Memórias de Aula: um método espiritual para estudar teologia

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Na disciplina de Teologia Espiritual, da Itepa Faculdades, usamos um método em que o estudante escreve “memórias de aula”. Elas não se tratam de um relatório ou de um registro de cada aula, mas de algo que envolve, de modo mais intenso, a subjetividade da pessoa, que, entre outras formas, pode “escrever uma carta sobre a aula para alguém”. Por isso, cada memória é única, com aspectos que manifestam toques da espiritualidade do autor. Podemos, inclusive, buscar outras informações para tornar a memória mais significativa para nós próprios, para os destinatários e para a turma.

Como fazemos as memórias? Durante as aulas, realizamos anotações do conteúdo abordado. Chegando em casa, a partir destes escritos pessoais, elaboramos uma “carta” para alguém, contando a aula e os sentimentos tidos durante a mesma. Além disso, podemos acrescentar outros aspectos, relacionando os conteúdos com a realidade, com outros temas já aprofundados, com experiências pastorais realizadas, etc. Na aula seguinte, um dos estudantes partilha a sua memória com a turma, que faz comentários e oferece sugestões para torná-la ainda melhor. Depois disto, quando possível, a memória é enviada ao destinatário.

Este método, faz parte da tradição espiritual. As primeiras comunidades cristãs, através dos textos neotestamentários, especialmente dos quatro Evangelhos, nos legaram quatro “memórias” da experiência do discipulado com Jesus. Diversos modelos espirituais insistem na importância de registrar as memórias. A título de exemplo, Santo Inácio de Loyola ensinou a fazer os exercícios espirituais com esta metodologia. Diversos santos escreveram a memória da sua vida, como Santa Terezinha do Menino Jesus, que redigiu a História de uma Alma. São João XXIII escreveu o seu Diário e, Dom Helder Camara, compôs, quase que diariamente e, por anos, as Circulares à Família Macejanense.

Abaixo, apresentaremos uma memória do acadêmico Moisés Geremia, da aula do dia 05 de outubro de 2018, destinada ao seu colega Dalcinei Sacheti, seminarista da Arquidiocese de Passo Fundo e acadêmico do primeiro ano de Teologia. O Prof. Pe. Ivanir Antonio Rampon sugeriu ao Moisés que dedicasse esta memória também aos leitores do site do Itepa. Por isso, ela é dirigida também a você! Boa leitura!


Memória de Aula do dia 05 de agosto de 2018

Querido Dalcinei,

Escrevi essa memória de Teologia da Espiritualidade para você. Nela, trabalhei assuntos importantíssimos que, muitas vezes, conversamos em momentos informais, como no caminho de volta da Itepa Faculdades para o Seminário. Espero que o texto seja uma espécie de motivação para o seu fazer teológico. Devo dizer, antes de tudo, que as aulas com o Pe. Ivanir Antonio Rampon são provocadoras, surpreendentes, profundas e exigentes. Para você se situar, destaco alguns conteúdos que já vimos: a especificidade da Teologia da Espiritualidade; a relação histórica entre a Teologia e a Espiritualidade (essa parte foi bem complexa); a relação entre Deus e as criaturas e a relação entre Deus e os seres humanos.

Na aula do dia 08, começamos vendo que, durante milhões de anos, à semelhança de uma mãe em gestação, a terra preparou-se, guardou energia e, sobretudo, resiliência (através do húmus) para nos gerar. De acordo com a antropologia semita, somos basar, ou seja, terra molhada com capacidade de fecundar, crescer, desabrochar e florir; da terra viemos, terra somos e para a terra voltaremos. O teólogo Leonardo Boff, no livro Ética da vida, disse: “o ser humano é a própria terra enquanto sente, pensa, chora e venera” (p. 31-32). Assim, o nosso corpo nos faz irmãos de tudo o que existe neste planeta. Porém, diferentemente dos outros seres, temos quatro características próprias, exclusivas: conhecemos, amamos, adoramos e somos livres. Por isso, enquanto pessoas humanas, somos o princípio antrópico da terra, pois Deus nos deu a missão de participar da sua obra como co-criadores, corredentores e cossantificadores.

Hoje, grandes cientistas concordam com a visão de que não somos estrangeiros ou extraterrestres – como compreendia o dualismo do pensamento grego –, mas filhos da terra. As grandes descobertas científicas, surpreendentemente, aproximam-se de elementos mitológicos dos textos bíblicos. No relato da criação de Gn 1,1-2,4a, por exemplo, afirma-se que Deus criou tudo e, somente depois plasmou o ser humano. Ligado a isso, as ciências que trabalham os conteúdos relativos ao início da vida na terra dizem que vários processos existiram antes de nós e que eles garantiram um espaço adequado para o nosso desenvolvimento. Nesta linha, a fé cristã preconiza que não estamos aqui por acaso: Alguém nos quis e, por causa deste querer, assegurou o equilíbrio de variadas constantes físico-químicas que determinam o nosso ambiente.

Francis Sellers Collins, geneticista que trabalhou no Projeto Genoma Humano, disse: “a vida inteligente não é acidental e sim reflete a ação de algo que criou o universo em primeiro lugar”. Em outras palavras, ele concluiu que não surgimos do acaso, pois “nosso universo é monstruosamente improvável”. Na Teologia afirmamos, assim, que Deus tem um plano criador. O Projeto Genoma descobriu, a título de informação, que o genoma humano é em torno de 98% parecido com o de uma borboleta, o que nos assombra ainda mais.

Enfim, a Terra demorou muito tempo para nos gerar a fim de que, posteriormente, fôssemos parte dela. Porém, nós, seres humanos, iniciamos um processo de destruição da resiliência, a força regeneradora e renovadora que garante a evolução da vida terrestre mesmo depois dos cataclismos planetários. Esse é o problema ecológico fundamental de nossos dias. A agressão desenfreada ao planeta tem levado à diminuição da resiliência dele, o que é um atentado a todas as formas de vida e também à vida humana. Acompanhamos, no contexto atual, a uma grave crise ecológica, com perdas irreparáveis. Segundo a organização WWF[1], a estimativa feita pelos especialistas é que a extinção acelerada de espécies que assistimos hoje está entre mil e dez mil vezes acima da taxa considerada natural. As notícias não são boas: como ainda não sabemos exatamente a totalidade da variedade biológica que temos, esse número pode ser ainda maior. A biosfera, definitivamente, está ameaçada pela ânsia de consumo do atual paradigma de “desenvolvimento”.

Paradoxalmente, transformamo-nos em matricidas, em filhos que destroem a própria mãe e, como resultado disso, nos tornamos menos humanos. A nossa Mãe-Terra está nos chamando a atenção e pedindo socorro. Porém, como somos analfabetos ecológicos, não entendemos o grito da mãe que, segundo o Papa Francisco, é também o clamor dos pobres.

Em 1969, pela primeira vez, na missão Apollo 11, vimos a terra de longe: descobrimos que ela é um minúsculo ponto azul no universo, formada, na maior parte da superfície, por água (como um útero). A partir daquele momento, começou a ganhar consistência a chamada Hipótese Gaia, que é aceita por muitos cientistas. Na mitologia grega, Gaia era considerada a deusa terra. Nesta perspectiva, a terra não é vista como um objeto morto, mas como um grande organismo vivo. De fato, ao longo de sua história, ela enfrentou muitos assaltos cósmicos, mas sempre conseguiu sobreviver; agora a situação mudou. Talvez ela tenha que eliminar o genocida e o ecocida, o ser humano, para gerar outro filho melhor, com mais consciência, inteligência, liberdade e amor. No fundo, se isso acontecer, a culpa não será dela, mas nossa, pois somos, em outras palavras, causadores e vítimas das perturbações da terra. Essa hipótese não nega nossa fé cristã, pelo contrário: afirma todo o problema das consequências do pecado original e de outras perversões que realizamos.

Depois disso, Dalcinei, lemos um artigo do Leonardo Boff, intitulado A vida como imperativo cósmico, e destacamos alguns aspectos dele, mas não me deterei a rememorá-los neste texto.

Em seguida iniciamos um novo assunto, a saber, “a caminhada da libertação” nos dias atuais. Como princípio antrópico podemos participar da criação e da caminhada de libertação. Javé Deus nos quer vivos e livres de todas as opressões. Para que isso aconteça, precisamos adorar de maneira correta.  A adoração não é um elemento humano secundário ou um elemento específico das religiões, mas faz parte da natureza humana e é essencial, se bem realizada, para manter a resiliência, a evolução e a pegada ecológica. Adorar é pautar a vida pelo verdadeiro absoluto, que é Aquele que nos criou. Os ídolos, que adoramos no lugar do Deus Vivo e Verdadeiro, nos escravizam, nos repreendem, exigem o nosso sangue, o nosso suor e o sacrifício da vida do planeta; eles nos colocam contra o verdadeiro Deus e querem que consagremos nossas vidas a eles. Quando não os atendemos, responsabilizam as vítimas. Marduc, deus babilônico, por exemplo, queria o sangue das crianças, o melhor trigo, os primeiros frutos. Nesse caso, quando acontecia uma seca, a culpa era do povo oprimido que não tinha feito os sacrifícios necessários.

O ídolo Mercado exigiu a Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC da Morte, que congelou investimentos públicos com educação e saúde por vinte anos. Este é o pior ídolo que já existiu, o mais perverso. Os outros exploravam os pobres, mas sem ferir a resiliência da terra. Agora a situação mudou. O mercado quer a resiliência da terra e o sacrifício dos pobres.

Os ídolos são falsos: eles têm braço de ferro e cabeça de ouro, mas caem porque possuem pés de barro, ou seja, são criaturas. Foi o que aconteceu com o Império Romano, com o regime de Cristandade, com o Socialismo Real, com o Fascismo e o Nazismo: terminaram, mas causaram muitos estragos na sua ação e na sua queda, produzindo incontáveis vítimas. Assim acontecerá com o mercado. Ele acabará justamente porque é ineficaz na preservação da vida humana e do meio ambiente. Segundo Leonardo Boff “dados recentes apontam que 2/3 da Inteligência mundial trabalha em projetos militares” (Ética da Vida, p. 45-46). Mesmo após o fim da Guerra Fria, aplicam-se trilhões de dólares por ano na indústria da morte.

Estudos apontam que seriam necessários três planetas do tamanho da terra para garantir o sangue, o suor e o sacrifício que o mercado exige. O modelo de desenvolvimento de nossos dias produz muito lixo, escórias radioativas, rejeitos tóxicos, chuvas ácidas, diminuição da camada de ozônio, envenenamento da terra, da água e do ar, doenças, fome, falta de lazer, saúde e habitação. Não haverá outra oportunidade para o ser humano. Se não mudarmos de atitude, o ídolo somente será vencido quando Gaia nos expulsar.

Existem dois aspectos que mostram a fragilidade do mercado. Primeiro: o mito do progresso e do consumo ilimitados, pois todas as coisas humanas são finitas: “a terra satisfaz a necessidade de todos; mas não a voracidade dos consumistas” (Gandhi). Segundo: a exaustão de Gaia, pois ela está extremamente cansada. É preciso por balizas e frear a exploração irracional (Documento de Aparecida, n. 473).

O capitalismo neoliberal tinha fé de que a mão invisível do ídolo resolveria os problemas da humanidade, desde que o obedecêssemos cegamente. Tal proposição é uma mentira: o capitalismo neoliberal é o máximo do fracasso que a humanidade chegou. Com ele, aumentaram as guerras, a fome e as desigualdades.

Enfim, nossa fé nos leva a acreditar que um outro mundo, sem ídolos, é possível. Para isso precisamos fazer como o meu xará Moisés: participar da caminhada de libertação dos pobres e da terra. Dom Helder Camara dizia: “temos a graça de viver num dos momentos mais decisivos da história”. Nossa responsabilidade é grande. Como seguidores de Jesus Cristo, imperfeitos, queremos somar, nos voltar para o Deus Javé, e sonhar com outro mundo. Por fim, o Pe. Ivanir terminou com uma expressão: “Quem não adora, quem não se ajoelha diante do verdadeiro Deus, acaba se ajoelhando diante dos ídolos”.

Dalcinei, espero que você tenha gostado dessa breve memória da última aula de Teologia da Espiritualidade. Se alguma coisa não ficou suficientemente clara, podemos conversar pessoalmente. Não desanimemos diante de nossa missão, mas caminhemos com esperança e fé.

Notas

[1]Quantas espécies estamos perdendo? Disponível em <www.wwf.org.br/natureza_brasileira/especiais/biodiversidade/quantas_especies_estamos_perdendo/>.

 

Moisés Geremia