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Assim é, também hoje, a espiritualidade das mulheres e de todas as pessoas que se
colocam a serviço do povo oprimido: uma espiritualidade que desafia as forças opressoras
e dominadoras porque sabe que o seu Deus não abandona seus filhos e filhas, e quer uma
“vida com abundância para todas as pessoas” (Jo 10,10). Cabe a nós, como servidoras e
servidores do Reinado amoroso de Deus, potencializar a ação de Maria entre os
“pequeninos”, amados de Jesus e causa da sua missão.
Outro aspecto que considero importante é que a pessoa de Maria, como vimos acima,
une e potencializa todas as pessoas que a ela recorrem, sobretudo as mulheres, tornando-as
persistentes e corajosas, capazes de enfrentar e superar obstáculos. A devoção mariana,
nessa perspectiva, adquire uma dimensão profético-libertadora, já que é uma
espiritualidade histórica, capaz de ler os sinais de Deus na história pessoal e coletiva, e atuar
na realidade de hoje em consonância com os princípios e critérios da Basileia de Deus.
Desde esta perspectiva, uma “Igreja em saída”, como propõe o Papa Francisco, não
pode assumir e/ou alimentar nenhuma prática devocional mariana que retire Maria do seu
contexto antropológico, sócio-histórico, político e religioso. Os anawim, ainda hoje, têm o
sagrado direito de se aproximar de Maria a partir de sua real situação, ou seja, de seus
sofrimentos e suas esperanças, e de se identificar com ela em sua fé, sua força, sua coragem
e persistência, seu serviço solidário e sua entrega ao projeto libertador de Javé, tão bem
expresso no Magnificat, constituído de justiça, paz e solidariedade universal. Há que se
questionar, portanto, muitas devoções marianas que não têm essa dimensão bíblico-
missionária libertadora e não conduzem à transformação da realidade das pessoas pobres e
sofredoras, as amadas e preferidas de Jesus e de Maria.
4 MARIA E OS PROJETOS DE SORORIDADE ENTRE MUL HERES
A Igreja Católica tem grande apreço pela pessoa de Maria e, por isso, incentiva e
orienta, através de documentos e pronunciamentos, o culto mariano. Mas, as práticas
devocionais criadas e propagadas por muitos clérigos e leigos não condizem com a
orientação dos documentos. Em muitas paróquias, grupos e movimentos eclesiais há um
devocionismo mariano ingênuo e fanático, que não educa nem conduz a uma fé mariana
adulta, comprometida e libertadora.
É comum, na tradição cristã, apresentar Maria como mulher, virgem e mãe. Esses
atributos ou identificações de sua pessoa parecem ser indiscutíveis, sobretudo na tradição
dos antigos Padres da Igreja. É a partir dessa tríplice condição identitária que os fiéis se
achegam a ela, dobram os joelhos, cantam, pedem, choram, fazem promessas e
peregrinações, a proclamam e coroam rainha do céu, mudam periodicamente suas roupas
demonstrando-lhe respeito, cuidado e reverência. Diante da imagem de Maria, todos se
transformam em crianças ou mendigos, como se ela fosse o último recurso para sair de
uma situação extrema, sem perspectivas. As relações com ela nunca são rompidas, mesmo
que os fiéis não tenham seus pedidos satisfeitos. O desejo de superar a orfandade e o
abandono, em suas diferentes formas, está sempre presente nessa relação.
Além dessas identificações de Maria, a nós, mulheres, nos apresentam a figura de
uma Maria humilde, silenciosa, serva, que nada questiona e sempre diz "sim" a todos. Uma
Maria "puríssima”, que nunca passou pelas dificuldades que a maioria das mulheres têm
que enfrentar em sua vida sexual e em suas relações conjugais. Essa figura idealizada e
estereotipada de Maria não nos faz bem. A história e a espiritualidade das mulheres estão
repletas de experiências de auto culpabilização que leva a um distanciamento da Maria
histórica, que passou pelas mesmas dificuldades das mulheres de seu tempo. Por isso, quero
MUNHOZ, Alzira
Minha experiência com Maria de Nazaré
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 77-87, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.