A prática evangelizadora em comunidades com o rosto de Jesus
The evangelizing practice in communities with the face of Jesus
DOI: https://doi.org/10.52451/31ejbf38
Recebido em 12/04/2024
Aprovado em 27/07/2024
Ivo Pedro Oro
Possui graduação em Filosofia e Teologia. Especialização em Educação Popular e Metodologia Pastoral pela Itepa Faculdades e mestrado em Ciência da Religião. É padre na Arquidiocese de Chapecó atuando na Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Email: ivoro@netxan.com.br. Orcid: https://orcid.org/0009-0000-2111-1605
Resumo: Toda tradição religiosa tem sua expressão cultual e vivencial coletiva e comunitária. Os cristãos aprenderam da herança de Israel a importância de ser e viver como povo de Deus e vivenciaram com Jesus e os apóstolos o ser comunidade, compartilhando a vida, os dons e os bens. Hoje o contexto é, em certa medida, de individualismo exacerbado, de priorização dos próprios interesses e de fechamento em relação ao próximo. Numa expressão frequente de Papa Francisco, ergue-se mais muros e faz-se menos pontes (FT 27). A Igreja precisa urgentemente retomar a chave eclesiológica do Vaticano II: Igreja (todos os batizados/as) é o povo de Deus e a prioridade que o episcopado latino-americano estabeleceu, especialmente em Medellín, Puebla e Aparecida é viver a vida em comunidades. Elas têm a missão de humanizar e libertar, vivendo o amor, a misericórdia e o cuidado da vida, tanto internamente, como contribuindo na construção do Reino, transformando a sociedade. No mundo, a comunidade cristã busca ser e viver como rosto e presença de Jesus. Isto é possível, desde que haja um verdadeiro processo de formação, de animadores e dos cristãos em geral, à luz de ensinamentos eclesiais e bíblicos que nos apontam o compromisso com o Reino no mundo. É dentro deste cenário eclesial, a partir de uma abordagem bibliográfica, que o presente texto visa a contemplar três aspectos cruciais na missão cristã. No primeiro, são apresentados alguns fundamentos bíblicos e eclesiais da vida comunitária, essencial para os cristãos. Segue-se abordando, aspectos da vida comunitária, pelos quais possa ser efetivamente presença continuadora de Jesus. E no terceiro, busca-se acentuar que a comunidade tem missão na sociedade, pois ela existe para transformar o mundo em Reino, e não para refugiar-se num espiritualismo ou intimismo, de costas para os problemas dos seres humanos e da vida da humanidade.
Palavras-chave: Eclesiologia; comunidade eclesial; missão; construção do Reino.
Abstract: Every religious tradition has its collective and communal cultural and experiential expression. Christians have learned from Israel’s heritage the importance of being and living as God’s people and have experienced, with Jesus and the apostles, being community, sharing life, gifts and goods. The context today is, to a certain extent, of exaggerated individualism, of prioritizing one’s own interests and closing oneself off from others. In a frequent expression of Pope Francis, it is building more walls and making fewer bridges (FT 27). The Church urgently needs to return to the ecclesiological key of Vatican II: the Church (all the baptized) is the people of God and the priority that the Latin American episcopate established, especially in Medellín, Puebla and Aparecida, is to live life in communities. Their mission is to humanize and liberate, living out love, mercy and care of life, both internally and by contributing to the building of the Kingdom, transforming society. In the world, the Christian community seeks to be and live as the face and presence of Jesus. This is possible as long as there is a real process of formation, of animators and of Christians in general, in the light of ecclesial and biblical teachings that point us towards the commitment to the Kingdom in the world. It is within this ecclesial scenario, based on a bibliographical approach, that this text aims to contemplate three crucial aspects of Christian mission. The first presents some biblical and ecclesial foundations of community life, which is essential for Christians. The second section looks at aspects of community life that can effectively be a continuing presence of Jesus. In the third section, the aim is to emphasize that the community has a mission in society, because it exists to transform the world into a Kingdom, and not to take refuge in spiritualism or intimism, keeping its back to the problems of human beings and of the life of humanity.
Keywords: Ecclesiology; ecclesial community; mission; building of the Kingdom.
INTRODUÇÃO
A vida em comunidade é uma marca dos cristãos. Melhor ainda, faz parte da essência da vida cristã. Qualquer releitura bíblica constata que já o antigo povo de Deus se constituía como povo organizado, com estrutura, normas comportamentais, cultos programados, observâncias morais etc. Fazer parte desse povo implicava amar ao Senhor Deus com uma vida com tais valores e compromissos e, em consequência, ser abençoado por ser fiel e estar com Ele (1Rs 3,14; Dt 28,1; Ex 19,5-6; Salmo 132,12). O novo povo de Deus, além de constituir-se no povo dos que aderem a Jesus Crucificado e Ressuscitado, cultivava e testemunhava sua fé vivendo em comunidade, com autênticas relações de irmãos e irmãs (At 2,42-47; At 4,37-42; Cl 3,12ss; 1Jo 4,11-12; Tg 2,14-17).
Como percebemos e sentimos quase diariamente, estamos hoje mergulhados numa cultura, pelo menos a que predomina em nossa sociedade capitalista, consumista e hedonista, que tem seu fulcro num arraigado individualismo. Como resultado desse estilo cultural, pensa-se não ser exagero afirmar que a maioria das pessoas têm como objetivo de vida a si mesmas: seu ganho, sua vantagem, sua acumulação, a competividade para derrotar os demais e ser mais do que eles e elas. Igualmente, como consequência, constata-se que, girando em torno dos próprios interesses e visando a sobrepujar os outros, incide-se em projetos e atitudes de egoísmo, fechamento, solidão, isolamento e, muitas vezes, de desprezo, de violência e de negação do outro. Esse panorama cultural, em boa parte, interfere nos valores e escolhas pessoais, determinando-as e interferindo em muitos aspectos de sua prática. Em tal contexto, é possível haver efetivamente vida em comunidade? Qual a identidade da comunidade hoje? E como buscar ser essa comunidade de discípulos/as de Jesus?
É no bojo desta preocupação de evangelizar este mundo cada vez mais individualista que se origina a temática deste artigo, com o objetivo de fundamentar a importância de os cristãos viverem em comunidade, se quiserem realmente ser seguidores e seguidoras de Jesus, porque, para ser cristão, é preciso viver em comunidade, ou, como se pode expressar de outra forma, porque não há cristão sem comunidade (LG 9). Reiteradamente, o Papa Francisco tem enfatizado que a Igreja não se configura com uma ONG nem com uma sociedade. De uma comunidade cristã espera-se bem mais do que ligação em um aspecto que nos une como sócios ou apenas uma atividade em conjunto, que nos faz membros de uma associação.
Por isso, visa-se a elucidar aqui como é possível hoje uma verdadeira prática evangelizadora em comunidades com o rosto de Jesus. Busca-se esclarecer aqui que tais comunidades se configuram como presença e atuação de Jesus, tanto na vida eclesial, nas relações e serviços internos, como na fraternidade vivida com os filhos e filhas de Deus que estão dentro da sociedade em geral. Quer dizer, a evangelização por uma comunidade com rosto de Jesus concretiza-se no cotidiano da vida eclesial comunitária, nas mais diversas atividades e formas de organizar-se e de realizar a missão de Igreja, mas também nas suas relações com os diversos aspectos do mundo social, bem como no sentido que se dá à própria vida e aos “talentos” recebidos: tudo é dom.
Isso é proposto, principalmente, porque a missão da comunidade Igreja – evangelizar – se materializa no compromisso com o Reino nas interrelações diárias e dentro da sociedade, impregnando as opções de vida das pessoas e atingindo as relações sociais e estruturais, buscando configurar os aspectos político, econômico, cultural e religioso com a proposta do Evangelho. No entanto, a missão dos cristãos, no mundo de hoje, não pode ser reduzida apenas ao agir individual de cada fiel, cristã e cristão. Nem somente ao apostolado da hierarquia, pois que todos os batizados e batizadas receberam o batismo para ser sujeitos da Igreja e protagonistas da evangelização. Urge que a missão seja assumida também em comunidade, com ações e atuações que testemunhem a pessoa de Jesus e sua proposta, pelo rosto e pelo agir de cada comunidade cristã. Afinal, a comunidade cristã ou se configura como presença viva de Jesus e de sua atuação, ou torna-se apenas caricatura ou rótulo de povo de Deus simulando seguir a Cristo.
Para atingir este objetivo, serão abordadas, a partir de uma perspectiva bibliográfica, três questões. Na primeira, são apresentados alguns fundamentos bíblicos e eclesiais da vida comunitária, essencial para os cristãos. Segue-se abordando, aspectos da vida comunitária, pelos quais possa ser efetivamente presença continuadora de Jesus. E, na terceira, busca-se enfatizar que a comunidade tem missão na sociedade. Ela existe para transformar o mundo em Reino e não para refugiar-se num espiritualismo ou intimismo, de costas para os problemas dos seres humanos e da vida da humanidade.
Antes de tudo, observamos que este trabalho é construído tendo por suporte décadas de experiências pastorais, iluminadas pela Palavra de Deus, pela prática de Jesus de Nazaré, pelo ensino do Magistério da Igreja, particularmente do Papa Francisco e de teólogos comprometidos com o povo de Deus das comunidades cristãs. Isso está de forma mais densa e fartamente descrita no livro Comunidades com o rosto de Jesus – formação de animadores cristãos, publicado recentemente por este mesmo autor. De certo modo, este texto constitui-se num breve resumo daquilo que esse livro apresenta com mais detalhes, amplitude e profundidade.1
1 A VIDA EM COMUNIDADE É ESSENCIAL PARA OS CRISTÃOS
O Evangelho e a prática de Jesus apontam para a união dos seus discípulos e discípulas, vivência de irmãos e irmãs, no amor: “Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). Propõe-nos a vida em comum, compartilhando os dons e o próprio ser, como nos deu exemplo assumindo o caminho da cruz. E não aceita atitudes e vivências de individualismo e fechamento em torno dos próprios interesses, nem de disputa por poder para sobrepor-se aos demais. O mandamento do amor se concretiza em ações e atitudes comunitárias, não no isolamento, antagonismo e solidão. Por isso, Jesus ora ao Pai pelos discípulos: “Pai santo, guarda-os em teu nome, o nome que tu me deste, para que eles sejam um, assim como nós somos um” (Jo 17,11). E na mesma oração esclarece que a missão não se reduz ao âmbito da comunidade, ela deve acontecer no mundo, na sociedade: “Consagra-os com a verdade: a verdade é a tua palavra. Assim como tu me enviaste ao mundo, eu também os envio ao mundo” (Jo 17,17-18). Ou seja, a missão de evangelizar é anunciar e ser sinal do Reino.
Os discípulos e discípulas entenderam que dar testemunho de Jesus e anunciá-Lo às pessoas e à população em geral concretizavam-se em comunidade, e a partir da comunidade cristã. Vários relatos retratam e enaltecem a comunhão fraterna e com Jesus no Espírito Santo, bem como a igualdade fundamental entre todos. Este é o fundamento que sustenta os quatro pilares das primeiras comunidades: a perseverança no ensino da Palavra pelos apóstolos; na comunhão fraterna compartilhando os dons e os bens e pondo-os em comum; na celebração e vivência eucarística (fração do pão); e nas orações e espiritualidade do seguimento (At 2,42ss). Também a Carta aos Efésios anima para a vida em comunidade: “Mantenham entre vocês laços de paz, para conservar a unidade no Espírito. Há um só corpo e um só Espírito, assim como a vocação de vocês os chamou a uma só esperança: há um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Ef 4,3-5). Da mesma forma, Paulo aos Coríntios lembra que somos diferentes, por graça do Espírito, e todos somos contemplados com dons do mesmo Espírito, sempre para o proveito comum. Ou seja, tanto nossa vida como nossos dons, recebemos gratuitamente para serem doados, codivididos e compartilhado (1Cor 12,1-17).
Para o Concílio Vaticano II (1965), a comunidade não é apenas uma coisa interessante; ela é, sim, necessária para a salvação, porque “aprouve a Deus salvar e santificar os homens não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em um povo que O conhecesse na verdade e O servisse na santidade” (LG 9). Daí se depreende que “Deus não quer que a vida das pessoas nem a sua caminhada de salvação ocorram de maneira individual, isolada, solitária ou egoísta, pois Deus nos criou para convivermos e para compartilharmos nossos dons e nossa vida” (Oro, 2023, p. 17).
O episcopado latino-americano, especialmente em Medellín (1968) e Puebla (1979), ressalta a centralidade da vida comunitária na Igreja: “De acordo com a vontade de Deus os homens devem santificar-se e salvar-se não individualmente, mas constituídos em comunidade” (Medellín, 6,9). Propõe a formação de comunidades, tanto no meio rural como nas periferias urbanas, e entende que cada comunidade cristã “se formará na medida em que seus membros tiverem um sentido de pertença (de ‘nós’) que os leve a ser solidários numa missão comum, numa participação ativa, consciente e frutuosa na vida litúrgica e na convivência comunitária” (Medellín, 6,13). Essa Conferência trouxe, em 1968, mais luzes sobre a vida em comunidades eclesiais de base, indicando que haja nelas “multiplicidade de funções” e “variedade de ministérios”, atuando de forma solidária (Medellín, 15,7).
Já na Conferência de Puebla, além da opção preferencial da Igreja pelos pobres, o episcopado assumiu a opção pelas comunidades eclesiais de base, porque “são expressão do amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas se expressa, valoriza e purifica sua religiosidade e se lhe oferece possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo” (Puebla, 643). Na Conferência de Aparecida (2007), os bispos insistem nas comunidades cristãs (CEBs e outras) e afirmam que comunidade é caminho para a evangelização. É preciso sair da pastoral de manutenção e superar as estruturas caducas. Propõem a setorização (nucleação) em rede de comunidades. A paróquia deve ser “comunidade de comunidades” (DAp 370).
A CNBB compara e afirma que a comunidade é nossa casa (CNBB, 2049, n. 129-143). Coloca quatro marcas desta casa: casa de encontro, casa de ternura, casa das famílias e casa de portas sempre abertas. Em seguida, nossos bispos estabelecem quais são, no momento atual, os quatro pilares desta casa comunidade: o pilar da Palavra, o pilar do Pão, o pilar da Caridade e o pilar da Ação Missionária (CNBB, 2019, n. 144-202).
Deus também nos fala pela nossa vida e pela história. Sentimos em nosso próprio ser que não fomos criados para ser ilhas, para existir separados ou avulsos. Existimos por graça de Deus, para compartilharmos a vida e fazer dela missão. Criados à imagem e semelhança de Deus, que é comunidade de três pessoas, nossa vida é missão e somos enviados para a fraternidade e comunhão. O batismo nos torna comunhão de irmãos e irmãs, sem privilegiados, todos a serviço uns dos outros, não uma falsa comunidade de desiguais, ao contrário, quem for o primeiro faça-se o último e aquele que serve a todos, lavando os pés de seu próximo (Mc 10,43-45; Jo 13,4-17). Continuamente percebemos que necessitamos da comunidade, ela nos humaniza, nos faz crescer em várias dimensões, sobretudo para sermos seguidores de Jesus, de verdade, para viver sua vida e ser salvos. Ao mesmo tempo, a comunidade precisa de nós. Quando não há participação e colaboração, falta vida verdadeira na comunidade, sente-se um vazio, ausência e desânimo. E isso diminui a alegria da vida e esmorece a missão dessa comunidade (Oro, 2023, p. 34-35).
A participação consciente e assídua na comunidade propicia aos cristãos e às cristãs: formarem-se na fé e na Palavra; cultivarem sua mística numa relação amorosa com Deus através das celebrações litúrgicas e dos sacramentos; sentirem-se humanos pela convivência espontânea, solidária, gratuita e fraterna; realizarem gestos de amor fraterno e ações solidárias organizadas que promovem e libertam os irmãos e irmãs necessitados de situações que fragilizam suas vidas; empenharem-se em atividades missionárias, indo ao encontro como Igreja em saída (EG 24); e serem, assim, presença amorosa de Jesus, o rosto dele e sua ação humanizadora e libertadora junto às pessoas.
Como realizar tudo isso e ser essa presença e atuação se não houver vida comunitária? Praticamente impossível. Por isso, há algumas décadas, o povo católico aprendeu e sabe que, como Igreja, somos comunidade de fé, de celebração, de compromisso de amor pela vida e de atuação missionária. Tudo isto porque, como somos ensinados pelos nossos pastores, participando de Cristo assumimos os serviços de sacerdote, profeta e pastor, identidade que nos confere dignidade, mas igualmente, importante compromisso.
Na prática, todos temos ciência de que nós precisamos uns dos outros, precisamos da comunidade; e a comunidade precisa de nós. Guardamos na memória aquela histórica Oração pela Humanidade, do Papa Francisco, em 27 de março de 2020, durante a desconcertante pandemia. Com sua sabedoria e profundidade espiritual, Francisco nos legou em linguagem simples um irrefutável ensinamento: “À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. E prossegue perspicaz: “Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”. Em outros termos, estamos todos no mesmo barco, então é necessário, em conjunto, reajustar nosso ritmo e sentido de vida. Pois, ou nos salvamos juntos, ou juntos pereceremos.
Nossos bispos acentuam falando de outra maneira: “Quem busca Jesus precisa viver uma forte e atraente experiência eclesial” (CNBB, 2017, n. 106). Por conseguinte, propõem uma verdadeira iniciação cristã que propicie o fortalecimento da vida em comunidade. Pois, tal iniciação “promove o encontro pessoal e comunitário com Jesus, o discipulado missionário, a inserção na comunidade eclesial, a participação na vida litúrgico-sacramental e o engajamento na transformação da sociedade” (CNNB, 2017, n. 110). Quer dizer, autênticos seguidores de Jesus vivem em comunidade, têm o rosto e a prática de Jesus e contribuem na missão à qual Ele incumbiu a Igreja. Pode-se afirmar que, mesmo se vestindo, se comunicando e se alimentando como outras pessoas, a partir da vivência em comunidade,
os cristãos verdadeiros não vivem como as outras pessoas, como os pagãos; mas, sim, se esforçam por viver como Jesus; não seguem os esquemas e mentalidades da sociedade em geral, mas assumem os princípios do Evangelho e do projeto de Jesus; não vivem fechados em torno dos interesses particulares, ao contrário, fazem do próximo e da vida do povo o objetivo de sua existência, o motivo para o rumo e doação da sua vida (Oro, 2023, p. 53-54).
2 A COMUNIDADE VERDADEIRA É PRESENÇA DE JESUS
A comunidade eclesial missionária e sinodal se reúne, convive, celebra, organiza atividades pastorais e evangelizadoras e vivencia momentos solidários, humanos e fraternos. Em comunidade, quando se está realmente em comunhão com Deus, acontece a escuta atenta da Palavra e dos sofrimentos e clamores dos seres humanos e do planeta. A comunidade enquanto comunhão de pessoas de fé, como os cristãos individualmente, conscientes e radiantes por participarem da missão de Jesus, esforçam-se para viver de maneira acolhedora, próxima e amorosa junto a todos os seres humanos, particularmente aos que sofrem. Tais atitudes, com respeito e amor verdadeiro, ajudam as pessoas a terem mais esperança e curar muitas feridas. Como expressa Pagola,
ao confiar sua missão aos discípulos, Jesus os imagina não como doutores, hierarcas, liturgistas ou teólogos, mas como curadores. (...) A primeira tarefa da Igreja não é celebrar o culto, elaborar teologia, pregar moral, mas curar, libertar do mal, tirar do abatimento, sanear a vida, ajudar a viver de maneira saudável. Esta luta pela saúde integral é caminho de salvação e promessa de vida eterna (2013, p. 43).
Pode-se afirmar que, nutridos pela vivência e missão da comunidade cristã, os discípulos de Jesus sentem a alegria de sua presença e vão assimilando as principais atitudes dele, como o acolhimento dos excluídos e sofredores, o amor e a misericórdia. “É assim que se começa a viver a fé na vida, não apenas na mente e no coração: fazer a experiência de conviver com Jesus. E, a partir daí, começa-se a orientar a vida de modo diferente, dando uma nova, bonita e profunda direção” (Oro, 2020, p. 86).
Esta compreensão vai na linha do que Pagola insiste com frequência. O mais decisivo ao cristão é viver como Jesus vivia: “Crer no que Ele acreditou, dar importância ao que Ele dava, interessar-se por aquilo que Ele se interessou. Olhar a vida como Jesus a olhava, tratar as pessoas como Ele as tratava: escutar, acolher e acompanhar como Ele o fazia” (Pagola, 2013, p. 42). Para ele, também, quem caminha com Jesus
começa a recuperar a alegria e a sensibilidade para com os que sofrem. Começa a viver com mais verdade e generosidade, com mais sentido e esperança. Quando a pessoa se encontra com Jesus tem a sensação de que começa finalmente a viver a vida a partir de sua raiz, pois começa a viver a partir de um Deus bom, mais humano, mais amigo e salvador que todas as nossas teorias. Tudo começa a ser diferente (2013, p. 45).
Para os cristãos realmente iniciados na vida de comunidade eclesial, a fé em Jesus não é apenas intelectualizada, uma ideia de que Ele existiu e do que Ele foi, distante e desligado da gente; mas é mobilizar o seu mundo interior e viver uma experiência com Ele. É pensar e viver sua presença viva em nós, crescer na intimidade com Ele, encantar-se por Ele, por seu mistério e projeto. É perceber seu Espírito que nos move a viver de modo muito mais humano. É “intuir a força de seu amor ao ser humano, sua paixão pela vida, sua ternura para com o fraco, sua confiança total na salvação de Deus” (Pagola, 2013, p. 47).
Com tal energia e direção, nós, cristãos/ãs, tornamo-nos presença hoje do mesmo Jesus, assimilando e realizando os gestos que fazia e as atitudes que o caracterizavam. Temos, dessa forma, sensibilidade para com os doentes, enfermos e empobrecidos. Não nos acostumamos nem nos acomodamos facilmente com as violências, mortes e a destruição da natureza. Ao contrário, as dores dos que são desrespeitados em seus direitos, dos que carecem de condições dignas básicas de vida, dos que são discriminados e desprezados por serem de tal condição étnica ou social impactam nosso ser cristão, mexem com nossa cabeça e coração, e nos movem à indignação e à ação, iniciando por atitudes profundamente fraternas e amorosas no cotidiano de nossa comunidade, e chegando a iniciativas transformadoras das estruturas. Como expressam os bispos na Conferência de Medellín:
No momento atual de nossa América Latina, como em todos os tempos, a celebração litúrgica comporta e coroa um compromisso com a realidade humana, com o desenvolvimento e a promoção, precisamente porque toda a criação está envolvida pelo desígnio salvador que abrange a totalidade do homem (Medellín, 9,4).
Comunidade que entende que sua missão é a de Jesus vive em forte comunhão. Sente-se como um canteiro do Reino e existe para a missão. Sendo corpo de Cristo, seus membros compartilham os dons e sua vida para o proveito comum. Seguindo as pegadas do Mestre, a comunidade vive sua condição de evangelizadora, educando por seu testemunho, diálogo, anúncio e serviço, na fé e no amor. O poder em cargos, coordenação e hierarquia é exercido de maneira democrática e participativa, e sempre a serviço do povo de Deus e do Reino. Quanto possível, os serviços são exercidos em conjunto, em grupos e não apenas individualmente, propiciando maior oportunidade e espaço de participação e corresponsabilidade.
A comunidade verdadeiramente presença de Jesus vive o princípio da misericórdia, exerce o cuidado das vidas e ajuda a curar e restabelecer. Como o projeto de Jesus, o serviço e o método de ação da comunidade humanizam mais e mais. Aberta e atenta à força do Espírito que a anima, a comunidade não vive com qualquer espírito, mas se dedica a viver a espiritualidade de Jesus. Os ministérios, suscitados pelo Espírito, são vivenciados corresponsavelmente, sem competição nem se isolando cada qual em seu setor (em sua “gaveta”). Todos os batizados/as sentem-se vocacionados e fazem da prática de sua vida uma resposta ao chamado de Deus para cooperar na sua obra. A partilha do dízimo e a colaboração nas coletas revelam a generosidade de Deus, mas também, da parte dos cristãos, a gratidão e o amor a Deus e à Igreja.
Conscientes de serem todos Igreja, cristãos e cristãs aprendem e praticam na comunidade a sinodalidade, escutando, refletindo, decidindo e caminhando juntos. Na prática do diálogo, exercem o esforço da caridade fraterna, bem como a compaixão misericordiosa a todos os diferentes, proporcionando-lhes serem também sujeitos da caminhada da Igreja e sentirem-se irmãos entre irmãos. Também o atual Sínodo dos Bispos, reconhece a importância das comunidades e a notável atuação nelas por parte dos fiéis leigos:
Os fiéis leigos são cada vez mais presentes e ativos também no serviço dentro das comunidades cristãs. Muitos deles organizam e animam comunidades pastorais, prestam serviços como educadores da fé, teólogos e formadores, animadores espirituais e catequistas, e participam em vários organismos paroquiais e diocesanos (XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, 2023, 8e).
Enfim, compreende-se que, como comunidade com rosto de Jesus, é preciso esforço para, seja diante de católicos que se afastaram, seja diante das pessoas que vivem uma fé diferente, ou das que escolheram outras denominações, evitar sempre a
intolerância, discriminação, indiferença, competição, estranheza e hostilidade. Práticas fundamentalistas, sectárias e demonizadoras jamais combinam com os seguidores de Jesus, chamados a viver como irmãos e irmãs. Por outro lado, animados pela Palavra e vida de Jesus, temos que nos esforçar sempre em dialogar, valorizar e, dentro das possibilidades, somar esforços em ações conjuntas de amor ao próximo e defesa da vida. Crescendo juntos neste sentido, não tardarão em chegar os momentos de encontros fraternos e de oração em conjunto, também de reflexão sobre aspectos da crença, da fé e da doutrina de cada qual (Oro, 2023, p. 160).
3 “Eu os enviei ao mundo” (Jo 17,18b)
A Igreja não existe para si mesma, é para a missão no mundo que ela existe. A comunidade cristã é, como a Igreja, sacramento do Reino. Sua missão não consiste em promover-se e encantar-se narcisicamente com sua organização, suas belas celebrações ou com uma poderosa presença e performance impactando a comunicação na sociedade. A comunidade Igreja existe para o Reino de Deus, para prestar um serviço de vida e libertação integral no mundo. Aquilo que vive e cultiva dentro da vida eclesial objetiva nutrir, iluminar e impulsionar a missão no mundo. Evidentemente, não se está desprezando nada da vida interna da Igreja; está-se afirmando que as liturgias, os sacramentos, a escuta da Palavra, a iniciação cristã, os ministérios diversos, o atendimento das pessoas, a ajuda aos necessitados, as pastorais e demais serviços, tudo isto tem sentido mais pleno e mais razão de ser quando, tanto os cristãos de maneira pessoal quanto a comunidade como célula da Igreja, com esse vigor e luz conseguem transformar as relações interpessoais, os valores que contam, os interesses pessoais e de grupos, as políticas, projetos, modos de produção, padrões culturais, mecanismos e estruturas das sociedades (EN 19).
Dizendo de outra forma, tudo o que se vive e se faz na Igreja – sua metodologia, exercícios de poder, modo de ouvir e decidir, o uso e organização do patrimônio, o acolhimento às pessoas, os processos formativos, a organização sinodal das estruturas – precisa brilhar como luz para que mais gente adira a Jesus e ao seu projeto e glorifique o Pai que está no céu (Mt 5,16). A preocupação maior de Jesus era com os seres humanos que padeciam múltiplas exclusões, opressões e carências. Não era o sucesso do templo nem da sinagoga, não eram os cultos judaicos nem a polêmica em torno de pontos doutrinais. Aliás, combateu o ritualismo e o legalismo imposto sobre o povo (Mt 15,1-9; 23,1-36; 5,20).
O padre Júlio Lancellotti, dedicadíssimo aos vulneráveis e ao povo em situação de rua, também entende que a comunidade não existe para si mesma:
Nossas comunidades, muitas vezes, parecem clubes fechados. Elas só olham para si mesmas e pensam: Precisa melhorar isso, arrumar aqui, embelezar aquilo. Não é essa a função da comunidade cristã. Ela deve acolher os que sofrem, estar ao lado dos que estão feridos e esquecidos. Ela não pode se esquecer de causar incômodo. Se nossa fé não incomoda a ordem estabelecida é porque estamos fazendo parte dessa ordem, que, em geral, está estabelecida injustamente. Nem toda ordem é justa, nem toda lei é reta. Muitas vezes, nossa palavra tem de denunciar a injustiça da regra (Lancellotti, 2021, p. 115).
Papa Francisco, de maneira clara e até incisiva, diz que somos Igreja em saída, que é preciso viver a proximidade junto às pessoas fragilizadas tocando a carne dos pobres e excluídos, primeirar, acolher os marginalizados e integrá-los no convívio social, aprender dos simples e pobres deixando-se evangelizar por eles, etc (Francisco, 2016). Em suma, pode-se dizer que ele nos propõe a missão de tornar mais digna e humana a vida das pessoas, tornar mais justo e solidário o nosso mundo, tão cheio de injustiças, indiferença, insensibilidade, intolerância e descuidado com os humanos e com a vida do planeta. Não basta viver o amor e fraternidade no cotidiano interno da Igreja. “Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e fragiliza a dimensão comunitária da existência” (FT 12). Nosso Papa recorre com frequência ao ensino de Jesus na parábola do bom samaritano. Meditando-a, podemos nos perguntar: com qual personagem na parábola nos identificamos, com o sacerdote, o levita ou o samaritano? As atitudes dos cristãos são marcadas pelo ver os caídos, aproximar-se, mover-se de compaixão, tratar as feridas, carregar os machucados, gastar tempo fazendo-se presença e desembolsar para ajudar concretamente?... A vida do próximo e o convívio com ele, são objetivos e motivação de nossa existência?
Por conseguinte, recordemos que para isso existe uma enorme riqueza de ministérios, serviços e vivências, na Igreja, para realizar sua missão no mundo. Tanto as suas ações sociais como o envolvimento de cristãos em organizações populares, pelo testemunho e opção que revelam, ensinam na prática o Evangelho e o caminho de Jesus. Mostram que Deus quer a vida, a igualdade fundamental entre todos, a compaixão, o direito e a justiça. Portanto, a Igreja tem
Uma grande diversidade de ações, sempre em vista da comunhão fraterna na comunidade e sempre para os cristãos e a Igreja realizarem melhor sua missão no mundo: anunciar e testemunhar o Evangelho, sendo sinal e instrumento do Reino de Deus na história e na sociedade. Quando as pessoas entendem que sua vida aqui na terra é uma missão e que é Deus que nos chama, buscam descobrir em que podem contribuir mais e melhor e dão seu sim a Deus e à comunidade. (Oro, 2023, p. 144).
Consciente de sua missão a serviço do Reino, a comunidade cristã promove a vida dos pobres, das pessoas oprimidas e de todas. Busca superar o simples assistencialismo, para promover e libertar, ajudando as pessoas a serem sujeitos e cidadãos. Sabe que a fé tem dimensão política, implicação social, não se reduz ao íntimo e ao âmbito particular das pessoas. Quando denuncia injustiças e combate políticas de morte, o faz em nome do Evangelho e para viver o amor. O amor não é de palavras ou apenas de sentimento, mas de partilha, de relação fraternal, ajuda concreta e inclusão social. Na comunidade vive-se o serviço solidário e gratuito, sentindo alegria em servir. A palavra política e sua dimensão não podem assustar.
Até mesmo as atitudes de omissão são políticas. [...] Se ajudo os pobres, estou fazendo política e sendo bom cristão. Se não ajudo, faço a política da cumplicidade com a morte e o sofrimento. Se defendo os direitos, estou amando o povo, ajudando-o a ter mais dignidade; se não defendo os direitos, faço a política da desigualdade, deixando a sociedade ter, de um lado, privilegiados, e, de outro, os que passam necessidade. Neste último caso, nós cristãos e o povo decidimos e deixamos acontecer a política da desigualdade e desprezo dos seres humanos (Oro, 2023, p. 181).
Portanto, somos responsáveis tanto pela vida, como pela morte dos irmãos e irmãs. Papa Francisco alerta as comunidades a viverem a eficácia no amor aos pobres e à Casa Comum. Para ele, é “unicamente a partir desta proximidade real e cordial que podemos acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação”; e essa vivência é “a maior e mais eficaz apresentação da boa-nova do Reino” (EG 199). Esclarece outrossim que, quando não há comprometimento com o amor aos pobres e à Casa Comum, a comunidade “facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios” (EG 207). Está claro que não bastam práticas religiosas e reuniões infecundas. Urge dar eficácia ao amor aos pobres, com verdadeira solidariedade, aproximação a eles e ações que promovam sua dignidade. Esse amor verdadeiro e eficaz deve levar ao enfrentamento das causas que geram pobreza e injustiça social, produzidas em boa parte por pessoas de poder e estruturas injustas. Pois a Igreja, diz Francisco, “não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça” (EG 183). Sinal do Reino, a comunidade cristã trabalha para que haja transformação social. Aliás, se é pra deixar tudo como está, não precisaria haver Igreja.
Para uma evangelização eficaz com os pobres, Papa Francisco aponta diversas formas e atitudes, que enumeramos aqui brevemente. a) A proximidade aos pobres e a escuta de seu clamor. “Estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo” (EG 187). b) Converter-se para os pobres. Considerar a vida da humanidade acima das coisas materiais e do capital. Assim, “a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde” (EG 189). E insiste que em nossa vivência “há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora” (EG 195). c) Ser uma Igreja pobre para os pobres (EG 198). Não apenas fazer algo pelos pobres. Colocar os pobres “no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus quer nos comunicar através deles” (EG 198). d) Nosso Papa lembra outrossim que a solidariedade inclui a dimensão transformadora. “Estas convicções e práticas de solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações e as tornam possíveis. Uma mudança nas estruturas...” (EG 189).
Dessa forma, pode-se afirmar que “não é verdadeiro amor aos pobres enquanto aceitamos a sociedade assim, gerando bolsões de pobreza, excluindo seres humanos, aumentando as disparidades, cometendo enormes injustiças e sendo sociedade de mentiras” (Oro, 2023, p. 189).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caminhamos com esta reflexão sinalizando que, quando se vive realmente em autênticas comunidades cristãs, as atitudes e as opções da vida configuram-se com o agir de Jesus. Para quem segue Jesus, dedicar-se ao próximo, ajudar os necessitados, doar-se à sua comunidade, empenhar-se na transformação deste mundo para que seja presença do Reino, tudo isso não se reduz apenas a algum gesto esporádico e ocasional, nem à soma de algumas ações. Os cristãos de comunidades com o rosto de Jesus encaram isto como o sentido de sua existência, como a direção norteadora de sua vida. Sabem que, por existirem por graça de Deus, não se vive para si mesmo, mas se vive e convive com os outros/as, perdendo sua vida em favor do próximo, e assim salvando e encontrando a vida verdadeira (Mt 16,25).
Portanto, “a busca do bem comum, a defesa e promoção da vida das pessoas frágeis, a valorização dos últimos da sociedade, a firmeza no combate aos mecanismos de morte da política e da economia” fazem parte da essência do discipulado, e precisam configurar o modo de agir, de ser e de viver (Oro, 2023, p. 186-187).
Sabemos que na caminhada da Igreja pós-Vaticano II, em muitos lugares, não se deu a atenção necessária para o cultivo da vida fraterna em comunidade. Algumas delas confundiram comunidade com sociedade. Ser comunidade cristã é mais do que ser sócio de uma determinada sociedade cristã ou católica. Sociedade aponta para solução conjunta de interesses individuais, em um ou mais aspectos. Alguns membros de comunidades pensam mais no cemitério da Igreja para sepultar seus entes queridos, ou no salão comunitário para festejar. Francisco diria que “aqueles que são capazes apenas de ser sócios criam mundos fechados” (FT 104). Ou seja, nosso Papa aponta o limite da mentalidade de sociedade, de ser sócio, pois ao mesmo tempo se prende ao seu círculo e exclui os que dela não fazem parte. Em comunidade cristã, os participantes são membros e se propõem a viver, em boa medida, a vida em comum. Isto, na fraternidade e no amor, no compromisso de defesa da vida e do Reino.
Em suma, a prática evangelizadora das comunidades com o rosto de Jesus necessita de melhor cultivo da espiritualidade que Ele tinha, de aprofundamento em conteúdos bíblicos, humanos e teológicos, de dedicação para convivência sinodal e participativa, enfim, passa por opções e decisões pessoais e grupais. Há que se decidir e escolher de viver e de ser comunidade com rosto de Jesus, isso não ocorre ao acaso. Na evangelização, igualmente, cresce-se fazendo o caminho em conjunto. Não bastam esquemas e teorias. Além da profunda motivação e clareza de fé comprometida com Jesus e com seu projeto, é indispensável uma metodologia adequada para o cotidiano da vida comunitária. O como se faz, se organiza e se vive faz parte do ser cristão e da prática evangelizadora das comunidades com o rosto de Jesus.
Felizmente, mesmo que tenhamos ainda um longo caminho a percorrer, podemos constatar que muitos irmãos e irmãs já sentem o gosto de viver sua vida fraterna comunitária. Quantos se doam ao próximo e à vida da Igreja, quantos vivem mais para a comunidade do que para si próprios, quantos têm coragem e não assistem passivamente as injustiças e sofrimentos alheios! Nesses gestos e nesse dar a vida percebem-se sinais de esperança: o antirreino pode ser vencido e haver um mundo novo, a morte pode ser derrotada pela vitória da cruz e doação de nossa gente de fé autêntica, e o projeto de vida e liberdade poderá derrotar as forças do mal que seduzem e reproduzem o individualismo, a ganância e o fechamento em torno de si próprio. Isso é possível, sim, graças à força de Deus presente na ação evangelizadora de comunidades com o rosto de Jesus.
Referências
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CELAM. Documento de Medellín (A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio). Petrópolis: Vozes, 1969.
CELAM. Documento de Puebla – Evangelização no presente e no futuro da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1979.
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CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2019-2023. Brasília: Edições CNBB, 2019.
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. Petrópolis: Vozes, 1968.
LANCELLOTTI, Júlio. Amor à maneira de Deus. São Paulo: Planeta, 2021.
ORO, Ivo Pedro. Comunidades com o rosto de Jesus: formação de animadores cristãos. Chapecó: Arcus, 2023.
ORO, Ivo Pedro. Grão de mostarda: reflexões dominicais do Ano B. Chapecó: Arcus, 2020.
PAGOLA, José Antonio. O Caminho Aberto por Jesus: Marcos. Petrópolis: Vozes, 2013.
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PAPA FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco aos participantes no capítulo geral dos missionários oblatos de maria imaculada. Vaticano: Libreria vaticana: 7 de out. de 2016 Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/october/documents/papa-francesco_20161007_capitolo-oblati.html Acesso em: 01.04.2023.
PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Brasília: Edições CNBB, 2013.
XVI ASSEMBLEIA GERAL DO SÍNODO DOS BISPOS. Relatório Síntese: Uma Igreja Sinodal em Missão. Vaticano: Libreria vaticana: 2023.Disponivel em: Acesso em: 01.04.2023.
1 O livro Comunidades com o rosto de Jesus: formação de animadores cristãos, foi publicado pela Arcus Indústria Gráfica, de Chapecó, no final de 2023, e encontra-se disponível na Tenda Católica (fones 49-33225215 e 49-984231353), livraria dessa Arquidiocese.