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O CARÁTER PASTORAL DA CARTA
APOSTÓLICA EM FORMA DE MOTU
PROPRIO MITIS IUDEX DOMINUS
IESUS, SOBRE A REFORMA DO
PROCESSO CANÔNICO PARA AS
CAUSAS DE DECLARAÇÃO DE
NULIDADE DO MATRIMÔNIO NO
CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO
uma leitura conjunta com Amoris Laetitia
THE PASTORAL CHARACTER OF THE
APOSTOLIC LETTER IN THE FORM
OF MOTU PROPRIO MITIS IUDEX
DOMINUS IESUS, ON THE REFORM
OF THE CANONICAL PROCESS FOR
THE CAUSES OF DECLARATION OF
NULLITY OFF MARRIAGE IN THE
CODE OF CANON LAW
a joint reading with Amoris Laetitia
Aloísio Ruedell*
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 88-105, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
DOI:
dx.doi.org/10.52451/teopraxis.v40i135.183
* Possui mestrado e doutorado em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Graduado em
filosofia pela Faculdade de Filosofia
Imaculada Conceição (FAFIMC) e em
Teologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Foi
professor adjunto da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.
Tem experiência na área de Filosofia, com
ênfase em Epistemologia e Filosofia da
Linguagem, atuando principalmente nos
seguintes temas: hermenêutica,
interpretação, linguagem e subjetividade. É
padre na Diocese de SantoÂngelo,RS.
Email: aloisioruedell@gmail.com
https://orcid.org/0009-0001-8681-3605
Recebido em 11/07/2023
Aprovado em 15/10/2023
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Resumo: O propósito deste artigo é evidenciar a preocupação e a
sensibilidade pastoral do Papa Francisco diante das dificuldades de muitos
fiéis viverem o ideal matrimonial do Evangelho e como seu olhar
misericordioso para os que vivem em situações chamadas “irregulares” o
levou a decretar e estabelecer uma reforma do processo de nulidade
matrimonial, para torná-lo mais simples e acessível. A análise dos critérios,
que nortearam os trabalhos da reforma, mostrou que todos vêm ao
encontro dessa preocupação pastoral. Foi feita uma leitura conjunta da
Amoris Laetitia e do MIDI, porque os dois documentos, ocupados com o
tema da família e suas dificuldades, tiveram em sua origem a mesma
preocupação pastoral e se complementam.
Palavras-Chave: Família. Fragilidade. Misericórdia. Nulidade
matrimonial. Reforma.
Abstract: The purpose of this article is to highlight Pope Francis' concern
and pastoral sensitivity in the face of the diculties of many faithful to live
the marriage ideal of the Gospel and how his merciful gaze towards those
who live in so-called "irregular" situations led him to decree and establish a
reform of the marriage nullity process, to make it simpler and more
accessible. The analysis of the criteria, which guided the work of the
reform, showed that all meet this pastoral concern. A joint reading of
Amoris Laetitia and MIDI was carried out, because the two documents,
dealing with the theme of the family and its diculties, had at their origin
the same pastoral concern and complement each other.
Keywords: Family. Fragility. Mercy. Marriage nullity. Reform.
INTRODUÇÃO
Toda organização e atuação jurídica canônica têm um sentido
pastoral e visa à salvação das pessoas. A própria redação do Código
Canônico [CIC 83]
1
. evidencia isso em seu texto. No mesmo sentido
escreveu o Prof. Dr. Côn. Martin Segú Girona, que publicou um
artigo esclarecedor sob o título A Pastoralidadade no e do Direito
Canônico (GIRONA, 2008). Ele analisa, particularmente, esse
aspecto a propósito da Reforma e da transição do Código do Direito
Canônico de 1917 para o atual de 1983.
A humanidade havia passado por duas grandes guerras e os
sobreviventes almejavam e exigiam novos rumos e novas metas, na
sociedade civil e também na Igreja. Esse clamor tinha sido ouvido
pelo cardeal Angelo Roncalli, especialista em história e profundo
conhecedor da alma humana e das aspirações do homem moderno.
Ao ser elevado ao trono de São Pedro, sob o nome de João XIII, em
seguida ele anunciava o propósito de convocar um Concílio
Ecumênico, a ser realizado no Vaticano. Percebia a necessidade do
“aggiornamento” de muitos institutos do Código e de toda a Igreja.
Estruturas e organizações obsoletas tornaram-se impraticáveis para
o homem moderno. Pois, o que se visava, em primeiríssimo lugar era
“o bem das almas, que, em última análise, é o fim primordial de toda
e qualquer pastoral” (GIRONA, 2008, p.126).
v. 40, n. 135, Passo Fundo,
p. 88-105, Jul./Dez./2023,
ISSN on-line: 2763-5201
1 Muitas vezes referido por CIC 83. [Codex Iuris Canonici, Código de Direito Canônico].
90
Portanto, o Direito Canônico, como toda ação eclesiástica situa-se sempre sob um
horizonte pastoral, numa perspectiva do Reino de Deus. O propósito deste artigo,
contudo, é evidenciar que, na Reforma do Processo Canônico para as Causas de Nulidade
do Matrimônio no digo de Direito Canônico, decretada pela Carta Apostólica em
forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, do Papa Francisco (FRANCISCO,
2015a)
2
, a preocupação pastoral se sobressai ao jurídico. Sem descuidar deste e, mantendo
seus princípios e procedimentos básicos, o foco está na proximidade e na acessibilidade
jurídica para o povo.
A mesma preocupação do Papa em relação ao matrimônio se encontra em Amoris
Laetitia
3
. Já nesta exortação apostólica ele afirma que
aos pastores compete não a promoção do matrimônio cristão, mas também
‘o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram de viver
esta realidade’, para ‘entrar em diálogo pastoral com elas a fim de evidenciar os
elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do
matrimônio na sua plenitude (FRANCISCO, 2016, p.243, n.293).
Com isso, o objetivo deste artigo é fazer uma leitura conjunta dos dois documentos,
ou mais precisamente, do Mitis Iudex Dominus Iesus [MIDI] e da Amoris Laetitia [AL],
particularmente no cap. VIII, a fim de evidenciar o zelo e a preocupação pastoral do Santo
Padre, conforme deixa transparecer em seus escritos. O início será pela Amoris Laetitia,
devido a sua anterioridade cronológica. Suas preocupações e considerações serão
importantes para, num segundo momento, estabelecer um elo de ligação com o MIDI e
fazer a introdução deste com o tema “a preocupação pastoral e pastoral judiciária no
MIDI”. A terceira e última abordagem será “Justificativa e critérios da Reforma”. Por fim,
as considerações finais terão o sentido de retomar brevemente a caminhada da discussão e
deverão dar conta do que fora projetado na introdução. - Será uma pesquisa
exclusivamente teórica e bibliográfica, onde, para as referências, após sua primeira
apresentação completa, serão usadas siglas ou abreviaturas consagradas pelo uso nos
documentos eclesiásticos.
2 LEITURA CONJUNTA DE MITIS IUDEX DOMINUS IESUS E AMORIS LAETITIA
2.1 Amoris Laetitia a Caminho do MIDI
Amoris Laetitia contém um capítulo especial para refletir sobre como “acompanhar,
discernir e integrar a fragilidade” em relação à vivência matrimonial. (FRANCISCO, 2016,
p.241-264, n.291-312). Inicia referindo-se ao relatório do Sínodo dos bispos sobre a família:
embora a Igreja reconheça que toda ruptura do vínculo matrimonial é contra a
vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos de seus
filhos’. Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja dirige-se com amor àqueles que
participam na sua vida de modo incompleto [...] (III ASSEMBLEIA GERAL
EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS. n.24 e 25)
4
.
No mais, sabe-se pela Psicologia, o quanto a afetividade influencia no ajustamento
psicossocial, no humor, na saúde psíquica, enfim, na capacidade de valorar, de vincular-se
e, consequentemente, se engajar numa vivência familiar ou comunitária. Por isso, o
recurso das ciências é bem vindo, para que os pastores conheçam melhor os seus fiéis,
2 A partir de agora também referido por MIDI.
3 A partir de agora também referido por AL.
4 Agora em diante também referido por Relatio Synodi 2014. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.241, n.291.
RUEDELL, Aloísio
O caráter pastoral da Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus, sobre a reforma [...]
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evitando cobrá-los indevidamente naquilo que não podem dar ou viver, mas deles se
aproximem com paciência e misericórdia.
“O matrimônio cristão, reflexo da união entre Cristo e sua Igreja, realiza-se
plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com
um amor exclusivo e livre fidelidade [...]” (FRANCISCO, 2016, p.242, n.292). Há,
entretanto, formas de união que contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o
realizam parcialmente. A Igreja não deixa de valorizar o que existe de construtivo em
situações que ainda não correspondem à sua compreensão de matrimônio.
Isso permite falar em “gradualidade na pastoral”. Pois, referindo-se ao Sínodo dos
bispos, além de uma situação particular de um matrimônio apenas civil, também é de se
considerar uma mera convivência. De tal modo que,
quando a união atinge uma notável estabilidade através de um vínculo público e
se caracteriza por um afeto profundo, responsabilidade com a prole, capacidade
de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar na sua
evolução para o sacramento do matrimônio (III ASSEMBLEIA GERAL
EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS, 2014, p.8-9, n.27. Cf.
FRANCISCO, 2016, p.23, n.293).
Cabe aos pastores discernir. Sua missão não é a promoção do matrimônio, mas
também “o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram de viver
esta realidade”.
Nesse discernimento, a tarefa é identificar elementos que favoreçam a evangelização
e o crescimento humano e espiritual. É necessário valorizar sinais de amor, que de algum
modo refletem o amor de Deus, ou seja, desejam o verdadeiro amor. Enfim, “é preciso
enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em
oportunidades de caminho para a plenitude do matrimônio e da família à luz do
Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza” (III
ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS. 2014, p.11, n.43;
Cf. FRANCISCO, 2016, p.244, n.294). Foi precisamente isso que Jesus fez em seu diálogo
com a samaritana (Cf. Jo 4,4ss.).
No sentido dessas considerações, foi São João Paulo II que “propunha a chamada ‘lei
da gradualidade’, ciente de que o ser humano ‘conhece, ama e cumpre o bem moral
segundo diversas etapas de crescimento’” (JOÃO PAULO II, 1981, p.24-25, n.34)
5
. Não se
trata, porém, de uma gradualidade da lei, e sim de uma “gradualidade no exercício prudencial
dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou
praticar plenamente as exigências objetivas da lei” (JOÃO PAULO II, 1981, p.6, n.9).
Ao seguir nessa reflexão, verifica-se que o Papa Francisco faz suas proposições
utilizando-se, basicamente, de duas palavras e conceitos: discernimento e misericórdia.
um destaque especial ao discernimento das situações chamadas “irregulares”. Uma vez que
o Sínodo dos bispos tratou dessas situações e, para não nos equivocarmos no caminho,
ele quer propor com clareza:
Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...)
O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de
Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o
de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre
todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade
verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita (FRANCISCO, 2016,
p.246, n.296).
5 Agora em diante também referido por Familiaris Consorcio ou FC. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.245, n.295.
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Conjugam-se, portanto, discernimento e misericórdia. Deve-se considerar a
complexidade da realidade, e o próprio discernimento das situações irregulares deve ser
conduzido por um olhar misericordioso. “Ninguém pode ser condenado para sempre,
porque esta não é a lógica do Evangelho” (FRANCISCO, 2016, p.246, n.297).
Nesse sentido, o Papa também acolhe as considerações de muitos Padres sinodais,
que quiseram afirmar que
os batizados que são divorciados e recasados devem ser integrados mais
intensamente nas comunidades cristãs, de várias maneiras possíveis, evitando
todas as ocasiões de escândalo. A lógica da integração constitui a chave do seu
acompanhamento pastoral, para que não somente saibam pertencer ao Corpo
de Cristo que é a Igreja, mas possam fazer uma experiência feliz e fecunda da
mesma (...) (XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS
BISPOS, 2015, p.27, n.84)
6
.
A participação pode exprimir-se em diferentes serviços, e também é preciso verificar
as diferentes formas de exclusão praticadas. Enfim, “eles não apenas não devem sentir-se
excomungados, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja, sentindo-a
como uma e que os recebe sempre, que cuida deles com carinho e que os anima no
caminho da vida e do Evangelho” (XIV ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DO
SÍNODO DOS BISPOS, 2015, p.27, n.84).
Considerando a variedade inumerável de situações “irregulares”, é compreensível
que o Papa não tenha dado uma normativa geral canônica aplicável a todos os casos. Pois,
“o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos” (XIV ASSEMBLEIA GERAL
ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS, 2015, p.18, n.51. Cf. FRANCISCO, 2016, p.250,
n.300). Da mesma forma, “as consequências ou efeitos de uma norma não devem
necessariamente ser sempre os mesmos” (FRANCISCO, 2016, p.250, n.300). Cabe ao
sacerdote acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discernimento, conforme o
ensinamento da Igreja e as orientações do bispo.
Ainda, para uma melhor compreensão dessa discussão, também deve ser lembrada a
questão das circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral. O Papa afirma que a Igreja
tem uma sólida formação sobre esse assunto. Por isso, “já não é possível dizer que todos os
que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados
da graça santificante” (FRANCISCO, 2016, p.252, n.301). Os limites atenuantes podem ser os
mais diversos, e o apenas de um eventual desconhecimento da norma. Alguém, por
exemplo, pode conhecer bem a norma, mas não compreender os valores que lhe são inerentes
ou pode estar numa situação concreta que não lhe permite agir de maneira diferente.
O Catecismo da Igreja Católica lembra o Papa exprime-se categoricamente: “A
imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e
outros fatores psíquicos ou sociais” (SANTA SÉ, 1993, p.411, n.1735). Em outro parágrafo,
refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral.
Assim, uma vez reconhecido o peso dos condicionamentos concretos, que podem
atenuar a gravidade da situação “irregular”, deve-se, contudo, trabalhar para “o
amadurecimento de uma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo
discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na
graça” (FRANCISCO, 2016, p.254-255, n.303). Que esse discernimento seja dinâmico,
“aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de
forma mais completa”.
6 A partir de agora também referido por Relatório Final. Cf. também FRANCISCO, 2016, p.249, n.299.
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Em qualquer situação não pode o pastor limitar-se simplesmente a aplicar “leis
morais aos que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram
contra a vida das pessoas” (FRANCISCO, 2016, p.256, n.305). Pois,
por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma
pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado mas subjetivamente não
seja culpável ou não o seja plenamente , possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para
isso a ajuda da Igreja (FRANCISCO, 2016, p.257, n.305. Cf. também
FRANCISCO, 2013, p.39, n.44)
7
.
No entanto, levar em consideração os condicionamentos atenuantes de modo algum
significa que a Igreja deixa de propor o ideal pleno do matrimônio, o projeto de Deus em
toda a sua grandeza. Ao contrário, é preciso encorajar e motivar os jovens para a vivência
do sacramento, para receberem a graça de Cristo e participarem plenamente na vida da
Igreja. A compreensão pelas situações excepcionais não implica esconder a luz do ideal
mais pleno. Mais do que uma pastoral dos fracassados, é importante o esforço pastoral
para consolidar o matrimônio, de modo a evitar as rupturas (Cf. FRANCISCO, 2016,
p.259, n.307).
De outro lado, consciente da fragilidade humana e das circunstâncias
atenuantes, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar,
com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas,
que se vão construindo dia após dia’, dando lugar à ‘misericórdia do Senhor que
nos incentiva a praticar o bem possível (FRANCISCO, 2013, p.39, n.44. Cf.
também FRANCISCO, 2016, p.260, n.38).
A teologia moral - no dizer do Papa - deveria assumir todas essas considerações.
Embora ela tenha justa preocupação com a integralidade da doutrina moral da Igreja, deve,
contudo, ter um cuidado especial com os valores centrais do Evangelho, particularmente
com a caridade, como resposta ao amor gratuito de Deus, que se mostra misericordioso
em seu Filho encarnado. Por isso, “a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas,
antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação
mais luminosa da verdade de Deus” (FRANCISCO, 2016, p.263, n.311).
Nessa visão pastoral e assumindo essa compreensão e vivência da cristã, evita-se
desenvolver uma moral fria e de escritório quando se trata de temas delicados, situando-se
num contexto de discernimento pastoral cheio de amor e misericórdia. “Esta é a lógica
conclui o Papa que deve prevalecer na Igreja, para ‘fazer a experiência de abrir o coração
àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais’” (FRANCISCO, 2016, n. 312)
8
.
2.2 Preocupação Pastoral e Pastoral Judiciária no MIDI
O mesmo espírito e a motivação pastoral presentes em Amoris Laetitia verifica-se
também na elaboração da Carta Apostólica em forma de Motu Próprio sobre a reforma do
processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito
Canônico. Francisco parte de Jesus, manso Juiz e Pastor de nossas almas, que se constitui
em fundamento de seu projeto reformista. Jesus confiou sua missão e seu poder ao
Apóstolo Pedro e seus Sucessores, cabendo hoje aos pastores da Igreja o direito e o dever
da obra da justiça e da verdade.
7 A partir de agora também referido por EG.
8 Tmbém: FRANCISCO. Misericordiae Vultus: o rosto da misericórdia. Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015c, p.21, n.15. A partir de agora também referido por MV.
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Depois, no decorrer do tempo, a Igreja, à luz da Palavra de Deus, foi
compreendendo e expondo com maior profundidade a doutrina da indissolubilidade do
vínculo matrimonial. Assim também elaborou o sistema das nulidades do consentimento
matrimonial, e disciplinou de maneira mais adequada o relativo processo judicial, de modo
que fosse sempre mais coerente com a verdade da fé professada.
Francisco está consciente de que tudo foi sempre feito e deve convergir na “lei
suprema da salvação das almas” (CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, 1983, C.1752).
Ciente disso, ele resolveu fazer a reforma dos processos de nulidade do matrimônio, e,
nesse sentido, constituiu um grupo de trabalho, recomendando-lhe manter firme o
princípio da indissolubilidade, ou seja, que a união pelo amor matrimonial é para toda
vida. Mas, o que mais chama atenção é que
o impulso reformador é alimentado pelo ingente número de fiéis que, embora
desejando prover a sua própria consciência, muitas vezes foram afastados das
estruturas jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral; ora, a
caridade e a misericórdia exigem que a própria Igreja como mãe se torne próxima
dos filhos que se consideram separados (FRANCISCO, 2015a, Introdução).
No mesmo sentido, escreve o Papa, o Sínodo Extraordinário dos bispos tem
solicitado processos mais rápidos e acessíveis.
Entretanto, anterior ao processo propriamente jurídico, é importante que se
desenvolvam ações a partir de uma pastoral matrimonial diocesana e paroquial, que ao
encontro de esposos separados ou divorciados, que eventualmente se tenham afastado da
prática religiosa. Pode ser o caminho para uma pastoral judiciária, que seria como que um
“braço estendido” da “Igreja em saída”, que vai ao encontro dos que estão distantes, e
facilita o acesso à estrutura judiciária. Cabe-lhe uma orientação e uma investigação
preliminar ao processo judiciário, com procedimentos que ajudarão aos fiéis que
eventualmente se dirigirem ao tribunal eclesiástico, para que cheguem preparados.
É de certa forma isso que está proposto nas regras processuais para as causas de
declaração de nulidade do matrimônio (FRANCISCO, 2015a, p.9)
9
. Embora não tenham o
nome de cânones, essas regras integram o MIDI, portanto, participam de sua natureza.
“Na leitura dos cânones modificados, como também dos demais artigos do MIDI, é possível
perceber que, na verdade, alguns deles (...) supõem esta pastoral judiciária, inserida na
pastoral familiar” (RIBEIRO, 2016, p.45). Certamente é “desejável que a pastoral familiar
tenha, também, uma dimensão judicial, reforçando-se”, assim, “a estreita relação entre
direito e pastoral, particularmente no que tange às causas de nulidade
matrimonial” (RIBEIRO, 2016, p.45). Sem essa pastoral judiciária, o êxito da reforma
poderá ficar parcialmente comprometido.
Por isso, o Papa insiste nessa direção e, diante do afastamento de muitos fiéis da
estrutura judiciária, ele optou por estabelecer alguns procedimentos que, se aplicados,
poderão contribuir muito, quando as pessoas se dirigirem ao tribunal eclesiástico para
uma análise judicial de seu próprio matrimônio. É importante que elas venham
preparadas, no sentido de buscar a verdade sobre o seu matrimônio “e não, simplesmente,
obter a nulidade a todo custo, querendo que prevaleça de modo unilateral a sua percepção
subjetiva dos fatos” (RIBEIRO, 2016, p.46). No artigo 1 das RPNM, o Papa recorda que
o Bispo, em virtude do cân. 383 & 1, é obrigado a seguir com ânimo apostólico os
esposos separados ou divorciados que, pela sua condição de vida, tenham
eventualmente abandonado a prática religiosa. Ele partilha, portanto, com os
párocos (cf. cân. 529 & 1) a solicitude pastoral para com esses fiéis em dificuldade.
9 Essas regras processuais... agora em diante serão referidas por RPNM.
RUEDELL, Aloísio
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E esse acompanhamento pode fazer-se melhor no âmbito da pastoral familiar, que
“em vários lugares já realiza um trabalho com casais separados ou divorciados, embora,
talvez, ainda o se ocupe, mais de perto, da questão jurídica da nulidade do
matrimônio (RIBEIRO, 2016, p. 47). Se ainda não existe esse aspecto jurídico, o
importante é que a pastoral familiar paroquial e diocesana preste este serviço específico de
acolhida e orientação das pessoas que, eventualmente, possam necessitar das estruturas
eclesiásticas da Igreja. No mais, na ausência de uma estrutura propriamente judiciária, ,
positivamente, um maior espaço de liberdade, para agir com criatividade (Cf. RIBEIRO,
2016, p.47, nota 27)
10
.
no artigo 2 das RPNM o Papa escreve sobre a importância de uma investigação
preliminar ou pastoral, com a finalidade de ajudar as pessoas a conhecer sua condição e
recolher elementos úteis para um eventual processo judicial, ordinário ou mais breve.
Nessa tarefa pode ser útil a participação de fiéis especialistas em determinadas ciências
humanas. Por exemplo, a colaboração do psicólogo pode ser importante se as partes (se)
pudessem se reconciliar, o que o significa necessariamente reatar a união. Pode também
ser importante para uma análise mais objetiva da própria experiência matrimonial, e
assim poderem enfrentar “o processo com lucidez, força e coragem, empenhando-se na
busca da verdade que, como afirmado, é uma condição fundamental para se chegar a uma
sentença justa, uma vez que as partes têm direito a um processo justo” (RIBEIRO, 2016,
p.49). Eis o texto do Papa:
Art.2. A investigação pré-judicial ou pastoral, que acolhe nas estruturas
paroquiais ou diocesanas os fiéis separados ou divorciados que duvidam da
validade do próprio matrimônio ou estão convictos de sua nulidade, tem por
fim conhecer a sua condição e recolher elementos úteis para eventual
celebração do processo judicial, ordinário ou mais breve. Tal investigação
desenvolver-se-á no âmbito da pastoral matrimonial diocesana unitária.
Ao analisar o art. 3 das RPNM, evidencia-se que o Papa não mistura competências,
pois, não cabe ao titular do poder jurídico fazer as investigações prévias e, muito menos,
assumir a pastoral judiciária anterior ao processo. Essa deve ser confiada a outras pessoas,
sendo da responsabilidade do Bispo verificar se são idôneas para a função. Embora essas
pessoas não necessitem de uma formação exclusivamente jurídico-canônica, o importante
é que tenham uma formação suficiente sem excluir a jurídico-canônica para exercer
esse serviço de consultoria, acompanhando os cônjuges no discernimento a respeito de sua
própria condição. Entre as pessoas que possam exercer esse serviço, o Papa destaca, em
primeiro lugar, o próprio roco ou quem preparou os cônjuges para a celebração do
matrimônio, mas também não descarta que essa função seja confiada a outros clérigos, a
consagrados e, amesmo a leigos, desde que preparados e aprovados pelo Ordinário do
lugar. segue o artigo:
Art. 3. A mesma investigação será confiada a pessoas consideradas idôneas pelo
Ordinário do lugar, dotadas de competência ainda que não exclusivamente
jurídico-canônicas. Entre elas, conta-se em primeiro lugar o pároco próprio ou
aquele que preparou os cônjuges para a celebração das núpcias. Esta função de
consulta pode ser confiada também a outros clérigos, consagrados ou leigos
aprovados pelo Ordinário do lugar.
Organizar e dinamizar adequadamente uma pastoral judiciária certamente será um
grande diferencial para um possível encaminhamento do processo de nulidade
10 o autor refere-se à diocese de Milão, onde foi criada uma estrutura de acolhida dos fiéis separados ou divorciados.
No decreto de criação deste serviço aparece delineada a sua finalidade e as funções que nele são desempenhadas.
RUEDELL, Aloísio
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matrimonial. O Papa inclusive sugere que a Diocese ou várias dioceses em conjunto
constituam uma estrutura estável para fornecer esse serviço e, se for o caso, elaborem um
Vademecum, onde se exponham os elementos essenciais para o desenvolvimento mais
adequado da investigação” (FRANCISCO, 2015a, p.9, RPNM, art. 3). Com essa estrutura e
pessoas idôneas a prestar o respectivo serviço,
seguramente a investigação pastoral prévia ao processo de nulidade
matrimonial recolherá os elementos úteis para a eventual introdução da causa
por parte dos cônjuges, ou do seu advogado canônico, diante do tribunal
competente, desde que, obviamente, as partes resolvam, de comum acordo, ou
não, entrar com o pedido de declaração de nulidade matrimonial junto à
autoridade competente (RIBEIRO, 2016, p.50).
Assim, se a introdução da causa for precedida por um trabalho anterior de acolhida e
orientação, onde as partes têm oportunidade de fazer um sério discernimento sobre a
própria situação e, ao mesmo tempo, recolher elementos e, inclusive, documentos,
importantes para sustentar sua visão a respeito da nulidade, ou não, de seu próprio
matrimônio, não dúvidas que se criam condições favoráveis para um processo mais
rápido, sem, contudo, prejudicar a profundidade da investigação dos fatos e o
compromisso com a verdade. Com certeza, isso favorece uma instrução mais rápida e uma
decisão mais célere da causa, vindo ao encontro da imploração do Sínodo Extraordinário
dos bispos ao Santo Padre: que os processos fossem “mais rápidos e
acessíveis” (FRANCISCO, 2015a, Proêmio, p.2).
Ainda cabe lembrar, como visto acima, que o se podem misturar as
competências. Por isso, as pessoas “que atuarem na fase anterior ao processo não poderão
atuar na causa como juiz ou como defensor do vínculo”. O primeiro tem compromisso
com a imparcialidade e este “com a tutela do vínculo nupcial” (RIBEIRO, 2016, p.50). Ao
seguir na fase pré-processual, o art. 4 das RPNM anuncia:
A investigação pastoral recolhe os elementos úteis para a eventual introdução
da causa por parte dos cônjuges ou de seu patrono perante o tribunal
competente. Indague-se se as partes estão de acordo em pedir a nulidade.
Por fim, feito todo o caminho do discernimento e da investigação anteriores, caso se
opte pelo processo, encerra-se essa fase com a elaboração do libelo, que deverá ser
apresentado ao tribunal competente. Eis o artigo 5.: “Recolhidos todos os elementos, a
investigação se encerra com o libelo, a ser apresentado, se for o caso, ao tribunal competente.
Ainda convém distinguir: em relação às estruturas estritamente judiciárias, não
por parte do Bispo muita liberdade de ação, pois elas o definidas por lei, mas o mesmo
não ocorre com as sugestões e iniciativas anteriores ao processo de declaração de nulidade,
indicadas pelo Papa Francisco nesses primeiros cinco artigos do MIDI e que podem estar
inseridas na pastoral judiciária e familiar. Existe um campo aberto, com muitas
possibilidades e “com uma enorme margem de liberdade, que poderia e/ou deveria ser
muito bem explorada”.
O fundamental é acolher e responder com criatividade e generosidade à
reforma proposta para que, assim, seja superada a distância sica e moral que
separa a muitos fiéis das estruturas judiciárias da Igreja, privando-os do direito
de discutir processualmente o que diz respeito ao próprio estado de vida
(RIBEIRO, 2016, p.50).
RUEDELL, Aloísio
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2.3 Justicativa e critérios da Reforma
Pretende-se mostrar aqui que um caminho lógico e uma coerência entre as
iniciativas e as investigações anteriores ao processo judiciário, indicadas pelo Papa
Francisco, e a justificativa e os critérios que conduziram a reforma por ele decretada. Serão
vistos os principais motivos que levaram o Papa a optar por uma reforma nos processos de
nulidade matrimonial, bem como os critérios que a nortearam. Esses critérios são
fundamentais para uma interpretação adequada das mudanças realizadas na legislação e
também para sanar eventuais dúvidas na hora de sua aplicação.
2.3.1 Justificativa
Após afirmar, no Proêmio do MIDI, que a normativa canônica sobre o matrimônio
sempre deve ser coerente com a verdade da professada, o que significa que o está em
discussão a doutrina da indissolubilidade, o Papa Francisco recordou que na Igreja a salus
animarum (= a salvação das almas) é sempre a lei suprema (cf. cân. 1752). Ou seja, todas as
instituições eclesiásticas têm o sentido de comunicar a graça divina e favorecer o bem dos fiéis.
Também em sua fala aos Bispos, expondo-lhes o propósito de uma reforma das
normas do processo de nulidade matrimonial, o Papa deixou claro que se tratava de uma
preocupação com a salus animarum. Assim se exprime ele:
Alimenta o impulso reformador o enorme número de fiéis que, embora
desejando prover a própria consciência, muitas vezes se afastam das estruturas
jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral; a caridade e a
misericórdia, portanto, exigem que a própria Igreja como mãe se aproxime dos
filhos que se consideram separados (FRANCISCO, 2015, Proêmio, p.1).
Evidencia-se a sensibilidade pastoral do Romano Pontífice, que quer evitar uma
“elitização” da justiça na Igreja. De fato, para muitas pessoas, que vivem uma situação
matrimonial irregular, torna-se muito difícil chegar a um tribunal eclesiástico para
esclarecer quais as reais condições de seu matrimônio. Em geral, é muito custoso,
demorado e incerto. Isso desmotiva as pessoas para procurar o tribunal. Acabam
renunciando ao direito de discutir judicialmente a nulidade do próprio matrimônio,
resignando-se à situação na qual vivem.
Diante desta realidade, o Papa deseja “favorecer mais a proximidade entre os fiéis e as
estruturas judiciárias da Igreja, seja valorizando a figura do Bispo diocesano como juiz
próprio, seja atribuindo a ele a responsabilidade pela organização de uma pastoral judiciária,
incentivando-o, também, a criar o próprio tribunal diocesano, embora no respeito à
normativa vigente no que tange às estruturas judiciárias da Igreja” (RIBEIRO, 2016., p.20).
Na sequência da introdução, para evitar equívocos ou distorções, o Romano
Pontífice teve o cuidado de esclarecer que a reforma proposta não tem por objetivo
“favorecer a nulidade do matrimônio, mas, a celeridade dos processos” (FRANCISCO,
2015a, Proêmio, p.2). É uma afirmação importante, pois, se, de um lado, se quer garantir
que a validade ou nulidade do matrimônio seja decidida e proferida em tempo razoável,
isto é, com celeridade, por outro lado, é fundamental que essa decisão esteja sempre em
conformidade com a verdade. Pois, a decisão da Igreja é de natureza meramente
declarativa, baseada na doutrina e sendo fiel à verdade dos fatos. Isso, porém, não pode ser
argumento para impedir uma maior simplificação do processo.
Um pouco adiante, antes de expor os critérios fundamentais da reforma, o Papa
também explica, no proêmio do MIDI, porque optou por manter a exigência de um
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processo de natureza judicial para verificar a existência ou não da nulidade do matrimônio,
não atendendo àqueles que queriam a adoção de um processo de natureza administrativa:
Fiz isso seguindo naturalmente os passos dos meus Antecessores, os quais
quiseram que as causas de nulidade do matrimônio fossem tratadas por via
judicial, e não administrativa, não porque o imponha a natureza da coisa, mas
porque o exige a necessidade de tutelar ao máximo a verdade do sagrado
vínculo, sendo isso assegurado, sem dúvida, pelas garantias da ordem judiciária
(FRANCISCO, 2015a, Proêmio).
Portanto, o argumento determinante para o Papa optar pelo caminho judicial foi a
necessidade de tutelar ao máximo a verdade do sagrado vínculo. No mais, “é preciso
acrescentar, que é fundamental que se ofereça aos fiéis condições para um discernimento
sério a respeito da própria situação matrimonial, a fim de que a decisão final, seja ela qual
for, realmente reflita a realidade dos fatos e não simplesmente as percepções subjetivas que
deles se tem” (RIBEIRO, 2016, p.21).
Enfim, o Papa Francisco, mantendo-se alinhado com a Tradição da Igreja, o
processo de natureza judicial mais como um valor do que como um problema. Seria
realmente uma grande perda privar os fiéis da possibilidade de esclarecer judicialmente sua
própria situação matrimonial. O importante é que a estrutura judicial seja acessível e o
processo tenha a devida celeridade, com uma dinâmica sempre focada na verdade. E, ao
final, devem caminhar juntas misericórdia e verdade.
2.3.2 Critérios da Reforma
Antes de apresentar as mudanças na atual legislação, o Papa Francisco explicitou os
critérios que conduziram a reforma do processo de nulidade matrimonial. o ao todo
oito. Todos eles vêm ao encontro da preocupação pastoral com a celeridade e
acessibilidade do processo judiciário. o uma resposta àquilo que os Bispos imploraram
ao Santo Padre: que os processos fossem mais rápidos e acessíveis. Cada um desses
critérios será agora objeto de uma breve análise.
- Uma única sentença favorável à nulidade é executiva. O cânon 1682, & 1,
determinava a necessidade de se transmitir ex ocio ao tribunal de apelação a sentença que
tivesse declarado por primeiro a nulidade do matrimônio. O tribunal de apelação deveria
confirmar por um decreto a decisão afirmativa, ou, então, encaminhar a causa para um
e
xame ordinário, que, ao final, levaria a uma sentença afirmativa ou negativa. Esta exigência
de uma dupla sentença foi objeto de discussão na III Assembleia Geral Extraordinária do
Sínodo dos Bispos, que pediram a sua supressão, depois assumida pelo Papa.
Os motivos para esse passo foram diversos. Destaca-se, inicialmente, um motivo de
ordem estatística. Referindo-se a um relatório da
atividade dos tribunais eclesiásticos na Igreja no ano de 2012, publicado em 2014,
consta que a mudança em segunda instância das sentenças pro nulitate matrimonii
(= favorável à nulidade do matrimônio) proferidas em primeira instância foi de 1
por cento nos Estados Unidos da América e no Canadá; de 7
,4 por cento na
Europa e de 3,3 por cento na Igreja como um todo (RIBEIRO, 2016, p.26).
Pondera-se, que essas poucas mudanças da primeira para a segunda sentença ainda
provenham, na maior parte, das apelações dos respectivos defensores do vínculo, ou,
então, do cônjuge que considera válido o matrimônio impugnado por seu consorte. Assim,
se na prática, a grande maioria das sentenças afirmativas encaminhadas aos tribunais de
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segunda instância era confirmada, parece não ter muito efeito prático e é um aumento
desnecessário do tempo do processo manter a exigência de uma dupla sentença. No mais,
suprindo essa exigência, como consta no cânon 1682, não está vedado o direito de apelação,
tanto das partes quanto do defensor do vínculo ou promotor. Ao final dessa discussão,
a dificuldade em observar os prazos fixados por lei, gerando uma grande
demora em prejuízo das partes, somada a pouca utilidade prática da exigência
estabelecida pelo cânon 1682, levaram o Papa Francisco a eliminar a exigência
da dupla sentença conforme que, aliás, é de direito eclesiástico, sem, com isso,
comprometer o direito das partes (privadas e públicas) de apelarem da decisão
(RIBEIRO, 2016, p. 30).
- O juiz único sob a responsabilidade do Bispo. Assim reza o texto: “A constituição
do juiz único, certamente clérigo, em primeira instância é confiada à responsabilidade do
Bispo que, no exercício pastoral do seu poder judicial, deverá assegurar que não se
consinta [em] qualquer forma de laxismo” (FRANCISCO, 2015a, Critérios da Reforma, p.2).
Essa possibilidade de um juiz monocrático na primeira instância para as causas que o
direito preceitua a necessidade de um tribunal colegial existia. Basta conferir o cânon
1425, & 4, que afirma: “No juízo de primeiro grau, o sendo possível, eventualmente,
constituir um colégio, a Conferência dos Bispos, enquanto perdurar tal possibilidade, pode
permitir ao Bispo confiar a causa a um único juiz clérigo que escolha para si, onde for
possível, um assessor e um auditor”.
O MIDI, entretanto, faz uma mudança em relação a essa possibilidade: agora o Bispo
diocesano não precisará mais solicitar a permissão da Conferência Episcopal para confiar
as causas a um único juiz clérigo em seu tribunal. Isso, porém, o significa que o Papa
abra a possibilidade de se criar tribunais diocesanos monocráticos à vontade, para tratar
das causas de nulidade matrimonial, eliminando a obrigatoriedade da tratativa colegial da
matéria. – É uma questão aberta, que é tratada em outro contexto.
- O próprio Bispo é juiz. Este critério também não é uma novidade absoluta, nem
no sentido teológico, nem jurídico. Quanto ao aspecto teológico, o Papa quer traduzir na
prática os ensinamentos do Concílio Vaticano II, ao estabelecer que “o próprio Bispo na
sua Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a
ele confiados”. Quanto ao aspecto jurídico, vários cânones que davam ao Bispo essa
competência de ser o juiz nas causas de nulidade matrimonial, a ponto de se perguntar:
qual, então, a novidade que esse critério do MIDI nos traz?
Cân. 391, & 1. Compete ao Bispo diocesano governar a Igreja particular que lhe é
confiada, com poder legislativo, executivo e judiciário, de acordo com o direito.
& 2. O Bispo mesmo exerce o poder legislativo; exerce o poder executivo
pessoalmente ou por meio de vigários gerais ou episcopais, de acordo com o
direito; exerce o poder judiciário pessoalmente ou por meio do Vigário Judicial
e dos juízes, de acordo com o direito.
Cân. 1419, & 1. Em cada diocese e para todas as causas não expressamente
excetuadas pelo direito, o juiz de primeira instância é o Bispo diocesano, que
pode exercer o poder judiciário pessoalmente ou por outros, segundo os
cânones seguintes.
Em Dignitas Connubii (DiC), contudo, se afirma que não convém que o Bispo
diocesano exercite pessoalmente o poder judiciário, a o ser que motivos especiais o
exijam. Isso significa que, na prática, até a publicação do MIDI, “a principal função
(embora o única) do Bispo diocesano, como juiz próprio, consistia em prover os ofícios
eclesiásticos previstos para a administração da justiça na Igreja local a ele
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confiada” (RIBEIRO, 2016, p.32). Mas, o Vigário Judicial e demais juízes exerciam vicária e
ordinariamente o poder judiciário, e raramente o Bispo reservava para si alguma causa.
Ora, o Papa propõe uma pastoral judiciária e quer uma maior proximidade entre as
partes e quem julga a nulidade matrimonial. Ciente do caráter pastoral do direito, quer que
as estruturas judiciárias da Igreja sejam mais acessíveis aos fiéis, evitando a elitização da
justiça. Por isso, prefere que sejam constituídos tribunais diocesanos, mas também deixa
aberta a possibilidade de tribunais interdiocesanos.
Enfim, o terceiro critério mostra que o Papa quer valorizar e, ao mesmo tempo,
envolver o Bispo diocesano na atividade judiciária, dela tomando parte de diversas maneiras:
seja na provisão dos ofícios judiciais, seja curando a preparação dos operadores
do tribunal eclesiástico diocesano, seja na criação de um serviço de caráter pré-
processual, talvez, ligado à pastoral familiar, seja julgando pessoalmente aquelas
causas que lhe forem remetidas pelo Vigário Judicial para serem decididas por
meio de um procedimento breve, salvo sempre o seu direito de avocar a si
outras causas dentro do âmbito de sua competência (RIBEIRO, 2016, p.34).
- O processo mais breve. Aqui o Papa anuncia uma forma de processo mais breve,
a ser aplicada apenas em casos onde a nulidade do matrimônio for sustentada por
argumentos particularmente evidentes. Atento, e para evitar que esse processo colocasse
em risco o princípio da indissolubilidade do matrimônio, ele o reservou ao Bispo
diocesano, que nele atuaria como juiz monocrático. O Bispo, em virtude de seu cargo
pastoral - entende o Romano Pontífice - é, com Pedro, o maior garante da unidade católica
na fé e na disciplina.
Entretanto, o é novidade absoluta a existência de um processo mais breve para
tratar da nulidade do matrimônio. O atual código de direito canônico estabelece rios
procedimentos judiciais mais breves. Por exemplo, “quando o motivo da nulidade é um
impedimento não dispensado ou um defeito da forma não sanado e documentos, não
impugnáveis, que demonstrem isso”. Também,
se a nulidade é devida a um defeito ou a um vício de consentimento, ou mesmo
quando não se pode demonstrar a existência de um impedimento ou um defeito
de forma mediante um documento não impugnável, a lei prevê dois graus de
juízo, sendo o primeiro chamado de processo (juízo) contencioso ordinário
(mantido), e o segundo de processo judicial abreviado (mantido, mas
modificado) (RIBEIRO, 2016, p.34).
Portanto, segundo Ribeiro, o CIC 83 estabelecia um processo judicial abreviado,
que, porém, foi modificado com a Reforma do Papa Francisco. Mas, o que interessa
particularmente aqui é um
procedimento judicial chamado ‘extraordinário’, que aparece indicado no artigo
118 da Lex Propria do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Esse processo
previa que a Assinatura Apostólica, por meio de um decreto conclusivo do seu
Prefeito, declarasse a nulidade do matrimônio, independentemente dos
motivos, desde que os dados existentes mostrassem a não necessidade de
sondagens posteriores (RIBEIRO, 2016, p.35).
Ao anunciar, agora, a adoção de um procedimento judicial mais breve, o Papa
Francisco está transferindo para os Bispos, e não para aos juízes, uma atribuição que, até
aí, cabia à Assinatura Apostólica (Cf. RIBEIRO, 2016, p.36-37). Este é, sem dúvida, um
gesto significativo para encurtar a distância entre as estruturas judiciárias e as pessoas que
delas necessitam. Faz parte de um movimento de aproximação da Igreja dos que estão à
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margem das estruturas e dos serviços eclesiásticos. O Bispo, que está mais próximo de seus
fiéis, é agora constituído como juiz monocrático, único, daqueles que lhe são confiados ao
seu pastoreio.
- Apelação à Metropolitana. O desejo do Papa é restabelecer a apelação à Sé
Metropolitana, uma vez que tal ofício de chefia da província eclesiástica, estável ao longo
dos séculos, é um sinal distintivo da sinodalidade na Igreja.
O atual Código da Igreja Católica, segundo Ribeiro, prevê quatro hipóteses para o
segundo grau na hierarquia dos tribunais territoriais, tendo cada uma suas normas
específicas. Assim se procura garantir o exercício do direito de apelação para a parte que
eventualmente se considerar injustiçada pela sentença. Sem examinar todas as
possibilidades, cabe destacar que, “a escolha do critério territorial, determinado pela área
geográfica da província eclesiástica, implica que o tribunal metropolitano seja o tribunal
de segunda instância para todos os tribunais diocesanos da província eclesiástica, isto é,
para todas as dioceses sufragâneas (cân. 1438, e DiC, art. 25, 1)” (RIBEIRO, 2016, p.37-
38). A mesma regra também se aplica a um eventual tribunal interdiocesano, se composto
por dioceses da mesma província.
- A tarefa própria das Conferências Episcopais. O Papa Francisco pede que as
Conferências Episcopais se deixem impelir pelo zelo apostólico para alcançar os fiéis
dispersos, respeitem e incentivem os Bispos na organização do exercício judicial em suas
Igrejas, ajudando-os a restaurar a proximidade entre o juiz e os fiéis, bem como a colocar
em prática toda a reforma do processo matrimonial.
Juntamente com a proximidade do juiz, o Papa quer que as Conferências Episcopais
cuidem, na medida do possível, da gratuidade dos processos, para que a Igreja,
“mostrando-se aos fiéis e generosa, em uma matéria tão estreitamente ligada à salvação
das almas, manifeste o amor gratuito de Cristo pelo qual todos fomos salvos”.
Entretanto, ao fazer o pedido da gratuidade, o Papa ao mesmo tempo recorda a
necessidade da justa e digna remuneração dos operadores dos tribunais, considerando que
muitos se dedicam integralmente a este serviço, provendo a si mesmos e, por vezes, suas
famílias (quando leigos), com o fruto de seu trabalho. Trata-se aqui de uma preocupação
que está em sintonia com o cânon 281, &1, do Código atual:
Os clérigos, na medida em que se dedicam ao ministério eclesiástico, merecem
uma remuneração condizente com a sua condição, levando-se em conta seja a
natureza do próprio ofício, sejam as condições do lugar e tempo, de modo que
com ela possam prover as necessidades de sua vida e também à justa retribuição
daqueles de cujo serviço necessitam (Código de Direito Canônico, 1983, c.1649).
Em relação à gratuidade do processo judicial canônico, o é algo totalmente novo.
O cânon 1649, &1 do atual Código da Igreja Católica estabelece que ao Bispo cabe
supervisionar o tribunal e estabelecer normas, e entre estas, conforme & 3, a possibilidade
do “gratuito patrocínio ou redução das despesas”. a impressão que o Santo Padre quer
avivar e urgir ou potencializar uma possibilidade que existia, mas pouco explorada. É
preciso ter mais sensibilidade pastoral, facilitando ao máximo o acesso dos fiéis aos
serviços da Igreja.
No mais, embora a gratuidade esteja incluída nos critérios que conduziram a
reforma do processo de nulidade matrimonial, nem os cânones e nem os artigos do MIDI
ocupam-se diretamente com ela. Da mesma forma no CIC 83, em momento algum, a
gratuidade é colocada como direito absoluto das partes envolvidas no processo de nulidade
matrimonial. O cânon 1649, 1, que trata dessa questão como referido permaneceu
inalterado no MIDI.
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Com isso pode-se concluir, que antes e agora, após a Reforma de Francisco, a
questão da gratuidade permanece aberta. Cabe ao Bispo, como supervisor do tribunal,
fixar normas a respeito do gratuito patrocínio e das custas processuais. Mas, com o MIDI
uma ressalva: ao se tratar de causas matrimoniais, é preciso contar com o apoio da
Conferência Episcopal, a quem cabe cuidar para que, dentro do possível, os processos de
nulidade sejam gratuitos. Ainda que o Bispo tenha autoridade e seja responsável, a
Conferência Episcopal é chamada a assumir sua corresponsabilidade.
- Apelação à Apostólica. O Papa optou por manter o direito de se apelar ao
Tribunal ordinário da Apostólica, isto é, à Rota Romana, em respeito a um princípio
muito antigo, de modo a reforçar o vínculo entre a de Pedro e as Igrejas particulares,
mas tendo o cuidado, na disciplina desta apelação, de impedir qualquer tipo de abuso do
direito, que pudesse causar algum dano à salvação das almas. Nesse sentido, ele também
comunicou que a lei própria da Rota Romana seria, quanto antes, adequada às regras do
processo da reforma, dentro dos limites do possível e necessário. Hoje, essa adequação, em
verdade, aconteceu. Pois, no dia 7 de dezembro de 2015 o Pontífice publicou um
documento no qual ele disciplinou o direito de apelação à Rota Romana (Cf. RIBEIRO,
2016, p.43, nota 23).
Alguém poderia questionar o que ou como esse critério da apelação à Sé Apostólica
pode favorecer a proximidade dos fiéis de dioceses não situadas em território europeu. Se,
entretanto, o Romano Pontífice mantém essa possibilidade de apelação, em nome da
unidade da Igreja, ele o faz com a devida adequação da própria Rota Romana, para torná-
la mais acessível e de acordo com a reforma, para quem necessitar e quiser exercitar o
direito de a ela recorrer.
- Previsões para as Igrejas Orientais. Aqui o Papa anuncia que, em virtude do
ordenamento eclesial e disciplinar das Igrejas Orientais, emanará, na mesma data, um
Motu próprio específico para reformar a disciplina dos processos matrimoniais no Código
dos Cânones das Igrejas Orientais. Portanto, este documento foi publicado junto com o
MIDI e se chama Mitis et Misericors Iesus (FRANCISCO, 2015b)
11
.
Por fim, feitas todas essas considerações, o Papa decreta e estabelece “que o Livro VII
do Código de Direito Canônico, Parte III, Título I, Capítulo I, sobre as causas para a
declaração de nulidade do matrimônio (cânones 1671-1691), a partir do dia 8 de Dezembro
de 2015, seja integralmente substituído” por um novo texto, fruto do trabalho da reforma,
e que agora é oficializado.
Certamente seria útil examinar detalhadamente todo o projeto da reforma,
verificando um a um os seus cânones, mas, pelo propósito deste artigo, focado no caráter
e nas considerações especificamente pastorais, pode-se dispensar essa tarefa. Fica,
portanto, dispensado o exame dos cânones propostos tanto pelo MIDI quanto pelo Mitis et
Misericors Iesus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As duas Cartas Apostólicas, aqui brevemente apresentadas e comentadas, ficam mais
claras se situadas no contexto mais amplo do pontificado do Papa Francisco. As falas do
Pontífice, suas escolhas e seus gestos são todos simbólicos, cheios de significado. A
começar pela própria escolha do nome “Francisco”, em deferência ao pobre de Assis:
11 Este Motu Proprio foi publicado pelas Edições CNBB juntamente com o MIDI na obra: FRANCISCO. Cartas
apostólicas em forma de Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus e Mitis et Misericors Iesus sobre a reforma do processo
canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito Canônico e no Código dos Cânones das
Igrejas Orientais. Documentos Pontifícios 23. Brasília: Edições CNBB, 2015b.
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está manifesta uma compreensão de Igreja e um projeto de pontificado com opção pastoral
prioritária aos mais pobres. Em seguida, dia 8 de julho de 2013, o Pontífice visita a Ilha de
Lampedusa, visando despertar acolhida e hospitalidade por parte dos governos e da
opinião público diante da multidão de imigrantes desesperados e, muitas deles,
naufragados. Enfim, todos os seus gestos e seus documentos são um convite para o que ele
chama de “Igreja em saída”, de ir ao encontro de quem está à margem, seja da Igreja, seja
da própria sociedade.
Aqui, em relação a Amoris Laetitia e ao MIDI, o que impressionou e motivou o Papa
Francisco a escrever essas encíclicas foram a fragilidade e as deficiências de muitos fiéis na
vivência do sacramento do matrimônio. É destes que a Igreja precisa se aproximar e
tornar-lhes acessíveis os seus serviços. Requer-se uma pastoral de amor misericordioso,
superando uma “moral fria de escritório” e abrindo o coração “àqueles que vivem nas mais
variadas periferias existenciais”.
Amoris Laetitia, em verdade, apresenta primeiro, positivamente, a beleza e a alegria
do amor na família, como sugere o próprio título. O matrimônio é uma vocação - diz o
texto “sendo uma resposta ao chamado específico para viver o amor conjugal como sinal
imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja” (FRANCISCO, 2016, p.64, n.72). Ainda mais,
ele não só sinaliza, mas é o próprio Cristo que “vem ao encontro dos cônjuges cristãos pelo
sacramento do matrimônio” (FRANCISCO, 2016, p.65, n.73). Feliz de quem compreende
e, pela graça de Deus, consegue viver esse amor.
No capítulo IV da encíclica, o amor matrimonial é tratado e ilustrado a partir do
“hino ao amor” de São Paulo de 1Cor 13,4-7. o fragmentos de um discurso amoroso que
procura descrever o amor humano em termos bem concretos. Ou seja, bem consciente do
quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos, pois, “não se deve atirar para cima
de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união
que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica ‘um
processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de
Deus’” (FRANCISCO, 2016, p.102, n.122).
Percebe-se um senso da realidade. Sem deixar de perseguir e anunciar o ideal
matrimonial do Evangelho, o Papa sempre tem mostrado muita sensibilidade pastoral e
misericórdia diante da fragilidade humana, que para muitos dificulta a vivência deste ideal.
Foi sob esse aspecto que o presente artigo se ocupou com a Amoris Laetitia,
particularmente em seu capítulo VIII, que trata especificamente de “acompanhar, discernir
e integrar a fragilidade”.
Ao abordar o tema Amoris Laetitia a caminho do MIDI”, procurou-se mostrar que
tem preocupações e se levantam questões que estarão na origem e terão um
encaminhamento mais concreto na Reforma do encaminhamento das causas de processo
de nulidade matrimonial. Não dúvidas, que “o matrimônio cristão, reflexo da união
entre Cristo e sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher,
que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade [...]” (FRANCISCO,
2016, p.242, n.292). Há, entretanto, formas de união que contradizem radicalmente este
ideal, enquanto outras o realizam parcialmente. Aí, nessas situações, que não
correspondem à compreensão que a Igreja tem do matrimônio, ela, contudo, não deixa de
valorizar o que já existe de construtivo.
Essas situações, muitas vezes chamadas de “irregulares”, merecem uma atenção
especial e um olhar misericordioso por parte do Papa, e nortearam a discussão deste
artigo. Aos pastores, escreve o Pontífice, cabe discernir nas mais diversas situações, pois,
sua missão não é só promoção do matrimônio, mas também “o discernimento pastoral das
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situações de muitas pessoas que deixaram de viver esta realidade”. A tarefa é identificar
elementos que favoreçam a evangelização e o crescimento humano e espiritual e valorizar
sinais de amor, que de algum modo refletem o amor de Deus. Trata-se de acolhê-las e
acompanhá-las com paciência e delicadeza, como o fez Jesus em seu diálogo com a
samaritana (Cf. Jo 4,4ss).
Sob o tema “preocupação pastoral e pastoral judiciária no MIDI”, procurou-se
mostrar que o mesmo espírito e a motivação pastoral presentes em Amoris Laetitia
verificam-se também na elaboração da Carta Apostólica em forma de Motu Próprio sobre
a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código
de Direito Canônico. Francisco parte de Jesus, manso Juiz e Pastor de nossas almas, que se
constitui em fundamento de seu projeto reformista. Jesus confiou sua missão e seu poder
ao Apóstolo Pedro e seus Sucessores, cabendo hoje aos pastores da Igreja o direito e o dever
da obra da justiça e da verdade, sempre conduzidos por um olhar misericordioso. Pois, “a
misericórdia não exclui a justiça e a verdade”, mas é, antes de tudo, “a plenitude da justiça e
a manifestação mais luminosa da verdade de Deus” (FRANCISCO, 2016, p.263, n.311).
Nesse sentido, considerando o afastamento de muitos fiéis da estrutura judiciária,
Francisco incentiva a criação de uma pastoral judiciária, inserida na pastoral familiar,
reforçando a estreita relação entre direito e pastoral. Sua função seria como que o “braço
estendido” da “Igreja em saída”, que vai ao encontro dos que estão distantes, e facilita o
acesso à estrutura judiciária. Cabe-lhe uma orientação e uma investigação preliminar ao
processo judiciário, com procedimentos que ajudarão aos fiéis que eventualmente se
dirigirem ao tribunal eclesiástico, para que cheguem preparados, no sentido de buscar a
verdade sobre o seu matrimônio “e o, simplesmente, para obter a nulidade a todo custo,
querendo que prevaleça de modo unilateral a sua percepção subjetiva dos
fatos” (FRANCISCO, 2016, p.46).
Finalmente, ao analisar “justificativa e critérios da Reforma”, procurou-se mostrar
que um caminho lógico e uma coerência entre as iniciativas e as investigações
anteriores ao processo judiciário, indicadas pelo Papa Francisco, e a justificativa e os
critérios que conduziram a reforma por ele decretada. Já no Proêmio do MIDI ele esclarece
que não está em discussão a doutrina da indissolubilidade do matrimônio, e recordou que
a lei suprema na Igreja é sempre a salus animarum (=a salvação das almas, cf. cân. 1752). Ou
seja, todas as instituições eclesiásticas têm o sentido de comunicar a graça divina e
favorecer o bem dos fiéis.
Ora, como favorecer o bem dos fiéis se eles estão distantes? É isso que leva o Romano
Pontífice a optar pela reforma do processo canônico de nulidade matrimonial. O que alimenta
o impulso reformador é o enorme número de fiéis que muitas vezes se afastam das estruturas
jurídicas da Igreja por causa da distância física ou moral. A caridade e a misericórdia exigem
que a Igreja, como mãe, se aproxime dos filhos que se consideram separados.
Evidencia-se a sensibilidade pastoral do Romano Pontífice, que quer evitar uma
“elitização” da justiça na Igreja. Nesse sentido são também estabelecidos os critérios que
orientaram a reforma, todos eles visando favorecer mais a proximidade entre os fiéis e as
estruturas judiciárias da Igreja, seja valorizando a figura do Bispo diocesano como juiz
próprio, seja atribuindo a ele a responsabilidade pela organização de uma pastoral
judiciária, incentivando-o, também, a criar o próprio tribunal diocesano, embora sempre
respeitando as normas das estruturas judiciárias da Igreja.
RUEDELL, Aloísio
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