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situação do feminino, sucessora de Eva em sua sóror-herança, segue um lento progresso,
de uma minoria silenciada, anônima e silenciosa. Uma herança em que todas somos
partícipes, e isso nos impele a proclamar, ou melhor, poematizar, seriamente implicadas:
“Eu fico de pé sobre o sacrifício de um milhão de mulheres que vieram antes e penso o que é que eu
faço para tornar essa montanha mais alta para que as mulheres que vierem depois de mim possam
ver além.” (KAUR, 2017, p.216).
Quanto mais alta a montanha, o nosso empenho por comunhão e esperança, melhor
o propagar do perfume que elas carregam em si. O perfume, essa metáfora repleta de
sentido, é considerado porque, em suas cabeças, mentes, corações e pés, reside a fragrância
da humildade de todas as mulheres que estiveram aos pés do Mestre e as quais, mediante o
Amor, Ele reergue (Rm 8,31). O fato é que estamos todos - e todas as que buscamos
desconhecer menos e evoluir no progresso dos tempos, seja na sociedade ou na Igreja -
ainda reféns do martelo do julgamento no que condiz à vida da mulher e de sua vocação. A
espiritualidade das ammas, a Matrologia, sobre a qual nosso ensaio, modestamente,
discorre, é conteúdo, por si, de uma teologia espiritual do feminino em relação ao Verbo
Encarnado, trata-se de um legado, um sério compromisso testemunhal que fundamenta a
Matrologia e a Matrística na autenticidade do feminino em estreita relação com Deus.
A vida de mulheres em relação ao Mistério, do como elas O buscaram e O
encontraram; em tempos áridos de des-transcendência e des-esperança, elas também
desejam que O encontremos. Esse encontro evidencia às nossas vidas, de ritmo acelerado e
confuso, afetadas pela sociedade que incita o status, a posse e o poder, de que é preciso
realizar a escolha pela vida, pelo humano e por tudo em que nos sintamos interligados.
O protagonismo dessas mulheres tem de ser considerado, redescoberto e estudado
com entusiasmo na Igreja “em saída”, a que hoje nos inspira e desafia o Papa Francisco, que
almeja experiências da vivência do Evangelho nas comunidades, da forma mais coerente
possível. O presente ensaio é uma introdutória antologia dessas mulheres. Vale a ressalva
de que o arquétipo do ascetismo que as ammas projetam, do papel de sapiência feminina
no evoluir do mundo religioso tardio, está repleto de lacunas em relação à problematização
obscura da legitimação da autoridade da Igreja, fato a que não iremos nos deter neste texto.
Por certo, a nossa pretensão não é de reproduzir os feitos e ditos de todas as ammas,
mas de salientar que elas souberam configurar as suas vidas com a de Jesus e acolheram
como mães espirituais todos os filhos e as filhas, peregrinos, ricos e pobres que a elas
recorreram. A teologia espiritual da Matrologia não faz sombra à espiritualidade dos já
conhecidos Padres da Igreja em seu grande círculo; elas engrandecem, abrilhantam, em seu
modo peculiar de ser, a espiritualidade do Cristianismo, da vida cristã como um todo.
Em fontes já mencionadas, é visto que autoridades do Cristianismo antigo
escreveram sobre algumas delas, mesmo que de forma diminuta diante da real dimensão
profética de suas vidas. Outras fontes, como Evágrio Pôntico (346-349), Paládio de Galácia
(363-432), João Crisóstomo (345-407), Gregório de Nissa (330-394), Gregório de
Nazianzo (330-389), Atanásio de Alexandria (296-373), Teodoreto de Ciro (393-466),
Jerônimo (347-420) e ainda outros tantos, nas referências do tempo, abriram espaço -
pequenas frestas, passagens na história - que possibilitou que as encontrássemos agora.
Dessa herança, hoje, por meio de um primeiro encontro para muitos leitores, na
contribuição das presentes páginas, há um portal que se abre e por onde as ammas, em suas
diásporas espirituais, sem referenciais seguros, datas ou pátrias de origem, surgem,
rompendo um anonimato milenar.
Para tanto, o convite é de rastreá-las, encontrá-las e segui-las, na luz de seus
testemunhos e palavras, essas mulheres que foram mais sábias que as serpentes e tão inocentes
MACHADO, Elisângela Pereira
O feminino no Cristianismo Antigo: um ensaio sobre a Matrologia
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 11-21, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.