A Revelação Divina na Sagrada Escritura:
Implicâncias para a ação evangelizadora hoje
Renan Paloschi Zanandréa
Nas reflexões teológicas, “tudo depende da revelação divina, tudo a ela se refere, nada se explica a não ser à sua luz”[1]. A Revelação é fundamento da reflexão teológica e sem ela “o cristianismo seria um capítulo da história da filosofia, da ética ou da política”[2]. Por meio da Revelação, “quis Deus manifestar-se e comunicar-se a si mesmo e os decretos eternos da sua vontade a respeito da salvação dos homens” (DV 6). Isso ainda nos leva a compreender que o estudo da revelação nunca se esgota, porque “não é somente um fato, mas um mistério”[3].
Se pode dizer, então, que a Revelação é a base de todo o edifício dos estudos teológicos, a tal ponto de também ser chamada Teologia Fundamental, já que é o fundamento e pressuposto para todas as demais reflexões no âmbito teológico e do ponto de vista da fé. Inclusive “é tarefa específica da Teologia Fundamental entender e interpretar a credibilidade da autorrevelação de Deus”[4].
O Concílio Vaticano II provocou para um aprofundamento significativo na compreensão da Revelação, de modo especial com a Constituição Dogmática Dei Verbum. Esta apresenta a Revelação como ato de manifestação pessoal de Deus ao ser humano: Ele se autocomunica, dá-se a conhecer, manifesta-se na história, vai ao encontro de cada pessoa humana, de cada povo, em cada contexto. Cabe ao ser humano, por sua vez, dar uma resposta a essa manifestação de Deus.
A Revelação divina acontece desde a criação do mundo, quando Deus deu-se a conhecer em toda obra criada, embora isso só tenha sido compreendido tardiamente. É por seu amor que Deus manifesta-se em tudo que cria. Mas num momento da história universal, Deus escolheu um povo para iniciar uma verdadeira história da salvação. Foi a um povo pobre que Ele escolheu para autocomunicar-se de maneira mais próxima, revelando-se no concreto da vida daquelas famílias. De maneira plena revelou-se Deus em seu Filho, Jesus Cristo, que se encarnou no seio de uma família simples de Nazaré e anunciou o Reino àqueles que desde muito esperavam o Messias.
Essa compreensão de Revelação, que fomos provocados a aprofundar desde o Concílio Vaticano II, também nos faz pensar no contexto em que estamos inseridos hoje. Em meio às sombras do mundo moderno, às diversas formas de ataques à vida, a uma secularização crescente, a várias crises na própria práxis evangelizadora da Igreja, somos desafiados a olhar com atenção para a ação evangelizadora atualmente. Não é possível pensar nas reflexões teológicas para que fiquem engavetadas nas escrivaninhas, ou arquivadas nas academias. Devem ser pensadas para que tenham realmente impacto na vida do povo de Deus, especialmente por meio da ação evangelizadora, missão da Igreja e de todos os discípulos de Jesus Cristo.
A questão fundamental é: quais as luzes que brotam da Sagrada Escritura para a ação evangelizadora hoje? Para isso, outras questões mais específicas são importantes: como deu-se Deus a conhecer ao longo de toda Escritura Sagrada, seja no Antigo ou no Novo Testamento? Qual é o núcleo central de toda Revelação bíblica? Como anunciar essa Palavra no hoje da história, por meio da ação evangelizadora da Igreja? Para isso, ele foi desenvolvido numa reflexão como que crescente: parte-se do Antigo Testamento, passando por Abraão, pela libertação e aliança de Deus com o povo e pelo testemunho dos profetas; chega-se ao Novo Testamento, dando especial atenção ao Verbo que se fez carne e que revelou a face de Deus como amor e que faz opção preferencial pelos pobres. Ao chegar ao ponto central desta pesquisa, finalmente entramos naquilo que nos compete hoje, a ação evangelizadora, que deve fundamentar-se, de modo especial, na própria Sagrada Escritura.
Por isso podemos dizer que o ponto alto dos dois primeiros capítulos é conseguir chegar àquilo que é o centro de toda reflexão bíblica: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16) e faz opção preferencial pelos pobres. Ele não é uma entidade distante, que criou o ser humano e o abandonou à própria sorte, mas está sempre próximo, caminhando com o povo, acompanhando, ajudando a reerguer-se nas quedas, curando, libertando, sendo presença ativa. Por isso podemos dizer que o Deus que se autocomunica desde o princípio “e que se dá a conhecer ao povo eleito é o Ser supremo, o ser por excelência, ao tempo que está próximo à vida humana e acompanha sua história, dado que Nele o homem tem sua origem e ao qual se mantém sempre próximo, pois a acompanha continuamente”[5]. É um Deus que está, portanto, “no meio de nós”.
O terceiro capítulo, por sua vez, à luz do estudo da Escritura, aponta luzes para a ação evangelizadora hoje, que deve ter como fundamento o amor, precisa estar a serviço da vida, ser fiel aos “queridos” de Deus, é missão da Igreja e deve ser realizada num mundo em transformação. Tudo isso exige um encontro pessoal com Cristo que deve ser realizado por cada discípulo.
Já que tem como eixo central a Escritura e a ação evangelizadora, o trabalho fundamenta-se, além da Bíblia, em documentos do Concílio Vaticano II, especialmente a Constituição Dogmática Dei Verbum. Também são fundamentais as cartas papais Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, e Evangelii Gaudium, do Papa Francisco, que formam como que dois grandes itinerários para a evangelização no mundo contemporâneo. Não poderiam ficar de fora, evidentemente, o Documento de Aparecida e as Diretrizes Gerais para a Ação Evangelizadora 2019-2023, da Igreja do Brasil.
O objetivo não foi fechar o estudo das implicações da Revelação divina na Sagrada Escritura para a ação evangelizadora. Neste mundo em que as pessoas estão marcadas pelo medo, o individualismo e o fechamento, quis este trabalho provocar para a reflexão de que evangelizar hoje é fundamental, mas nunca se deve deixar de ter como base a Palavra de Deus, que se dá a conhecer de modo privilegiado nas Sagradas Escrituras. Faz-se necessário sensibilizar a todos de que evangelizar é preciso, superando tudo que é contrário a essa missão. O desejo é de que tudo isso sirva para que a Palavra seja anunciada em todo tempo e lugar, por amor e com amor, para que o amor se difunda e Deus reine no coração de cada pessoa humana.
[1] LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. p. 6.
[2] “El cristianismo sería un capítulo de la historia de la filosofia, de la ética o de la política” (CARDEDAL apud FERNÁNDEZ, Aurelio. Teologia Dogmática I. p. 306-307, tradução nossa).
[3] LATOURELLE, René. Teologia da Revelação. p. 7.
[4] LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino. Dicionário de teologia fundamental. p. 50, verbete “amor”.
[5] “Y que se da a conocer al pueblo elegido es el Ser supremo, el ser por excelencia, al tiempo que está cercano a la vida humana y acompaña su historia, dado que en El el hombre tiene su origen y al cual se mantiene siempre cercano, pues le acompaña de continuo” (FERNÁNDEZ, Aurelio. Teologia Dogmática I. p. 309, tradução nossa).