuta. Segue, em terceiro, o fazer teológico-pastoral benincaniano incorporando e relacionando a escuta, a graça e a práxis. E, para terminar, um quatro aspecto, agora relacionando o fazer teológico-pastoral com a formação e a participação eclesial. Esta reflexão tem como perspectiva propor respostas para a seguinte questão: em que sentido o legado teológico-pastoral benincaniano se torna um caminho significativo para a evangelização em nosso tempo?

1 ELLI BENINCÁ E O FAZER TEOLÓGICO-PASTORAL: A PALAVRA, FERMENTO DA FÉ TRANSFORMADORA

Nunca devemos esquecer que uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.(Papa Francisco aos participantes da Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, 21.01.2022)

Elli sempre foi reconhecido como Padre Elli Benincá, tanto no ambiente eclesial como na universidade de Passo Fundo (UPF), também nas instituições educacionais públicas e privadas, e em sua presença junto aos movimentos sociais. Sempre manteve a sua identidade eclesial como dimensão integrante de sua presença na sociedade. Mais que uma questão de reconhecimento social ou de poder institucional, isso aponta para uma preocupação eclesial de forma intensa presente no Concílio Ecumênico Vaticano II de “colaborar mais eficazmente na solução dos problemas dos nossos tempos” (João XXIII, 1961). Sua presença, estivesse onde estivesse, revelava-se como um esforço dedicado e autêntico no serviço eficaz ao Reino, seja na formação presbiteral, na pastoral paroquial, na formação e pesquisa universitária, nas assessorias a escolas públicas e privadas, seja na formação de lideranças de movimentos sociais e populares. Não há um Elli padre, outro professor, outro pastoralista, outro intelectual orgânico, outro amigo... O seu modo de ser e o sentido de sua presença em uma palavra e em sua espiritualidade são já uma forte mensagem evangelizadora, ou seja, são um testemunho. Que Deus se mostra no modo de ser de Benincá? Ou seja, qual construção teológica sustenta a sua fé, a sua espiritualidade? Na sua prática e em seus textos podemos encontrar alguns vislumbres de respostas, que também indicam o caminho do seu fazer teológico-pastoral.

Um texto marcante da postura de vida do Elli foi a dissertação de mestrado, defendida em 1987 e publicada em 2016: Conflito religioso e práxis: o conflito religioso na ação política dos acampados de Encruzilhada Natalino e da Fazenda Anoni. Esse texto é um testemunho histórico, contextual e datado, da força viva e eficaz da Palavra e de como ela potencializa a ação humana e é capaz de fazer surgir sempre coisas novas (Ap 21,5). Interessa-nos um dos aspectos que compreendemos como central no fazer teológico-pastoral benincaniano, que integra Palavra, contexto, texto e testemunho: o processo de ressignificação da concepção de Deus dos acampados.

Os acampados, na sua maioria colonos de origem europeia e caboclos, traziam consigo sua história, cultura, visão de mundo e de Deus que, como bem identificou Benincá, correspondia à concepção segundo a qual Deus criou o mundo perfeito e ordenado; o ser humano, pelo pecado, mergulhou-o no caos e na desordem, sendo necessária a ação restauradora para criar novamente a harmonia. Essa visão aponta para uma sociedade ordeira, na qual as disfunções e contradições são vistas como ameaças que devem ser eliminadas. Embora de diferentes regiões e famílias, ali no acompanhamento tinham um objetivo comum: a conquista da terra, trabalho e subsistência. Acontece que o agente da ameaça, agora, seriam eles próprios, pondo em crise a sua concepção teológica e, por consequência, a sua visão fatalista de mundo (Benincá, 2016, p. 136-137)4. Como aceitar que, eles próprios, que desejavam apenas um pedaço de chão para trabalhar e viver, eram agora vistos como uma ameaça à sociedade? Deus estava ao seu lado ou contra eles?

Ao chegarem no acampamento, os que passaram a ser chamados de “sem-terra” fincaram no solo uma frágil cruz de tabuinhas. À medida que partilhavam a sua situação de vida, também tomaram consciência do seu sofrimento e aquela cruz foi substituída por uma forte cruz de tronco de árvore. Junto com essa simbologia, foi-se transformando também a visão de Deus, de um Deus ordeiro e senhor do destino para um “Deus forte apresentado sob a figura de Javé” (Benincá, 2016, p. 137), Deus que vê a miséria, ouve o grito, conhece as angústias, desce para libertar e fazer subir para uma terra onde há vida e liberdade (Ex 3,7-8). Os sem-terra, com a presença e acompanhamento dos agentes de pastoral, começaram a identificar sua situação à condição do povo no Egito, e a Javé, Deus da vida, como seu Deus. “A recuperação da Bíblia onde se encontra a palavra de Deus tornou-se o instrumento pedagógico mais eficaz para operar a mudança da visão teológica” (Benincá, 2016, p. 138). Nesta reflexão de Benincá, a Palavra é vista como viva e eficaz no contexto dos sem-terra, a Bíblia assume a função de texto, os agentes de pastoral de testemunho e os sem-terra são vistos como sujeitos.

A transformação da fé vai acontecendo no interior da construção das condições sociais e políticas da cidadania. Portanto, “a prática religiosa é sempre uma ação política, a visão teológica de mundo é também uma visão política de mundo” (Benincá, 2016, p. 28). A Palavra de Deus se torna fermento de transformação, assim como diz Mateus: “O Reino dos Céus é semelhante ao fermento que uma mulher tomou e pôs em três medidas de farinha, até que tudo ficasse fermentado”. Segundo o Padre Nelson Tonello,

A fé, do ponto de vista dos Evangelhos, não se reduz a uma crença ou a um rito religioso. A fé supõe: a) o conhecimento de Jesus, de suas palavras e da sua proposta; b) a aceitação de Jesus como o Messias, Filho de Deus, bem como de suas palavras e do projeto do Reino de Deus; c) o compromisso de praticar o que Ele disse e propôs (Mt 7,21.24-27 e Tg 2,14-26) (Tonello, 2009, p. 29).

Desta forma, a fé tem relação com a dinâmica do Reino de Deus que se constrói no mundo; compreende a mudança, a conversão, a justiça, a paz e o cuidado com a vida na sua integralidade. A fé liga-nos com Deus e não desliga das necessidades dos doentes, dos pobres, dos presos, dos famintos, dos sedentos (Mt 25,31). Compreender a fé que se materializa na perspectiva do Reino de Deus significa viver uma vida autêntica e com “honradez com o real” (Sobrino, 2008, p. 95)5.

Nesta direção, é possível afirmar que Benincá foi uma pessoa de fé, porque manteve honradez com o real a partir de um estilo de vida, um modo de ser integral. Benincá não reduziu a fé a um setor da vida, ao culto, à oração, o que seria compreender a fé de maneira reducionista que freasse o poder transformador e político do cristianismo conforme as narrativas evangélicas (Mt 7,21-23; Tg 2,14).

A fé do Padre Elli é um esforço constante de se tornar semelhante à fé de Jesus. Coloca-o em vias de enfrentamento das tentações ao fechamento, particularmente das dicotomias entre sagrado e profano, céu e terra, fé e política, teoria e prática. Seu legado aponta para a vivência da fé como um modo de ser no mundo, um projeto de humanidade. Vai além de uma “fé de sacristia”, de uma “fé de cemitério”, de uma “fé de paramentos”. É uma fé que coloca em crise, faz crescer, questiona, anima, sacode. Ele mesmo era o primeiro a se colocar nesta dinâmica da fé, com humildade e simplicidade.

Para Benincá, o compromisso com a justiça social e a fraternidade universal não era uma consequência da fé, senão a própria fé, vivida como história da salvação. A salvação, deste modo, não é algo meramente interior e individual, mas tem já aqui incidência histórica e antecipação simbólica do que será a plenitude escatológica. Como ajuda a esclarecer Brighenti, é uma “salvação como libertação integral. Para a Igreja na América Latina, a evangelização como defesa e promoção da vida, em especial dos mais pobres, precisa unir salvação e libertação” (Brighenti, 2021, p. 65).

A fé, tendo por horizonte o Reino de Deus, contempla esta dialética intrínseca, na qual a libertação não é nem somente pessoal ou social, nem só alma ou corpo. Nesta dinâmica da fé, a Palavra fermenta nos contextos para gerar vida em abundância. A salvação, por isso, não é de uma parte (a alma), mas plena, do ser humano inteiro/integral.

2 A PALAVRA E A ESCUTA

Cuidai, portanto, do modo como ouvis! (Lc 8,18)

Uma das questões importantes para a vivência da missão, a quem se dispõe colocar-se na dinâmica do Reino de Deus – que não é algo que se impõe de fora, senão já está potencialmente presente em nosso mundo – é a constante formação da capacidade de escuta. Escuta ativa, compreendida e ligada ao verbo escutar/auscultar – ouvir interior. Muito do que Benincá desvelou da concepção de Deus e de mundo dos acampados foi-lhe alcançado pela escuta atenta dos sujeitos envolvidos e pela própria descoberta do Deus que acompanha o seu povo, pela via dos acampados; é uma escuta da Palavra, como Verbo encarnado. Por ocasião de uma homenagem aos seus setenta anos, Padre Benincá fez um pequeno texto, de duas páginas, onde realiza uma espécie de memória de sua trajetória. Uma das coisas mais profundas que ele diz é a seguinte: “finalizo dizendo que um dos segredos de meu trabalho de professor foi, sem dúvida, o exercício de ouvir e, por isso, lhes afirmo: sintam, ouçam e vivam em profundidade essa experiência da relação professor-aluno” (2008, p. 16). A escuta era o seu modo de sentir e viver as relações formativas, sejam em ambientes eclesiais ou educacionais. Importa, assim, dentro da perspectiva deste texto, embrenharmo-nos um pouco mais a fundo no sentido da escuta, segundo a Palavra que se revela no texto bíblico.

Na perspectiva cristã, a escuta está alicerçada: a) na espiritualidade do êxodo, que revela o testemunho de um Deus que vê e ouve o grito do povo oprimido, desce, toma partido e provoca libertação (Ex 3,1-10); b) nos profetas, que também, chamavam atenção para a sensibilidade da escuta, do discernimento dos falsos e verdadeiros pastores de Israel. O profeta Ezequiel desce ao mais profundo da história interpelando para escutar o barulho do remexer dos ossos secos, que gritam por solidariedade, musculatura e vida (Ez 37); e, de modo especial, c) em Jesus, o mestre da escuta por excelência.

A escuta, em Jesus, é uma dimensão indissociável do seu modo de ser. Ele escuta a si mesmo: recordemos que a primeira ação missionária de Jesus é a escuta de si mesmo e o enfrentamento das tentações no deserto. O que chama muito a atenção é que, quem o força para o deserto é o próprio Espírito Santo (Mt 4,1-11). Neste sentido, a escuta de si, em Jesus, se relaciona também à escuta de Deus, ação sempre presente em sua prática e muito fortemente acentuada nas suas orações. É na oração que Jesus se dispõe totalmente à escuta de Deus para, desde aí, discernir os sinais dos tempos. É no episódio da oração no Monte das Oliveiras que percebemos essa dupla escuta, quando Jesus, ouvindo-se interiormente, dirige-se a Deus: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice!”. E continua: “Contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita!” (Lc 22,42). Jesus escuta quem quer que o procure: o leproso (Mt 8,1-4); centurião romano (Mt 8,5-12), o chefe com a filha doente (Mt 9,18-22), os dois cegos (Mt 9,27-31), os discípulos (Mt 16), o sacerdote Nicodemos (Jo 3), o especialista em leis (Lc 10), sua mãe (Jo 2). Enfim, nos evangelhos, flagramos Jesus em constante atitude de escuta. Jesus provoca para escutar: a mulher samaritana (Jo 4), os discípulos no caminho a Emaús (Lc 24), os discípulos todos no episódio da partilha dos pães (Jo 6), as multidões com as muitas parábolas (Mt 13, Mc 4), Marta e Maria diante de seu luto com a perda do irmão (Jo 11). Jesus escuta os clamores do povo: esta escuta é uma postura de ouvir o que não é expresso em palavras, mas candente na condição do povo, nos contextos – na montanha, recebe uma multidão de famintos, doentes, lunáticos e paralíticos (Mt 4,24), ao ver as multidões que estavam como ovelhas sem pastor (Mt 9,36), ao ver a miséria do povo e a profanação do templo (Mt 21,12), ao ver a condenação injusta e hipócrita à mulher pecadora (Jo 8,1-11). A escuta, em Jesus, não é uma estratégia, uma atitude isolada, mas uma postura. Ela faz com que Jesus se disponha a fazê-lo onde se encontrava: nos ambientes em que as pessoas trabalhavam (Lc 5), nos espaços de encontro da comunidade (Jo 4; Lc 4), na casa (Jo 12), nos espaços públicos (Lc 10; 19; Mt 9), no Templo (Jo 5), na montanha (Jo 6; Mt 5; Lc 22).

Assim afirma Papa Francisco: a partir das páginas bíblicas aprendemos que a escuta não significa apenas uma percepção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade (Dt 6,4 - a fé vem da escuta (Rm 10,17). Entre os cinco sentidos, parece que Deus privilegie precisamente o ouvido, talvez por ser menos invasivo, mais discreto do que a vista, deixando consequentemente mais livre o ser humano (Papa Francisco, 2022).

Por isso, há de se compreender que o escutar é sempre uma tomada de posição, ou seja, uma postura político-profética-pedagógica, de colocar-se em atitude de fé com os outros, sentir as suas dores e sua vida. Escutar é parte integrante e necessária da fé e se constitui em uma mística libertadora, porque a escuta serve para discernir o que o Senhor pede em cada situação e realidade. Na escuta pode-se deixar fluir uma questão provocadora: a quem ouvimos no processo de evangelização? Quais pessoas são prioritárias na prática de nossas comunidades eclesiais? Parodiando o evangelho: se escuto somente quem me escuta que gratuidade existe, todos não fazem assim?

Neste sentido, a escuta não é realizada como estratégia, ou simples dinâmica no processo de evangelização ou mesmo na educação escolar. Para o teólogo Agenor Brighenti na perspectiva do diálogo-escuta acontece a inversão considerando o povo de Deus como sujeito e não objeto. “A irrupção do outro e do pobre como sujeitos se manifesta exatamente na inversão dos papéis, em que a Igreja mais que falar escuta, mais que ensinar aprende, de dona se torna hóspede: é uma inversão não só de conteúdo, mas de termos” (Brighenti; Raschietti, 2022, p. 80).

O Papa Francisco considerando a escuta da Palavra, realça que “a Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar” (EG 174); e se referindo a “uma Igreja pobre para os pobres”, instiga para os ensinamentos dos pobres para a vida da Igreja: “Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja” (EG 198).

O Pontífice, também lembra da necessidade de considerar o protagonismo dos pobres.

O diálogo não se deve limitar a privilegiar a opção preferencial pela defesa dos pobres, marginalizados e excluídos, mas há de também respeitá-los como protagonistas. Trata-se de reconhecer o outro e apreciá-lo “como outro”, com a sua sensibilidade, as suas opções mais íntimas, o seu modo de viver e trabalhar (QAm 27).

Na avaliação de Brighenti e Raschietti, “aqui está o cerne da questão decolonial da missão cristã para que ela seja verdadeiramente fiel à sua ação evangelizadora sem reduzir o outro a qualquer dimensão do mesmo ou do interlocutor” (Brighenti; Raschietti, 2022, p. 81). Como que arrematando, Francisco fala que a conversão começa pela abertura e escuta: deixar-se interpelar seriamente pelas periferias geográficas e existenciais não é nada fácil (ILSA 3). A Igreja deve escutar os pobres, porque “ao ouvir a dor, o silêncio se faz necessidade, para poder ouvir a voz do Espírito de Deus” (ILSA 144).

3. FAZER TEOLÓGICO-PASTORAL BENINCANIANO: A ESCUTA COMO GRAÇA E PRÁXIS

Enquanto parte da experiência da Palavra de Deus, a escuta é graça divina. Integra a experiência de Deus, da qual não é possível encontrar palavras para exprimir-lhe o sentido. Vive-se nela como que mergulhados no mistério e no assombro – é o tremor diante de Deus, que nos atinge, abarca e transforma, assim como aconteceu com Moisés (Ex 3-4), Jeremias (Jr 1), Isaías (Is 6), Maria (Lc 1). Diante de Deus, a experiência fundante é a silenciosa escuta: “De fato, a iniciativa é de Deus, que nos fala, e a ela correspondemos escutando-O” (Papa Francisco, 2022)6. A escuta é uma das características da condição humana, como imagem e semelhança de Deus. “A escuta corresponde ao estilo humilde de Deus. Ela permite a Deus revelar-Se como Aquele que, falando, cria o homem à sua imagem e, ouvindo-o, reconhece-o como seu interlocutor. Deus ama o homem: por isso lhe dirige a Palavra, por isso ‘inclina o ouvido’ para o escutar”. Deus escuta os clamores humanos, que ouvem a sua voz e discernem a proposta divina.

A teologia, como ato segundo, é a palavra humana (contexto, texto e testemunho) da experiência de Deus (Palavra). Assim, é fundante, embora insuficiente e, por conta disso, sempre em construção. Da experiência de encontro com Deus, inicialmente indizível, brota o dizer na fé, ou seja, a elaboração do sentido da experiência, a partir do que nos atingiu profundamente. Deste modo, enquanto teologia, a escuta bebe do manancial da graça revelada e se desdobra em práxis na missão. Não é um transpor, nem um impor, mas um processo. No fazer teológico-pastoral benincaniano a escuta que, inicialmente, é graça da experiência do encontro com Deus, se desdobra em autoquestionamento e em inteligência da fé. Mas, como traduzir uma experiência que nos escapa e nos transcende? Benincá encontra o caminho da escuta como práxis. Propõe a observação e o registro como instrumentos para alcançar ao menos um pouco da profundidade da experiência da escuta, a fim de que ela não se esvazie e dilua num espontaneísmo emocional.

A observação e o registro têm como referência à prática, que é a vivência da evangelização7. O agente, reportando-se à sua memória pessoal, se dis-põe a reconstruir a experiência por escrito, escutando o seu acontecer – o acontecer da experiência. Ele é parte da experiência e, por isso, tem de entender-se dentro dela, pois, à medida que vive a experiência, também exercita a autoformação. Assim como percebemos que os acampados tinham uma concepção de Deus e uma visão de mundo e a descortinaram na observação e reflexão das suas práticas, assim ocorre com cada pessoa envolvida com a evangelização. Na escuta da prática também desvelamos como compreendemos a Deus e ao mundo. Acontece que, nem sempre há pré-disposição ética dos sujeitos para observarem e registrarem a sua própria experiência. A tendência de considerar o mundo como aquilo que nos aparece - algo natural e dado, também nos desencoraja à reflexão. Deste modo, a escuta como práxis tem à disposição como uma exigência ética. Ou seja, embora nasçamos com um sentido corporal para escutar, os nossos ouvidos, a escuta, no sentido pedagógico-teológico, exige uma opção. Como bem diz o Papa Francisco: “Ouvidos, temo-los todos; mas muitas vezes mesmo quem possui um ouvido perfeito, não consegue escutar o outro. Pois existe uma surdez interior, pior do que a física. De fato, a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda. A verdadeira sede da escuta é o coração”8.

Pela ótica da escuta, a observação seguida do registro constrói a tecitura da experiência realizada no contexto, com a presença atuante de todos os envolvidos, inclusive o agente de pastoral. O texto do registro é um material necessário para o ato segundo do fazer teológico-pastoral que consiste na reflexão. A prática da reflexão é também um ato de escuta, à medida em que tanto a pessoa que registrou como a comunidade com a qual partilha, escutam a palavra humana da experiência – que, a este modo, já não é uma experiência estritamente individual, senão do coletivo – e a Palavra de Deus (textos bíblicos e na tradição eclesial) em relação a esta experiência.9 Dessa dupla escuta – da experiência e da Palavra – desdobra-se o diálogo reflexivo-formativo, que atinge a todos e viabiliza a elaboração teológica, que se desdobra como práxis no movimento da experiência à Palavra e desta para aquela. Essa escuta reflexiva, tanto na evangelização como na produção teológica, compõe a comunhão eclesial. O núcleo do processo, portanto, é a Palavra.

4. Fazer teológico-pastoral: formação e participação eclesial

Do sentido da escuta como práxis percebemos que o fazer teológico-pastoral não é uma atividade de produção de uma coisa, a fabricação de um artefato, ou mesmo a produção de um texto, que se desprende completamente das pessoas. É, antes disso, uma reflexão continuada da experiência viva e eficaz da Palavra, realizada pessoal e comunitariamente. Envolve-se, assim, com a própria vida, seus processos formativos e a participação comunitária.

Ao dar-se conta da condição missionária da própria experiência de fé – ou seja, de o encontro com Deus remeter a uma missão interior, a um trabalho missionário a ser realizado internamente, uma espécie de compromisso com a autoformação na evangelização – a pessoa, ao mesmo tempo em que se descobre finita e inconclusa, põe-se, humildemente, no caminho comunitário da reflexão continuada da sua própria vida, sua posição e modo de ser no mundo.

É neste sentido que a teologia na vida eclesial tem uma dimensão sinodal. Ela é um caminhar juntos e um construir caminhos. Mas, a pessoa pode esquivar-se da necessidade de indagar sobre a sua visão de mundo e de Deus, escamoteá-las em relatos que não expressem a sua verdadeira compreensão, ou viver como se sua missão estivesse isolada da sociedade e do mundo, construindo deste último uma visão totalmente negativa. Fazendo isso, ela se autossabota, ou seja, ela impõe barreiras ao próprio amadurecimento da fé e da experiência da Palavra. Em outros termos, ela própria age para impedir a vida e a eficácia da Palavra de Deus em sua vida e no mundo e abre mão da interlocução originária que se abriu com Deus na criação.

A formação, a partir da perspectiva da escuta como práxis, é um processo que acompanha toda a vida humana. Não há um ponto onde possamos chegar e dizer: “estou pronto”. O que cabe ao ser humano é tomar consciência desta condição de finitude e colocar-se a caminho, na construção de si, da humanidade e do mundo. A responsabilidade recai sobre a decisão humana, e o fazer teológico-pastoral se cruza aqui com a dimensão ética e a dimensão política. O que fazemos ou deixamos de fazer – “por atos e omissões”, como diz o ato de contrição – implica decisão. Decidir é, ao mesmo tempo, ligar e romper. Jesus decidiu retornar a Betânia. Para tanto, precisou romper com a pressão feita pelos discípulos para que não retornasse ao local onde desejavam apedrejá-lo (Jo 11,6-10).

A evangelização e o fazer teológico-pastoral que a acompanha estão implicados desde o início com um posicionamento no mundo. Não se posicionar, reclamar para si a neutralidade, fingir que não vê, é uma forma de posicionamento, talvez a mais cruel e anticristã delas. A insensibilidade, aliás, é uma das principais características dos ídolos, que “têm boca, mas não falam; têm olhos, mas não veem; têm ouvidos, mas não ouvem; têm nariz mas não cheiram; têm mãos, mas não tocam; têm pés, mas não andam” (Sl 115,5-7).

O fazer teológico-pastoral que se constrói a partir da escuta como práxis está diretamente ligado com os processos de evangelização e, a este respeito, congrega o sentido da vida comunitária como comunhão, participação, testemunho e serviço. Destes quatro aspectos, é necessário ainda nos determos um pouco mais no significado de participação e serviço.

Do sentido da escuta como práxis ficou nas entrelinhas a questão do reconhecimento do outro. O reconhecimento é uma questão antropológica, visto sermos seres sociais. Contudo, no interior da evangelização, o reconhecimento atinge também um sentido teológico, pois sua raiz está plantada no fundamento do cristianismo: o amor a Deus e ao próximo como um modo de ser no mundo. Os cristãos testemunham em toda a parte, o amor a Deus e ao próximo. Nisso se resume o sentido da vida cristã. Por isso, é necessário que reconheçamos o outro como pessoa, como sujeito pleno de dignidade; o que implica, imediatamente, que não o tomemos como uma coisa, um objeto e, pela via positiva, que admitamos o outro como parte da nossa vida.

Daí é que brota o sentido de participação. “O termo participação etimologicamente se origina de ‘participatio’, do latim. Participatio (pars+in+actio) corresponde a ter parte, fazer parte ou tomar parte numa ação. Participar é ter parte na ação. É sentir-se parte da ação” (Benincá, 1994, p. 36-37). A participação reclama desde logo o compromisso, a consciência de estarmos juntos (com), em favor de uma proposta, o Reino de Deus (pro) e ser esta a nossa missão no mundo (missio). E, no interior desta, que podemos chamar de mística ou modo de ser cristão, nos encontramos com o serviço.

No evangelho de Marcos, os discípulos Tiago e João, vão até Jesus e apresentam um desejo inusitado, em forma de determinação: “Concede-nos, na tua glória, sentarmo-nos, um à tua direita, outro à tua esquerda”. Ao ouvi-los, Jesus responde: “Não sabeis o que pedis” (Mc 10,37-38). Os outros discípulos ficaram indignados e instalou-se o conflito, que é próprio dos processos de formação humana. Jesus os chama e, a partir da situação que foi criada, lhes ensina: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o servo de todos” (Mc 10,42-44). O contexto de vida dos discípulos informava o tipo de postura que está por trás, tanto do pedido de Tiago e João, como da revolta dos outros: um tipo de poder que domina e faz uns escravos de outros. Partindo desta concepção presente na consciência dos discípulos, Jesus apresenta a nova proposta: servir uns aos outros. Nesta nova concepção, no qual cada um se preocupar em servir aos outros, não haverá espaço nem para privilégios, nem para dominação. A participação e o compromisso se encontram, então, com a postura do poder-serviço. Ele não está no chefe, no investido, mas na proposta. “O poder decisivo decorre dos objetivos da ação e não é propriamente das partes. Estas, apenas operam o poder, em favor da ação. O poder se localiza na proposta, acordada pelas partes. Quando não houver acordo sobre o exercício do poder, é provável que alguém o assuma e localize o poder em si mesmo” (Benincá, 1994, p. 36-37).

Pelas características destacadas se compreende por que a participação em sua plenitude é sempre conflitiva. Ora, a conflitividade é parte integrante deste processo participativo, pois trata-se de “ser fruto das relações humanas em diálogo, a participação, como o próprio diálogo, é uma temática sempre conflitiva” (Benincá, 2008, p. 9). O conflito que brota das relações pode ser o início de um processo de formação. Em processos nos quais os conflitos não são admitidos, ou eles são empurrados para debaixo do tapete ou as pessoas os guardam para si, adoecendo. A consciência da finitude também nos auxilia a admitir humildemente a existência dos conflitos e contradições.

Desde o que viemos tratando, percebemos que, na perspectiva da escuta como práxis, há uma relação direta entre o fazer teológico-pastoral e os processos de evangelização, entre a formação humana e a participação eclesial, entre a vida cristã e o compromisso com um mundo mais justo e solidário. Como bem diz o Papa Francisco, “o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude a não ser no sincero dom de si mesmo aos outros” (FT 87). Este entregar-se em serviço tem um lugar teológico-pastoral essencial: aqueles que, historicamente, foram destituídos de sua dignidade e excluídos dos bens da criação: os pobres, que constituem o outro prioritário da opção fundamental da vida cristã. Em que medida, os pobres, a partir da escuta como práxis, são lugar teológico-pastoral fundamental da vida cristã? Esta é uma questão que fica para um possível novo estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preocupação deste ensaio foi uma aproximação ao legado teológico-pastoral de Elli Benincá pelo caminho da relação indissociável entre Palavra, contexto, texto e testemunho no âmbito da evangelização. A Palavra de Deus recolocada como centro da vida eclesial veio como o fruto amadurecido da nova primavera do Concílio Vaticano II, que colocou as Sagradas Escrituras como fonte e alma da teologia/evangelização (DV 21).

Em nosso contexto mais próximo, e de acordo com a eclesialidade formulada por Benincá, a Palavra de Deus ganhou originalidade metodológica e passou a ser utilizada como ferramenta para fomentar a libertação e salvação histórica e não como mecanismo de manipulação ou alienação dos processos históricos. Como dissemos: a recuperação da Palavra de Deus através da Bíblia foi o instrumento pedagógico mais eficaz para operar a mudança da visão teológica. Desta forma, a Palavra foi luz e sal dentro da perspectiva de perceber que “a prática religiosa é sempre uma ação política, a visão teológica de mundo é também uma visão política de mundo” (2016, p. 28).

A relação entre palavra e escuta ganhou destaque no sentido de perceber a força motriz da escuta como práxis no processo evangelizador-educador de Benincá. Também se destacou que, por ocasião de uma homenagem aos seus setenta anos, Benincá lembrou que foi sem dúvida, o exercício de ouvir. A escuta era o seu modo de sentir e viver as relações formativas, sejam eclesiais ou educacionais. Caminho que encontra eco com o testemunho aberto por Jesus que aparece como Mestre na arte de escutar.

A escuta, em Jesus, é uma dimensão indissociável do seu modo de ser. Ele escuta a si mesmo na força do próprio Espírito Santo para acertar também na escuta do que Deus Pai deseja. Jesus escuta a quem quer que o procure. Escuta os clamores do povo quando sente compaixão para os famintos, doentes, lunáticos e paralíticos. Aqui também vale recordar, como disse o Papa Francisco, entre os cinco sentidos, parece que Deus privilegie precisamente o ouvido.

Outro aspecto importante da reflexão se fixou no fazer teológico-pastoral benincaniano da escuta como graça e práxis, porque, a escuta como parte da experiência da Palavra de Deus está perpassada pela graça divina. Integra a experiência de Deus, da qual não é possível encontrar palavras definitivas, pois o mistério continua sendo mistério. Por isso, diante de Deus, a experiência fundante é a silenciosa escuta. A teologia, como ato segundo, é a palavra humana (contexto, texto e testemunho) da experiência de Deus (Palavra).

No fazer teológico-pastoral benincaniano a escuta que, inicialmente, é graça da experiência do encontro com Deus, se desdobra em autoquestionamento e em inteligência da fé. Mas, como traduzir uma experiência que nos escapa e nos transcende? Benincá encontra o caminho da escuta como práxis – seria uma escuta-práxis, pois esta última se escora na primeira, ao mesmo tempo que a qualifica. Propõe a observação e o registro como instrumentos para alcançar ao menos um pouco da profundidade da experiência da escuta, a fim de que ela não se esvazie e dilua num espontaneísmo emocional.

Desta forma, se abre no fazer teológico-pastoral, a formação permanente e participação eclesial, perspectiva que buscamos refletir no último aspecto deste texto. Ao perceber a condição missionária da própria experiência de fé – ou seja, o movimento interior da graça atuando ativamente no sujeito, gerando uma espécie de compromisso com a autoformação na evangelização – a pessoa se reconhece finita e inconclusa e assume o caminho da humildade como ser no mundo. É neste sentido que a teologia na vida eclesial tem uma dimensão sinodal. Ela é um caminhar juntos e um construir caminhos segundo os desígnios do Espírito Santo, Pai dos pobres e doador da vida.

Certamente, muitos outros aspectos ficaram de fora e merecem ser investigados e outros estão a caminho nos diferentes ambientes de pesquisa. No entanto, chamamos a atenção e enfatizamos que, no caso de Benincá, o fundamental é beber das duas fontes que se entrecruzam e se alimentam perante o seu legado: textos e testemunho. Ora, sua produção acadêmica confere desafios, mas é, sobretudo, seu testemunho de vida que aprofunda e dá singularidade histórica. Uma vida de um testemunho pautada pela mística da participação, do diálogo com todos e todas, da paciência para escutar o outro no seu tempo, e do desejo do reino de Deus se fazendo presente através da graça e da participação humana.

Referências

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1 Essa expressão é adotada por alguns teólogos contemporâneos em suas obras mais recentes, tais como J. B. Metz e J. Sobrino. Gloria Liliana Franco Echeverri, “en el magisterio del papa Francisco, no solo son elocuentes sus textos, sino también sus gestos. Benjamín González Buelta insiste en que esta no es época de textos, sino de testigos. La espiritualidad cristiana nos conduce a un modo de ser y de estar en el mundo. Se traduce en gestos, en opciones, en modos… El modo de Jesús. Ese modo que se bebe en el Evangelio, saboreando la Palabra, contemplando la Persona de Jesús y escudriñando en la historia, en la realidad, entre los pobres sus rasgos (Gloria Liliana Franco Echeverri. Unidos en una misma espiritualidad: el evangelio, llamados a abrazar lo humano. p. 25-33, aquí 27. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.amerindiaenlared.org/uploads/adjuntos/202201/1643491984_hfQjJVMJ.pdf. Acesso em 26 de julho de 2023.

3 Apresentação. In.: BENINCÁ, Elli. Conflito religioso e práxis. p. 13.

4 Para Benincá, a visão fatalista de mundo quer fazer todos aceitarem que as coisas são assim como são por uma ordem natural, que tudo é vontade de Deus e, portanto, não pode sofrer interferência.

5 Para Sobrino, levar a realidade com honradez supõe: “um estar na realidade das coisas – e não apenas um estar diante da ideia das coisas ou no sentido delas – um estar “real” na realidade das coisas, que em seu caráter ativo de estar sendo é exatamente o contrário de um estar coisal e inerte e implica um estar entre elas, através de suas mediações materiais ativas” (Sobrino, 2008, p. 19).

6 Mensagem para o LVI Dia Mundial das Comunicações (24.01.2022). Disponível em: 56º. Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2022 - Escutar com o ouvido do coração | Francisco (vatican.va). Acesso em 01.08.2022.

7 Evangelização, aqui, no sentido proposto por Paulo VI, já apresentado anteriormente.

8 Ibidem.

9 Aquilo que o Elli, em termos pedagógicos, denominou de sessão de estudos.