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O DISCIPULADO DE IGUAIS NA
PERÍCOPE BÍBLICA
A pecadora do Evangelho de Lucas
THE DISCIPLESHIP OF EQUALS IN
THE BIBLICAL PERICOPE
The Sinner of the Gospel of Luke
Dorcelina do Carmo Alves Gomes*
Resumo: A intenção desse artigo é refletir sobre o protagonismo feminino
na Sagrada Escritura e na Igreja. Para isso, usa-se como recurso a perícope
intitulada A pecadora do evangelista Lucas, capítulo 7, versículos 36 a 50. O
que se quer mostrar são aspectos relevantes da mudança de mentalidade
proposta por Jesus quanto à presença da mulher no ambiente eclesial.
Ainda, partindo desse foco, pretende-se apresentar brevemente traços do
discipulado de iguais, que devem ser recuperados na atualidade. O diálogo de
Jesus com a mulher que aparece sem nome no evangelho lucano encontra-se
na seção chamada Ministério de Jesus na Galileia (4,14-9,50). Esta começa com
a narrativa em Nazaré e termina com Lição de humildade e tolerância. Por fim,
é conveniente dizer que o texto assume uma análise na perspectiva da
hermenêutica feminista.
Palavras-chave: Perícope. Pecadora. Lucas. Hermenêutica feminista.
Discipulado de Iguais.
Abstract: The intention of this article is to reflect on the female role in
Sacred Scripture and in the Church. For this, the pericope entitled the
sinner of the evangelist Luke, chapter 7, verses 36 to 50, is used as a
resource. What we want to show are relevant aspects of the change of
mentality proposed by Jesus regarding the presence of women in the
ecclesiastical environment. Still, based on this focus, it is intended to briefly
present traits of discipleship of equals, which must be recovered today.
Jesus' dialogue with the woman who appears unnamed in the Lucan gospel
is found in the section called Ministry of Jesus in Galilee (4.14-9.50). This
begins with the narrative in Nazareth and ends with Lessons on Humility
and Tolerance. Finally, it is convenient to say that the text assumes an
analysis from the perspective of feminist hermeneutics.
Keywords: Pericope. Sinner. Luke. Feminist hermeneutics. Discipleship of
Equals.
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 22-32, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.184
* Jornalista graduada em Comunicação Social
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e
em Letras/Habilitação em Português pela
mesma instituição. Mestrado em Teologia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Cursa a pós-
graduação on-line Protagonismo Feminino
na Igreja pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) Minas Gerais. É membro da
Rede Brasileira de Teólogas (RBT).
E-mail: dorce.dorce@yahoo.com.br
https://orcid.org/0009-0009-1316-2264
Recebido em 25/07/2023
Aprovado em 11/10/2023
23
INTRODUÇÃO
O Evangelho de Lucas dedica seus dez capítulos à saída de Jesus da Galileia a
Jerusalém. O que interessa é o final do capítulo sete, porque Lucas guarda para a conclusão
da narrativa uma cena especial e de matéria própria: o encontro da pecadora sem nome
com Jesus na casa do fariseu Simão (MAZZAROLO, 2013, p.121). Essa perícope fecha uma
seção de ensinamentos relacionados à acolhida, à e às obras. Também faz uma dura
crítica aos conservadores, chamados fariseus. Estes voltam suas ações para a prática
farisaica de fixação ao passado, rejeição ao novo e a tendência de condenar e julgar os
inocentes. Abre-se uma nova seção, que é o ministério da mulher e dos discípulos em geral.
O contexto dessa crítica é a Lei que impede uma prática da misericórdia e da graça.
Os personagens que transitam nesse cenário são três: a mulher, o fariseu e Jesus.
Segundo o doutor em teologia bíblica, Isidoro Mazzarolo, é o evangelho que mais
títulos recebeu pelos exegetas e pesquisadores: evangelho da mulher, dos pobres, da
inclusão, da misericórdia.
A reflexão parte de um ponto de vista feminino e tem como aporte referências
bibliográficas, em sua maioria, de mulheres teólogas. Infelizmente, pouca bibliografia
específica sobre o discipulado de iguais, o que dificulta, de certa maneira, a análise. Nesse
caso, o estudo baseia-se, em grande parte, das obras de Fiorenza (1995) e de Santinon;
Mariotti e Ottaviani (2023). O objetivo é mostrar que o discipulado de iguais esteve
presente durante todo o tempo no diálogo entre Jesus e a pecadora sem nome no encontro
ocorrido na casa do fariseu. É imprescindível que se diga que essa e outras passagens
demonstram que a comunidade lucana tem uma sensibilidade especial pelas mulheres,
sobretudo as pobres e as desprezadas pela sociedade.
Nas comunidades fundadas por Jesus, as mulheres ocupam seu espaço. Nesse sentido, as
narrativas dos Evangelhos registram essa presença feminina e o diálogo do nazareno com elas,
“dando-lhes voz”, tornando-as suas discípulas. Não impunha “obstáculos ao seu protagonismo
no anúncio do querigma” (SANTINON; MARIOTTI; OTTAVIANI, 2023, p.25).
A perícope em análise (Lc 7,36-50) não apresenta propriamente um diálogo entre Jesus e
a pecadora. Apesar disso, a simbologia da linguagem gestual e atos da mulher sem nome
revelam um encontro de dignidade e igualdade entre ambos. Parte-se dessa premissa para
revisitar o texto do Evangelho de Lucas e apresentar fundamentos para o discipulado de iguais.
1 CONTEXTO LITERÁRIO E HISTÓRICO
O Evangelho de Lucas origina da índole particular de seu autor. Nesse sentido, é
fácil perceber uma mensagem evangélica de um modo quase original. Afinal, deixa
transparecer a ternura de Jesus para com os humildes e os pobres. A partir disso, o
evangelista se torna, entre os sinóticos, aquele que mais enfrenta o argumento das
mulheres. Assim, qualquer investigação a respeito do papel delas nas comunidades cristãs
primitivas o pode, evidentemente, prescindir dessa referência. Contudo, uma leitura
mais elaborada da narração lucana a respeito desse assunto indica como os textos sobre as
mulheres estão marcados por certa tensão, ligada a uma possível ambivalência quanto ao
papel da mulher na comunidade cristã. Lucas apresenta a mulher com características de
grandeza humana exemplar, mas também acolhe a mulher em sua fraqueza: são pecadoras,
doentes, possessas, viúvas. A mulher ora é exaltada, ora é diminuída. Para se compreender
o modo pelo qual Lucas enfrenta este tema e sobretudo para que se torne mais claro o
sentido do agir de Jesus evidenciado nos textos evangélicos, faz-se necessário, antes de
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tudo, esclarecer qual era o contexto social e histórico em que vivia a mulher na região do
Mediterrâneo no século I. A sociedade se pautava em uma estrutura patriarcal e
culturalmente androcêntrica, ou seja, em que predominavam as decisões dos varões.
Há quem até chegue a confundir os dois acontecimentos, o de Maria de Betânia
com a da mulher pecadora. Não semelhança alguma entre as duas narrativas.
Para corroborar com esta versão, observe o que traz o exegeta Mauro Orsatti:
Qualquer probabilidade a mais poderia ser reservada à identidade com Maria,
irmã de Lázaro. Lê-se em Jo 11,2: “Maria era aquela que havia derramado óleo
perfumado no Senhor e havia enxugado seus pés com seus cabelos”. Isso poderia
convalidar o relato de Lucas. Nota-se, todavia, que o episódio de João é
apresentado com algumas divergências, também em Mateus e em Marcos (Mt
26,6-7
1
; Mc 14,3-4
2
). Mateus, Marcos e João concordam na interpretação
profética do gesto realizado, antecipação do sepultamento. Enquanto, porém,
Mateus e Marcos falam de perfume derramado na cabeça de Jesus, João indica
que perfumados foram os pés, enxugados depois com os cabelos. Somente em
João a mulher recebe uma identificação segura: Maria, irmã de Lázaro.
Lucas concorda com João em que os pés é que foram perfumados e enxugados,
acrescenta, porém, que a mulher chora a seus pés. Lucas, igualmente com
Mateus e Marcos, deixa a mulher no anonimato. Destaca-se dos três outros
evangelistas em colocar o episódio distante da Páscoa, ou ao menos sem
referência direta a ela.
Sem poder dizer uma palavra definitiva, a conclusão mais aceitável é esta: trata-
se de um caso semelhante, mas diferente do que é narrado pelos outros
evangelistas. A mulher é deixada propositalmente no anonimato, por uma fina
delicadeza de Lucas. Mais importante que seu nome é saber que uma mulher
deixou para trás uma vida pecaminosa para encaminhar-se com gestos de
reconhecido amor a uma vida nova (ORSATTI, 2000, p.81-82).
Descarta-se, também, a identificação com Maria de Magdala porque esta aparece
poucos versículos mais adiante (cf. Lc 8,2-3)
3
.
A contribuição do biblista Isidoro Mazzarolo, que primeiro explicita sobre o
contexto histórico no qual está inserida a mulher daquela época, é necessária para a
compreensão do evangelho lucano.
Alguns “pregadores”, mas não exegetas afirmam que Lucas é machista ao não
dar o nome à mulher. É, exatamente, para mostrar a distância que entre a
mulher, julgada pela sua situação de prostituta marginalizada, que ela não tem
nome. O evangelista está condenando a sociedade que exclui as prostitutas,
usadas pelos nobres, com nome e sobrenome, como é nesse caso
(MAZZAROLO, 2013, p.121).
Ainda, conforme Mazzarolo (2004), os evangelhos de Lucas e João trabalham a lição
da mulher pecadora dentro de uma mesma moldura teológica. Dessa forma, a vertente
principal do relato abarca três contrastes: 1) um conflito entre Jesus e as autoridades dos
judeus, que revela uma forma ideológica e perversa de aplicar a justiça; 2) uma rejeição de
Jesus por parte dos judeus e 3) uma revelação messiânica pela mulher. O biblista acrescenta
que tanto em Lucas quanto em João uma antítese entre a mulher e os judeus (fariseus).
O eixo central das perícopes não contempla, propriamente, a mulher como pecadora, mas
1 Jesus estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso. Uma mulher aproximou-se dele, com um frasco de alabastro
cheio de perfume caríssimo, e derramou-o na cabeça de Jesus, que estava à mesa.
2 Quando Jesus estava sentado à mesa, em Betânia, em casa de Simão, o leproso, veio uma mulher com um frasco de
alabastro cheio de perfume de nardo puro, muito caro. Ela o quebrou e derramou o conteúdo na cabeça de Jesus.
Alguns que lá estavam ficaram irritados e comentavam: “Para que este desperdício de perfume”.
3 E também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada Madalena, de
quem saíram sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e muitas outras mulheres,
que os ajudavam com seus bens.
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salienta a crítica de Jesus à hipocrisia da aplicação da lei por parte da tradição dos judeus.
Quer no relato de Lucas, quer no de João, a mulher serve como trunfo para os fariseus
questionarem ou tentarem Jesus. Na outra mão da estrada, Jesus usa este episódio para
mostrar quão falsos e tendenciosos eram os caminhos da justiça judaica e como a maldade
se tornava uma prática social. No substrato teológico dos relatos está o juízo muito severo
à tendência em excluir os que erram. Por outro lado, Jesus evidencia que o perdão pode
criar espaços à profecia e ao amor, mas o julgamento fecha as portas para a redenção
(MAZZAROLO, 2004, p.177-178).
O episódio coloca em cena três personagens: o fariseu, Jesus e a mulher pecadora. No
interior da perícope encontra-se uma parábola, cujos protagonistas são exatamente a
contrafigura dos três personagens precedentes. O comparecimento dos comensais no fim
(v.49) vale como vozes fora do lugar para sublinhar a centralidade de Jesus, a figura-chave
em volta da qual gira toda a narração. Analisando melhor esse trecho, esse compõe-se da
apresentação dos personagens, do diálogo de Jesus com o fariseu e da avaliação que Jesus
faz da mulher (ORSATTI, 2000, p.79).
Tem-se primeiro a apresentação dos personagens (vv.36-38). Não indicativos de
lugar e de tempo e começa-se logo apresentando os personagens pela ordem: fariseu,
Jesus e a mulher. Sendo assim, o fariseu é apresentado como aquele que convida e Jesus
como convidado. a mulher não é convidada do fariseu, autoconvida-se para junto de
Jesus e por ele é convidada a ir em paz. A ação da mulher é descrita com detalhes, porque
Jesus quer ensinar em qual banquete se deve tomar parte, no banquete em que se e se
recebe misericórdia.
Após esse momento, segue o diálogo entre Jesus e o fariseu (vv.39-47). Esta parte é o
coração de toda a narrativa e revela o significado do gesto realizado pela mulher. Trata-se de
uma verdadeira prova de pedagogia. Tem início com o pensamento do fariseu que classifica
e julga a mulher, colocando, ainda, fortes dúvidas sobre o valor de Jesus. Este aceita a
provocação, fala e envolve o fariseu, interessa-o no diálogo e conta-lhe uma parábola que
termina com uma interrogação. Em contrapartida, o fariseu responde à conversa, obtém a
aprovação de Jesus que conclui suas palavras. Depois, ressoam as palavras de Jesus a respeito
da mulher (vv.48-50). Desenrola-se, praticamente, um monólogo porque Jesus é o único
interlocutor. Ao mesmo tempo, configura-se como um diálogo, tendo em vista que
sobraram dois personagens: Jesus e a mulher. O fariseu desaparece da narrativa.
Em síntese, a narrativa antecedente em Lucas apresenta o confronto da pecadora
com Simão, o fariseu (Lc 7,36-50). A teóloga Lucy Mariotti (2023) toma como base Jo
Tolentino Mendonça (2018, p.20-30) ao se referir ao confronto entre Jesus, a mulher e o
fariseu. Desse modo, observa que Lucas descreve refeições, tanto no Evangelho como no
livro do Ato dos Apóstolos. Eram momentos coletivos e não apenas restritos a duas ou
três pessoas. Também era costume deixar as portas abertas durante os banquetes. Pode-se
dizer que o paradigma da mulher no reconhecimento e na acolhida a Jesus contrasta ou
mesmo entra em conflito com a não-acolhida por parte do fariseu. Fica subentendido uma
possível relação íntima entre a desconhecida e o dono da casa, dado que as “mulheres
presentes em banquetes poderiam ser prostitutas dos bordéis de propriedade de
cobradores de impostos, contratadas para jantares ou festas. Daí se entende o porquê do
nervosismo de Simão nesse texto de Lucas” (PAGOLA, 2019a, p.260-261). Assim, a
mulher, sem nome e sem identidade, conhecida na cidade apenas como pecadora, torna-se
capaz de um gesto nobre em favor do Mestre. Por sua vez, preso pela ganância ou pela
autossuficiência, o fariseu é incapaz de qualquer gesto de sensibilidade, mesmo o mais
comum da cordialidade: a acolhida de um hóspede.
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2 P-TEXTO
Na obra de Lucas, o texto antecedente começa com a cura do servo do centurião
romano (Lc 7,1-10). Nesse sentido, ele é um estrangeiro, funcionário de Estado, opressor e
responsável pela manutenção da ordem, ainda que pelo uso da violência. Mazzarolo (2004)
acredita que é uma entre as muitas provocações de Jesus à sensibilidade de seus discípulos
e, acima de tudo, a seus opositores (fariseus e escribas) para uma nova percepção do Reino
de Deus. Mais adiante, Jesus provoca novamente a posição deles com um gesto de
consideração profunda pela viúva de Naim
4
, ao ressuscitar o filho da mesma (Lc 7,11-17).
Desse mesmo evangelho, o texto subsequente em Lc 8,1-3 é a resposta ao tratamento
de Jesus à mulher. Ele as institui discípulas junto aos Doze. A partir disso, surge a outra
vertente nas ações novas de Jesus como propostas do Reino. Após esse episódio, Jesus
narra a parábola do semeador (Lc 8,4-15). Mazzarolo (2004) faz a seguinte constatação: “O
discípulo é como a terra na qual a semente do evangelho cai. Se ele for fecundo, a semente
germinará e produzirá fruto, mas se ele for estéril, a semente perder-se-á. É o julgamento
proclamado sobre a mulher e Simão, o fariseu”. O autor também salienta que:
O texto subsequente pode ser prolongado até Lc 8,40-48, onde temos uma cena
semelhante à do texto antecedente: Jesus vai curar a filha do chefe da sinagoga e
no caminho aparece a mulher que sofria de hemorragias doze anos. É a
caridade e a misericórdia que suplantam a lei (MAZZAROLO, 2004, p. 179).
Do ponto de vista do biblista dentro da tradição judaica, no pré-texto dos destacam-
se dois pontos no pré-texto dos evangelistas Lucas e João. 1) o tratamento dispensado pela
lei à mulher dentro da visão farisaica, a partir de Esdras
5
para frente (Esd 9-10)
6
e 2) o
segundo aspecto pode ser visto como a forma interpretativa da lei e da profecia pelos
fariseus, os quais não reconhecem Cristo. Mais adiante, tem-se essa afirmação.
Na questão específica dos dois relatos, a mulher é objeto de subjugação pela lei
judaica. Instituída no pós-exílio pelos reformistas de Esdras, a lei do divórcio e
ao mesmo tempo do casamento preservava critérios de raça e de economia,
colocando o homem no gerenciamento dos bens como possuidor dos bens e dos
direitos da mulher. Para tanto, os sacerdotes e os fariseus constituíam-se em
guardiães da lei. No aspecto das profecias, eles sabiam tudo, menos entender
que elas estavam cumprindo-se em Cristo (MAZZAROLO, 2004, p.180).
3 A PEDAGOGIA DE JESUS
Mazzarolo (2004) esclarece que o perdão dos pecados da mulher é apenas o
fechamento da perícope e aponta para a postura profética de Jesus. Ao longo de seu
ministério, ele deixou claro que seu propósito não era buscar culpados, nem mesmo acusar
o mundo do seu pecado, mas anunciar a redenção, a libertação e a misericórdia (Lc 4,18)7.
Mazzarolo (2013) oferece a ideia de que o encontro de Jesus com a mulher pecadora
na casa do fariseu evidencia a pedagogia do amor cristão. Afinal, Jesus ama a mulher do
mesmo modo que ama o fariseu. O amor é, por excelência, a atitude da inclusão. A oferta
da graça é estendida à mulher, mas na mesma proporção é feita ao fariseu. Para ser
merecedora da graça, faz-se necessário que a mulher assuma o seu pecado e tome uma
4 Vila da Galileia próxima ao Tabor – cerca de 20 km ao sul do lago.
5 Fundador do judaísmo e promotor da Lei.
6 Os capítulos tratam da proibição de casamentos com estrangeiras e expulsão das mulheres estrangeiras.
7 O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-me para
proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos.
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atitude de ruptura com o tipo de vida que levava até o momento, a fim de se tornar
discípula de Jesus. Ao fariseu cabe um caminho mais difícil, porque se trata de assumir a
falsidade de sua inocência e confessar a hipocrisia de sua fé, além de aprender o caminho
real da santidade, que se traduz na caridade, perdão, compaixão e resgate. No encontro na
casa do fariseu, Jesus une os extremos: aquela que se confessa pecadora com aquele que se
confessa puro.
Jesus chama o pecado de pecado. No entanto, a luta dele contra o pecado acontece de
maneira diferente da dos fariseus. Estes excluíam os pecadores do povo santo de Deus e se
afastavam deles. Ao contrário, Jesus anuncia e traz o perdão, santifica os pecadores e os
leva ao seio do povo de Deus.
4 HERMENÊUTICA FEMINISTA: R E FL E XÕES PARA UM DISCIPULADO DE IGUAIS
No artigo intitulado A hermenêutica do feminino na teologia: suas lutas e conquistas,
Maria Cristina Furtado apresenta alguns conceitos que são imprescindíveis antes de
analisar a perícope lucana sob a perspectiva da hermenêutica feminista para um
discipulado de iguais. A autora se refere às palavras feminismo e feminista. Esses vocábulos
sempre foram cercados de preconceito na sociedade brasileira.
Segundo a teóloga, nas décadas de 60 e 70, o Brasil vivia a efervescência dos
movimentos sociais, em especial o movimento feminista. Neste contexto conturbado
surgiu a teologia feminista. Inicialmente, com o acento forte da teologia feminista do
primeiro mundo. Entretanto, os problemas da América Latina, sobretudo os do Brasil,
logo chamam mais atenção, e as teologias latino-americana e brasileira assumem
características próprias.
Na verdade, a teologia feminista torna-se então cria da Teologia da Libertação (TdL).
Por isso, Maria Cristina Furtado (2022) disseca o tema com a contribuição de
outras teólogas.
De acordo com Neiva Furlin tanto Brunelli quanto Rohden distinguem três
fases da produção teológica das mulheres latino-americanas, incluindo as
teólogas brasileiras. A primeira fase foi chamada de «a teologia e a “questão da
mulher”». Ocorreu na segunda metade da década de 1970. Uma produção que
surgiu a partir das experiências das mulheres e das dificuldades que enfrentaram
no interior dos cursos de Teologia. «Traziam a discriminação que, por serem
mulheres, sofreram nas comunidades eclesiais, quando procuravam compartilhar
os conhecimentos teológicos.» Desta experiência as teólogas sentiram a
necessidade de uma nova hermenêutica para a leitura bíblica que servisse de
ferramenta no processo de «libertação», tanto no interior da instituição eclesial,
como nas outras esferas sociais. «Um grande esforço para tornar o sujeito
mulher visível, a partir de uma nova leitura bíblica, sobretudo pela
reinterpretação dos textos bíblicos na ótica da mulher (FURLIN, 2011, p.144).
Maria Cristina ainda cita a segunda e a terceira fase da teologia feminista.
A segunda fase, de acordo com Delir Brunelli, foi a «teologia na “ótica da
mulher”». Ocorreu na década de 80, com as produções denunciando o caráter
androcêntrico, patriarcal e demasiadamente racional do discurso teológico.
Nesta época, as mulheres teólogas começaram a questionar o fato de a Teologia
da Libertação tratar os pobres de forma genérica, pois perceberam ser diferente
fazer teologia com base nas experiências dos homens, ou nas experiências das
mulheres pobres. A terceira fase foi a partir de 1990, com dois tipos de
produção: a teologia ecofeminista e a teologia feminista pela perspectiva de
gênero (FURTADO, 2022, p.85-86).
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Em síntese, o feminismo se caracteriza como um movimento que visa a estabelecer a
igualdade de gênero entre homens e mulheres, a vivência humana por meio do
empoderamento feminino e a libertação de padrões do androcentrismo e patriarcais. De
fato, o objetivo não é uma disputa de poder, mas a equidade feminina e masculina.
A propósito do quadro traçado por Lucas a respeito da mulher diante do fariseu e
ampliando essa reflexão para os dias atuais, Mazzarolo (2004) não se manifesta otimista,
ao comentar que as mulheres são consideradas perigosas, ainda que fiéis, heroínas,
lutadoras e corajosas. No entanto, complementa o autor, a sociedade sacrifica a mulher no
serviço doméstico, em um salário menor e com maiores cobranças de responsabilidade.
Por outro lado, as pastorais básicas ficam com as mulheres piedosas, fiéis e perseverantes.
Isso significa que as pastorais de deserto e periferia estão nas mãos delas. Por sua vez,
Mazzarolo lembra que o tratamento dispensado por Jesus às mulheres que o seguiam
revela o lugar que ele queria para elas: o de discípulas (Lc 8,1-3)
8
.
Se Jesus não condena as mulheres que pecaram, é porque reconhece nelas
grandes valores que as capacitam a serem protagonistas do evangelho. Muitas
vezes, por melhor que seja a intenção, acontece a discriminação, subvalorização
ou cerceamento dos espaços, de modo particular, nas esferas eclesiais internas.
Diante da proposta de Jesus, é possível aceitar alguma exclusão sem ferir o
evangelho? Se Deus não faz distinção de pessoas (Dt 10,17; Gl 3,28; Rm 3,22;
10,12; cf. At 10,34) é justificável que a comunidade possa fazê-lo?
(MAZZAROLO, 2004, p.183).
A partir da perícope, fica claro que Jesus não se indispõe com as prostitutas contra
os fariseus, menos ainda está do lado da desordem ou da paixão da ordem e da lei. O que
lhe interessa é a pessoa humana. Ele vai ao encontro do fariseu, acolhe logo seu convite e
depois o ajuda a entender a dimensão de Deus.
A lição ultrapassa os limites históricos do acontecimento e chega à contemporaneidade.
Com referência à atitude de Jesus, Lucas lembra aos cristãos que o se pode permitir um
regresso à soberba farisaica. Jesus entendeu o silêncio da mulher, pois seus gestos lhe
falavam de amor, de arrependimento e do desejo de redenção. Muitos séculos depois, a
postura de Jesus revela traços característicos do discipulado de iguais, um tema que tem
ganhado repercussão nas discussões teológicas. Inclusive, recentemente a pesquisadora
Ivenise Santinon em parceria com os também teólogos Edélcio Ottaviani e Lucy Mariotti
lançou o livro Discipulado de Iguais. Em um dos capítulos da obra, Santinon (2023) discorre
sobre ‘a presença das mulheres na Igreja: apontamentos para um discipulado de iguais’ e
nele apresenta que no contexto dos evangelhos, nas comunidades primitivas, as mulheres
receberam de Jesus uma atitude diferente. A partir dos argumentos assertivos de Santinon,
fica claro que em nenhum momento ouviram dele uma exortação à submissão no contexto
judaico. Trazendo para a nossa análise, a própria pecadora teve respeito, acolhimento,
misericórdia, compaixão e perdão. Não houve sequer um olhar de repúdio. Jesus rompeu
esquemas estruturais vigentes, derrubou estereótipos. Então, está na hora de “repensar o
significado e o lugar da mulher na Igreja” (SANTINON, 2023, p.107).
Nas palavras de Bezerra, a crítica feminista ao terceiro evangelho, o de Lucas,
converge em duas vertentes contrárias: a primeira considera que o Evangelho é assertivo
para os papéis femininos, com mulheres retratadas positivamente e integradas às funções
do movimento de Jesus. Por sua vez, acrescenta a pesquisadora, “a segunda entende que os
8 8,1-3 Depois disso, Jesus percorria cidades e povoados proclamando e anunciando a Boa-Nova do Reino de Deus. Os
Doze iam com ele, 2 e também algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria,
chamada Madalena, de quem saíram sete demônios; 3 Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e
muitas outras mulheres, que os ajudavam com seus bens.
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objetivos do Evangelho para as mulheres são silenciá-las e controlar sua atuação, de modo
que se comportem bem, mas não atinjam lugares de decisão nas comunidades cristãs
(BEZERRA, 2020, p.357).
Face a uma sociedade judaica dominada por homens, marcada pela forte tradição
patriarcal, não era fácil compreender a nova postura de Jesus. Ele rompe com esses privilégios
e acolhe sem discriminação homens e mulheres na sua comunidade de seguidores. Inaugura,
portanto, a práxis libertadora pautada pelo diálogo, pelo respeito e pelo reconhecimento da
alteridade da outra e do outro. Depreende-se da sua atuação, com clareza, é que, para ele,
homens e mulheres têm igual dignidade pessoal, sem que a mulher tenha de ser objeto de jugo
masculino. No entanto, na atualidade, os cristãos ainda não são capazes de extrair todas as
consequências que resultam da atitude do Mestre. René Laurentin chegou a dizer que esta é
“uma revolução ignorada” pela Igreja. A fala do teólogo francês vem ao encontro das ‘nossas
discussões’ nas aulas do curso de pós-graduação on-line Protagonismo Feminino na Igreja, que
as mulheres seguem abafadas e reprimidas dos seus direitos mais básicos.
Jesus principia o que hoje se sobressai na hermenêutica feminista a partir dos
pressupostos teóricos de tantas teólogas e biblistas. É uma nova hermenêutica dos
textos sagrados.
O relacionamento mantido por Jesus com as mulheres de seu tempo assume
características de ampla liberdade. Deixando de lado os preconceitos que proibiam falar
com uma mulher nas ruas da cidade, Jesus mantém encontros frequentes com elas [...].
Jesus não apenas fala com as mulheres, mas introduz também uma mudança radical junto
aos mestres de sua época, pois se permite ter discípulas que o escutam (Lc 10),
acompanham-no (Mc 14) e o servem com seus bens (Lc 8) (LADISLAO, 1995, p.27).
Assim, a prática de Jesus revela-se um tanto quanto inovadora e até mesmo chocante para
os padrões preestabelecidos da época. Era uma atitude tão surpreendente que confundiu
até os seus próprios discípulos.
De outro modo, a perspectiva da hermenêutica feminista significa um instrumento
de interpretação tanto da Bíblia quanto da vida, para que “assim, mulheres silenciadas e
tornadas invisíveis pela tradição voltem a falar e recebam de volta seu rosto e valor
histórico” (REIMER, 1995, p.45). Ele o apenas convive, mas acolhe os desprezados,
renegados e rotulados pela religião e pelo sistema político de sua época e promove a eles
uma nova situação de vida. “Ele veio chamar os que se sentem pecadores como [a mulher
pecadora em Lc 7,36-50], não os que se creem justos como o fariseu” (CONTI, 2003, p.61).
Na atividade evangelizadora de Jesus, a mulher adquire outro patamar, muito
diferente do judaísmo e do império romano, tomando seu lugar na sociedade. “Elas não
foram ouvintes do evangelho, mas também praticantes. Elas não passaram a crer no
Messias Jesus, mas também testemunharam a respeito dele e passavam a formar comunidades
a partir desse anúncio e desta fé” (REIMER, 1995, p.46). Sendo assim, ganham liberdade e
são protagonistas no movimento de Jesus e nas origens da Igreja, tanto na ação quanto na
fala, o que significa que fazem parte do ministério de Jesus desde o início.
A teóloga Adela Ramos chama a atenção para alguns elementos. O primeiro deles é
que a história da pecadora impressiona por sua simplicidade e sua coerência. Este episódio,
tão rico em pormenores, é próprio de Lucas e nos apresenta a condescendência de Jesus
para com os pecadores (RAMOS, 2003, p.89). Outro aspecto, segundo ela, é que o texto diz
que a mulher veio porque soube, antes, que Jesus estava na casa do fariseu. Deduz-se que o
conhecia ou tinha uma opinião clara sobre ele ao decidir ir ao seu encontro. A mulher
chegou sabendo muito bem o que ele significava para ela e manifestou por gestos
inequívocos sua confissão de amor e respeito.
Revista Teopráxis,
Passo Fundo, v.40, n.135, p. 22-32, Jul./Dez./2023. ISSN On-line: 2763-5201.
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O discipulado de iguais na perícope bíblica: a pecadora do Evangelho de Lucas
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Por último e o menos importante, Ramos defende que, na perícope em evidência
(Lc 7,36-50), a mulher é descrita sendo “da cidade” e “pecadora” (v.37). Seu nome o é
mencionado, porém, ela foi muito mais protagonista no episódio do que Simão.
Não é dito explicitamente que era prostituta, mas há indícios claros disso: o fato, por
exemplo, de enxugar os pés de Jesus com seus cabelos indica que a mulher soltou seus
cabelos em público. O fato de a mulher trazer “um vaso de alabastro cheio de
perfume” (v.37) denota que ela gastou uma alta soma para comprá-lo, ou utilizou o
presente de algum cliente rico. Tratava-se, qualquer que seja o caso, de um gesto de
gratuidade, de manifestação inequívoca do grande valor que Jesus representava para ela
(CAVALCANTI, 2010, p.222-223).
Jesus interfere na ordem da sociedade patriarcal, desperta a potencialidade da mulher
e a chama para ser também sua discípula. Jesus revela com sua atitude outra visão e, mais
ainda, ele altera com seu gesto o relacionamento entre homem e mulher, colocando-os em
um mesmo nível, ou seja, inaugurando a comunidade dos iguais.
É pertinente reiterar que as mulheres estiveram ausentes da história ou foram
silenciadas pelo modelo androcêntrico. Elas são lembradas em relação aos homens ou
dependentes deles, um padrão referencial definido pela história universal como correto.
Diante disso, é preciso um olhar mais amplo e uma compreensão crítica das relações
sociais, pois através da: [...] hermenêutica crítica da libertação [se inscreve] a teologia
feminista [como] teologia crítica da libertação [justamente] porque ela reconhece e analisa
criticamente as estruturas sexistas e opressivas da Igreja e da tradição cristã, enquanto, ao
mesmo tempo, redescobre as tradições e elementos libertadores da e da comunidade
cristã (FIORENZA, 2009, p.153).
Enfim, a perícope bíblica de Lc 7,36-50 nos reporta que “para uma hermenêutica
feminista, o tema mais importante do relato é a igualdade de gênero que se evidencia na
forma como Jesus trata o fariseu e a mulher” (CONTI, 2003, p.77). O papel de destaque,
negado à mulher, não deve permanecer no anonimato e ser apagado da história universal e
tampouco da modernidade. Lucas procura evidenciar esse protagonismo feminino e a
estratégia narrativa criada para formá-lo e, como consequência, a interpretação
androcêntrica que oculta e inviabiliza as mulheres.
Diante de qualquer análise, é preciso ter em conta que os textos bíblicos foram
escritos por homens e refletem a realidade daquela época sob a ótica masculina. Assim, faz
sentido dizer que as narrativas permeiam um enredo fortemente marcado por uma
linguagem sexista, pelo silenciamento e pelo banimento do feminino na sociedade. Era
mais fácil esconder e ‘sacrificar’ a presença e a voz das mulheres.
Na perícope analisada, o fato de ser considerada pecadora é somente mais um
agravante, um mal maior ao seu histórico enquanto mulher, que era discriminada, vista
como um perigo, alguém não confiável e objeto de controle e pertença do homem.
Ivenise Santinon sistematiza a seguinte ideia.
O discipulado de iguais enfrenta dificuldades para se efetivar práxis cristã, porque
os futuros sacerdotes, os primeiros responsáveis pelas comunidades eclesiais, são
formados segundo a ideia de que as coisas sempre foram assim e devem continuar
assim. O clericalismo não inibe uma presença mais efetiva do laicato na vida
pastoral da Igreja, como se constitui num entrave ao discipulado de iguais, muito
embora sejam as mulheres a maioria na Igreja, conforme aponta a Conferência de
Aparecida (2007). (SANTINON, 2023, p.100-101).
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Na concepção da teóloga, alguns pontos são fundamentais para reverter o problema
levantado acima. O primeiro deles, segundo ela, é reconstruir a imagem de Jesus em
consonância à coerência do seu contexto histórico, de maneira que faça sentido ao
pluralismo cultural e religioso dos dias de hoje. Por sua vez, acrescenta que seria
importante “trabalhar uma educação da baseada na história do cristianismo, enriquecida
pela perspectiva das mulheres e dos novos estudos exegéticos que se voltam para a
convivência de Jesus com as mulheres” (SANTINON, 2023, p.102). Nesse sentido, mostrar
através desses estudos que a postura de Jesus é inovadora ‘no trato com as mulheres e
caminha na direção de um discipulado de iguais’.
A constituição dogmática Lumen Gentium, do Concílio Ecumênico Vaticano II, acentua
no capítulo 2 a vocação batismal e a dignidade de membro atuante do Povo de Deus. Isso
significa que todos, independentemente de gênero, aos olhos do Criador são iguais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção desse artigo não é de forma alguma apresentar fórmulas prontas, dizer
que o capítulo de silenciamento das mulheres que permanece arraigado na história da
Igreja por quase dois milênios está encerrado, mas dizer acima de tudo que o discipulado
de iguais pode e deve ser restabelecido nas relações eclesiais assim como o fez Jesus no
encontro mantido com a mulher pecadora sem identidade no evangelho de Lc 7,36-50. Na
casa do fariseu que se julgava acima da Lei, ela é respeitada e tratada em condições de
igualdade não pelo anfitrião e sim pelo Mestre. Aliás, este tratamento condiz com a
Lumen Gentium. Este documento do Concílio Ecumênico Vaticano II, a partir de um
resgate antropológico, indicou a mesma dignidade de homens e mulheres em uma
perspectiva eclesiológica de Igreja Povo de Deus, “onde todos os batizados são chamados
ao mesmo seguimento de Jesus aspectos relevantes para se pensar a situação das
mulheres nos tempos atuais” (SANTINON, 2023, p.97).
No entanto, infelizmente, o aggiornamento eclesial, proposto pelo Papa João XXIII,
não é realidade contemporânea nos diversos âmbitos. O Documento da Conferência de
Aparecida (2007) que suscita a participação plena e decisória das mulheres na vida da
Igreja ainda não foi colocado em prática, talvez pela resistência de grupos contrários às
mudanças conciliares. Estas interferências impedem os avanços. Assim, o silenciamento
das mulheres nas estruturas eclesiais persiste.
Ivenise Santinon (2023), uma voz constante na luta pela igualdade de gênero,
reforça essa reflexão ao mencionar que mesmo o apoio do Papa Francisco é insuficiente
para a presença feminina legítima e relevante para a vida da Igreja. Segundo a teóloga, os
retrocessos em parte da Igreja dificultam “a emancipação eclesial feminina e um
consequente discipulado de iguais” (2023, p.97), conforme destacou no final do último
século a teóloga Elisabeth Fiorenza (1995).
Comungando na mesma linha de pensamento de Santinon (2023), entende-se a
necessidade de ‘enxergar’ nas comunidades de fé as injustiças causadas pela invisibilização e
pelo silenciamento das mulheres, que, sem dúvida, não encontra respaldo e está em direção
contrária àquela praticada por Jesus nos Evangelhos. A perícope ‘A pecadora’ de Lucas, que
mereceu um olhar mais atento, ilustra as condições de igualdade com as quais Jesus tratava
as mulheres; não se importando com a visão androcêntrica da sociedade da época. Enfim, é
imprescindível a promoção do protagonismo das mulheres na Igreja e discussões em prol
do discipulado de iguais, que resgate as decisões do Concílio Vaticano II e que enfrente o
clericalismo e o legalismo.
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