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tudo, esclarecer qual era o contexto social e histórico em que vivia a mulher na região do
Mediterrâneo no século I. A sociedade se pautava em uma estrutura patriarcal e
culturalmente androcêntrica, ou seja, em que predominavam as decisões dos varões.
Há quem até chegue a confundir os dois acontecimentos, o de Maria de Betânia
com a da mulher pecadora. Não há semelhança alguma entre as duas narrativas.
Para corroborar com esta versão, observe o que traz o exegeta Mauro Orsatti:
Qualquer probabilidade a mais poderia ser reservada à identidade com Maria,
irmã de Lázaro. Lê-se em Jo 11,2: “Maria era aquela que havia derramado óleo
perfumado no Senhor e havia enxugado seus pés com seus cabelos”. Isso poderia
convalidar o relato de Lucas. Nota-se, todavia, que o episódio de João é
apresentado com algumas divergências, também em Mateus e em Marcos (Mt
26,6-7
1
; Mc 14,3-4
2
). Mateus, Marcos e João concordam na interpretação
profética do gesto realizado, antecipação do sepultamento. Enquanto, porém,
Mateus e Marcos falam de perfume derramado na cabeça de Jesus, João indica
que perfumados foram os pés, enxugados depois com os cabelos. Somente em
João a mulher recebe uma identificação segura: Maria, irmã de Lázaro.
Lucas concorda com João em que os pés é que foram perfumados e enxugados,
acrescenta, porém, que a mulher chora a seus pés. Lucas, igualmente com
Mateus e Marcos, deixa a mulher no anonimato. Destaca-se dos três outros
evangelistas em colocar o episódio distante da Páscoa, ou ao menos sem
referência direta a ela.
Sem poder dizer uma palavra definitiva, a conclusão mais aceitável é esta: trata-
se de um caso semelhante, mas diferente do que é narrado pelos outros
evangelistas. A mulher é deixada propositalmente no anonimato, por uma fina
delicadeza de Lucas. Mais importante que seu nome é saber que uma mulher
deixou para trás uma vida pecaminosa para encaminhar-se com gestos de
reconhecido amor a uma vida nova (ORSATTI, 2000, p.81-82).
Descarta-se, também, a identificação com Maria de Magdala porque esta aparece
poucos versículos mais adiante (cf. Lc 8,2-3)
3
.
A contribuição do biblista Isidoro Mazzarolo, que primeiro explicita sobre o
contexto histórico no qual está inserida a mulher daquela época, é necessária para a
compreensão do evangelho lucano.
Alguns “pregadores”, mas não exegetas afirmam que Lucas é machista ao não
dar o nome à mulher. É, exatamente, para mostrar a distância que há entre a
mulher, julgada pela sua situação de prostituta marginalizada, que ela não tem
nome. O evangelista está condenando a sociedade que exclui as prostitutas,
usadas pelos nobres, com nome e sobrenome, como é nesse caso
(MAZZAROLO, 2013, p.121).
Ainda, conforme Mazzarolo (2004), os evangelhos de Lucas e João trabalham a lição
da mulher pecadora dentro de uma mesma moldura teológica. Dessa forma, a vertente
principal do relato abarca três contrastes: 1) um conflito entre Jesus e as autoridades dos
judeus, que revela uma forma ideológica e perversa de aplicar a justiça; 2) uma rejeição de
Jesus por parte dos judeus e 3) uma revelação messiânica pela mulher. O biblista acrescenta
que tanto em Lucas quanto em João há uma antítese entre a mulher e os judeus (fariseus).
O eixo central das perícopes não contempla, propriamente, a mulher como pecadora, mas
1 Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Uma mulher aproximou-se dele, com um frasco de alabastro
cheio de perfume caríssimo, e derramou-o na cabeça de Jesus, que estava à mesa.
2 Quando Jesus estava sentado à mesa, em Betânia, em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher com um frasco de
alabastro cheio de perfume de nardo puro, muito caro. Ela o quebrou e derramou o conteúdo na cabeça de Jesus.
Alguns que lá estavam ficaram irritados e comentavam: “Para que este desperdício de perfume”.
3 E também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada Madalena, de
quem saíram sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e muitas outras mulheres,
que os ajudavam com seus bens.
GOMES, Dorcelina do Carmo Alves
O discipulado de iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 22-32, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.