POR UMA FENOMENOLOGIA DA AMIZADE SOCIAL

Towards a phenomenology of social friendship

DOI: https://doi.org/10.52451/993yr845

Recebido em 22/12/2023

Aprovado em 23/02/2024

Edebrande Cavalieri

Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Autor dos livros “Via a-teia para Deus e a ética teleológica a partir de Edmund Husserl” (Edufes, 2012), “Estudos de fenomenologia da religião” (CRV, 2018), “Ética e religião” (CRV, 2016), “Fenomenologia e Constelações Familiares” (CRV, 2021), “Conjuntura eclesial e religiosa” (CRV, 2020), “Nas trilhas de Francisco” (2022). Foi coordenador do Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória de 1985 a 2009, e professor de História da Igreja no mesmo instituto de 1985 a 2019. Tem coluna semanal no site da Arquidiocese de Vitória – aves.org.br Contato: edebrande@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3364-1042

Resumo: Tomando por base a fenomenologia desenvolvida por Edmund Husserl, especialmente seus escritos da década de 1930, pretende-se estabelecer um diálogo com o pensamento do Papa Francisco expresso na Encíclica Fratelli Tutti. São dois personagens da história separados por um século, contudo os dois manifestos diante da irracionalidade do mundo não apenas são semelhantes, mas compactuam das mesmas aspirações. Dessa forma, ao mostrar uma fenomenologia da amizade social baseada no retorno ao mundo da vida e o desenvolvimento da experiência intersubjetiva, chegamos à proposta final de uma aspiração ao amor ético, ao amor social.

Palavras-chave: Amizade social. Fenomenologia. Mundo da vida. Intersubjetividade. Amor ético.

Abstract: Based on the phenomenology developed by Edmund Husserl, especially his writing from the 1930s, we intend to establisch a dialogue with the thoughts of Pope Francis expressed in the Encyclical Fratelli Tutti. They are two characters in the story separated by a century, however, both manifests in the face of the irrationality of the world are not only similar, but share the same aspirations. In this way, by showing a phenomenologu of social friendship based on the return to the word of life and the development of intersubjective experience, we arrive at the final proposal of an aspiration to ethical love, to social love.

Keywords: Social friendship. Phenomenology. World of life. Intersujectividy. Ethical love.

A PROPOSTA DE REFLEXÃO

A Encíclica do Papa Francisco Fratelli Tutti, em nosso modo de pensar, além de ser uma convocação do povo católico para uma retomada da proposta de São Francisco de Assis para que se tomasse como forma de vida um amor que ultrapassasse as barreiras geográficas e do espaço considerando que TODOS SOMOS IRMÃOS, é também o grande manifesto diante de uma humanidade destroçada pelo ódio e pela indiferença. Nesse manifesto, o amor torna-se a base das relações sociais e pessoais, mas também é base para a relação entre as nações e os povos. Ou seja, nesse manifesto está um sonho que é o fazer do amor uma cultura que vai impregnando toda a humanidade.

Há mais ou menos cem anos atrás, o filósofo Edmund Husserl também fez de sua fenomenologia um radical manifesto diante daquilo que ele classificava como adoecimento da vida espiritual da humanidade europeia, entendida para além do espaço geográfico europeu; tratava a Europa como formação cultural que tinha origem no mundo greco-cristão. Para ele, tratava-se do esquecimento daquilo que nos remeteria para o sentido mais originário da vida espiritual desse mesmo homem, que ao longo dos tempos modernos, seduzido pelo desempenho das ciências positivistas, acabou naturalizando todos os processos significativos do homem. Vivia num contexto histórico pós I Guerra Mundial e o advento dos regimes totalitários, especialmente o nazismo na Alemanha onde habitava e trabalhava, sendo de origem judaica.

O contexto histórico era dos mais desafiadores. A luta pela liberdade parecia utopia. Os estragos sociais, econômicos e políticos decorrentes da Guerra estavam em todos os lugares. Como superar essa crise? Conforme Husserl, essa crise “da existência europeia só tem duas saídas: ou o ocaso da Europa num distanciamento de seu próprio sentido racional da vida, o afundamento na hostilidade ao espírito e na barbárie, ou o renascimento da Europa a partir do espírito da filosofia” (1996, p. 85) que ajude a superar o naturalismo cientificista. Porém, o maior perigo é o cansaço. Este não pode impedir o nascimento da “fênix de uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade” (1996, p. 85).

Tomando os dois diagnósticos da crise que toma conta da humanidade toda e não apenas aquela indicada por Husserl como formação cultural ocidental e não apenas geográfica, busca-se nessa reflexão encontrar fundamentos externos à teologia e ao Magistério da Igreja na perspectiva de um diálogo acadêmico-eclesial, para que possamos ampliar isso que chamamos “amor social” ou amizade social. Sendo diagnósticos parecidos, podemos tentar um diálogo com a fenomenologia, visando encontrar elementos que sustentam esse magnífico manifesto sob a forma de Encíclica, a Fratelli Tutti.

OS DIAGNÓSTICOS

O olhar husserliano está focado num contexto posterior à Primeira Guerra Mundial e o surgimento dos regimes totalitários e estava claro o campo devastado pela guerra destruindo qualquer possibilidade de sentido para as ações humanas. “Se ela já tinha se tornado vacilante antes da guerra, agora desmoronou-se completamente” (1989, p. 4). Contudo, sua postura não é de ceticismo diante das coisas, mas acredita na possibilidade de se constituir uma reforma radical da cultura que pudesse conduzir a humanidade em direção a uma humanitas autêntica. Por isso, escreve em 1923 (2002, p. 4), “renovação”, pois algo novo deve suceder.

O Papa Francisco faz um diagnóstico bem semelhante na Encíclica mostrando que vivemos nas “sombras dum mundo fechado”, com tantos sonhos desfeitos e feitos em pedaços, com sinais claros de “regressão”, onde as pessoas carecem de uma consciência histórica e, o mais grave disso tudo, a ausência de “um projeto para todos”. A sua expectativa está na necessidade “de nos constituirmos como um “nós” que habita a casa comum (n. 15-17).

O RETORNO AO MUNDO DA VIDA

Nesse caminho de se constituir um “nós” que habita a casa comum encontramos na fenomenologia husserliana a proposta do retorno ao mundo da vida (Lebenswelt), como forma de se reaproximar da vida diante dos diversos domínios, que foram destruindo a vida subjetiva das pessoas, as possibilidades de encontros e de vivências intersubjetivas. As pessoas foram reduzidas a meros corpos. A recuperação do mundo da vida de maneira concreta se encontra no mundo das experiências imediatas das pessoas que inclui os elementos culturais e as diversas formas de intersubjetividade. O mundo da vida é dinâmico, vivo, vivido intersubjetivamente. Não haverá um “nós” prescindindo da vivência intersubjetiva, que é possível encontrar no mundo da vida. Como falar de amizade social sem essa reaproximação ao mundo de nossos convívios, de nossas vivências, de nossas relações intersubjetivas? Portanto, não se deveria saltar para as macrorrelações de imediato, mas partindo das microrrelações, desenvolvidas e experienciais nas pequenas comunidades.

É no mundo da vida que as religiões se encontram e também se destroem. Corre-se o risco de criarmos conflitos entre as religiões decorrente do não entendimento adequado das concepções dos seus membros apresentados de forma a alimentar a injustiça, a intolerância e a violência.

Contudo, o Papa Francisco nos chama a atenção dizendo que as religiões estão ao serviço de uma fraternidade no mundo. Torna-se fundamental o diálogo entre as diversas religiões, pois enquanto filhos de um mesmo Pai, não podemos nos sentir órfãos. As religiões têm uma grande contribuição para o caminho da paz, do encontro entre os diversos sujeitos e as diversas culturas. Também “os crentes precisam de encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres” (n. 282). No mundo da vida, podemos encontrar-nos com os outros que pensam de maneira diferente.

O retorno ao mundo da vida somente é possível mediante o encontro das pessoas. Nele torna-se possível o encontro com a história que se constitui concretamente, com a cultura, com os valores, com as diferenças. Não se trata de um conjunto de objetos dados, mas de um mundo subjetivo do qual emerge toda a atividade humana. Temos que tomar muito cuidado com a tentação de nos colocarmos em posição de domínio ou superior em relação a esse mundo da vida. Não somos os donos da verdade. O encontro com as pessoas para a constituição da amizade social não está garantido e seguro com a imposição de preceitos doutrinários, mas tem eficácia na medida em que encontramos as pessoas em suas culturas mesmas, em seus valores. Husserl falava desde o início da necessidade de “voltar às coisas mesmas”. Tantas vezes somos carregados de preconceitos a respeito das religiões e dos religiosos.

Por que se teme tanto o encontro com o diferente? Por que resistimos tanto em conhecer as crenças diferentes das nossas? Quem teme perder a própria identidade ao retornar a esse mundo da vida, medo de perder a fé, dificilmente terá condições para o encontro entre as diversas religiões, as diversas nações. Terá enormes dificuldades de caminhar na constituição da amizade social.

Assim, o mundo da vida se apresenta como um horizonte em que se torna possível o encontro das pessoas, das culturas. É nesse horizonte que podemos constituir a vida ética e intersubjetiva. Nele torna-se possível a conexão entre vida, ética, religião, cultura. E nesse horizonte a fé vai encontrando novos horizontes cada vez mais novos e vitais. Contudo, é preciso considerar que nesse espaço o caminho essencial se mostra como intersubjetivo. Aqui nos encontramos com a segunda contribuição da fenomenologia para fundamentar a amizade social.

A EXPERIÊNCIA INTERSUBJETIVA

O desafio de compreender de maneira concreta a intersubjetividade decorre, em nosso entendimento, do próprio modelo moderno de pensar oriundo do pensamento cartesiano. Nas Meditações vemos como Renè Descartes no processo da dúvida metódica chega ao limite do pensar encontrando uma substância pensante (Res cogitans). Tenho certeza que “eu penso”. De modo separo temos o mundo concreto das coisas, a Res extensa. Entre os dois mundos não há nenhuma conexão.

Em si mesma, a verdade ou certeza do ego cogito não nos garante nem universalidade e nem objetividade. Qual a importância de um eu isolado que pensa? Separado do mundo e dos outros de nada vale. Estamos diante de um solipsismo difícil de ser superado. É nessa situação que o pensamento moderno irá afirmar a ideia de Deus, definida como inata por Descartes, como o fundamento da alteridade necessária ao conhecimento universal. Deus se torna um recurso lógico. Deus assim colocado como mecanismo da razão é a garantia da verdade, da certeza, da universalidade do conhecimento.

Por isso, torna-se difícil a constituição de uma amizade social que se funda intersubjetivamente sem lançar mão da perspectiva teológica. Não estamos negando a valor teológico da amizade social, contudo a cultura moderna acabou corrompendo a própria maneira de pensar Deus. Tantas imagens de Deus disseminadas pelos líderes religiosos pouco têm a ver com o Evangelho de Jesus Cristo de um Deus amoroso. Difícil falar em amor social sem recuperar a verdadeira imagem de Deus descrita pelos evangelistas.

O pensamento de Husserl segue o de Descartes até o momento do cogito. Nessa altura a fenomenologia dirá cogito cogitatum. Eu penso algo, eu encontro o outro, o outro não é fantasia. O outro tem corpo e está diante de mim. O mundo não é o que eu penso, mas o que eu vivo. Eu estou aberto ao mundo. A fenomenologia da amizade social terá outro percurso pela frente, diferente da via cartesiana. Em Meditações Cartesianas Husserl descreve pormenorizadamente esse caminho, que é empírico desde o início. Como é possível a alteridade? Como é possível a existência do outro? Ele não é um fantasma. Ele possui corpo. É um corpo vivencial. Um corpo vivo. É o corpo de outra pessoa, semelhante ao meu corpo, mas distinto dele. Essa será a grande novidade e contribuição da fenomenologia para a constituição de um fundamento da amizade social. Ela se funda no encontro de corpos, e não de fantasmas, de fantasias, de representações. É preciso ir ao encontro do outro, de maneira concreta.

A existência do outro é tão importante na fenomenologia como a ideia de Deus em Descartes. O corpo torna-se um novo sujeito. Por isso, não tem cabimento pensar numa amizade social sem considerar essa corporalidade que está diante de mim como um outro. Sempre dizemos da força da intencionalidade fenomenológica, porém ela não é mental, não é uma vontade. A intencionalidade é antes de tudo corporal. A amizade social é antes de tudo corporal. Ela se faz corpo na presença de outros corpos. Os outros não são simples representações ou objetos representados. Diz Husserl em Meditações Cartesianas (2001, p. 143):

Se me introduzo no outro pelo pensamento e se penetro mais adiante nos horizontes daquilo que lhe pertence, logo me defronto com o seguinte fato: da mesma forma que seu organismo corporal encontra-se no meu campo de percepção, assim também o meu se encontra no campo dele e, geralmente, ele me apreende de maneira igualmente imediata como outro para ele, assim como eu o apreende como “outro” para mim.

Somente seguindo a dinâmica constitutiva dos entes como é o caso do outro é que se torna possível o sentido da empatia (Einfühlung). Trata-se do mistério do outro, pois a sua constituição em mim se dá de forma diferente da constituição dos objetos. Daí a importância radical da responsabilidade ética no relacionamento com o outro enquanto sujeito transcendental, portanto, no mesmo nível de mim mesmo, enquanto pessoa. “Existindo, o ego vivencia no Outro a experiência de si” (2001, p. 161).

É muito importa perceber como o Papa Francisco percebe que determinadas “formas de agir e de pensar nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro” (n. 41). Essas formas de pensar e agir são a negação da possibilidade da alteridade em nós como experiência intersubjetiva. São a negação de toda e qualquer empatia, que é sentir o outro dentro de si.

Empatia não tem nada a ver com simpatia.

Quando eu encontro uma pessoa logo posso reconhecer que se trata de um ser humano, e também semelhante a mim. Assim enquanto eu o vejo tenho a percepção e a empatia que é um ser semelhante a mim. Mas o que acontece no nível psíquico? Eu posso ter uma reação de atração ou de repulsão, simpatia ou empatia. Contudo, o primeiro movimento não é nem um nem outro, mas de captar que se trata de um ser humano. A empatia é então um ato específico, que não pode ser confundido com simpatia ou antipatia. Só sabemos que captamos e estamos diante de alguém que é um ser vivente como nós (Cavalieri, 2021, p. 122).

A apreensão do outro é requisito fundamental para a experiência intersubjetiva e ela não se dá por nenhuma mediação de outra consciência. Ou seja, ninguém poderá facilitar essa mediação. Ela é pessoal. Pois se trata de uma operação direta. Na V Meditação (Meditações cartesianas), Husserl nos diz que podemos apreender o outro a partir do que me é primordial e os caminhos para isso são a empatia, a associação emparelhante, a analogia, a apercepção por analogia ou presentificação do outro em pessoa. O outro então se torna uma co-existência a partir da minha natureza. Esse outro em Husserl chegaria depois, ao contrário do pensamento de Emmanuel Levinas onde o outro chega primeiro.

Sem necessidade de aprofundarmos esses conceitos acima referidos, podemos dizer de maneira objetiva e sintética que a intersubjetividade é a forma primeira de vida que nos remete ao encontro com o outro. Os processos decorrentes da empatia e da comunicação acabam conduzindo à formação de uma comunidade, de um “nós”, como nos indica o Papa Francisco. Nas relações comunicativas o eu tem diante de si o outro, numa espécie de “estar-com”. O eu assim não mais se põe isolado como em Descartes, mas numa situação de “eu-com”.

É bom hoje observarmos que a comunicação mudou muito em cem anos. Atualmente nos diz o Papa Francisco,

na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, e posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida (n. 42).

Então o outro se torna um “estranho no caminho”.

Portanto, nesse caminho da comunicação nos dias atuais percebe-se que nos empobrecemos em termos de possibilidades de uma convivência intersubjetiva. A compreensão da intersubjetividade comunitária é a forma primeira de uma efetiva experiência de mundo como casa comum, de um mundo comum em termos culturais e naturais. O mundo da vida, a casa comum, torna-se o caminho metodológico para a constituição da experiência intersubjetiva, em um “nós”. Edith Stein desenvolveu enormemente a questão da empatia em sua obra monumental O problema da empatia. Com esse conceito se faz vivência (experiência) que reconhece o outro como alter ego, como outro eu, sendo um instrumento em que o ser humano consegue colher e compreender os outros seres humanos, suas vivências.

Sem essa experiência intersubjetiva que permite a criação do “nós”, o ser humano não se realiza, não se desenvolve, não encontra plenitude e nem chega a reconhecer sua própria verdade. O Papa Francisco nos diz: “Só me comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro” (n. 87). De maneira forte ele ainda nos diz que “ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar” (n. 87). Pois, “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade” e assim se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo. A amizade social somente se torna possível na medida em que trago o outro para dentro de mim mesmo, e assim na intimidade de cada coração, vamos criando vínculos e ampliando a existência.

OS NÍVEIS FENOMENOLÓGICOS

Ao longo de toda a obra de Husserl, percebe-se que a fenomenologia se desdobra em três níveis fundamentais1: a fenomenologia genética que se remete às dimensões constitutivas passivas ou passadas, a fenomenologia estática que se situa no momento presente da constituição e a fenomenologia generativa que se abre ao futuro. A fenomenologia estática preocupada em descrever a forma como as coisas se dão ou os modos de darem-se das coisas. Enquanto Descartes busca explorar as possibilidades do cogito a partir da esfera ativa, da reflexão ativa, Husserl procura enraizar o cogito em formações prévias muito mais amplas, nas chamadas sínteses passivas, no pré-dado, no pré-reflexivo. A fenomenologia genética busca explorar as possibilidades das sínteses passivas. A filósofa brasileira Creusa Capalbo (2001, p. 14) nos diz que nesse nível motivacional encontramos “o suporte obscuro que ativa a ação do indivíduo”.

A intersubjetividade está presente nos três níveis. Toda e qualquer relação não se reduz ao momento presente. Não se esgota na descrição atual. Cada relação tem raízes no passado constituído intersubjetivamente, passível se ser buscado em escavações sucessivas (sedimentos passivos) e se abre ao futuro. As gerações passadas são constitutivas de nós mesmos. Assim como na dimensão estática as pessoas se encontram, se mostram, se interagem, também há interações com gerações passadas. A constituição de cada pessoa não apenas é dada intersubjetivamente no presente, mas também intersubjetivamente no passado e abertura para o futuro. Não é uma relação simples de voltar-se para o outro, mas a intersubjetividade é constitutiva de nossa humanidade. Assim, falando em termos filosóficos, a intersubjetividade situa-se na dimensão ontológica, na constituição de nosso ser.

Vemos assim como a intersubjetividade tem alcance universal. Assim como o amor descrito na Encíclica Fratelli Tutti que se estende para além das fronteiras de cada cidade, de cada país, é condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal, a ideia de fraternidade universal está apoiada nessa concepção de uma intersubjetividade que tem alcance histórico e é constitutiva de nossa humanidade. A universalidade descrita na Encíclica se contrapõe à concepção de universalismo como necessidade de viajar constantemente, fugindo da própria comunidade. O Papa nos diz da necessidade de superarmos um “mundo de sócios”, de grupos fechados. Isso é a negação da experiência intersubjetiva.

Para se avançar rumo à amizade social e à fraternidade universal é preciso haver o reconhecimento essencial do quanto vale cada pessoa, cada ser humano, em qualquer circunstância. Sendo nossa dimensão constitutiva, cada pessoa, independente do lugar onde nasceu, dos recursos que possui, possui o direito de viver dignamente. A intersubjetividade assim está na dimensão profunda de uma constituição ética da humanidade, pois é um princípio elementar da vida. Todos possuem a mesma constituição humana; portanto, com a mesma dignidade. Sem isso, “não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade”. Esse diagnóstico feito agora pelo Papa Francisco é semelhante àquele proferido por Husserl há cem anos atrás.

Como já dissemos, Husserl não se contenta em descrever a situação da crise da humanidade, mas fazer avançar a reflexão para os desdobramentos generativos. Ou seja, e agora, o que se faz? Como ele mesmo disse no parágrafo 55 de Die Krisis2, os problemas da generatividade se referem aos campos da historicidade, alcançando graus superiores das formas essenciais da existência humana na sociedade. Afirma no parágrafo 71 da mesma obra: “...eu estou, de fato, em um presente cohumano e no horizonte aberto da humanidade, eu estou de fato em um vínculo generativo, no fluxo unitário da historicidade” (Husserl, 2012, p. 204). Em outras palavras, como a intersubjetividade é constitutiva de nosso ser, jamais estarei numa ilha isolada nesse mundo da vida. “A autoconsciência e a consciência de outrem são inseparáveis” (2012, p. 204).

Nesse sentido, torna-se central o encontro entre o mundo familiar (Heimwelt) e o mundo estranho (Fremdwelt) que explicitam a formação histórica dos fenômenos intersubjetivos. Cabe ao fenomenólogo investigar como as estruturas históricas e intersubjetivas tornam-se cheias de sentido para todos, como essas estruturas são e podem ser produzidas. A abertura para o futuro a partir das realidades históricas vividas é o elemento mais importante nessa reflexão. Assim, retomando a questão da amizade social, podemos nos perguntar até que ponto determinadas estruturas de vida, históricas e intersubjetivas, ganham sentido para todos. Como essas estruturas são produzidas e para onde elas apontam? Abre-se no horizonte o mundo da amizade social? Essas estruturas são potencializadoras para a constituição da vida intersubjetiva necessária e essencial da amizade social?

O caminho necessário do ponto de vista generativo é a busca de mundos comuns integrados numa causa constitutiva de nexo intersubjetivo, pois toca no coração da vida ética, da comunidade ética. A renovação da humanidade não pode ser a vontade particular de uma determinada pessoa ou autoridade. A amizade social não é vontade particular do Papa Francisco. A renovação ética implicada no imperativo da amizade social é um verdadeiro clamor geral que brota da convivência humana. No mundo da vida vamos encontrar uma dinâmica de cunho motivacional onde será possível plasmar uma renovação cultural da humanidade.

A partir do mundo da vida temos a possibilidade de concretizar experiências e conhecimentos já adquiridos e sedimentados passivamente, dando continuidade ao que está sendo proposto no momento presente reassimilado criativamente e projetar para as gerações futuras com valores que alimentem progressivamente as relações intersubjetivas. Sem essa tarefa torna-se utópica a proposta de uma amizade social, por maior que seja a nossa fé. Deus não assume tarefas e obrigações de cunho intersubjetivo. Elas pertencem aos homens. O papa lamenta a ausência de um projeto comum para toda a humanidade. A fenomenologia husserliana desenvolvida nos últimos trabalhos aponta para essa possibilidade como abertura para todos os povos. Por quê? Porque do ponto de vista ontológico somos constituídos intersubjetivamente.

A RENOVAÇÃO ÉTICA E O AMOR

Em vista da concretização desse projeto, torna-se essencial a integração do mundo da vida ao plano histórico e ético. Esse é o mundo que se apresenta como horizonte universal de nossas experiências, que possibilita a superação do modo constitutivo das particularidades. Não se pretende uma espécie de homogeneidade ética em que desaparecem as diferenças.

Essa renovação da humanidade deverá ser feita em nós e por meio de nós, por nós enquanto membros da humanidade que vive nesse mundo, de modo a constituir uma cultura autenticamente humana. Em uma carta de Husserl a Albert Schweitzer ele escreve sobre o que consiste a renovação. Para Husserl, trata-se de uma “conversão ética e configuração de uma cultura ética universal da Humanidade” (Hoyos, 2002, p. VIII).

A maior preocupação de Husserl a respeito do pensamento ético se vincula a uma convivência humana que abarque em si os povos e as nações, bem como as pessoas que as compõem ou constituem. Essa convivência universal harmônica pode ser encontrada segundo Husserl no amor, especificamente no amor ético. Por isso, em algumas reflexões Husserl diz que o amor sem sentido autêntico é um dos problemas fundamentais da fenomenologia. O amor é uma disposição duradoura primeiramente entre duas pessoas. A solicitude amorosa pelo outro, o amor ao próximo, dá lugar ao amor ético em que o outro se encontra sempre no horizonte da minha vida e eu no horizonte de sua vida. Por isso, Husserl afirma que eu levo os outros em mim.

O Papa Francisco nós diz na Encíclica que essa aspiração ao amor, assim como a justiça e a solidariedade não é alcançada duma vez para sempre (n. 11). Isso significa que, mesmo estando o outro em nosso horizonte de vida, a aspiração ao amor requer esforço e persistência. É objeto de conquista a cada dia. Fala-se de uma aspiração grande, contudo há que se ter esperança que é uma virtude “ousada, que sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte” (n. 55). É preciso abrir-se aos grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna. É preciso superar a tendência de reduzir o horizonte do amor apenas aos mais próximos, aos nossos vizinhos.

Estamos em um horizonte de aspiração da fraternidade ou do amor fraterno em sua dimensão universal. Não haveria fraternidade se esse sentimento e sua prática estivessem confinados aos limites territoriais, fronteiras nacionais, fronteiras de raças, gênero e classe social. A fraternidade nos implica como um todo no presente, e nos compromete com o nosso passado e nos abre como desafio para as futuras gerações. De nossa fraternidade atual dependerão as gerações futuras. Podemos ter como pano de fundo o amor e o cuidado aos mais vulneráveis, sempre no horizonte como opção primeira. Contudo, todos deverão estar incluídos nessa relação amorosa.

PALAVRAS DE DESPEDIDA, RUMO AO SONHO

A intenção de escrever esse artigo era de trazer para o diálogo com o Papa Francisco expresso na Encíclica Fratelli Tutti o pensamento de um autor de filosofia que viveu há cem anos atrás, experimentou os horrores do regime nazista que estava se instalando na Alemanha, que viu sua cátedra universitária ser extinta mediante um Decreto do governo que assumia a Alemanha. Naquele momento Husserl temia que a humanidade ficasse cansada ou que se embrenhasse na hostilidade ao espírito e na barbárie. Infelizmente, foi o que aconteceu logo depois, pois um ano após sua morte, era iniciada a II Guerra Mundial.

Hoje temos a impressão que temos uma grande parte de cristãos muito cansados sem aquela valentia tão característica dos primeiros tempos do cristianismo. Como nos diz Husserl, temos que recuperar “o fênix de uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade, como garantia de um futuro humano grande e duradouro” (1996, p. 85). Era um grande sonho há cem anos. E a Encíclica também pode ser considerada um grande sonho, bem na linha das grandes utopias.

Como nos diz o Papa e fica reforçado pelo teólogo Leonardo Boff, num escrito em sua coluna Rumo a Assis: “face à gravidade da situação atual, parece não termos outra alternativa senão consultar o que há de melhor em nossa humanidade e dela extrair um projeto comum que nos poderá salvar” (2020). Somos herdeiros de gerações passadas, conectados de modo intersubjetivo pela mesma história, com um sonho por uma nova forma de habitar o mundo, de viver fraternalmente.

Por fim, o amor não pode se reduzir às relações íntimas próximas, entre as pessoas que compõem o nosso grupo, a nossa bolha social e eclesial muitas vezes. Deve dirigir-se às macrorrelações como os relacionamentos na ordem social, na ordem econômica e na ordem política. O Papa nos fala em “amor político”, em “caridade política”, em “caridade social” que visam sempre o bem comum. O amor que é cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo também é amor civil e amor político. “A boa política procura caminhar na construção de comunidades nos diferentes níveis da vida social” (n. 182)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONILLA, Alcira Beatriz. Mundo de la vida: mundo de la história. Buenos Aires: Editorial Biblos, 1987.

CAPALBO, Creusa. Husserl: da gênese passiva e ativa à redução. In: SOUZA, Ricardo Timm de et al. Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

CAVALIERI, Edebrande. Via a-teia para Deus e a ética teleológica a partir de Edmund Husserl. Vitória: EDUFES, 2013.

CAVALIERI, Edebrande. Fenomenologia e constelações familiares: introdução a alguns conceitos fundamentais. Curitiba: CRV, 2021).

HOYOS, G. La ética fenomenológica como responsabilidade para la renovação cultural. In: HUSSERL, E. Renovación del hombre y de la cultura. Barcelona, México: Antropos; Universidad Autónoma Metropolitana, 2002.

HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à Filosofia Fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

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HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. São Paulo: Madras, 2001.

PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. Vaticano, 2020. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em 10 de dezembro de 2023.

SAN MARTIN, Javier. La fenomenologia de Husserl como utopia de la razón. Barcelona: Editorial Anthropos, 1987.


1 Para maior aprofundamento do pensamento husserliano a respeito desses níveis da fenomenologia sugerimos a leitura de algumas obras do próprio Husserl: “Análises sobres sínteses passivas”, “Sobre fenomenologia da intersubjetividade”, “Análises concernentes às sínteses passivas e ativas”, “Método da fenomenologia estática e genética”, “A fenomenologia da individualidade monádica e a fenomenologia das gerais possibilidades de experiências vividas: fenomenologia estática e genética”. Esses textos estão também publicados na Coleção Husserliana Volumes XI (1966) e XIV (1973).

2 Por Die Krisis entende-se a última fase do pensamento husserliano produzido na década de 1930, e em grande parte presente no volume VI da Coleção Husserliana.