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O DEUS QUE AGE NAS FRONTEIRAS
SOCIAIS DO HUMANO
A narrativa bíblica e as questões
sobre gênero
THE GOD WHO ACTS ON THE
SOCIAL BORDERS OF THE HUMAN
The biblical narrative and questions
about gender
Ângela Maringoli*
Resumo: O artigo quer refletir o encontro de Jesus com uma mulher do povo
que vivia em Samaria. Apesar das diferenças sociais a samaritana foi ousada ao
entabular uma conversa com um homem judeu. O recorte está no Evangelho
de João no capítulo 4 que apresenta algumas mulheres que atuaram ao lado de
Jesus como protagonistas em algumas narrativas do Evangelho. A narrativa
bíblica aborda questões interessantes sobre gênero, segregação, preconceito
racial e religioso. A perícope aborda a vida das mulheres das províncias da
capital de Samaria em especifico “a mulher samaritana” texto bastante
conhecido no meio cristão. Releitura de textos antigos é sempre um processo
investigativo que busca por preciosas descobertas que ao serem encontradas
serão usadas na história presente. Entre essas pepitas encontramos as ações
restauradoras de Jesus, o Deus encarnado. Desprezado e sofrido vivia na
marginalidade da sociedade de sua época com um status quo semelhante ao da
personagem samaritana. Mulher determinada em esclarecer suas dúvidas
religiosas ela é cativada por Jesus, tornando-se discípula e missionária.
Palavra-chave: Samaria. Mulher Samaritana. Evangelho. Jesus.
Abstract: The article wants to reflect the encounter of Jesus with a woman of
the people who lived in Samaria. Despite the social dierences the Samaritan
woman was daring to engage in conversation with a Jewish man. The cut is in
the Gospel of John in chapter 4 that presents some women who acted alongside
Jesus as protagonists in some Gospel narratives. The biblical narrative
addresses interesting questions about gender, segregation, racial and religious
prejudice. Pericope addresses the life of women in the provinces of the capital
of Samaria in specific "the Samaritan woman" text well known in the Christian
milieu. Rereading of ancient texts is always an investigative process that seeks
for precious discoveries that will be used in present history. Among these
nuggets we find the restorative actions of Jesus, the incarnate God. Despised
and suering he lived in the marginality of society of his time with a status quo
similar to that of the Samaritan character. Woman determined to clarify her
religious doubts she is captivated by Jesus, becoming a disciple and missionary.
Keywords: Samaria. Samaritan Woman. Gospel. Jesus;
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 42-50, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.192
* Teóloga, professora, doutora e mestre em
Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo. Química e Pós-
Graduada em Bioquímica. Membro e
pesquisadora da Rede Latino-Americana de
Estudos Pentecostais (RELEP) pesquisadora
do Fenômeno do Protestantismo e
Pentecostalismo Brasileiro. Membro e
pesquisadora do Grupo de Pesquisa Teologia
no Plural. Coopera como pesquisadora com o
Instituto Tecnológico Social (ITS), uma
ONG hispano-brasileira atuando em Guiné
Bissau desde 2010. Compõem junto a outros,
a diretoria da ONG OIKOS, Escola da Vida.
Tem trabalhado com missionária no Brasil,
Peru, Espanha, PortugaleGuinéBissau.
Email: prof.angela.maringoli@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1844-6492
Recebido em 29/07/2023
Aprovado em 22/10/2023
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INTRODUÇÃO
Os samaritanos eram um povo segregado por parte dos judeus e das autoridades
religiosas. Os judeus e samaritanos eram inimigos de longa data antes mesmo de Juir
para o exílio babilônico. Devido aos acontecimentos históricos e a miscigenação de
Samaria após a invasão militar dos assírios e da implantação da política devastadora de
dominação aplicada pelos bárbaros assírios aos povos da região de Samaria. Os assírios
invadiram o Norte do país de Israel, dominaram a cultura, a religião, os costumes, levaram
os homens como prisioneiros de guerra e subjugaram as mulheres em atrocidades,
gerando filhos bastardos durante a tomada e queda o reinado do rei Jereboão II (722 a. C.).
A tradição oral preservou os textos e as memórias que através de testemunhos
oculares evocam o passado do cristianismo. Jesus, mestre e rabino interagindo com o dia a
dia das comunidades entra em cena, quando ao conversar com a mulher, desconstrói as
barreiras culturais, étnicas e religiosas fomentadas pelos judeus a respeito dos samaritanos.
O diálogo entre Jesus e a mulher samaritana, que no texto é apresentada sem uma
identidade ou nome, acontece em meio ao nada, em um poço onde costumeiramente as
mulheres das aldeias, caravanas e viajantes paravam para beber água.
Na narrativa da “mulher samaritanahouve uma recuperação identitária através de
uma conexão entre ensinos de Jesus com a realidade cultural da mulher uma história da
relação entre dois povos. Jesus, em terras carregadas de séculos de história, guerras, lutas,
mortes e derrotas. Samaria e o monte Geresim considerado o local sagrado para os
samaritanos. Para os povos antigos se dirigirem a locais sagrados era comum essa atitude
de adorar, faz parte do diálogo de Jesus com a mulher samaritana. Jesus desconstrói quando
ensina que adorar a Deus em Espírito é mais importante que estar em um local geográfico.
1 ESTRANGEIROS EM ISRAEL
Em Israel os estrangeiros eram divididos em dois grupos. O primeiro o os de
passagem, aqueles que usufruem da hospitalidade, porém não o protegidos pela lei e o
segundo são os estrangeiros residentes em Israel chamados de gerî e esses sim contavam
com a proteção da lei. O geri era o estrangeiro vivia estável em meio à comunidade e
usufruía de certos direitos. Ele era menos associado social e religiosamente. Abraão foi um
geri em Hebron (Gn 23,4), Moisés em Mídiã, (Ex 22) 87 e Elimeleque era um homem de
Belém, que foi com sua família se estabelecer como geri em Moabe (Rt 1,1). Moabe (Rt 1,1).
O redator retrata os estrangeiros em Moabe (Rt 1,1) como uma alusão ao patriarca Abraão
o arameu que se tornou o pai de muitas nações, em especial a dos hebreus). Bom lembrar
que Rute a moabita é descendente de Ló. Os moabitas serviam ao deus Milcon (de Camos)
mas Rute tem um encontro com o Deus de Noemi sua sogra.
1.1 O Ritual das Águas - Batismo na religiosidade judaica
João 4 inicia com Jesus se retirando do ajuntamento de fariseus porque não desejava
participar do embate entre os judeus religiosos e os discípulos sobre a questão do batismo.
Se evidencia uma discussão sobre o número de batizados de Jesus sendo superior aos de
João Batista (cf. Jo 4,1). O que se questiona é se o batismo praticado por Jesus é lícito ou
não. E o autor alerta que Jesus não era quem batizava, mas os seus discípulos.
Jesus, esquivando-se da conversa, se dirige a caminho da Judéia em direção para a
Galileia. Por que naquele momento do embate entre fariseus e discípulos Jesus não quis
reagir teologicamente e discorrer a respeito significado do rito do batismo? Por que os
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O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as queses sobre nero
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grupos religiosos dos fariseus se encontravam por perto daquele local? Talvez a resposta
seja porque essa seria uma discussão em torno dos costumes culturais judaicos sobre a lei
mosaica ou a respeito da maneira com a qual o batismo era praticado pelos povos antigos.
O batismo é um ritual religioso com lavagens cerimoniais feitas por imersão nas
águas purificadoras. Para a religião judaica o batismo significava a conversão do
paganismo para o judaísmo. O rito era praticado uma única vez. João Batista, o profeta, ao
batizar, pregava o batismo e o arrependimento aos não judeus para que esses se
convertessem ao judaísmo e obtivessem o perdão dos pecados, anunciando que o Reino de
Deus estava próximo. O batismo não era um ritual comum, havia no rito a
intencionalidade de que o pecador durante o momento libertário do batismo entendesse
que existia nele necessidade de uma mudança em sua “atitude mental” e que era necessário
ao pecador convergir para uma direção correta que o levasse ao encontro de Deus. João
Batista queria dizer aos povos judeus e não judeus, que era necessário que todos eles se
batizassem para o perdão e arrependimento dos pecados. O que poderia soar ofensivo aos
ouvidos religiosos, onde dominava a crença entre eles sobre salvação única para os judeus
por serem o único povo nascido sobre a Lei de Deus. João Batista apregoava que todos que
quisessem vir a Deus deveriam se batizar. Prevendo que uma longa discussão religiosa o
aguardava e que para aquele momento essa conversa seria pouco proveitosa faz com que
Jesus se retire do ambiente religioso farisaico para priorizar sua saída do território da
Judéia em direção à Região da Galileia. Chegando à Samaria onde inicia um diálogo sobre
águas batismais e arrependimento, outras paragens com outros ouvintes. Jesus priorizara
falar sobre o Espírito da Verdade, aquele que liberta (Jo 4,1-41).
Jesus o Senhor, é o Kyrios, que controla os acontecimentos decidiu que era
necessário ir à Samaria por um caminho não costumeiro que margeava o Rio Jordão, ele
mudou a rota e mudou de espaço geográfico, porém a conversa e o ensino continuam
sendo o mesmo, libertar os cativos, fracos e oprimidos. Jesus é recebido na Galileia. João, o
apóstolo, testemunha ocular do episódio, fornece informações para que o leitor construa
em sua mente o ambiente onde a cena da chegada da mulher samaritana ao poço e Jesus
lhe pede água para beber.
A água ainda era o tema central. Logo, inicia a conversa entre Jesus e a mulher e o
tema da água viva. O preconceito dos discípulos os endurecia e os cegava. Jesus cruza
fronteiras geográficas - culturais rígidas e se dirige em direção ao itinerário que para Ele
era necessário. Necessário me é passar por Samaria, diz Jesus. Por que me é necessário?
Necessário fazer o que nessas paragens? Por que não ir para a Galileia pelo caminho
tradicional seguindo pela Transjordânia? Para que complicar? Por que ir por uma rota
onde gente desinteressante cruzaria o caminho? Jesus escolhe a rota mais difícil é a que o
dirige para a sua missão de reconciliar a humanidade, é a nova aliança que nasceu durante
o casamento que ficou conhecido nos textos bíblicos como as Bodas de Caná que é
aplicada, Jesus tinha que passar por Samaria (4,4). O manancial citado nesse versículo mais
tarde ficou conhecido na história como o “poço de Jacó”. A localização do poço de Ja
ficava perto dessa aldeia que no tempo de Jesus chamava- se Sicar onde ficava o terreno
que Jacó deu ao seu filho José e que nos tempos de Jacó tinha o nome de Siquém, atual
Nablus, localizada entre os montes Gerizim e Ebal, região de Samaria, ficou sendo a capital
do Reino do Norte (Israel ou Samaria), quando as tribos de Israel se dividiram em duas
nações na época dos sucessores do rei Salomão. O texto busca fazer o leitor lembrar que a
terra é dos herdeiros de Jacó.
Concluído o diálogo a mulher se dirige para avisar aos de sua aldeia que havia
conhecido um profeta. Enquanto a mulher corre euforicamente para avisar os seus
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conterrâneos sobre a presença do Messias entre eles os samaritanos, Jesus aproveita para
entabular uma conversa com ensino com os discípulos, que não estavam entendendo o que
se passara ali e menos ainda do porquê o mestre, um judeu se dirigira a uma mulher
samaritana em assunto e prosa.
2 DIREITOS LEGAIS DA MULHER NO MUNDO ANTIGO
Na época patriarcal, o costume do casamento era monogâmico e o homem possuía
somente uma mulher igual como foi no início, no relato da criação onde os casamentos
eram monogâmicos (Gn 2,21-24). Abraão possuía apenas uma mulher. Nos escritos
históricos, encontram-se as mulheres, principalmente no papel de mãe, que ensinavam e
nutriam o continuar da história do povo e mesmos as que assumiam o papel de esposa e
ajudante de seu marido. Os patriarcas seguiam os mesmos costumes do oriente e dos seus
ambientes em relação ao casamento. Era na Palestina da Idade Média do Bronze, e não a
Palestina do Império Egípcio.
A situação dos direitos legais da mulher israelita era então diferente da mulher
escrava. Um homem poderia vender sua escrava ou até sua filha legítima (Ex 21,7), mas
não poderia vender a sua esposa, ou nem mesmo aquela esposa que houvesse sido cativa de
guerra (Dt 21,14). O marido podia repudiar sua esposa, mas o documento e repúdio a
protegiam e lhe restituíam a liberdade. O provável é que depois do repúdio, a mulher
recebesse apenas o usufruto do marido, mas também uma parte do mohar que veio com
ela, por meio de seus pais (Jz 15,19; Jz 1,15). (MARINGOLI, 2014 p.98).
A estima dos parentes pela mulher sempre era maior quando a mesma gerava filhos
o que gerava herdeiros para a posteridade (Gn 16,4; 29,31; 30,24); se fosse menino, o
respeito de seu marido aumentava, pois o menino tinha o direito da herança da terra e de
preservar a família pela progenitora. A lei condenava tanto o homem como a mulher, pela
falta de filhos (Ex 21,17; Lv 20, 9; Dt 21, 18-21) e o decálogo insiste no respeito aos pais (Ex
20,12), essa orientação é repassada nos escritos dos livros sapienciais, como os de
Provérbio. No código de Hamurabi (1700 a.C.), marido não poderia tomar uma segunda
mulher a não ser em caso de esterilidade da primeira.
A mulher estéril era quem arrumava uma concubina escrava para o seu marido. A
esposa titular era única e ela possuía o direito de esposa. Segundo Ana M. Tepedino, as
mulheres fazem com que as histórias aconteçam tanto no presente quanto no passado ou
em qualquer lugar que estejam. No Oriente, em geral, segundo a autora, havia uma
mentalidade bastante preconceituosa em relação à mulher, e em muitos textos bíblicos,
muitas vezes, nem o nome do personagem feminino é citado. (MARINGOLI, 2014, p.98).
Em outras situações, como no caso da mulher samaritana o nome da pessoa não é
mencionado explicitamente, por se encontrar inserido no coletivo, iguais aos das citações:
“povo”, “multidão”, “discípulos” e outros. Ivoni Richter Reimer [...]comenta em uma de
suas palestras que existem maneiras de se fazer a história se calar e uma delas é mencionar
alguém rapidamente e se centrar então em pessoas e acontecimentos aparentemente mais
importantes. (REIMER, 2008)
1
. Para encobrir a história verdadeira será através da
interpretação da história tradicional.
A história interpretativa de um texto pode silenciar ou deixar de perguntar por
algum elemento pertencente a ela. Nesse sentido, essa herança acaba legitimando na
história o poderio do homem sobre a mulher. A teologia feminista tem uma leitura
1 Reimer Ivoni Richter, Tema: Jesus e a tradição das transgressoras, II Congresso Internacional de Estudos blicos,
PUC, São Paulo, 2008.
MARINGOLI, Ângela
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própria de natureza alternativa que se constitui como uma intervenção política, religiosa,
mas que vivenciada muito mais nos meios acadêmicos que nas próprias ruas. É uma
teologia que dialoga e provoca um enfrentamento de luta nos valores e verdade, com os
seus discursos opostos a essa opressão kyriarcal. (MARINGOLI, 2014, p.97).
Fiorenza comenta que as pesquisas hermenêuticas bíblicas no viés feminino ainda
são interpretativas do que linguísticas, havendo a necessidade de se fazer uma pesquisa
histórico-exegéticas das narrativas. (FIORENZA, 1992).
Sob o ponto de vista social, jurídico e político, a mulher em Israel e na
circunvizinhança possuía menos privilégios que as mulheres dos grandes países vizinhos.
Poucas foram as mulheres que se destacaram e que tiveram uma identidade algumas as
conhecemos pelo seu nome Miriam, as parteiras do Êxodo, Débora, Rute e a Sulamita são
alguns dos poucos exemplos de prestígio e identificação feminina.
No Egito, a mulher comumente aparece com os mesmos direitos de um chefe de
família. Na Babilônia, quando no cativeiro a mulher judia passou a adquirir posses, agir
judicialmente e ter partes na herança de seu marido. Na colônia de Elefantina, sob a
influência estrangeira, a mulher judia adquiriu direitos de representar o seu bet ‘ab na
assembleia. Na Babilônia ela podia adquirir posses, agir judicialmente e ter partes na
herança de seu marido. E, ao mesmo tempo, essas mesmas mulheres constituíam, por
vezes, uma ameaça, quer em uma apostasia externa, quer na liderança interna, como é o
exemplo da mulher cuxita, esposa de Moisés, que suscitou a ira dos irmãos de Moisés,
Mirian e Arão por ser uma estrangeira e idólatra. Estes consideravam o casamento de
Moisés com uma cuxita uma ligação sexual fora da vontade de Deus (Nm 12,1-5). Um
israelita ligado a uma estrangeira era severamente condenado às maldiçoes com pragas e
doenças. Entretanto, Mirian, quando contestou a liderança e autoridade de Moisés, foi
desvestida das suas funções de liderança e punida com uma doença. Mesmo assim, o campo
da história das mulheres e das relações de gênero mantém-se como “um campo” na história.
No Oriente Próximo não era comum, que uma mulher andasse sozinha por uma
questão de precaução dos muitos casos de abusos sexuais e estrupo como os citados no
livro de Juízes no Antigo Testamento, as mulheres quando se dirigiam para realizar
qualquer tarefa doméstica como os exemplos da mulher samaritana, que era retirar água
do poço, caminhavam em pequenos grupos ao irem buscar água. (Gn 29.10). É intrigante
pensar uma mulher sob o sol escaldante ir ao poço para buscar água sozinha.
Pedir água a essa mulher seria um flerte? Com certeza não naquelas paragens. Isaque
e Jacó ficaram conhecendo suas mulheres junto a poços (Gn 29.10), mas através do servo
de Abraão, o Eleazar. A noção importante (Jo 4,10) desse versículo é o significado de “o
dom de Deus” para alguns biblistas esse “dom” é a “água viva” que Jesus oferecia à mulher, a
água espiritual que lhe daria a vida eterna (Jo 4,14). Havia um confronto racial entre eles e
foi desta maneira que a mulher avaliou esse encontro com Jesus. Para as leis judaicas Jesus,
judeu, não poderia tocar a comida e até mesmo a vasilha que ela carregava que eram
consideradas impuras. Foi com essa mulher impura e estigmatizada que Jesus abriu um
diálogo. Acaso tu és maior do que nosso Pai Jacó que nos deu o poço, do qual ele mesmo
bebeu e, bem assim, seus filhos e seu gado.? Que audácia da mulher ao comparar Jesus com
Jacó ela entende que Jacó iniciara naquele local um povo fundante e Jesus queria uma
nação e uma só raça.
MARINGOLI, Ângela
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3 VIDA E A CONVERSÃO DA SAMARITANA
Não tenho marido, Jesus se admira da resposta da mulher, frase que demonstra
vergonha e Ele não a quis envergonhar, mas precisa mostrar a gravidade do assunto a ser
revelado. Vai buscar teu marido- Eu não tenho marido! A experiência da coragem de ser
apesar da angústia de não ser! Dissestes a verdade, esse que tem não é seu. Esse é o que te
oprime. Parece-nos que na frase esse o é seu marido está embutido o conselho de Jesus
que quer dizer que esse marido não é bom para você, porque ele não lhe cuida, não zela
por sua vida humana nas suas necessidades, não é seu cúmplice e nem lhe protege. Jesus
introduz a mulher, um sujeito isolado e discriminado, demonstrando a presença desses
novos sujeitos, no cristianismo e sugerindo a inserção de novos conceitos bem como de
novas abordagens para esse novo modelo religioso.
A mulher estava em crise, cinco maridos - senhores (baal), com os quais ela foi
casada, no grego a palavra está como “marido” e não amante, ela não foi uma concubina,
mas “esposa” desses cinco maridos com quais ela fez uma aliança de casamento e que a
tripudiaram por muito (o) tempo, talvez por setecentos anos e o atual não era seu
governo, não era responsável por cuidar e tratar dela, não era o esposo, mas era o poder
militar dos romanos.
Quem são os cinco maridos? Como foi dito, a situação dos direitos legais da mulher
israelita era então diferente de uma mulher que fosse uma escrava. Um homem poderia
vender sua escrava ou até sua filha legítima (Ex 21,7), mas não poderia vender a sua esposa,
ou nem mesmo aquela esposa que houvesse sido cativa de guerra (Dt 21,14). O marido
podia repudiar sua esposa, mas o documento e repúdio a protegiam e lhe restituíam a
liberdade. O provável é que depois do repúdio, a mulher recebesse apenas o usufruto do
marido, mas também uma parte do mohar que veio com ela, por meio de seus pais (Jz
15,19; Jz 1,15). Paralelamente, o exército assírio invadia e conquistava cruelmente as nações
circunvizinhas espoliando-as e dominando-as à escravidão.
A ação militar da Assíria e o cerco de Samaria dura por três anos e meio sob o
reinado do rei Salmaneser, que sujeitou até a queda do reino do Norte no ano nono do
reinado de Oseias rei de Israel. O rei da Assíria após ter implantado a sedimentação das
muitas raças e religiões em Samaria mandou buscar gente da Babilônia, (primeiro marido)
Cuta (segundo marido) Ava (terceiro marido) Hamate (quarto marido) e Sefar (quinto
marido) e fez com que se estabelecessem nas cidades de Samaria, em lugar dos Israelitas, e
eles tomaram posse de Samaria e habitaram em suas cidades (2Rs 17,24). Uma centralidade
matrimonial aparece. Babilônia, (primeiro marido) Cuta (segundo marido) Ava (terceiro
marido) Hamate (quarto marido) e Sefar, são os cinco maridos da Samaria que parece
ainda estar de insatisfeita com suas relações conjugais, Samaria quer a oportunidade de
saciar a sede. Poucos deuses não bastam e então, “cada nação fabricou para si os seus
próprios deuses e os colocou nos templos dos lugares altos, que os samaritanos haviam
feito; assim fez cada povo nas cidades em que habitou” (2Rs 17,29-32). Desde 722 a.C. aos
romanos e até conhecer Jesus, Samaria foi dominada por uma falsa religiosidade o que a
fez permanecer isolada da religião judaica. Samaria abandonara o Deus de Israel e por ter
sido dominada por forças invasoras territoriais havia corrido atrás de outros deuses.
Depois mandou o rei de Assíria buscar um sacerdote dos que haviam sido exilados para
ensinar como esses estrangeiros deveriam adorar o Deus da terra.
MARINGOLI, Ângela
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4 QUEM SÃO OS CINCO MARIDOS
O Método Histórico-Crítico é um método de estudo exegético para a interpretação
dos textos bíblicos que pretendia ser isento de pressupostos. A ciência moderna usa o
método como ferramenta para análise literária visando se aproximar do texto original.
Dessa forma, este método retirou da Bíblia o status de texto sagrado, tornando-o uma
coleção com o testemunho do povo antigo de Israel e dos cristãos do primeiro século,
sujeito a críticas como qualquer outro texto
2
.
Essas ciências têm como tarefa auxiliar o entendimento do texto respeitando sua
cultura. Uwe Wegner define que a exegese possui três funções: a primeira é aclarar as
situações descritas nos textos, ou seja, redescobrir o passado bíblico de tal forma que o que
foi narrado nos textos se torne transparente e compreensível para nós que vivemos em
outra época e em circunstâncias diferentes; a segunda é permitir que pudesse ser ouvida a
intenção que o texto teve em sua origem; e a terceira função da exegese é verificar em que
sentido opções éticas e doutrinais. (WEGNER, 2009).
Os cinco maridos não são homens humanos, mas o os povos das terras distantes,
são as cinco nações que invadiram a nação de Israel. Nações que por doze séculos
roubaram, abusaram sexualmente das mulheres, mataram a espada homens crianças e
mulheres. O texto de 2Rs 17,24, ilumina a questão. Povos que invadiram a Samaria e a
sitiaram tomando-a à força e alterando-a em seus valores. Babilônia, (primeiro marido)
Cuta (segundo marido) Ava (terceiro marido) Hamate (quarto marido) e Sefar (quinto
marido). O redator do texto não poderia expressar de maneira melhor para simbolizar o
abuso que Samaria sofreu fazendo-a passar por uma mulher.
Cada nação edificou para si colocando os seus deuses nos montes que os samaritanos
tinham como sagrado. Assim procedeu cada povo adorando segundo a sua cultura. Foi
assim formado o sincretismo religioso em Samaria, até os tempos de Jesus. Eles temiam a
Yahweh, mas nomeavam qualquer religioso que se prontificasse a servir como sacerdotes
nos altares idólatras” (2Rs 17,28-32). Como ensinar sobre a unidade do amor de Deus?
Então, Jesus retoma o diálogo e explicando à mulher que “Mulher, podes crer-me, está
próxima a hora quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai”. Durante a
conversa a mulher demonstra certa dúvida ao afirmar: “Nossos pais adoravam sobre este
monte, mas vós, judeus, dizeis que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. E Jesus lhe
responde: “Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a
salvação vem dos judeus. Mas a hora está chegando, e de fato chegou, em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai, em espírito e em verdade; pois são esses que o Pai
procura para seus adoradores. Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o
adorem em espírito e em verdade”. A prioridade de Jesus é restaurar o Reino de Deus na
Terra. Instituir o Reino de Deus é uma ação humana, e feita de forma individual de um em
um, nada massificado ou em produção de série. A implantação do Reino de Deus por sua
voz e participação vem acompanhada por um ensino que tem como propósito produzir a
cura física, mental e espiritual e uma didática com uma metodologia. No Antigo
Testamento (Is 44,3; Ez 36,25), temos passagens que nos citam o Espírito de Deus sendo
derramado como água para ungir o povo na implantação do Reino de Deus capacitando o
povo a falar em seu nome.
2 Fee Stuart (1984, p.245) in Lopes (2004, p.189).
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CONSIDERAÇÕES GERAIS
No desafio de um estudo sobre a narrativa da mulher samaritana o artigo optou por
pesquisas realizadas por biblistas feministas porque para esse grupo de pesquisadoras é
fundamental interpretar a Bíblia a partir de uma visão que respeite as relações de gênero
dentro do que ele representa na história e no tempo, e para isso o auxílio da exegese e o
método histórico-crítico são imprescindíveis.
Os samaritanos eram um povo de religião heterodoxa que desprezada pelos judeus
acolhem os ensinos de Jesus destituindo todo outro tipo: templo, sincretismo religioso,
culto, simbolismos e substituindo a relação com o Espírito. E é sobre isso que Jesus
conversa com os discípulos, sobre a comida, a colheita abundante e sobre a dos
rejeitados e excluídos samaritanos.
Nas narrativas bíblicas é comum encontrar um perfil androcêntrico Por outro lado, as
interpretações hermenêuticas dos primeiros pais da igreja dessas narrativas viam a figura
feminina de maneira estereotipada, evidenciando estruturas que relegavam as mulheres a
uma posição de segundo plano como aquela que engana, como “Eva” no livro de Gênesis
(Gn 3,1-7) adultera a palavra sendo ela a pecadora, ou como as filhas de que embriagam
o pai no intuito de procriarem (Gn 19,30-35) ou o exemplo de Maria Madalena (Lc 8,1-2)
muitos outros exemplos poderiam ser citados. Androcentrismo que apresentavam as
mulheres por meio de narrativas que as concebiam como invisíveis, insignificantes e
marginalizadas, Entretanto, em Jesus as mulheres silenciadas ganharam vozes e deixaram
suas mensagens de maneira por vezes metaforizadas como no caso da mulher samaritana.
Narrativa que discute o poder majoritário de forças invasoras sobre uma nação fraca.
Profundamente ligado à história social e cultural de cujas perspectivas tem se
apropriado e ao mesmo tempo para cujas discussões teórico-metodológicas tem
grandemente contribuído, conforme admitem historiadores e cientistas sociais. Talvez
porque a violência contra a mulher seja sustentada por estruturas multiplicadoras de
controle opressoras e desumanas.
A implicação nessa associação de gênero à herança das culturas judaico-cristão
europeias, na leitura dos textos, cultura que centralizam na sociedade o antropocêntrico e
a visão dicotômica e biológica de homens e mulheres como seres socialmente diferentes no
poder de decisão. Nesse sentido, a mulher samaritana cuja voz soa através da história e dos
séculos como um grito que ecoa “eu sou livre” carrega na sua bagagem a força libertadora
do cristianismo de Jesus, que relembra que o Deus encarnado acolheu o fraco incluindo-o
como igual, conversou e dialogou com “ela” ouvindo-a e instruindo-a não o com os
homens, mas com ela. Durante muito tempo as mulheres não foram consideradas sujeitos
da história e, portanto, estiveram excluídas das narrativas dos historiadores ou quando
usadas por essa era de uma forma pejorativa e segregativa. livro do profeta Oseias é um
desses exemplos. Felizmente o panorama da historiografia por Jesus parece ter mudado.
Jesus, igual aos redatores do Antigo Testamento metaforiza simbolicamente com a mulher,
mas diferentemente desses ele restaura a dignidade simbólica do gênero. Para alguns
estudiosos trata-se de uma metáfora. Jesus queria tratar de um assunto político religioso
que se arrastava por sete séculos de história dos samaritanos e essa miscigenação racial
separava os judeus dos samaritanos de uma maneira segregativa. Jesus queria resolver essa
peleja e diplomaticamente ele toma uma mulher como exemplo e a usa como um símbolo
para o seu ensino.
A mulher não representa o gênero feminino, mas sim a nação de Samaria. Jesus não
estava falando do ser humano de gênero feminino, mas está explicando sobre o
MARINGOLI, Ângela
O Deus que age nas fronteiras sociais do humano: a narrativa bíblica e as queses sobre nero
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 42-50, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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comportamento das muitas alianças erradas feitas pelo povo de Samaria. Jesus o único que
poderia restaurar Samaria realiza esse feito para que mais tarde ao dizer: Indo, por todo o
mundo ensinando os a guardar tudo o que vos tenho dito a começar por Jerusalém, Judéia
Samaria e confins da Terra. Se Samaria não houvesse sido restaurada por Jesus o seu
método restaurativo e inclusivo de conviver com o diferente nunca teria chegado até nós.
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