Fratelli Tutti e a defesa da vida

Fratelli Tutti and the Defense of Life

DOI: https://doi.org/10.52451/teopraxis.v41i136.209

Recebido em 13/01/2024

Aprovado em 18/04/2024

Dário Bossi

Missionário comboniano, bacharel em Teologia. Atua na coordenação da rede ecumênica latino-americana Iglesias y Minería e é assessor da REPAM (Rede Eclesial Panamazônica), particularmente no eixo Direitos Humanos. É também assessor da equipe de ecologia integral da CLAR (Conferência de Religiosos-as de América Latina) e da Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da CNBB. Contato: padredario@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-1328-8508.

Resumo: Este artigo aborda a carta encíclica “Fratelli Tutti” de Papa Francisco, publicada em 2020, à luz da defesa integral da vida, e destaca a fraternidade como contraponto ao individualismo prevalente na sociedade contemporânea. A fraternidade não é entendida apenas em nível das relações pessoais, mas também em sua dimensão política e conforme o princípio da solidariedade, segundo a Doutrina Social da Igreja. Esta é a perspectiva cristã de defesa da vida em todas as suas formas, do nascimento até a morte, dando prioridade aos pobres e excluídos e combatendo a cultura do descartável. A partir da inspiração da realidade concreta, pela experiência do povo indígena Ka’apor, e da Palavra de Deus, com a parábola do Bom Samaritano, o artigo desenvolve reflexões sobre a missão da Igreja e oferece propostas de ação no horizonte da ecologia integral, com perspectivas políticas, econômicas, educativas e espirituais.

Palavras-chave: Fratelli Tutti; Vida; Solidariedade; Doutrina Social da Igreja.

Abstract: This article addresses Pope Francis’ encyclical letter “Fratelli Tutti”, published in 2020, in light of the integral defense of life, and highlights fraternity as a counterpoint to individualism prevalent in contemporary society. Fraternity is not only understood at the level of personal relationships, but also in its political dimension and in accordance with the principle of solidarity, according to the Social Doctrine of the Church. This is the Christian perspective of defending life in all its forms, from birth to death, giving priority to the poor and excluded and combating the throwaway culture. Based on the inspiration of concrete reality, the experience of the Ka’apor indigenous people and the Word of God with the parable of the Good Samaritan, the article develops reflections on the mission of the Church and offers proposals for action within the horizon of integral ecology, with political, economic, educational and spiritual perspectives.

Keywords: Fratelli Tutti. Life. Solidarity. Social Doctrine of the Church.

INTRODUÇÃO

A Carta Encíclica Fratelli Tutti, publicada por Papa Francisco no dia 3 de outubro de 2020, resgata a capacidade humana de transcender o egoísmo e promover a fraternidade como uma relação espiritual que vai além da mera soma de interesses individuais. A fraternidade não é entendida apenas em nível das relações pessoais, mas também em sua dimensão política e conforme o princípio da solidariedade, segundo a Doutrina Social da Igreja. Esta é a perspectiva cristã de defesa da vida em todas as suas formas, do nascimento até a morte, dando prioridade aos pobres e excluídos e combatendo a cultura do descartável.

Neste sentido, este artigo aborda a Encíclica Fratelli Tutti à luz da defesa integral da vida e destaca a fraternidade como contraponto ao individualismo prevalente na sociedade contemporânea. Aprofundaremos a fraternidade e amizade social com chaves de leituras oriundas da experiência do povo indígena Ka’apor, da parábola do Bom Samaritano e da Doutrina Social da Igreja (DSI).

Destacamos que a luta dos Ka’apor é um exemplo concreto de como a fraternidade, vivida na radicalidade da cultura deste povo indígena, pode se tornar o instrumento mais forte de defesa da vida, na sua integralidade: das crianças e das mulheres, da cultura e das tradições, da floresta e dos animais, do clima e dos equilíbrios ambientais.

1 Uma história e uma parábola

Nos últimos anos, o povo indígena Ka’apor, na terra Alto Turiaçu, norte do Maranhão, vem sofrendo uma série de ataques muito violentos à sua cultura e ao seu território. Primeiro, os madeireiros e caçadores, que invadem a terra indígena; em seguida, os garimpeiros, protegidos e até organizados pelos prefeitos dos municípios da região; ainda, as empresas de mineração, elas também famintas do ouro que estaria por baixo da floresta. Mais recentemente, outros “ilusionistas do progresso”, com as falsas promessas dos créditos de carbono, para compensar a poluição do Norte Global, aproveitando da preservação florestal que os indígenas garantem há séculos.

Há cerca de dez anos, o povo Ka’apor se encontrava no limite da sobrevivência: o alcoolismo e as drogas, trazidos por atores estranhos à sua cultura, estavam tomando conta das juventudes; algumas mulheres eram forçadas à prostituição, nas cidades mais próximas às aldeias. Aconteceu algo como uma tomada de consciência coletiva, a partir das lideranças, que se deram conta do perigo de perder qualquer referência de sentido e de futuro para o povo. De modo surpreendente, os Ka’apor levantaram a cabeça e começaram a se reorganizar, a partir de sua própria cultura. O primeiro passo foi a educação: rejeitaram o sistema imposto pelos “ahy” (os não indígenas) e começaram a construir um modelo de educação a partir de sua língua e visão do mundo, chamado de Jumu’e ha renda Keruhu, fundado no ideal de aprender com a floresta e resgatar os saberes ancestrais. Abandonaram, também, o sistema de gestão imposto pela FUNAI, com um só cacique chefe do povo, e criaram um conselho de governo, plural e participativo, chamado de Tuxa Ta Pame. Para proteger seu território das invasões, formaram uma guarda de autodefesa, que instala áreas de proteção às fronteiras da floresta, vigiando sobre qualquer entrada não autorizada e defendendo-se de modo não violento. Em poucos anos, conseguiram reduzir de três vezes a taxa de perda florestal na região.

É uma história coletiva de superação que, ainda hoje, continua muito desafiada, correndo perigo pelos ataques, pela criminalização, pelas ameaças de morte e execuções que tentam fazer recuar este povo. Muitos séculos antes, Jesus de Nazaré contou outra história instigante, sobre o mesmo tema da defesa da vida: a parábola do Bom Samaritano. Se o exemplo Ka’apor demonstra o potencial do coletivo, na estrada de Jerusalém a Jericó, aprendemos a radicalidade da palavra “irmão”.

A fraternidade supera as barreiras étnicas: o samaritano socorre o homem à beira da estrada, mesmo sendo ele, provavelmente, um judeu; o próprio Evangelho evita definir raça e identidade do homem meio morto, confirmando que não é isso que importa e não deve existir o samaritano interrompe sua viagem, suspende seus planos e se dedica inteiramente à pessoa encontrada. O ato de irmandade desvenda a hipocrisia das outras personagens religiosas e se torna o verdadeiro critério para reconhecer as pessoas de fé.

O Bom Samaritano desglosa o cuidado da vida em dez ações, que poderíamos considerar o decálogo do amor:

Imaginamos também uma ação não citada, que ficou invisível, mas que o Bom Samaritano pode ter realizado durante sua estadia na cidade: a incidência política, a cobrança junto às autoridades quanto à insegurança do caminho de Jerusalém a Jericó, a denúncia da violência e a reivindicação dos direitos do povo.

Estas duas histórias, de ontem e de hoje, ajudam-nos a entrar na reflexão sobre a defesa integral da vida, conforme o magistério de Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti (FT).

2 A fraternidade como princípio da vida

O tema chave da Encíclica Fratelli Tutti é o contraste entre um mundo fechado, com suas sombras, e um mundo aberto, a ser pensado e gerado. Em outras palavras, o contraste entre a opção pelo individualismo e pela fraternidade.

A cultura do individualismo, de fato, está tomando conta de nossas relações e de nossa visão de mundo. Originada pelo impulso sadio de valorizar a responsabilidade pessoal e a busca de sentido na liberdade de iniciativa de cada ser humano, tornou-se uma perspectiva utilitarista e excludente. O texto-base da Campanha da Fraternidade de 2024 comenta, a respeito: “A modernidade nos presenteou com a descoberta da individualidade, mas nós a desfiguramos em um exacerbado individualismo, que faz emergir uma subjetividade violenta e psiquicamente doentia” (CNBB, 2023, CF 2024, n. 64).

De modo especial, em situações de particular dificuldade ou desafio, o individualismo se torna facilmente rivalidade, competição e aniquilação do outro: “O princípio ‘salve-se quem puder’ traduzir-se-á rapidamente no lema ‘todos contra todos’, e isso será pior que uma pandemia” (FT, nº 36). Portanto, a Fratelli Tutti tenta resgatar o que de mais profundo existe, na humanidade, para prevenir e combater esta pandemia de egoísmo; retomando um pensamento de Papa João Paulo II, a encíclica valoriza a capacidade do ser humano se transcender, sair da armadilha da autorreferencialidade (Francisco, 2020). Em outras palavras, feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser” (Wojtila, 1983, p. 90).

2.1 Relações e estruturas fraternas

Um perigo da cultura atual é ler e interpretar estas orientações magisteriais somente em chave individual, como se se tratasse de uma conversão exclusivamente pessoal, a partir da qual seria possível sanar as feridas de uma sociedade e de um mundo desfeito aos pedaços. Na verdade, faz-se necessária e urgente também uma leitura crítica e sistêmica, socioestrutural, das contradições da sociedade do “todos contra todos”.

De fato, não estamos enfrentando somente uma cultura de morte, mas verdadeiros projetos de morte que atacam a fraternidade em nome do lucro e do poder. Para se sustentarem, estes projetos constroem e oferecem à sociedade uma “narrativa do inevitável”, como se não houvesse alternativas à proposta política e econômica que defendem. A própria fé religiosa é atacada e discriminada, quando, ao defender o valor sagrado da fraternidade e da filiação comum em Deus, assume uma postura crítica frente ao poder dos atores que promovem estes projetos. A Igreja que assume uma proteção integral à vida é caluniada e deslegitimada. Paradoxalmente, a maior veemência destes ataques vem de dentro, de grupos católicos laicos da nova extrema direita, ou neointegristas.

A socióloga Glícia Gripp, no artigo “Católicos contra a fraternidade”, estuda os ataques contra as Campanhas da Fraternidade da CNBB, protagonizados por este tipo de grupos, e problematiza a fraternidade quando entendida simplesmente como relação de fratria, compadrio, cumplicidade em vista da defesa de interesses ou visões comuns (REB, v. 83, n. 326, 2023).

É a mesma diferença que Papa Francisco enxerga entre relações de irmãos ou de sócios:

Neste esquema, fica excluída a possibilidade de fazer-se próximo, sendo possível apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim o termo próximo perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra sócio, aquele que é associado para determinados interesses (FT 102).

A fraternidade é bem mais. É relação espiritual desejada e aceita, permite cultivar e colher os frutos materiais e espirituais da vida em comunidade.

Não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade (FT 103). A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade (FT 105).

O teólogo Francisco Aquino Júnior define de modo interligado as dimensões da fraternidade nas diversas esferas da vida humana:

tal como é compreendida e proposta por Francisco, diz respeito tanto às relações interpessoais quanto às estruturas da sociedade e, assim, constitui-se como horizonte e dinamismo fundamentais de enfrentamento dos grandes problemas e desafios de nosso tempo e de construção de uma nova sociedade (Aquino Júnior, 2023, p. 887).

Portanto, onde o individualismo é assumido como valor último, a fraternidade é um elemento revolucionário. Se pensarmos na Revolução Francesa, outros valores não têm a mesma densidade estruturante das relações: a igualdade e a liberdade referem-se à esfera dos direitos subjetivos e têm um enfoque individualista; a fraternidade comporta uma passagem do indivíduo ao coletivo.

Uma sociedade pode ser solidária sem ser fraterna. A solidariedade visa a igualdade e a justiça entre todos, mas pode existir separada da gratuidade do amor e, nesse caso, se reduz à filantropia, ao paternalismo ou à assistência. Ajuda-se os necessitados, mas esses não são reconhecidos como irmãos, respeitados em suas singularidades (Gripp, 2023, p. 781).

Neste sentido, arremata Aquino,

sem pessoas fraternas não há nem haverá sociedade fraterna. Mas a recíproca também é verdadeira: Uma sociedade regida pela lógica do egoísmo, que se materializa também nas macrorreações políticas e econômicas, além de negar a fraternidade a muita gente (índices de pobreza e miséria, política econômica, estrutura fundiária, política tributária etc.) e ser um grande obstáculo à vivência da fraternidade, facilmente seduz e corrompe as pessoas, por mais bem intencionadas que sejam (Aquino Júnior, 2023, p. 900).

2.2 Outras transcendências

Para que a fraternidade não se limite à conveniência das trocas de favores, benefícios e proteções recíprocas, precisa permanecer iluminada pelos valores da justiça, da dignidade de todas as pessoas, sem discriminação, e da igualdade de direitos. Para não se reduzir a uma inconsistente e descontínua sensação de amizade, ou somente a um refúgio de consolo em tempos difíceis, a fraternidade deve se tornar capaz de transformação social, identificando e eliminando as causas que levam à exclusão, ao preconceito, ao racismo, às discriminações de gênero, classe ou religião.

A fraternidade não se limita à defesa preventiva da vida, mas é capaz também de reconstruir as condições para que ela possa ser vivida de modo pleno, recuperada, perdoada:

a compaixão vai além da justiça e se manifesta no abraço do perdão, nas atitudes de reconciliação, no amor ao inimigo, na justiça restaurativa. Justiça e caridade são complementares e, assim, acontece o amor social, a caridade pastoral, a justiça samaritana (Brandes, 2020, n.p).

Neste sentido, a fraternidade assume a opção fundamental e evangélica pelos pobres e adquire uma “densidade salvífico-espiritual” (Aquino Júnior, 2023, p. 893).

3 A defesa da vida em todas as suas formas

“Tudo o que é humano nos diz respeito”, escrevia São Paulo VI ao definir a missão da Igreja (FT 278). A própria encíclica Fratelli Tutti abre-se com uma leitura muito ampla da realidade, buscando identificar caminhos de promoção e defesa da vida em todos os âmbitos da existência humana e da sociedade. O elemento comum, no primeiro capítulo de análise das tendências atuais, é o ponto de vista dos excluídos.

É a partir deles que Papa Francisco oferece sua leitura da realidade. De fato, o maior dos escândalos, o mais grave pecado social, é o fato que

partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se ainda não servem (como os nascituros) ou já não servem (como os idosos)” (FT 18 – grifo nosso).

O Papa toma o exemplo dos dois extremos da vida humana, as etapas mais frágeis e que precisam de muito cuidado, para incluir nelas todas as outras situações de violação da dignidade da vida. Mesmo reconhecendo a urgência da defesa dos direitos das mulheres, o machismo e a violência que ainda ameaçam suas vidas e o grave atraso da Igreja em escutar suas vozes e garantir seu protagonismo, a CNBB (2017) considera que, em muitas reflexões e debates sobre o aborto, o nascituro é anulado, evaporado, como se não existisse.

Assim, com respeito a este tema tão delicado, posiciona-se da seguinte forma:

É um grave equívoco pretender resolver problemas, como o das precárias condições sanitárias, através da descriminalização do aborto. Urge combater as causas do aborto, através da implementação e do aprimoramento de políticas públicas que atendam eficazmente as mulheres, nos campos da saúde, segurança, educação sexual, entre outros, especialmente nas localidades mais pobres do Brasil. Espera-se do Estado maior investimento e atuação eficaz no cuidado das gestantes e das crianças. É preciso assegurar às mulheres pobres o direito de ter seus filhos. Ao invés de aborto seguro, o Sistema Público de Saúde deve garantir o direito ao parto seguro e à saúde das mães e de seus filhos (CNBB, 2017, n.p).

O debate sobre o aborto, portanto, não pode ser separado daquele mais amplo sobre a saúde pública e o acesso democrático e sem discriminação a ela. Tudo está interligado; é nesta perspectiva que deve atuar a Igreja em seu ensinamento e ação política. A defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, e o empenho contra a privatização e a mercantilização do direito à saúde, é uma das faces essenciais da opção da Igreja pelos pobres.

Neste sentido, são emblemáticas muitas situações vivenciadas durante a pandemia, como aquela de Paraisópolis, segunda maior favela no município de São Paulo, que estruturou um dos melhores controles da pandemia na cidade. Porém, a inconsistência das políticas públicas de combate ao coronavírus e as pressões por reabertura terminaram por falar mais alto, ainda mais em locais onde a necessidade de circular e obter alguma renda é tão evidente. Após meses de relativo sucesso da auto-organização comunitária, os índices de mortalidade em Paraisópolis aumentaram 240%.

É preciso valorizar o SUS. São as UBS e a ações dos agentes comunitários que podem fazer a diferença na prospecção, busca ativa e diagnóstico adequado, assim como acompanhamento de casos. A atenção básica tem sido negligenciada, mas é ela que tem potencial (como em poucos países) de chegar e atender a população mais vulnerável (Nisida, 2020, n.p).

Papa Francisco (tenta não desviar o olhar de nenhuma das situações que clamam pela vida digna: em Fratelli Tutti, recorda os idosos, os trabalhadores, as mulheres, as pessoas com deficiência, que define como “exilados ocultos, corpos estranhos à sociedade”. Um capítulo inteiro é dedicado à mobilidade humana e aos migrantes, aos quais é preciso garantir, dependendo de suas situações e preferências, tanto o direito a não migrar, como o direito a migrar. “As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo” (FT 98).

Desde a publicação da exortação Evangelii Gaudium, em 2013, o Papa Francisco utiliza um termo que reúne todos os rostos “crucificados”, conforme a conhecida passagem do documento de Puebla:

a cultura do descartável (...). Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, sobras (EG 53).

Quanto mais aumenta o nível de desigualdade e exclusão em nosso continente e país, tanto mais cresce a violência, como fator de controle e proteção dos privilégios de alguns, e como sintoma da raiva e desumanização de muitos outros, postos à margem.

A desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos (EG 60).

A crise da segurança pública no Brasil e no Sul Global, portanto, depende principalmente da falta de identificação de suas verdadeiras causas e da manipulação instrumental do sentimento coletivo de insegurança para justificar políticas repressivas e a concentração do poder. A Campanha da Fraternidade de cujo tema abordou a amizade social para a defesa da vida, denuncia:

a crença enganosa de que a solução para todas essas formas de violência está nas armas. (...) Boas políticas não devem naturalizar a violência como solução para a sensação da falta de segurança pública presente em tantas pessoas e lugares (CNBB, 2024, n. 38-39).

A Doutrina Social da Igreja, com sua análise atenta da realidade e da estrutura social, vem identificando, assim, os maiores vetores de morte que ameaçam a vida das pessoas. Papa Francisco expressou-se com coragem e lucidez, sem meias palavras, quando apontou à economia capitalista como uma das causas estruturantes da exclusão mortal de tanta gente:

Assim como o mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata. Não é possível que a morte por congelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a queda de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social (EG n. 53).

Finalmente, Fratelli Tutti dialoga muito com Laudato Si’ ao destacar que não podemos cuidar da vida humana de forma separada daquela de todas as criaturas. “O nosso cuidado pelo outro e o nosso cuidado com a terra estão intimamente ligados”, afirma a Conferência Episcopal dos Estados Unidos (apud Francisco, 2023, LD, nº 3). Existe uma relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta: são eles, e não as grandes potências mundiais, aqueles que mais cuidam dos seus territórios, quando podem permanecer neles. “Para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores” (LS, n. 146). Por outro lado, conforme os princípios do racismo ambiental, são os pobres as primeiras e principais vítimas do desequilíbrio ambiental provocado pelos grandes projetos extrativos e poluidores e pelo estilo de vida de uma minoria que concentra renda e benefícios.

Em sua última exortação apostólica, Laudate Deum, Papa Francisco considera que “o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e em outros âmbitos” (LD, n. 2).

Compreendemos, deste modo, a complexidade e interconexão das forças que ameaçam a vida, a necessidade de identificar as causas estruturais da necropolítica e a urgência de uma conversão pessoal e comunitária, assumindo decididamente a opção evangélica pelas vítimas: “Hoje eu tomo o céu e a terra como testemunhas contra vocês: eu lhe propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes possam viver” (Dt 30,19).

Exatamente porque “tudo o que é humano nos diz respeito”, a Igreja criou e acompanha cerca de trinta diferentes pastorais sociais, que assumem o cuidado e a defesa da vida em todas as suas formas e situações, organizando-se em quatro macroáreas: as pastorais urbanas, do campo, da saúde e da mobilidade humana, e esforçando-se para coordenar entre si suas ações, em uma perspectiva de pastoral de conjunto.

Neste sentido, um dos processos mais interessantes e fecundos, nos últimos anos, está sendo a 6ª Semana Social Brasileira, que começou em 2020 e está chegando à sua conclusão, com um mutirão de encaminhamentos previsto para março de 2024, no qual será definido o projeto popular “O Brasil que queremos: o Bem Viver dos povos”.

4 Percursos para que tudo tenha vida

A convicção mais profunda de Papa Francisco, repetida em diversos documentos (LS 197; FT 179; LD 57), é a urgência de uma “revolução cultural”, de uma mudança radical de sistema: “A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes” (FT, n. 179).

Diversamente, ofereceremos soluções velhas aos novos problemas, ou, ainda pior, confiando em quem provocou tantas consequências de morte e desigualdade, para que ofereça uma reparação, utilizando os mesmos instrumentos e as mesmas lógicas de poder e lucro.

Para isto, Papa Francisco desafia a humanidade para alianças e processos corajosos, buscando convergências e novas inspirações, como aquelas que podem vir de um novo “Pacto Educativo Global”, ou do protagonismo das juventudes da iniciativa da “Economia de Francisco e Clara”. Além disso, recomenda à Igreja e às pastorais o esforço de superar suas fronteiras e ir ao encontro de outros segmentos da sociedade, particularmente dos “poetas sociais”, como ele gosta de definir os movimentos populares. Foi exatamente em um dos encontros da Igreja com os movimentos populares que Papa Francisco (2014, nº 851-852) ofereceu a perspectiva da solidariedade como inspiração para modelos de convivência radicalmente novos. Definiu assim a solidariedade:

Sem dúvida, trata-se de uma compreensão que supera de longe nossa cultura pastoral, frequentemente assistencialista e imediatista, e que nos provoca a uma conversão integral. Da mesma forma, podem nos orientar para a ação os quatro verbos que o Papa indica como elementos essenciais para a defesa da vida dos migrantes: “acolher, proteger, promover, integrar” (FT, n. 129). Na verdade, esta sequência samaritana representa um caminho inspirador para revitalizar todas as pessoas cuja vida está ameaçada: o nascituro, as mulheres vítimas de violência e discriminação, aos idosos.

Em geral, o desafio lançado pelo Papa é por respostas estruturantes e sólidas (palavra geradora do substantivo “solidariedade”). Respostas que representam a verdadeira política: “a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo” (LS, n. 178).

O grande educador italiano dos anos 1960, Dom Lorenzo Milani (1967, n.p, tradução nossa), já dizia: “Ensinei que o problema dos outros é igual ao meu. Buscar uma saída, todos juntos, é política. Fazê-lo sozinhos é ganância”.

Para Francisco, a política se torna fecunda quando não se submete a esta economia que mata e quando consegue incluir os pobres e garantir sua participação social, da qual brota uma “torrente de energia moral (... para a) construção do destino comum” (FT, n. 169). Tivemos uma intensa experiência disso na promulgação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, em dezembro de 2023: um momento celebrativo no Palácio do Planalto, junto à população de rua, lançando um plano do governo federal que tem sido construído em constante interação com os movimentos populares e o próprio povo da rua.

Esta dimensão participativa, que se dá tanto na incidência política direta, como nas reivindicações coletivas por direitos, é chamada por Papa Francisco de “multilateralismo a partir de baixo” (LD, n. 38) e está baseada no princípio de defesa dos territórios das comunidades, como espaços de autodeterminação e definição dos modos de vida delas, tanto na cidade, como no campo ou na floresta.

A defesa da vida (oikós) dependerá, cada vez mais, dos encontros inéditos que saberemos traçar entre economia (as normas do oikós) e ecologia (a lógica, os princípios do oikós). Pe. Gael Giraud SJ, economista, matemático e teólogo, em seu artigo “Imaginando a economia do futuro hoje”, oferece algumas intuições sobre a direção que poderíamos seguir, em busca deste inédito:

CONCLUSÃO

A partir da experiência de vida e luta do povo indígena Ka’apor, das chaves de leituras da parábola do Bom Samaritano e dos apelos de Papa Francisco para a profecia da Igreja diante das feridas sociais, afirmamos a solidariedade como princípio fundamental do resgate da dignidade da pessoa humana, em perspectiva individual e política.

Evidenciamos alguns processos da ação cristã em defesa da vida, à luz da Doutrina Social da Igreja (DSI), em constante evolução por meio de um magistério atento aos sinais e às urgências dos tempos. É tarefa essencial da Igreja recuperar a DSI como elemento central da iniciação cristã e da formação permanente dos cristãos leigos e dos ministros ordenados. Caso contrário, corremos o perigo de uma Igreja autorreferencial, isolada, distante da realidade e, portanto, incapaz de dialogar com as pessoas e sua sede de sentido para a vida.

À guisa de conclusão, destacamos a seguinte passagem da encíclica Fratelli Tutti:

Investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum (FT, n. 108).

Defender e promover a vida, em todas as suas dimensões, é a missão conferida pelo Criador à humanidade. Se quisermos ser todos irmãos e irmãs, fratelli tutti, precisaremos “investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida” (FT, n. 82).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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